Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
INTRODUÇÃO À PSICANÁLISE AULA 5 Profª Giseli Cipriano Rodacoski 2 CONVERSA INICIAL Nas aulas anteriores foram apresentados o contexto e alguns pressupostos da teoria psicanalítica conforme foram elaborados por Sigmund Freud a partir de sua experiência clínica. É possível perceber que a clínica é soberana à teoria, pois a teoria vem depois da experiência clínica e não ao contrário. A psicanálise se caracteriza por ser especulativa, o que levou Freud a chamá-la de "feiticeira". A psicanálise se interessa, investiga e posteriormente teoriza sobre o aparelho psíquico, se fundamentando no inconsciente como o principal conceito. As primeiras formulações teóricas de Freud eram biológicas e neurológicas, em um período que Freud acreditava que a falta de evidências sobre os processos mentais ainda seria esclarecida no futuro. Na aula de hoje, vamos acompanhar como se deu a ampliação do ponto de vista, distanciando a psicanálise da neurologia e fortalecendo como uma nova área de conhecimento. O objetivo com essa aula é conhecer como a psicanálise fez parte da clínica de diferentes psicanalistas para avançar na nossa intenção de introduzir os temas que o curso irá apresentar ao longo deste processo de formação. TEMA 1 – LEGADO DE FREUD Freud deixou um legado! Ele percebeu uma lacuna de conhecimento no meio médico, não encontrou em sua época fundamentos para orientar a análise do inconsciente cientificamente e, a partir de sua experiência clínica, formulou a teoria psicanalíticas para sustentar a clínica. Inicialmente, influenciado pelo papel de médico neurologista, Freud acreditou que a ciência evoluiria ao ponto de elucidar os fundamentos orgânicos do inconsciente, mas depois o próprio Freud e os psicanalistas pós freudianos se distanciaram da fisiologia para compreender os processos psíquicos como algo da linguagem, que fala da subjetividade do ser humano. Não se trata de uma verdade factual, mas, sim, a um modelo explicativo sobre os processos mentais. 3 Depois de Freud e ainda hoje, nós temos a teoria antes da clínica e justamente por isso corremos o risco de sermos tecnicistas, ao subordinar a clínica à teoria. Um cuidado que se deve ter constantemente é para não "enquadrar" ou "ajustar" a pessoa à teoria, "fazer caber", pois essa atitude distancia completamente o terapeuta do método psicanalítico. Um exemplo seria subentender qual é o conflito da criança pela idade que ela tem. Isso por considerar os estágios do desenvolvimento psicossexual infantil. O reducionismo também pode ser verificado quando se deseja ter um manual de interpretações de sonhos em que se atribui sentido e significado aos elementos do sonho. Dentre o inestimável legado de Sigmund Freud destacamos aqui que: - a clínica é soberana à teoria; e - o psicanalista conduz o tratamento, mas o processo se dá a partir da associação livre e da atenção flutuante No método catártico que foi o precursor imediato da psicanálise, já havia a expressão “esvaziamento da chaminé” para se referir à sensação de alívio produzida por falar de si ao médico. Já no método psicanalítico, por meio da associação livre na linguagem falada, os pacientes comunicavam seus desejos inconscientes através de fenômenos tais como atos falhos, sonhos e esquecimentos e outros sintomas compreendidos como manifestações do inconsciente. O que se apresentava era uma verdade diferente daquela do discurso racional, em que o paciente conta ou relata algo sobre si. Na associação livre, o paciente ao falar inicia uma série de encadeamentos que se difere de conteúdos planejados intencionalmente a serem comunicados, e ao falar livremente levam a demonstrarem algo sobre si. Exemplo: uma paciente chega ao consultório médico queixando-se de uma dor intensa e constante que a impede de manter suas atividades cotidianas desde as mais simples como arrumar a casa e trabalhar. Ao narrar ao médico como é essa dor, a paciente relata que ela é intensa, e muda de lugar no seu corpo, cada hora dói uma parte do corpo. Ela explica que nenhum remédio é eficaz para apaziguar a sua dor: já utilizou “todos” os analgésicos, fez terapias alternativas e visitou muitos profissionais que nunca encontraram as causas da sua dor, não se tratava de nenhum problema neurológico ou muscular. Não se identificou nada nos exames de imagem e nem clínico e disse ao médico que ele 4 era a última tentativa em seu desespero. O médico de fato constatou em seu exame clínico e estudando os exames trazidos pela paciente que “ela não tinha nada” e sugeriu que ela procurasse um psicanalista. Um pouco surpresa, e talvez decepcionada por não obter mais uma vez uma resposta objetiva sobre o mal que a acometia, ela pensou que o médico a estava acusando de “ser louca”. Contrariada, mas sem mais esperança, marcou uma hora com a psicanalista só para “desencargo de consciência”: afinal, mal não poderia fazer, tinha certeza que de nada adiantaria esse expediente de consultar alguém sobre uma dor que sentia no corpo: ora, ela pensava “– Eu não sou louca” e ainda vou gastar dinheiro à toa. Eis que, no dia e hora marcados, ela vai ao encontro da psicanalista, e, chegando lá ela é convidada a falar sobre o que está se passando com ela, relatando tudo o que lhe vier a cabeça e aos poucos ela começa a perceber quando surgiram as dores: em uma época difícil da sua vida, após a separação de seu marido. Falou sobre a vergonha social que sentiu, a dor de ter sido traída e quando percebeu chorava enquanto falava sobre o que ela sabia, mas que evitava pensar. A sessão, era assim que a psicanalista chamava a consulta, passou rapidamente, e ela se sentiu mais leve, as situações mais claras. A psicanalista a convidou para ir novamente à uma sessão, na semana seguinte, no mesmo dia e no mesmo horário, se a paciente quisesse. Ela pensou que não custava ir mais uma vez (apesar de considerar o preço correspondente ao valor da sessão), mas só mais uma vez não iria fazer mal. E confirmou a sessão. Durante a semana, percebeu que suas dores tinham diminuído em frequência e em intensidade, mas pensou que poderia ter sido porque deixou de comer doces, ou um certo queijo, ou ainda porque tinha trocado o colchão para aliviar as dores. Foi à sessão seguinte. Percebeu que falava coisas que já sabia, mas que não lembrava que sabia. E, assim, na semana seguinte, e na outra e na outra ainda. Era preciso reconhecer que suas dores estavam diminuindo significativamente e que talvez a dor da separação conjugal, que tinha sido colocada em palavras naqueles encontros diferentes com uma pessoa que ela mal conhecia, a estavam curando: ela estava conseguindo aproveitas os dias com seus filhos, estava voltando a trabalhar e até indo comprar algumas roupas que combinavam com o seu novo jeito. E ela pensou: como pode ela ter me tratado sem remédios? Só conversando? Pois é. Isto se chama psicanálise. 5 É necessário coragem para encarar a dor no lugar de negá-la. Difícil, mas necessário. E para onde leva a psicanálise? Para a autonomia, para o reconhecimento de si. Essa é a ética da psicanálise: "Cada interpretação reconduz o sujeito à escolha de seu desejo e de seus modos de gozo, levando em conta que a ética da psicanálise é manter a estrutura de falta do inconsciente" (Santoro, V. 2006, p. 61). TEMA 2 – FREUD E A ÉTICA DA AUTONOMIA A psicanálise leva àquele lugar que sobra depois de ser retirado o excesso (per via de levare – pela via de retirar). Durante a vida as pessoas são levadas, por ação da cultura, a se adaptar, se ajustar, fazer o que é esperado socialmente das pessoas na sua geração: estudar, trabalhar, casar, ter filhos, adquirir bens etc. É uma série de "ter que" como bem exemplificado no filme Happiness, de Steve Cutts, 20171. Uma conduta massificada,em uma sociedade capitalista, heteronormativa que segue seu rumo sem se dar conta da subjetividade aniquilada em cada um. A psicanálise leva ao resgate da subjetividade, mesmo que doa, mesmo que contrarie, mesmo que incomode, para que então o sujeito decida como se relacionar com isso que restou da análise. Chegar a este lugar onde nos leva a análise é de muita responsabilidade, pois as pessoas sofrem com o problema. Por outro lado, o problema lhe traz compensações (ganhos secundários) às quais nem sempre é fácil renunciar. Se dar conta disso e assumir seu papel de protagonista, de quem atua para se manter no lugar que ocupa e do qual se queixa, é, geralmente, muito pesado. Para Freud, as pessoas deveriam chegar na autonomia, ou seja, aprender a lidar com as situações, com as tendências, com os desejos, especialmente os mais infantis. Sobre isso é preciso entender um pouco mais sobre "A Ética da Autonomia". Em "O Mal-Estar na Civilização" (Freud, 1929/1986), Freud fala sobre o mal-estar que a consciência da autonomia e a liberdade provocam. Enquanto a pessoa se perceber vítima de uma história de vida que a determinou assim, ela de certa forma apazigua seu sofrimento, pois encontra um sentido para seu 1 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=e9dZQelULDk>. Acesso em: 6 jan. 2022. 6 estado/sofrimento. Entende que algo ou alguém superior quis assim, o que a coloca na condição de repetir: eu não posso fazer nada. Em sendo vítima, a pessoa segue o fluxo: estuda, trabalha, casa, tem filhos, consome bens e serviços e a vida se repete de geração em geração. Essa postura acrítica em relação a si anula qualquer subjetividade e internaliza um padrão social que pode ser a fonte de suas queixas, mas que também é em grande medida confortável. Crédito: VectorMine / Shutterstock. A analogia pode ser feita com uma gaiola aberta, mas onde a pessoa permanece dentro, se sentindo prisioneira. Essa situação, muito frequentemente relatada pelos pacientes nas entrevistas preliminares, é um exemplo do que Freud teorizou posteriormente sobre a relação entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Para Freud, cada indivíduo deveria superar o que seria a tendência universal ao infantilismo, ou seja, o apego ao princípio do prazer (desejos individuais, egoístas), e enfrentar o princípio de realidade (adaptação às leis sociais); deveria dominar os instintos, aceitar e saber lidar com as frustrações que a realidade impõe, tornando-se autônomo e não escravo dos desejos, sobretudo os infantis: “A ética da autonomia”. Na técnica psicanalítica, o terapeuta deve agir conforme o princípio da abstinência, ou seja, agir no sentido de desconstruir os mecanismos de defesa: "o tratamento analítico deve ser efetuado, na medida do possível, sob privação – num estado de abstinência" (Freud, 1919/1986, p. 205). Vamos nos ater a este trecho entre vírgulas: na medida do possível. Em alguns casos, há o perigo de 7 descontruir e fragilizar ainda mais uma mente enferma. Ao escrever sobre as linhas de progresso na terapia psicanalítica no mesmo ano em que se encerrava a primeira guerra mundial, em um contexto social marcado por importante vulnerabilidade emocional entre as pessoas, Freud (1919/1986) se preocupa com o risco de oferecer muita análise e pouca síntese ao paciente, ou seja, interpretar muito suas defesas, fragilizando suas resistências sem ajudá-lo no processo de reorganização, pois na verdade é com o que resta que o sujeito compõe o mundo. Freud reconhece que existem pessoas tão pouco preparadas para a vida, que é preciso, com relação a elas, usar pedagogia. Não podemos evitar de aceitar para tratamento determinados pacientes que são tão desamparados e incapazes de uma vida comum, que, para eles, há que se combinar a influência analítica com a educativa; e mesmo no caso da maioria, vez por outra surgem ocasiões nas quais o médico é obrigado a assumir a posição de mestre e mentor. (Freud, 1919, p. 208). No entanto, Freud se referiu a este método como uma nova técnica diferenciando do método psicanalítico clássico. Para o futuro psicanalista, é indispensável a leitura deste texto (Linhas de progresso na terapia psicanalítica) que está publicado nas Obras Completas, datado de 1919, lido por Freud durante o Quinto Congresso Psicanalítico Internacional de Psicanálise, realizado em Budapeste, em 28 e 29 de setembro de 1918, e tem muita ênfase nos métodos ativos de tratamento, posteriormente atribuídos à Ferenzi. TEMA 3 – MÉTODOS ATIVOS Os métodos ativos de tratamento são considerados em diversos momentos da clínica psicanalítica, no entanto, sempre criticados por colegas psicanalistas como sendo uma rendição do método às demandas sociais, fazendo com que a psicanálise se adaptasse ao que o contexto pós-guerra precisava. Inegável que a sociedade precisava de atenção à saúde mental no contexto da guerra mundial, assim como vimos ser necessária a atenção no contexto da pandemia COVID-19, mas o que se questionava na época era se seria a psicanálise que deveria reformular seu método ou se deveria ser criado um método para atender essa demanda social. 8 A situação que se colocava era a de que para diferentes pessoas precisam ser planejadas diferentes intervenções, como se fosse um princípio da equidade. Quanto mais “saudável” a pessoa, mais autonomia e autocuidado são esperados. Quanto mais vulnerável, mais frágil emocionalmente, quanto menor ou pior for a sua rede de apoio social, maior deve ser a preocupação do terapeuta com o cuidado e menor a exigência de autonomia. Imaturidade versus Autonomia. Na clínica psicanalítica clássica, a ênfase é pela não gratificação, pela privação e abstinência. Reforçar defesas seria um erro técnico. O método ativo teve sua origem na psicanálise e inicialmente foi apresentado como uma proposta de alteração na técnica psicanalítica para encurtar a duração dos tratamentos, que eram muito longos e inacessíveis à maioria das pessoas. Alguns casos atendidos por Freud tiveram curta duração e bons resultados. Gilliéron E. (1993, p. 6) apresenta um levantamento dos casos para mostrar o quanto foram considerados exitosos mesmo tendo sido curtos, destacamos alguns deles aqui: Srª Emmy – sete semanas; O Pequeno Hans – dois meses; e O Homem dos Ratos – onze meses. Além dos processos psicanalíticos, outras experiências de intervenções de características ativas e breves, feitas durante conversas em passeios a tarde ou no tempo de uma viagem de trem, também resultaram em bons resultados para as pessoas. Os benefícios de um tratamento mais curto foram percebidos pelo próprio Freud, por exemplo, no caso “Homem dos Lobos”, tratado durante 5 anos e publicado em 1918. Nesse caso, Freud percebia importante resistência do paciente, sem avanços no tratamento psicanalítico. Decidiu então por determinar uma data para a análise terminar e pressionado por essa data, o paciente cessou sua resistência e entregou-se ao processo psicanalítico que evoluiu tão rapidamente que em nada se comparou ao tempo anterior (Gilliéron, 1993). Freud, Otto Hank e Sándor Ferenczi eram colegas de trabalho, amigos, trabalhavam em Viena (na Áustria) e discutiam juntos a possibilidade de assumirem postura mais ativa nos tratamentos. Otto Rank relacionava o tempo maior ou menor do tratamento à motivação do paciente e questionava se a 9 motivação poderia ser incentivada pelo analista. Freud chegou a reconhecer os benefícios da técnica, mas mesmo diante dos resultados positivos decorrentes dos tratamentos curtos, negou-se a modificar a técnica psicanalítica justificando que o tratamento deveria ser atemporal, de modo a ficar o mais próximo possível do inconsciente do paciente. Em 1928, Ferenczi decidiu por recomendar tratamentos psicanalíticos maiscurtos, apresentando o conceito de Técnica Ativa para caracterizar uma nova modalidade de psicoterapia, e publicou o artigo “A elasticidade da técnica psicanalítica”. O argumento de Ferenczi era o de que "não é o analisando que assumiria a tarefa de se adaptar à técnica psicanalítica, então definida pelo tripé associação livre, princípio de abstinência no campo transferencial e interpretação; o analista é que precisaria dispor da flexibilidade elástica necessária para atender aqueles que até então eram considerados inanalisáveis” (Kupermann, 2019, p. 52). Ferenczi acreditava que era a passividade do analista o principal fator responsável pelo prolongamento do tratamento clássico. A reação de Freud e de outros psiquiatras psicanalistas tradicionais foi pela defesa da técnica psicanalítica tradicional, sem ceder às pressões e demandas sociais por adaptação. O próprio Ferenczi, depois de obter êxito em alguns tratamentos ativos, abandonou a técnica ao concluir que as modificações poderiam ser usadas como resistência e que a interpretação ainda continuava sendo um método eficaz (Cordioli, 2008). Logo após a segunda guerra mundial (terminada em 1945), foi muito maior a demanda social por tratamentos à saúde mental e, ainda assim, a Psicoterapia Breve era vista como “uma rendição humilhante às pressões de circunstâncias que levam a resultados transitórios, superficiais, pro forma” (Malan, 1981, p. 19). O desconforto inicial se deu pela proposta de modificação na técnica psicanalítica, pois como não havia outra modalidade de tratamento na época a não ser a psicanálise, e a Técnica Ativa tentou nascer como uma evolução da psicanálise, o que não agradou os psicanalistas tradicionais. Foi necessária a construção de um novo modelo de psicoterapia para que a Psicoterapia Breve fosse então reconhecida e respeitada e se distanciasse da ideia de ser um “erro técnico” da psicanálise. Esse novo modelo começou a ser elaborado no Instituto de Psicanálise de Chicago no período de 1938 a 1945 por meio de um projeto de pesquisa coordenado por Alexander e French, que investigou quais seriam os princípios básicos que permitissem um tipo de psicoterapia breve e eficaz. O estudo 10 concluiu que a experiência emocional corretiva era o fator curativo, pela “reexposição do paciente a situações emocionais semelhantes às situações vivenciadas no passado, que o paciente não conseguiu manejar” (Cordioli, 2008, p. 94). A partir de 1950, o grupo de pesquisa em Psicoterapia Breve da Clínica de Tavistock, em Londres, coordenado por Balint e depois por Malan, avançaram na elucidação de princípios que caracterizariam o método de condução do processo de PB, seguidos por Sífneos, em Boston, e juntos estes autores definiram conceitos e princípios fundamentais que constituem hoje a teoria da técnica da Psicoterapia Breve de orientação psicanalítica, também denominada de Psicoterapia Psicodinâmica. TEMA 4 – WINNICOTT O pediatra e psicanalista Donald Winnicott assume destaque na história da psicanálise por ter dado ênfase ao processo psicoterapêutico com pessoas mais frágeis emocionalmente. O inglês Donald Woods Winnicott (1896 – 1971) é um autor clássico na psicanálise pós freudiana especialmente na clínica com crianças e com personalidades limítrofes. Winnicott desenvolveu alguns conceitos centrais, a partir da consideração do processo de desenvolvimento humano (maturidade), desde a completa imaturidade nos bebês até o alcance da autonomia nos adultos saudáveis. Um dos conceitos desenvolvidos por Winnicott foi delimitado a partir da constatação de que, durante a completa imaturidade dos bebês, é necessária e indispensável a preocupação materna primária, função que ele chamou de Holding. Trata-se de uma função de sustentação: A mãe protege o bebê dos perigos físicos, leva em conta sua sensibilidade cutânea, auditiva e visual, sua sensibilidade às quedas e sua ignorância da realidade externa. Através dos cuidados cotidianos, ela instaura uma rotina, sequências repetitivas. Com essa função de holding, Winnicott enfatiza o modo de segurar a criança, a princípio fisicamente, mas também psiquicamente. A sustentação psíquica consiste em dar esteio ao eu do bebê em seu desenvolvimento, isto é, em colocá-lo em contato com uma realidade externa simplificada, repetitiva, que permita ao eu nascente encontrar pontos de referência simples e estáveis, necessários para que ele leve a cabo seu trabalho de integração no tempo e no espaço. (Nasio, 1995 p. 185). 11 Entre o estado de total dependência até a autonomia, o ser humano terá necessidade de apoios emocionais para apaziguar a ansiedade de separação decorrente da imposição do princípio da realidade sobre o princípio do prazer. No bebê, podemos observar rituais e uso de paninhos e chupetas eleitos como indispensáveis que assumem o lugar de "ficar no lugar da mãe", tecnicamente conceituados como fenômenos e objetos transicionais que irão ocupar o lugar vazio deixado pela mãe, entre a realidade interna e a externa. Foi a partir da experiência clínica de Winnicott com as crianças que surgiu “A Ética do Cuidado” como uma atitude do analista e ampliou as possibilidades de analisar pessoas vulneráveis, antes consideradas sem indicação para o método psicanalítico. TEMA 5 – WINNICOTT E A ÉTICA DO CUIDADO Winnicott estudou o desenvolvimento humano já no período psicanalítico e, conhecedor da teoria freudiana, contribuiu com a teoria do desenvolvimento afetivo desde a fase de dependência absoluta, fase de dependência relativa até a autonomia. Winnicott é considerado um autor desenvolvimentista. Para ele, o ambiente continua exercendo influência na criança que cresce, no adolescente e no adulto. Sendo assim, sua obra se caracteriza por dar ênfase aos conflitos Inter psíquicos. Sua teorização sobre a ética do cuidado é uma contribuição aos analistas, para que sustentem a situação analítica (Nasio, p. 195). Para Winnicott (1983, p. 205), “Os distúrbios mais insanos ou psicóticos formam-se na base de falhas da provisão ambiental e podem ser tratados, muitas vezes com êxito, por uma nova provisão ambiental”. Esse recurso metodológico se assemelha à função de holding na relação mãe-bebê, com a criação e proteção de um lugar protegido, uma pequena amostra de um mundo encontrável e previsível, para que ele, a seu tempo, possa começar a ser. Isso pode implicar, em certos casos, em dar sustentação a longos períodos em que o indivíduo, regredindo à dependência, permite-se abandonar o esforço de existir e entregar-se a estados muito primitivos, de amorfia, de desorganização, de não existência. A característica central desse lugar é a confiabilidade. Necessidade de cuidados regulares e confiáveis. A relação terapêutica é uma analogia da mãe 12 suficientemente boa ao seu bebê, uma forma especializada de estar-com-o- outro. O reconhecimento de que o outro está doente leva-nos naturalmente para a posição daquele que responde à necessidade, ou seja, à adaptação, à preocupação e à confiabilidade, à cura no sentido de cuidado. Isso não acarreta, em nenhum sentido de superioridade. Se assumimos o lugar de quem cuida, precisamos estar disponíveis para aceitar o outro como ele é, como pode ser, seja qual for a possibilidade de ser do outro que se apresente num dado momento da relação terapêutica. Para deixar ser o outro, precisamos estar preparados para reconhecer qual é a possibilidade de ser do momento e acompanhá-lo enquanto perdure essa possibilidade, por estreita que seja. NA PRÁTICA Por mais madura que uma pessoa possa ser, não está descartada a possibilidade de em um dado momento e situação de vida acontecer uma regressão. Esse processo regressivo pode ocorrer durante o curso de uma análise. O caso a seguir é um exemplo: uma jovem senhora iniciou o tratamentocom questões relacionadas ao seu relacionamento conjugal. O tratamento avançou até o ponto em que os insights reflexivos estavam bastante desconfortáveis e foi neste momento que a paciente faltou a uma sessão. Na próxima sessão, chegou e justificou a falta falando de uma grave doença que acometeu seu filho e ela precisou cuidar dele no hospital. O psicanalista interpretou a resistência da paciente. Na próxima sessão, a paciente limitou-se a deitar no divã e chorar quase todo o tempo da sessão, com períodos de silêncio. Novamente a interpretação foi quanto à resistência ao claro progresso que havia sido evidenciado no tratamento na semana anterior. Depois desta sessão, a paciente abandonou o tratamento e por telefone contou ao analista que seu filho havia morrido poucas horas depois que ela deixou o consultório pela última vez. Este caso mostra que a ética do cuidado deve permear a competência do analista em todas as fases do tratamento. Além da possibilidade de ser uma reação de defesa e regressão, que atende à resistência e à repetição, também há a possibilidade real de situações que fragilizam o paciente ao ponto de não 13 fazer mais sentido a ele a elaboração em curso nas sessões, pois a eminência de morte do filho se impõe com supremacia neste caso. A ética recomenda que o processo de tratamento fique em suspenso e que o psicanalista possa dizer ao paciente: “me fale sobre seu filho, seu processo analítico pode esperar e continuamos com ele depois”. Esta atitude seria um exemplo do que Winnicott definiu como Holding. FINALIZANDO Freud fundou a Psicanálise e nos deixou um legado que é clássico para a compreensão teórica e metodológica. A psicanálise foi indicada para pacientes com conflitos neurotípicos e a regra fundamental é a associação livre. Para Freud, cada indivíduo deveria superar o que seria a tendência universal ao infantilismo, ou seja, o apego ao princípio do prazer (desejos individuais, egoístas), e enfrentar o princípio de realidade (adaptação às leis sociais); deveria dominar os instintos, aceitar e saber lidar com as frustrações que a realidade impõe, tornando-se autônomo e não escravo dos desejos, sobretudo os infantis: “A ética da autonomia”. Winnicott acreditava que os distúrbios se formam na base de falhas da provisão ambiental e podem ser tratados, muitas vezes com êxito, por uma nova provisão ambiental, e propôs a "Ética do Cuidado" para orientar a função de holding do analista para com o paciente, uma função de sustentação de sua condição de vir a ser. 14 REFERÊNCIAS ALEXANDER, F.; FRENCH T. Terapeutica Psicoanalitica. Buenos Aires, Argentina: Editorial Paidós, 1965. CORDIOLI, V. A. Psicoterapias: abordagens atuais. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008. DIAS, Elsa Oliveira. Da sobrevivência do analista. Nat. hum., São Paulo , v. 4, n. 2, p. 341-362, dez. 2002 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517- 24302002000200004&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 01 mar. 2021. DIAS, Elsa Oliveira. O cuidado como cura e como ética. Winnicott e-prints, São Paulo , v. 5, n. 2, p. 21-39, 2010 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679- 432X2010000200002&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 01 mar. 2021. FERENCZI. Sándor. (1928) "A elasticidade da técnica psicanalítica", in Sándor Ferenczi. Obras completas, v. IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992. FREUD, S. (1919) Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud p. 201 – 211. Volume XVII. Imago Editora, 1986. FREUD, S. (1919) Sobre o ensino da Psicanálise nas Universidades. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud p. 214 – 220. Volume XVII. Imago Editora, 1986. FREUD, S. (1929) O Mal Estar na Civilização. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. p. 75 – 254. Volume XXI. Imago Editora, 1986. GILLIÉRON E. Introdução às psicoterapias breves. São Paulo: Martins Fontes, 1993. KUPERMANN, Daniel. A virada de 1928: Sándor Ferenczi e o pensamento das relações de objeto na psicanálise. Cadernos de psicanálise, Rio de Janeiro, v. 41, n. 40, p. 49-63, jun. 2019 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413- 62952019000100004&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 21 nov. 2021. MALAN D. – “Fronteiras da Psicoterapia Breve.” Poa: ArtMed; 1981 NASIO, J. D., Introdução às obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan / sob a direção de J.-D. Nasio, Rio de Janeiro: Zahar, 1995 15 OLIVEIRA, Marcos de Moura. Contribuições da técnica ativa para a clínica psicanalítica. Cad. psicanal., Rio de Jeneiro , v. 43, n. 44, p. 191- 202, jun. 2021 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413- 62952021000100013&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 15 dez. 2021. SANTORO, Vanessa Campos. Clínica psicanalítica e ética. Reverso, Belo Horizonte , v. 28, n. 53, p. 61-66, set. 2006 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 73952006000100009&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 15 dez. 2021. WINNICOTT, D. W., O Ambiente e os Processos de Maturação – Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artmed, 1983. Conversa inicial Na prática FINALIZANDO
Compartilhar