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1 UNIDADE 1 LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir desta unidade, você será capaz de: • analisar criticamente os conceitos de literatura e os meios de onde eles surgem; • compreender algumas noções de arte e cultura e suas implicâncias na construção literária; • identificar as diferentes funções da literatura; • reconhecer as condições de produção dos cânones/clássicos e suas implicações sócio-temporais; • distinguir a estrutura e semântica dos diferentes gêneros literários. Esta unidade está dividida em cinco tópicos. Ao final de cada um deles você encontrará autoatividades que auxiliarão no seu aprendizado. TÓPICO 1 – LITERATURA E SEUS CONCEITOS TÓPICO 2 – NOÇÕES DE ARTE E CULTURA TÓPICO 3 – AS FUNÇÕES DA LITERATURA TÓPICO 4 – O CÂNONE LITERÁRIO E SUA FORMAÇÃO TÓPICO 5 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 LITERATURA E SEUS CONCEITOS 1 INTRODUÇÃO “Só se pode chamar ciência ao conjunto de receitas que funcionam sempre. Todo o resto é literatura”. Paul Valéry Conceituar o que é Literatura não é tarefa fácil. Desse termo advêm conceitos que estão implicados por questões sociais e históricas. Tal conceito pode ser bastante amplo e abarca os conhecimentos dos indivíduos sobre vários ramos do saber (matemática, filosofia, história...). Podemos observar que o uso da palavra literatura de forma genérica, abrangendo escritos de várias áreas, ainda é bastante corrente, fala-se em literatura do direito, da medicina, entre outras. A ideia de literatura como uma arte específica, tal como a música, a pintura, a arquitetura etc., historicamente, ainda é recente. Atualmente, incorpora o sentido de fenômeno estético e produção artística. Surge, então, um entendimento da palavra literatura como referente a textos imaginativos e criativos em oposição aos textos de caráter científico. Nesse viés, poderíamos definir literatura como a expressão da criatividade humana. Não há para ela fórmula exata, é fruto da imaginação, ainda que possa ser baseada na realidade. 2 COMO A LITERATURA ACONTECE A grande diferença entre ciência e literatura é que a primeira exige um grau elevado de racionalidade e busca a comprovação dos fenômenos da natureza, do funcionamento do corpo humano ou da sociedade etc. Já a literatura pode basear- se em fenômenos da natureza e da sociedade, abre espaço para a subjetividade, para a criação do impossível dentro dos limites do racional, criando mundos paralelos ao que conhecemos. No excerto a seguir, Alice estava em um dia normal como tantos outros, na chatice da rotina. Por certo, não teríamos motivação para ler sobre uma tarde rotineira da vida real, mas é aí que aparecem os elementos mágicos. Na história, Alice é um ser real ou vê-se como tal, mas que descobre um mundo fantástico, criativo. Numa compreensão de literatura como textos de aspecto imaginativo, este certamente é um texto literário. Baseia-se em aspectos da realidade, mas transcende-os, levando o leitor a conhecer um mundo diferente. https://pensador.uol.com.br/autor/paul_valery/ UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? 4 Assim, meditava com seus botões (tanto quanto podia, porque o calor aquele dia era tal que ela se sentia sonolenta e entorpecida) se o prazer de fazer uma guirlanda de margaridas valeria o esforço de levantar-se e colher as margaridas, quando de repente um coelho branco com olhos rosados passou correndo perto dela. Não havia nada de tão notável nisso; nem Alice achou tão estranho ouvir o Coelho murmurar para si mesmo, “Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Estou muito atrasado!” (quando pensou nisso, bem mais tarde, ocorreu-lhe que deveria ter estranhado; porém, naquele momento, tudo lhe pareceu perfeitamente natural). Mas quando o Coelho tirou um relógio do bolso do colete, deu uma olhada nele e acelerou o passo, Alice ergueu-se, porque lhe passou pela cabeça que nunca em sua vida tinha visto um coelho de colete e muito menos com relógio dentro do bolso. Então, ardendo de curiosidade, ela correu atrás dele campo afora, chegando justamente a tempo de vê-lo sumir numa grande toca sob a cerca. No instante seguinte, Alice entrou na toca atrás dele, sem ao menos pensar em como é que iria sair dali depois. A toca do coelho, no começo, alongava-se como um túnel, mas de repente abria-se como um poço, tão de repente que Alice não teve um segundo sequer para pensar em parar, antes de se ver caindo no que parecia ser um buraco muito fundo. (CARROL, 2000, p. 19) Há outras correntes que compreendem a literatura como o processo de interação entre obra, autor e receptor/leitor. O que é ou não literário nessa perspectiva se definiria por meio da recepção. Dessa forma, o texto já não diz tudo, nem seu autor é o dono de um sentido para ele, o leitor tem sido considerado peça fundamental no processo de leitura. Assim, o conceito do que é ou não é literário é bastante subjetivo, certo? Como descreve Orlandi (1993, p. 9), “há um leitor virtual inscrito no texto. Um leitor que é constituído no próprio ato da escrita. Em termos que chamamos de ‘formações imaginárias’”. A esse fenômeno, Marques (2003) chama “leitor imaginário”. Vamos pensar juntos. Se, no ato da escrita, existe na mente do criador um leitor virtual, que interfere na construção do texto, seria este uma espécie também de autor? Barthes (1988, p. 68) menciona que “todo texto é escrito eternamente aqui e agora”. Compreende-se por essa afirmação uma concepção do conceito de literatura como produto da recepção, ou seja, o texto se reconstrói eternamente no processo dialógico. Cada leitura é implicada por processos sociais e históricos que fazem parte da formação de quem escreve e do leitor em questão. TÓPICO 1 | LITERATURA E SEUS CONCEITOS 5 Machado de Assis demonstra de maneira clara e consciente em seu trabalho essa relação com o seu interlocutor, estabelecendo com o leitor um diálogo aberto. Observe: “Morri de pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e, todavia, é verdade. Vou expor-lhe sumariamente caso”. NOTA Quanto à citação acima, a mesma foi retirada de e-book kindle e não dispõe de numeração de páginas e editora. Para demonstrar a complexidade da ideia de autoria que foi surgindo, o filósofo Michel Foucault demonstrava-se bastante liberal quanto a questões de apropriação das palavras. Segundo Cascais e Miranda (1992, p. 6), para ele, “a única solução, a única lei sobre a edição, a única lei sobre o livro que gostaria de ver instaurada seria a da proibição de utilizar duas vezes o nome de autor, para que cada livro seja lido por si mesmo”. O autor promovia aulas no Collège de France e nunca se importou que as mesmas fossem gravadas, o que é condizente com o seu pensamento de não apropriação das ideias. Ironicamente, logo após a sua morte, e contradizendo seus princípios, as aulas outrora gravadas foram publicadas sob seu nome, o que certamente garante a elas um valor simbólico dado pelo renome do filósofo. Ao mesmo tempo em que, nessa perspectiva da recepção, seria o leitor quem definiria as melhores obras literárias, está ele também sujeito às leis de mercado, às grifes de que fala Bourdieu em “A Produção da Crença”. A definição do que é ou não literatura varia de acordo com o tempo e o espaço e, conforme Zappone e Wielewicki (2014), está implicada nas coerções das instituições e do mercado. Assim, a literatura é definida por uma comunidade (professores universitários, críticos literários, mercado editorial, escola) que determina os critérios para se reconhecer o texto como literário. As autoras ainda alertam que instituições como a escola, as universidades e a crítica especializada, além de formarem uma comunidade que define critérios para reconhecer o texto como literário, definem também as leituras possíveis para os textos literários, ou seja, formam uma comunidadeinterpretativa. É a partir das instituições escolares e acadêmicas que, de maneira geral, adquirimos uma consciência sobre quais obras são consideradas literatura e quais não o são. São as instituições que nos inculcam noções sobre o que considerar literatura e o que considerar boa ou má literatura. O interessante é que a própria literatura pode demonstrar essa relação das instituições com a palavra escrita. Exemplo disso está no excerto de um conto intitulado “Um Encontro”, de James Joyce, publicado pela primeira vez em 1914: UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? 6 Certo dia, o padre Butler nos examinava sobre quatro páginas de história romana e o desajeitado Leo Dillon foi surpreendido com um exemplar do The Halpenny Marvel. — Esta página ou esta outra? Agora, Dillon, vamos! O dia mal... Vamos! Mal amanhecera o dia... Estudou isto? Que tem aí no bolso? Nossos corações dispararam quando Leo Dillon entregou-lhe o folhetim e nós todos assumimos um ar inocente. Padre Butler virou as páginas, franzindo o cenho. — Que porcaria é esta? — perguntou ele. — O Chefe Apache! É isto que você lê ao invés de estudar história romana? Que eu não encontre mais esta maldita droga no colégio. O indivíduo que escreveu isto, suponho, é um desses pobres-diabos que escrevem para ter com que pagar sua bebida. Surpreende-me que um menino como você, educado, leia tais tolices. Compreenderia se se tratasse de... de alunos da Escola Nacional (JOYCE, 2003, p. 18). No excerto acima fica claro que, para o padre há textos que são considerados literatura e outros que não o são. Ao entendermos a literatura como “formações imaginárias”, Orlandi (1993) observa que é necessário compreender que estamos em um terreno movediço, visto que, bem como observa Barthes (1988), o texto é escrito sempre aqui e agora. Junto aos conceitos que podemos depreender acerca do que é literatura, observamos, também, vários pré-conceitos que estão imbricados pelos costumes sociais e temporais. Afinal, como observamos no excerto do conto de James Joyce, há textos que historicamente e dentro de um espaço determinado não são considerados. Julgando-se, nesse exemplo, não só a obra quanto o seu escritor e leitor. Como observa Hoffmann (2014), muitas vezes, o único conceito capaz de distinguir um clássico da literatura de outras obras é a efemeridade. Considera- se, nesse aspecto, o clássico como a literatura aceita e propagada por “classes/ instituições”, sejam elas as escolas, sejam as academias, que fazem valer o nome de alguns autores e obras ao longo do tempo. Nesse aspecto, Pierre Bourdieu (2004) aponta que a literatura, bem como outros bens de consumo, adquire uma grife, um conceito ou moda que são suscetíveis conforme o tempo e os anseios do mercado. Daí as obras que vendem milhares de exemplares (muita gente lendo a mesma coisa), o que gera um capital tanto financeiro para as editoras quanto um capital social, que serve de espaço para a discussão entre membros detentores das mesmas leituras, mas são substituídas constantemente por outras novas obras. Porém, é complicado pensar que, por si só, os denominados clássicos estão além das leis de consumo. Eles continuam porque existem instituições que mantêm o seu status ao longo dos tempos, na condição de textos de estudo obrigatório. Seu consumo não se dá em quantidade tão grande quando as obras que chamamos best-sellers, mas é permanente. “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, e “A Mão e a Luva”, de Machado de Assis, hoje são considerados grandes ícones da literatura, mas surgiram como folhetins de entretenimento cotidiano e numa linguagem sempre preocupada em interagir com o seu leitor. Esses, geralmente membros de uma elite burguesa, portanto difundiam valores de acordo com esse público. TÓPICO 1 | LITERATURA E SEUS CONCEITOS 7 Nessa perspectiva, compreende-se que a definição entre o que é ou não literatura entra e sai de moda conforme a estação, ou seja, é efêmero, afinal torna- se difícil estabelecer critérios imutáveis aplicados a todas as obras. Já as obras tidas como clássicas, podemos compará-las ao “pretinho básico”, visto que a permanência de sua elegância está garantida ao longo dos tempos pelos críticos e pelas instituições. Compreendemos aqui que a literatura como arte é capaz de levar o homem a vivenciar experiências e emoções, aquela capaz de emocionar ou mesmo provocar o seu leitor, ou seja, deverá existir uma identificação entre a obra e o seu leitor. Quando isso não acontece entre a obra literária e os seus críticos, possivelmente ela será desclassificada, como observamos no excerto de James Joyce, anteriormente citado. Assim, a definição de literatura passa pelo crivo: é arte para quem? Dessa forma, o escritor deve estabelecer um diálogo estético e crítico com a realidade, mas deve também ser um criador de mundos imaginários, trazendo à tona os sonhos e frustrações das pessoas do seu tempo, levando-as a uma produção de sentidos do texto das formas mais diversas, indo além das linhas, do dito explícito, fazendo conexões entre arte e realidade. Para encerrar este tópico, podemos concluir que a literatura como arte é um clássico, ou seja, aquela que permanece na memória com o passar do tempo. No entanto, Ítalo Calvino (2002, p. 10) aborda que “Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”. Nesse viés, podemos apontar ainda que aquilo que é literatura pode ser um consenso, mas também cada um de nós pode ter aquelas obras que consideramos literatura de forma individual, à revelia do senso comum. Como vimos, há certa dificuldade em distinguir a literatura de conceitos valorativos. NOTA Mimetizando-se tem sentido de: adaptando-se à mente como se sempre estivesse ali. UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA? 8 A literatura faz parte do produto geral do trabalho humano, isto é, da cultura. E a cultura de um povo são suas realizações, em diversos sentidos, como as ciências e as artes. É um conjunto socialmente herdado, que de certo modo determina a vida do indivíduo (SAMUEL,1985, p. 7). São as relações humanas que formam nossa cultura, é através do contato com o outro que nos transformamos naquilo que somos, na maneira como agimos, como construímos nossas crenças, definimos características de linguagem, modo de vestir etc. Consideramos que todas as criações humanas que visam expressar o mundo de modo sensível, através de recursos das artes plásticas, da linguística, da sonoridade, todas essas formas de exprimir emoções e percepções são arte. É pela arte que expressamos a nossa cultura. Por isso, estudar e compreender a arte e a cultura é um exercício de autocompreensão. 9 Neste tópico, você aprendeu que: • A princípio, o termo literatura abarca o conteúdo das mais variadas áreas: direito, astronomia, medicina etc. Com o passar do tempo surge o conceito de literatura como expressão artística da oralidade e da escrita. • A literatura distingue-se da ciência, apesar de que, como ela, pode basear- se em fenômenos naturais ou sociais, transcende os limites da realidade/ racionalidade, acrescentando criativamente à ficção e à fantasia. • Algumas correntes consideram a literatura como o processo interativo entre autor, texto e leitor, compreendendo que o sentido não está pronto no texto imóvel, mas constrói-se dialogicamente. • Compreender o leitor como construtor de sentidos remete-nos à teoria da morte do autor, defendida por Roland Barthes, já que os sentidos do texto, nessa perspectiva, estariam sendo construídos sempre e continuamente pelo ato da leitura. • O conceito do que é literatura varia de acordo com o tempo e o espaço e qualquer tentativa de consenso tende a ser frustrada. • Os conceitos que aprendemos sobre literatura normalmente são construídos por instituições acadêmicase críticos da área. Porém, existe um conflito entre o que se considera boa literatura pelas instituições e o que se considera boa literatura sob a ótica do consumidor dos produtos editoriais contemporâneos, especialmente os best-sellers. RESUMO DO TÓPICO 1 10 1 Leia o texto a seguir: Sabemos que o reino das palavras é farto. Elas brotam de nosso pensamento de maneira natural, não temos a preocupação de elaborar o que dizemos ou até mesmo escrevemos. As palavras, contudo, podem ultrapassar seus limites de significação. Podendo, assim, conquistar novos espaços e passar novas possibilidades de perceber a realidade. O caminho que a literatura percorre é este. O artista sente, escolhe e manipula as palavras, as organiza para que produzam um efeito que vá além da sua significação objetiva, procurando aproximá-las do imaginário (DANTAS, 2017). Com base nesse texto, podemos afirmar que: a) ( ) A literatura é pautada sempre na realidade. b) ( ) No texto literário, o sentido – a interpretação construída –, diferentemente dos textos não literários, é subjetiva, conta com a imaginação do escritor e leitor. c) ( ) O texto literário afasta-se da realidade, não busca nela inspiração, pois assim seria tomado por simplório. d) ( ) O texto literário geralmente tem caráter objetivo e sai do pensamento do seu criador de forma espontânea, sem uma preocupação com a forma de sua elaboração. AUTOATIVIDADE
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