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TEORIA DA PERSONALIDADE OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Descrever a teoria psicossocial do desenvolvimento para Erik Erikson. > Definir o ego na teoria pós-freudiana de Erik Erikson. > Caracterizar o processo de avaliação da personalidade, proposto por Erik Erikson. Introdução Erik Homburger Erikson produziu uma interessante e complexa teoria sobre a personalidade. Sua teoria apresenta, como alguns de seus conceitos centrais, a ideia de crise e de identidade. Erikson (1976) sugeriu que o desenvolvimento psíquico do ser humano ocorre durante toda a sua vida e propôs oito estágios diferentes. Cada estágio do desenvolvimento psicossocial é compreendido por esse autor como uma crise, um momento no qual o ego se encontra embaraçado diante de problemáticas relacionadas à construção de seu senso de identidade. Para o autor, o ego pode ser compreendido como uma estrutura da personalidade criativa que constrói uma relação proativa com a realidade, além de ser fortemente influenciado pelas particularidades socioculturais da cultura a qual está imerso. Portanto, Erikson também estava atento para a influência de fatores sociais e Ego e desenvolvimento psicossocial em Erik Erikson Victor de Jesus S. Costa culturais, por isso ressaltou os aspectos psicossociais no desenvolvimento da personalidade. Neste capítulo, você estudará sobre os oito estágios do desenvolvimento psicossocial propostos por Erikson, conhecerá a definição de ego dada pelo psicanalista e será apresentado ao processo de avaliação da personalidade criado por ele. Os oitos estágios do desenvolvimento psicossocial A teoria do desenvolvimento psicossocial é a maior contribuição de Erikson para a psicologia (SCHULTZ; SCHULTZ, 2021). Entre suas inovações, estão a concepção de que enquanto há vida, há desenvolvimento — ou seja, o ser humano está sempre se desenvolvendo —, e a ênfase na importância na construção do senso de identidade para o amadurecimento da personalidade. Erikson (1976) propôs oito diferentes estágios que abarcariam o desenvol- vimento psíquico humano. Cada estágio é caracterizado por uma crise, isto é, um intenso conflito emocional descrito por um antagonismo entre dois diferentes sentimentos: 1. o primeiro estágio é determinado pelo antagonismo entre a confiança básica versus a desconfiança básica; 2. segundo — autonomia versus vergonha e dúvida; 3. terceiro — iniciativa versus culpa; 4. quarto — diligência versus inferioridade; 5. quinto — identidade versus confusão de identidade; 6. sexto — intimidade versus isolamento; 7. sétimo — generatividade versus estagnação; 8. último — integridade versus desespero. A seguir, analisaremos a especificidade de cada estágio. Confiança básica versus desconfiança básica Nesse primeiro estágio do desenvolvimento psicossocial proposto por Erikson (1976), o bebê recém-nascido encontra-se diante da construção do sentimento de confiança. Erikson define a confiança como “[...] uma segurança íntima na conduta dos outros, assim como um sentido fundamental de boa conceitua- Ego e desenvolvimento psicossocial em Erik Erikson2 ção própria” (ERIKSON, 1976, p. 97). A confiança básica é compreendida como a pedra angular da personalidade e é a fonte do sentimento de esperança (ERIKSON, 1998). O conflito entre a confiança básica e a desconfiança básica se dá na relação entre o bebê e a mãe. A mãe, no início da vida pós-natal, é a princi- pal representante do mundo exterior e apresenta-se ao filho por meio da amamentação; o filho, por sua vez, se relaciona com ela por meio da sucção do leite. Portanto, a boca é a primeira forma de relação dos bebês, o que justifica a nomeação desse processo como fase oral. A periodicidade, a uniformidade e a qualidade dos cuidados maternais contribuem para que essa fase do desenvolvimento seja vivenciada com êxito. Se a confiança na continuidade e na uniformidade dos cuidados maternais e o incremento na capacidade de conter seus próprios anseios por parte do bebê forem maiores do que a desconfiança inata direcionada ao outro e a si mesmo, o sentimento de esperança pode se consolidar (ERIKSON, 1976). Dessa maneira, a criança poderá constituir um forte senso de identidade e idoneidade, os quais proporcionarão os sentimentos de estar “certo” e de ser digno da confiança dos outros. No entanto, caso a desconfiança seja maior do que a confiança, a criança poderá desenvolver-se como um adulto retraído que desconfia das próprias qualidades e das qualidades do outro. Autonomia versus vergonha e dúvida Esse estágio é caracterizado pelo maior controle muscular e motor da criança. Durante o segundo ano de vida, há uma evolução da maturação muscular, da discriminação e da verbalização (ERIKSON, 1976), e essas novas experiências proporcionam à criança a possibilidade de “reter” e de “expulsar” as coisas. O modelo utilizado pelo autor é o controle esfincteriano desenvolvido pela criança, por isso esse estágio é chamado de estágio anal. Erikson (1976) propõe que a possibilidade de reter e de expulsar pode promover o sentimento de autonomia no bebê. Outro exemplo do ganho de autonomia da criança é a aquisição da habilidade de segurar firmemente ob- jetos, podendo assim guardá-los para si ou oferecê-los ao outro. Se a criança e seus pais conseguirem lidar com essa nova fase da vida emocional infantil de forma satisfatória, isto é, a criança pouco a pouco se sentir cada vez mais segura para exercer sua autonomia e os pais serem capazes de respeitar o ganho de autonomia do filho, um profundo sentimento de livre arbítrio pode se instaurar e ser fonte da vontade. Já se o pequeno experienciar essa fase por meio de um supercontrole parental, um sentimento de perda de controle Ego e desenvolvimento psicossocial em Erik Erikson 3 por parte da criança pode se instaurar e a dúvida e a vergonha podem se manifestar, dificultando o desenvolvimento emocional infantil (ERIKSON, 1998). Essa sensação de falta de controle pode ser manifestar por meio de comportamentos compulsivos, por exemplo, lavar a mão repetidamente, necessitar apagar as luzes diversas vezes antes de ir dormir, etc. Iniciativa versus culpa O terceiro estágio do desenvolvimento psicossocial é reconhecido pela crise emocional associada ao conflito iniciativa versus culpa. O seguimento do desenvolvimento muscular e linguístico infantil permite que a criança se mova mais facilmente e de forma mais vigorosa no mundo e favorece a ima- ginação (ERIKSON, 1976). Essa conjunção de fatores possibilita o surgimento do sentimento de propósito; a criança agora é capaz de fantasiar a ocupação do lugar e exercer os papéis materno e paterno, visto que o casal parental, muitas vezes, ocupa o lugar de ideal na mente de seu filho. A criança, ao imaginar-se ocupando o lugar de seus pais, pode se identificar com eles e com tudo o que ela imagina que os pais são capazes de fazer. Dessa forma, o sentimento de propósito pode surgir e motivar a criança a exercer uma posição de iniciativa perante o mundo, assim contribuindo para seu processo de formação de identidade. Todavia, o autor faz a ressalva de que, uma vez que a criança fantasia ocupar o lugar de pai e/ou de mãe e de ser portadora de todas as qualidades de seus pais, os sentimentos de rivalidade e culpa aparecem, além de uma arcaica consciência moral. Erikson aproxima esse estágio do desenvolvimento psicossocial à fase fálica e ao complexo de Édipo propostos por Freud, uma vez que é nela que a curiosidade infantil se intensifica, principalmente em relação ao seu corpo e à sexualidade (ERIKSON,1976). Diligência versus inferioridade O quarto estágio é marcado pela entrada na idade escolar. A criança não convive mais somente com sua família nuclear, ela começa a conviver, de forma mais assídua, com outros adultos e crianças. Essa diversificação das relações proporciona que o pequeno se identifique com outras pessoas além de seus pais, e o compartilhamento de tarefas e responsabilidadescom outras crianças favorece o sentimento de competência (ERIKSON,1976). O perigo desse estágio é a possibilidade de o sentimento de inferioridade sobrepor o interesse infantil de exercer novas tarefas, isto é, a diligência. O Ego e desenvolvimento psicossocial em Erik Erikson4 sentimento de inferioridade provocaria uma inércia psíquica e física, isto é, a criança, por se sentir inferior e incompetente em relação aos demais, não se dispõe a aprender nenhuma nova habilidade. Identidade versus confusão de identidade Erikson (1976) caracteriza a puberdade como um período no qual ocorre revisão e integração dos elementos de identidades constituídos nas fases anteriores. De certa maneira, o adolescente busca o olhar do outro para a compreensão de seu senso de identidade. Isso se faz presente no sentimento de fidelidade, típico da adolescência, aos grupos aos quais ele pertence ou, do lado negativo da moeda, no repúdio dirigido às outras pessoas, uma vez que elas provocam uma confusão de identidade. A confiança, afeto fundamental do primeiro estágio, surge como uma procura assídua por pessoas e ideias nas quais o adolescente possa ter fé. Já a autonomia, desenvolvida no estágio anal, comparece pelo desejo de querer livremente decidir os rumos de sua vida. A imaginação e a rivalidade proporcionada pelo terceiro estágio oportunizam ao adolescente a admiração às pessoas mais velhas. Por fim, a competência se faz presente na escolha por uma profissão na qual ele possa se destacar. Todo esse processo é marcado por diversas crises de identidade, visto que o adolescente reavalia diferentes aspectos de sua personalidade (ERIKSON, 1976). Intimidade versus isolamento O jovem adulto está ansioso para compartilhar suas experiências com ou- tras pessoas de forma mais profunda e intensa (ERIKSON, 1998). As relações de trabalho, sexuais e de amizades são engendradas pelo sentimento de intimidade. Contudo, Erikson ressalta que a verdadeira intimidade é fruto da capacidade de se comprometer com o outro de forma verdadeira, o que exige sacrifícios, além de compromissos. O amor é o sentimento que nutre e fortalece essas relações íntimas, portanto é possível considerar que o amor é o sentimento primordial que guia e fortalece as experiências de intimidade. O extravio da intimidade é o isolamento, i.e., o receio de permanecer “[...] não reconhecido” (ERIKSON, 1998, p. 62). Erikson destaca que o isolamento também é possível a dois, um intenso sentimento de exclusividade que tende a excluir do casal suas relações com o mundo. Ego e desenvolvimento psicossocial em Erik Erikson 5 Generatividade versus estagnação A fase adulta é marcada por criatividade, procriatividade e produtividade, conjunto de qualidades que o autor nomeou como generatividade (ERIKSON, 1998). A generatividade é entendida como exercício de competências cria- doras por meio da geração de novas ideias, produtos e novos seres. Caso esse potencial criativo não seja aproveitado, um forte senso de estagnação se faz presente. A produção de novas ideias e, em especial, a geração de um filho oportu- niza o desabrochar do cuidado, qualidade tão fundamental das relações. O cuidado é fruto da soma de todos os elementos de identidade anteriores, isto é, confiança, vontade, propósito, competência, fidelidade e amor. Todavia, Erickson (1998) faz a ressalva de que o cuidado pode ser contaminado pelo sentimento de rejeição, ou seja, o adulto se dispõe a cuidar exclusivamente daqueles que lhe são próximos ou apenas de si e rejeitar todas as demais pessoas. Integridade versus desespero A velhice é marcada por uma perda relativa de autonomia e pela consciência da proximidade da morte. Erikson (1998) afirma que o sentimento de integri- dade, que é fundamental para o advento da sabedoria, é resultado de uma atitude imparcial e, ao mesmo tempo, preocupada com a vida em si e a morte em si. A sabedoria tem o importante papel de operar como uma inspiração para as novas gerações, sendo a sua contrapartida o desdém. O desdém é compreendido como a atitude de enxergar a si mesmo e ao outro cada vez mais acabados, deteriorados e desamparados. Como explicitado por Hall, Lindzey e Campbell (2000), a teoria de Erik Erikson segue o princípio epigenético, ou seja, cada estágio contribui para a formação da personalidade e continua a influenciar o seu desenvolvimento mesmo que ele já tenha sido atravessado. Isso consiste em considerar que, durante o atendimento de um paciente adulto, o terapeuta deverá estar atento a todos os estágios do desenvolvimento psicossocial que já foram vivenciados por ele, não somente àquele que ele está vivendo no momento. Os oito estágios do desenvolvimento psicossocial, desse modo, são uma importante e significativa contribuição de Erikson à psicologia. Como exposto, fatores socioculturais desempenham um papel fundamental nesse processo. Ego e desenvolvimento psicossocial em Erik Erikson6 Cada estágio precisa ser compreendido tanto pelo ponto de vista social quanto pelo ponto de vista individual e psicológico, em um processo de avaliação de personalidade. A ênfase em fatores culturais e a concepção de que o ser humano está sempre se desenvolvendo indicam que a concepção de ego de Erikson é inovadora e distinta da concepção freudiana, fundamentada principalmente no desenvolvimento psicossexual e na relação que o ego mantém com o id e com o superego. É sobre o conceito de ego proposto por Erikson que nos aprofundaremos a seguir. O ego para Erik Erikson A noção de ego formulada por Erik Erikson destoa da noção freudiana. Hall, Lindzey e Campbell (2000) relembram que, para Freud (2011), o ego é um servo que atende a três diferentes senhores: ao Id — representante da vida pulsional —; à realidade — representante do mundo externo — e ao superego — represen- tante da cultura. Diante de demandas muitas vezes inconciliáveis, o ego recorre a diferentes mecanismos de defesa, tal como o recalque, ou seja, a retirada da consciência de representações psíquicas que geram desprazer. Portanto, por esse vértice teórico, o ego é parte executiva da personalidade e uma estrutura defensiva. Nessa conceituação de ego, há pouca ênfase na influência de fatores sociais na estruturação egoica, ênfase que foi feita por Erikson. Erikson (1998) destaca os fatores psicossociais na constituição egoica, ou seja, as influências que os meios sociais, como a cultura, a educação, o trabalho, entre outros, exercem sobre a estruturação do ego. Como exposto anteriormente, durante os oito estágios do desenvolvimento psicossocial, o ego se vê diante de diferentes crises, e todas elas são intermediadas por aspectos socioculturais. A maneira como elas serão vivenciadas é diferente de uma cultura para outra; por exemplo, enquanto em nossa sociedade é comum que seja a mãe que amamente o filho e o desmame aconteça a partir dos seis meses de idade; em outras culturas a amamentação não ocorre necessariamente pela mãe, e o desmame é mais tardio. Essas diferenças sociais influenciam a forma como o recém-nascido vivenciará o estágio oral. Hall, Lindzey e Campbell (2000) afirmam que o ego sai fortalecido a cada crise ultrapassada. O atravessamento de cada estágio é compreendido como uma conquista psíquica, isso porque o ego se nutre de importantes senti- mentos que compõem o senso de identidade (esperança; vontade; propósito; diligência; fidelidade; amor; cuidado; sabedoria) ao final de cada estágio do desenvolvimento psicossocial. A concepção desses sentimentos como capacidades egoicas é uma importante contribuição da teoria de Erikson, Ego e desenvolvimento psicossocial em Erik Erikson 7 visto que o ego não apenas se defende, mas também é capaz de adquirir maior repertório emocional a cada estágio do desenvolvimento. Esses au- tores sugerem que o ego, nessa perspectiva, é essencialmente criativo, que não apenas se defende de demandas externas e/ou internas, mas encontra soluções criativase é capaz de obter prazer nesse processo. Cabe aqui uma breve explicação sobre a relação do superego com a cultura. Freud (2011) propõe que a cultura se relaciona com o ego por meio de variadas interdições, como as que compõem o complexo de Édipo, e o superego seria a introjeção dessas interdições. Esse ponto de vista sobre a cultura e o desenvolvimento da personalidade é diferente do ponto de vista de Erikson (1976), uma vez que, para esse autor, a cultura se relaciona com o Ego por meio da transmissão dos valores culturais. A ênfase nos fatores socioculturais contribuiu para que Erikson (1998) conceitualizasse a realidade e a relação que o ego constrói com ela de forma distinta da conceituação freudiana (2010). Enquanto para Freud o senso de realidade é constituído por uma percepção da realidade pelo ego como uma fonte de desprazer e de frustração, Erikson (1998) sugere que há três componentes de um senso de realidade: factualidade, compreensibilidade e contextualidade. A factualidade é a percepção da realidade material, isto é, o mundo como uma série de coisas e fatos que são percebidos pelo ego com a menor distor- ção ou negação possível (ERIKSON, 1998). A compreensibilidade é a realidade compartilhada por um grupo através da linguagem e de valores comuns. Por fim, a contextualidade é o entrelaçamento entre os dois componentes anteriores. Erikson esclarece que a junção desses três componentes constitui não apenas um senso de realidade, mas um modo de vida. Nas palavras do autor: “[...] libera uma visão coerente que intensifica um senso de contextu- alidade e efetiva um companheirismo ético com sólidos comprometimentos de trabalho” (ERIKSON, 1998, p. 79). Cabe relembrar que Erikson era psicanalista, portanto, apesar de suas divergências com o escopo teórico freudiano, sua noção de ego compartilha diversas semelhanças com as de Freud. Por exemplo, para Freud (2011), o ego é essencialmente corpóreo, i.e., o ego tem uma forte relação com a percepção e os órgãos dos sentidos, e é assim também para Erikson. Outra semelhança é o papel de destaque da sexualidade infantil para a estruturação da perso- nalidade. Os estágios do desenvolvimento psicossocial não excluem; aliás, complementam a teoria sobre o desenvolvimento psicossexual de Freud (2016). Ego e desenvolvimento psicossocial em Erik Erikson8 Dessa forma, é possível concluir que o conceito de ego proposto por Erikson é extremamente complexo. O entrelaçamento entre aspectos psicológicos e culturais já seria suficiente para compreendê-lo dessa maneira, contudo a complexidade se expande quando o autor indica que, além de desempenhar um papel defensivo, o ego é, antes de tudo, uma estrutura criativa que busca encontrar soluções para suas questões emocionais e para as demandas que a realidade impõe. Para lidar com tamanha profundidade, Erikson empregou diversas formas de analisar e avaliar as personalidades. Ele estudou inten- samente a personalidade de seus pacientes e de pessoas públicas. Esse é o tema da próxima seção. Analisando a personalidade e o encontro clínico Existem variadas formas de analisar uma personalidade, como por meio dos testes projetivos, como o Rorschach (RORSCHAC; EXNER, 1994), ou de questionários como o Big Five (JOHN; DONAHUE; KENTLE, 1991). Também é possível considerar que o método de atendimento escolhido para o encontro clínico é igualmente uma opção sobre qual método de investigação e de análise da personalidade do paciente vai ser empregado. Hall, Lindzey e Campbell (2000) discutem as diferentes formas que Erikson encontrou para analisar as personalidades de seus pacientes e de celebridades. Eles indicam que Erikson aplicava quatro diferentes análises: histórias de caso, situações lúdicas (ludoterapia), psico-história e estudos antropológicos. Antes de entrar nesse tema, um comentário sobre como Erikson compreen- dia o encontro clínico entre terapeuta e paciente se faz necessário, visto que sua concepção clínica é fundamental para a compreensão de como esse autor apreendia o ser humano. Erikson, apesar de ser psicanalista, discordava de alguns procedimentos clássicos da psicanálise: o uso do divã e a interpretação dos sonhos (SCHULTZ; SCHULTZ, 2021). Ele acreditava que o uso indiscriminado do divã poderia levar a uma ênfase excessiva no material inconsciente, a uma fantasiosa objetividade e até a um sadismo por parte do analista. A interpretação dos sonhos seguiria a mesma linha de pensamento, uma vez que a interpretação dos sonhos proposta por Freud (2012) é completamente voltada para a análise de material inconsciente e, a depender do manejo do analista, favorece uma posição de distanciamento entre terapeuta e paciente. Erikson sugeriu que a terapia devesse transcorrer frente a frente (SCHULTZ; SCHULTZ, 2021). Esse enquadro favorece uma relação mais pessoal e mais Ego e desenvolvimento psicossocial em Erik Erikson 9 simétrica entre as partes; além disso, o manejo clínico deve ser pensando caso a caso. O encontro com cada paciente é único e deve ser pensado, vivido e manejado pelo analista com o maior respeito possível à singularidade da pessoa. Mantendo em mente essas qualidades do encontro clínico, pode-se partir para os processos de avaliação da personalidade. O estudo de caso foi o método de pesquisa mais vezes empregado por Erikson (SCHULTZ; SCHULTZ, 2021). Esse método abarca a investigação profunda de um determinado caso clínico e a estipulação de relações entre hipóteses e variáveis visando à construção de uma teoria (MEZAN, 1998). O estudo de caso, apesar de ser bastante difundido na prática clínica, é um método de pesquisa que tem limitações importantes, como a impossibilidade de reprodução e o fato de ser de difícil verificação (SCHULTZ; SCHULTZ, 2021). As situações lúdicas, ou ludoterapia, consistem na utilização de brinquedos para a pesquisa e para o trabalho clínico com crianças e adolescentes. Hall, Lindzey e Campbell (2000) indicam que Erikson percebeu, assim como outros clínicos de sua época, que a terapia com crianças se mostrava mais frutífera quando ocorria por meio de jogos e brincadeiras, visto que as crianças têm pouco vocabulário e grande dificuldade para expressar sua realidade psíquica por meio de palavras. Ele desenvolveu uma situação lúdica padronizada com intuito de observar as diferentes formas que meninos e meninas brincavam: Eu preparei uma mesa para brincar e uma seleção aleatória de brinquedos e convidei os meninos e as meninas do estudo, um de cada vez, a entrar e a imaginar que a mesa era um estúdio de cinema e os brinquedos, atores e cenários. Eu então lhes pedi que “criassem sobre a mesa uma cena emocionante de um filme imaginário” (ERIKSON, 1964, p. 98). O resultado desse experimento surpreendeu Erikson e levou-o a propor que meninos e meninas brincam de forma diferente em razão de sua anato- mia genital. Segundo Hall, Lindzev e Campbell (2000), a consideração de que meninos e meninas brincavam de forma diferente com os mesmos brinquedos devido à sua anatomia genital e a desconsideração da influência de fatores culturais na determinação desse comportamento fizeram com o Erikson fosse alvo de críticas de teóricos e teóricas feministas. A análise psico-histórica, por sua vez, consiste em estudos bibliográficos. Erikson se interessou pela análise de figuras religiosa, políticas e literárias, tais como Lutero, Gandhi, Martin Luther King, entre outros, e analisou também a infância de Hitler (HALL; LINDZEV; CAMPBELL, 2000). A ideia central nesse método de pesquisa seria a mesclagem entre o método psicanalítico e o método de estudo da história. Haveria, dessa maneira, uma passagem de Ego e desenvolvimento psicossocial em Erik Erikson10 história de caso, isto é, o estudo de caso propriamente dito, à história de vida. No método psicanalítico, há a reconstrução da história individual do paciente, e tende-se a enfatizar o porquê de aquele determinado paciente estar emsofrimento psíquico; no estudo da história, a ênfase está em como ocorreu a estruturação de personalidade de uma determinada pessoa pública. Schultz e Schultz (2021) apontam que as análises psico-históricas feitas por Erikson enfatizam um determinado episódio na vida que estruturou a personalidade. Por último, temos o método denominado estudos antropológicos. Além de ler estudos antropológicos com o intuito de articulá-los com sua teoria, Erikson também foi a campo (HALL; LINDZEV; CAMPBELL, 2000). Por exemplo, ele foi à Dakota do Sul em 1937 investigar por que as crianças da etnia Sioux apresentam uma enorme apatia. Após uma observação cuidadosa, ele inferiu que essas crianças se encontravam diante de um impasse cultural: por terem sido criadas inicialmente rodeadas pelos valores tribais, ao terem contato com a cultura americana, que tem valores diferentes, elas acabavam por desenvolver uma grande apatia em razão de sua dificuldade de conciliar os diferentes valores culturais que eram oferecidos a elas. Ou seja, diante da impossibilidade de adotar ou sintetizar valores culturais tão distintos uns dos outros, essas crianças escolheram se recolher por meio da apatia psíquica. No presente capítulo, abordamos os oito estágios do desenvolvimento psicossocial, que abrangem toda a vida do ser humano e são constituídos por crises emocionais, as quais são caracterizados pelo antagonismo entre dois diferentes sentimentos. A questão do senso de identidade é primordial para Erikson, uma vez que o que está em jogo nos oito estágios é a contribuição de cada um para a consolidação da identidade do indivíduo. Cada estágio contribui com um importante sentimento que compõe o senso de identidade: o 1º com a esperança, o 2º com a autonomia, o 3º com a vontade, o 4º com o propósito, o 5º com a competência, o 6º com a fidelidade, o 7º com o amor e o 8º com a sabedoria. Os fatores sociais também têm um lugar significativo. A teoria do desen- volvimento psicossocial destaca o valor da transmissão de valores culturais e sociais particulares de cada cultura e a influência que eles exercem na forma como cada estágio será vivenciado. Isso significa que, por esse vér- tice teórico, a cultura francesa influenciará de maneira distinta da cultura brasileira no estágio oral, por exemplo. Esse entrelaçamento entre social e desenvolvimento psíquico contribui enormemente para a conceituação de ego feita por Erikson. Destaca-se que Erikson também estudou e aplicou Ego e desenvolvimento psicossocial em Erik Erikson 11 variadas formas de avaliação de personalidade, o que contribuiu para sua percepção clínica e teórica. É possível notar que Erik Homburger Erikson construiu uma interessante, complexa e instigante teoria sobre o desenvolvimento da mente humana. Ele foi, também, capaz de desenvolver e aplicar diferentes métodos de avaliação de personalidade visando sempre a investigar de maneira respeitosa e pro- funda como a construção da personalidade de seus pacientes e de pessoas públicas ocorrera. Esse imenso respeito e admiração pela complexidade da mente humana e pela individualidade de cada sujeito, características fundamentais para o psicólogo clínico, possibilitaram que Erikson fosse um clínico e teórico da psicologia excepcional. Referências ERIKSON, E. H. Insight and responsibility: lectures on the ethical implications of psycho- analytic insight. New York: Norton & Company, 1964. ERIKSON, E. H. Juventude e crise. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. ERIKSON. E. H. O ciclo de vida completo. Porto alegre: Artes Médicas, 1998. FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Porto Alegre: L&PM, 2012. FREUD, S. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. In: FREUD, S. (1911-1913) Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobio- grafia (“o caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 229-238. (Obras completas, 10). FREUD, S. O eu e o id. In: FREUD, S. (1923-1925) O eu e o id, "autobiografia" e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 168-175. (Obras completas, 16). FREUD, S. Três ensaio sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. (1901-1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“o caso Dora”) e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 13-171. (Obras completas, 6). HALL, C. S.; LINDZEY, G.; CAMPBELL, J. B. Teorias da personalidade. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2000. (E-book). JOHN, O. P.; DONAHUE, E. M.; KENTLE, R. L. Big Five Inventory (BFI). Berkeley: University of California/Institute of Personality and Social Research, 1991. MEZAN, R. Escrever a clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. RORSCHACH, H.; EXNER, J. E. Rorschach-test. Paris: Frison-Roche, 1994. SCHULTZ, D. P.; SCHULTZ, S. E. Teorias da personalidade. 4. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2021. Ego e desenvolvimento psicossocial em Erik Erikson12 Leituras recomendadas ERIKSON, E. H. Childhood and society. New York: Norton & Company, 1993. ERIKSON, E. H. Life history and the historical moment: diverse presentations. New York: Norton & Company, 1977. Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Ego e desenvolvimento psicossocial em Erik Erikson 13
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