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Distrofia muscular de Duchenne

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SP3- Distrofia muscular de 
Duchenne 
Distrofias musculares 
As distrofias musculares são miopatias primárias, 
geneticamente determinadas, que se caracterizam 
clinicamente por intensa variabilidade do fenótipo 
e do grau de gravidade, e 
anatomopatologicamente pelo encontro de 
padrão distrófico inespecífico na fibra muscular. 
A maioria dos defeitos moleculares reconhecidos 
envolve a função do complexo distrofina-
glicoproteínas associadas, que liga o citoesqueleto 
subsarcolemal com a matriz extracelular do 
músculo esquelético, permitindo estabilização e 
reforço da membrana da fibra muscular. O déficit 
parcial ou total das proteínas distrofina, laminina 
alfa-2 da matriz extracelular (merosina) e 
sarcoglicanas corresponde, respectivamente, às 
DMP tipo Duchenne e Becker, à forma mais grave 
de distrofia muscular congênita clássica e a uma 
parte das síndromes de cinturas. Há outras 
proteínas implicadas, cujo déficit origina miopatias 
distróficas não habituais em crianças. 
Distrofia muscular de Duchenne 
Mais de um século se passou até a identificação do 
gene relacionado com a distrofia muscular de 
Duchenne (DMD). Um dos maiores genes 
humanos, localizado no cromossoma X, é 
responsável pela produção da proteína distrofina. 
Essa proteína, quando não consegue ser 
sintetizada, determina o quadro clínico da DMD, e 
quando é produzida parcialmente, o que se 
observa são quadros mais brandos de distrofia 
muscular ligada ao X, chamados de distrofia 
muscular de Becker (DMB). 
No século XXI, são estabelecidos consensos para 
diagnóstico e cuidados terapêuticos e iniciados os 
primeiros ensaios clínicos de terapias voltadas para 
correção genética da DMD. Algumas já estão 
aprovadas para uso em diferentes países. Até 
fevereiro de 2019 nenhuma delas foi aprovada em 
território nacional. 
Epidemiologia 
A mais comum das distrofias musculares, a DMD, 
acomete um a cada 3.500 meninos nascidos vivos. 
As mulheres carreadoras de mutações no gene da 
distrofina costumam ser oligo ou assintomáticas, 
sendo raros os casos de mulheres com quadro 
clínico típico. 
 
 
Etiologia 
As distrofias musculares são miopatias 
progressivas, de envolvimento primário da 
musculatura esquelética. Existem distrofias 
musculares com diferentes tipos de herança, mas 
na DMD e DMB, o padrão é de herança ligada ao X. 
A ausência da distrofina, parte do complexo de 
proteínas que interliga a membrana da fibra 
muscular com a matriz extracelular, determinada 
por alteração do gene da distrofina com perda do 
padrão da leitura, é a base etiológica da DMD. Esse 
gene está localizado no braço curto do 
cromossoma X, na região Xp21. 
Fisiopatologia 
A análise histológica do músculo revela, em todas 
as distrofias musculares, variabilidade de tamanho 
de fibras musculares, proliferação gradual do 
tecido conjuntivo endo e perimisial, presença de 
necrose, macrofagia, degeneração e regeneração 
em grau variável. 
Na DMD, é a ausência da distrofina, que ao tornar 
a membrana da fibra muscular instável, propicia a 
sua ruptura ao longo dos ciclos repetidos de 
contração e relaxamento. 
 
A figura mostra o aspecto de um músculo normal, 
de um com processo moderado de degeneração e 
outro com degeneração maior. 
 
A figura mostra o padrão normal de distrofina na 
imunohistoquímica, comparado com o de 
diminuição e de ausência total dessa proteína. 
O processo patogênico decorrente da ausência de 
distrofina envolve múltiplos fatores que 
determinam a lesão celular, como os radicais livres, 
fatores nucleares e ativação da calpaína, mas a 
fragilidade da membrana celular e o influxo maior 
de Cálcio na célula são os primordiais. 
Adicionalmente, os mioblastos de indivíduos com 
DMD mostram alterações na capacidade 
proliferativa, e a regeneração recorrente existente 
reduz ainda mais o potencial de proliferação das 
células satélites. Os efeitos sobre os mioblastos 
parecem estar relacionados com a inflamação 
crônica. 
Embora a ausência da distrofina esteja bem 
estabelecida como causa principal de instabilidade 
da membrana e consequente patogenia, há 
acúmulo de dados que sugerem que a resposta 
imunológica possa desempenhar papel na 
fisiopatologia dessa doença. PintoMariz sugeriu 
que interações de VLA4 e/ou VLA5 com 
fibronectina podem dirigir os linfócitos T para 
nichos específicos dentro do músculo, 
contribuindo, assim, para danos nos tecidos e 
fibrose em pacientes com DMD. 
A proteína distrofina não é importante apenas para 
a musculatura esquelética e a sua ausência no 
músculo cardíaco e a falta de sua expressão em 
neurônios se associa às manifestações cardíacas e 
de funções superiores também observadas no 
quadro clínico dos indivíduos com DMD. 
Quadro clínico 
Os meninos que nascem com alterações no gene 
da distrofina e não a produzem não apresentam 
manifestação clínica ao nascer. No entanto, as 
alterações bioquímicas já estão presentes, com 
elevação de enzimas musculares e, às vezes, 
também de transaminases precocemente. 
A partir do fim do primeiro ano de vida pode ser 
observado o atraso do desenvolvimento 
psicomotor, com retardo do início da marcha. 
Como um terço dos meninos com DMD apresenta, 
além das manifestações motoras, também 
envolvimento de funções superiores, o atraso da 
linguagem pode ser uma manifestação inicial 
associada. Os achados iniciais de desvios do 
desenvolvimento psicomotor se relacionam com as 
dificuldades evolutivas desses meninos. Alguns 
terão dificuldade na alfabetização, uns deficiência 
intelectual severa e outros ainda apresentarão 
sintomas do espectro autista. 
Depois que adquirem a marcha independente, os 
meninos costumam ter quedas frequentes. A 
marcha com a progressão torna-se diferente da 
dos demais meninos, com: 
• um componente digitígrado (andar na ponta 
dos pés); 
• um componente tipicamente miopático 
(anserina ou gingada). 
• Desde cedo, é possível observar o levantar 
miopático (sinal de Gowers), com a utilização 
das mãos para se levantar do solo. 
O envolvimento mais pronunciado dos músculos 
tibiais anteriores, em comparação com os 
gastrocnêmicos, é o responsável pela marcha 
digitígrada e pelo gradual aparecimento de 
limitação da dorsiflexão plantar. A evolução é 
progressiva, com maior fraqueza da musculatura 
da cintura pélvica, culminando com a perda da 
marcha a partir dos 8 anos de idade. 
As deformidades osteoarticulares, consequência 
da mobilidade articular anormal e da falta de 
sustentabilidade muscular, fazem parte do quadro 
clínico. Ocorrem na articulação de membros 
inferiores, na coluna e nas articulações dos 
membros superiores. 
O envolvimento dos músculos intercostais e 
diafragmático é a causa da hipoventilação, 
inicialmente noturna e depois também ao longo do 
dia, que se instala com a progressão da doença. A 
capacidade vital é o parâmetro mais importante, 
caracteristicamente com padrão restritivo de piora 
gradual ao longo do tempo. Torna-se imperativo o 
suporte ventilatório no decorrer da doença. A 
ventilação noturna assistida, utilizando pressão 
positiva intermitente não invasiva, é um fator 
determinante para aumento da sobrevida e da 
qualidade de vida desses pacientes, diminuindo o 
número de internações e de procedimentos 
invasivos, e aumentando a expectativa de vida dos 
rapazes com DMD ao longo das últimas décadas. 
Adicionalmente, existem fortes evidências de 
frequente e progressivo envolvimento cardíaco 
caracterizado por quadro de miocardiopatia 
dilatada, principalmente, podendo ocorrer, ainda, 
distúrbios de condução, taquicardia sinusal, 
insuficiência cardíaca e até morte súbita. O início 
do quadro cardiológico é variável, havendo 
acometimento em quase todos os pacientes (96%) 
na adolescência. 
A cardiomiopatia da DMD tem início silencioso, 
subclínico, e tem como primeiras manifestações: 
• a taquicardia sinusal; 
• aumento da onda R em V1; 
• onda Q proeminente e 
• aumento do intervalo QT; 
• além de disfunção autonômica. 
Com o aumento da fibrose no músculo cardíacoaparecem a disfunção ventricular e arritmias 
ventriculares. Os achados anatomopatológicos 
consistem em substituição do miocárdio por tecido 
conjuntivo e gordura. O ventrículo esquerdo é o 
mais afetado, principalmente nas paredes 
posterobasal e lateral. Há evidência do papel da 
inflamação miocárdica na progressão da doença 
miocárdica, comprovada por ressonância 
magnética cardíaca e biópsia. 
Vale lembrar ainda das mulheres portadoras, que 
podem ser assintomáticas ou apresentar uma 
gama de sintomas em intensidade variável, como 
apenas pseudohipertrofia de panturrilhas, 
cardiomiopatia ou miopatia predominante mais ou 
menos grave. 
História natural 
Embora seja uma doença progressiva, a DMD não 
apresenta progressão constante desde o 
nascimento e nem mesmo progressão igual em 
todos os meninos. 
Durante um período, após o nascimento, existe 
uma fase denominada pré-sintomática, na qual 
existem apenas alterações bioquímicas, elevação 
marcante da creatinofosfoquinase (CPK) e possível 
elevação de enzimas hepáticas. Essa é a chamada 
fase ou estágio 1 da doença. 
Seja pelo início de atraso de desenvolvimento 
psicomotor, pela dificuldade de se levantar do solo 
sem apoio das mãos (levantar miopático ou sinal de 
Gowers), pela marcha gingada (anserina ou 
miopática) ou, ainda, pela marcha digitígrada, 
iniciase a fase ou estágio 2 da doença, a fase 
sintomática inicial. 
À medida que a idade avança, surgem mais 
rapidamente dificuldades motoras maiores, que 
culminam com a perda de capacidades 
relacionadas com os membros inferiores. Com 
menos de 7 anos, existe a possibilidade de 
estabilidade de medidas de funções motoras, e 
após essa idade a progressão é inexorável, 
podendo ser de velocidade diferente, de acordo 
com fatores ainda não totalmente esclarecidos. 
Tanto a medida do tempo de se levantar do solo 
quanto medidas de capacidade de caminhar são 
preditivos da evolução para esse momento da 
perda da marcha. 
Começa, então, a fase ou o estágio 4, em que 
começam a declinar as funções do tronco e dos 
membros superiores, chegando à fase ou ao 
estágio 5, quando essas funções comprometem a 
independência para atos que envolvem os 
membros superiores. 
No passado, a expectativa de vida era bastante 
reduzida, com provável óbito ao redor do fim da 
segunda década de vida. No entanto, os cuidados 
de suporte, corticoterapia e intervenções 
fisioterapêuticas vêm modificando a história 
natural da DMD. 
Diagnóstico 
Para que se possa diagnosticar um caso de DMD, é 
preciso suspeitar dessa possibilidade. Em um 
menino, as principais situações que devem ser 
consideradas são: 
• Atraso do desenvolvimento psicomotor, seja 
motor isolado ou na apresentação de atraso 
de linguagem (que, em geral, sugere 
deficiência intelectual ou transtorno do 
espectro autista associado). 
• Sintoma ou sinal de fraqueza muscular 
proximal, de início entre 1 e 5 anos de idade 
(iniciar a marcha sem apoio após 15 meses 
deve ser considerado atraso do 
desenvolvimento motor e, em geral, devese à 
fraqueza muscular da cintura pélvica). 
• Hipertrofia de panturrilhas. 
• Elevação marcante de CPK (definida com > 
2.000 U/L). 
• Elevação de transaminases em exames de 
rotina (sem elevação de gama GT e com 
elevação de CPK). 
• Hipertrofia de panturrilhas. 
• Elevação marcante de CPK (definida com > 
2.000 U/L). 
• Elevação de transaminases em exames de 
rotina (sem elevação de gama GT e com 
elevação de CPK). 
A suspeita clínica deve ser seguida de solicitação de 
exame de CPK. Esse mesmo teste de triagem deve 
ser realizado em filhos homens subsequentes de 
mãe que tenham história familiar de caso em sua 
família (filho, irmão, sobrinho). Em indivíduos com 
DMD, esse exame mostrase alterado desde o 
período neonatal. Esse teste também deve ser 
realizado com triagem de mulheres portadoras. 
Com a suspeita clínica acompanhada de níveis 
marcadamente elevados de CPK, há de se proceder 
ao diagnóstico definitivo. A confirmação da 
mutação genética determinante no defeito de 
transcrição da distrofina é fundamental. Como as 
mutações mais frequentes são as grandes deleções 
ou duplicações, o primeiro teste deveria ser o que 
utiliza a técnica de multiplex lgationdependent 
probe amplification (MLPA) ou o comparative 
genomic hybridization microarray (CGHa). 
Caso esses testes não detectem alterações, a 
técnica de sequenciamento (Sanger ou next 
generation sequencing), capaz de detectar 
alterações menores, as mutações de pequenas 
deleções ou inserções, deve ser solicitada. Caso 
todos esses testes sejam negativos, uma biópsia 
muscular com imunohistoquímica se faz necessária 
para ou confirmar a possibilidade de DMD ou 
apontar para um diagnóstico diferencial. 
Diagnóstico diferencial 
Todas as condições neuromusculares que se 
apresentam sob a forma de paresia de cinturas em 
meninos fazem parte do diagnóstico diferencial. 
Podem-se afastar algumas condições, como as 
atrofias musculares espinhais tipo 3, se houver 
uma dosagem de CPK marcadamente elevada. 
As outras distrofias musculares, particularmente as 
que acometem as cinturas pélvica e escapular, são 
o principal diagnóstico diferencial. Terão elevação 
marcada de CPK, aspecto de distrofia na biópsia 
vista pela técnica de hematoxilinaeosina, mas não 
terão ausência da distrofina na imunohistoquímica. 
Para algumas distrofias, existem outros 
marcadores na imunohistoquímica, mas, para 
outras, o diagnóstico depende de pesquisa de 
alteração de diferentes genes. 
Nas miopatias inflamatórias, que também elevam 
de forma marcante a CPK, geralmente apresenta-
se envolvimento de outros grupamentos 
musculares além dos das cinturas. 
Conduta terapêutica 
A condução de meninos e rapazes com diagnóstico 
confirmado de DMD envolve um conjunto de 
medidas: medicamentosa, de reabilitação e 
acompanhamento preventivo e/ou curativo das 
potenciais complicações evolutivas. 
As primeiras publicações que demonstraram o 
benefício da corticoterapia na DMD datam da 
década de 1970. O corticoide determina maior 
independência da marcha, melhor estabilidade da 
musculatura axial e da função motora dos 
membros inferiores, preservando, ainda, a função 
respiratória e a miocárdica. O início dessa 
medicação deve aguardar o menino alcançar a 
idade de 2 anos, a fim de permitir a imunização 
completa e o crescimento. A partir dessa idade, na 
dependência da instalação definitiva de sinais 
motores e de uma evolução com parada no 
desenvolvimento motor, justifica-se o início. 
Certamente, a partir de 5 anos de idade, todos os 
meninos com DMD devem iniciar a corticoterapia. 
• Tanto a prednisona/prednisolona, na dose de 
0,75 mg/kg/dia; 
• como o deflazacorte, na dose de 0,9 
mg/kg/dia, podem ser utilizados. 
Diferentes esquemas são utilizados − o diário, com 
maior potencial de benefícios, e os intermitentes, 
com menor potencial de efeitos colaterais. 
Avaliação periódica semestral e contínua é 
fundamental, em decorrência do uso dessa 
medicação, cuja manutenção é recomendada 
mesmo após a perda da deambulação 
A reabilitação e a atenção psicossocial são iniciadas 
no momento da suspeita diagnóstica e mantidas 
após sua confirmação. O suporte psicossocial nos 
momentos iniciais é direcionado à família, a fim de 
facilitar a fase de aceitação de uma condição 
genética, crônica e progressiva, e definir as 
necessidades de intervenção no ensino ou em 
questões comportamentais. 
• Se o menino estiver na fase 2 (sintomática 
inicial), a reabilitação deve focar a prevenção 
de deformidades e favorecer a atividade física 
aeróbica de baixo impacto supervisionada. 
• Quando estiver na fase 3, o próprio paciente, 
a família e a escola devem ser envolvidos no 
repensar de seus deslocamentos e definir 
adaptações necessárias à manutenção da sua 
independência nas atividades de vida diária, 
sua funcionalidade e participação nas 
atividades. 
Facilitar o uso da sua musculatura favorece a 
prevenção da fraqueza e atrofia por desuso. 
A antecipação focada no acompanhamentodas 
complicações cardiorrespiratórias e 
osteoesqueléticas favorece, desde o início e ao 
longo de todas as fases da doença, a instituição das 
intervenções preventivas ou terapêuticas que se 
façam necessárias. Os custos associados aos 
cuidados desta doença aumentam 
consideravelmente com o estágio de progressão da 
mesma.

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