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COLETIVO FEMINISTA SEXUALIDADE E SAÚDE Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 2 Conteúdo técnico: Carla Marques, Halana Faria e Mariana Prandini Assis Revisão: Janaína Penalva, Mariana Alencar Sales e Mariana Prandini Assis Coordenação de projeto: Cíntia Costa Design Instrucional: Claudete Maria Cossa Projeto gráfico: Heliziane Barbosa Design gráfico: Diego Borges Ilustração: Isabel Hernández Revisão ortográfica: Daniel Mendonça 1ª edição . 2021 Realização Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 3 APOIADO POR: Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 4 Sumário Apresentação ........................................................................ 5 Encerramento ....................................................................... 124 Referências ........................................................................... 126 Aula 1 O abortamento no mundo e no Brasil ............................................................ 6 Aula 2 Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil ....................................................... 31 Aula 3 Abortamento e evidências científicas ........................................................... 54 Aula 4 Abortamento, evidências científicas e cuidados pré e pós-abortamento ..................................... 75 Aula 5 Aspectos profissionais no acolhimento à gestação indesejada sob a perspectiva da redução de danos ........... 93 Aula 6 Violência obstétrica no abortamento e no cuidado pós-aborto ...................................................... 109 Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 5 APRESENTAÇÃO Olá, queremos lhe dar as boas-vindas ao curso de acolhimento de pessoas em situ- ação de abortamento e pós-aborto! Esperamos que você tenha um ótimo aprendi- zado e que o conhecimento aqui adquirido sirva à sua prática profissional qualifica- da e humanizada. No Brasil, o abortamento é criminalizado – exceto nos casos de violência sexual, anencefalia fetal e risco de vida para a pessoa gestante – e estigmatizado. Apesar da criminalização, muitas mulheres e pessoas que gestam recorrem a abortamen- tos inseguros, e essa é uma das principais causas de mortalidade materna no país. Este curso é uma intervenção nesse contexto e foi desenvolvido a partir da siste- matização do conhecimento interdisciplinar, com base em evidências científicas, produzido por especialistas em abortamento no Brasil e no mundo. Com ele, quere- mos levar até você o que há de mais atual e científico sobre o tema, com o objetivo de contribuir para sua formação como profissional de saúde. Mas não entendemos que a ciência esteja dissociada de valores e, por isso, incorporamos também conhe- cimentos relacionados às melhores práticas profissionais, para que a formação aqui recebida seja orientada pelos valores do cuidado integral, do acolhimento digno e empático e da humanização. Objetivos do curso Os objetivos deste curso são: • Ampliar seu conhecimento clínico e jurídico sobre os serviços de atenção ao abor- tamento previsto em lei e cuidado pós-aborto, assim como as habilidades corres- pondentes. • Contribuir para a redução do estigma associado ao abortamento. • Ampliar o acesso a um cuidado digno, empático e de alta qualidade em situa- ções de abortamento e cuidado pós-aborto, por profissionais com conhecimen- to de seus deveres profissionais e legais. Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 6 • Histórico e conceito de direitos sexuais, direitos reproduti- vos e justiça reprodutiva. • O que é abortamento e qual sua relação com a saúde pública. • Como o abortamento é tratado no mundo e no Brasil, e quais as suas consequências para a vida e a saúde das pessoas. • Quem são as pessoas que abortam e que condições contri- buem para que elas sejam colocadas em situações de vulne- rabilidade ao experienciar esse evento da vida. O abortamento no mundo e no Brasil Aula 1 Aulas Para a compreensão deste tema tão importante e pouco estudado, o curso foi dividido em 6 aulas. Veja a seguir quais são: Aula 1 O abortamento no mundo e no Brasil. Aula 6 Violência obstétrica no abortamento e no cuidado pós-aborto. Aula 2 Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil. Aula 5 Aspectos profissionais no acolhimento à gestação indesejada sob a perspectiva da redução de danos. Aula 3 Abortamento e evidências científicas. Aula 4 Abortamento, evidências científicas e cuidados pré e pós-abortamento. Jornada do cursista Encerramento Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 7 Diferentes governos ao redor do mundo começam a implementar políticas de planejamento e controle populacional. São publicadas denúncias no Brasil de esterilização forçada de mulheres negras. IV Conferência Mundial sobre a Mulher da ONU, em Pequim, onde se confirmou o paradigma dos direitos sexuais e reprodutivos. Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento da ONU, no Cairo, onde se firmou o conceito de direitos reprodutivos. A Constituição brasileira reconhece o direito à igualdade de gênero e ao planejamento reprodutivo. Criação do PAISM – Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher no Brasil. Formulação do conceito de direitos sexuais por movimentos gays e lésbicos pelo mundo. China: cada família só poderia ter um filho. Criação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra no Brasil. Peru: mais de 272.028 mulheres e 22.004 homens esterilizados forçosamente. Criação da Política Nacional dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos pelo Ministério da Saúde brasileiro. Aprovação da Lei de Planejamento Familiar nº 9.263 no Brasil. Criação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher do Ministério da Saúde e Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal no Brasil. Criação do conceito de “justiça reprodutiva” nos EUA, por um grupo de mulheres negras. Anos 80 1995 1994 1988 1983 1990 1980 até 2016 2007 Entre 1996 e 2001 2005 1996 2004 1994 1950 Introdução: Direitos Sexuais e Reprodutivos (DSR) e a justiça reprodutiva Nesta primeira aula, você conhecerá um pouco da história dos direitos sexuais e reprodutivos no mundo e no Brasil. Você verá também o lugar do abortamento nesse campo de estudo e sua conexão com a saúde pública. Vamos lá? Começaremos com os fatos mais importantes que marcaram a história dos direitos sexuais e reprodutivos. Acompanhe: Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 8 Como você pode observar na linha do tempo, o debate sobre os direitos sexuais e repro- dutivos vem de longa data. Para compreender cada uma de suas dimensões e se apro- fundar nesse tema, detalhamos a seguir os eventos mais importante sobre os DSRs. Diferentes governos ao redor do mundo começam a implementar políticas de planejamento e controle populacional. São publicadas denúncias no Brasil de esterilização forçada de mulheres negras. IV Conferência Mundial sobre a Mulher da ONU, em Pequim, onde se confirmou o paradigma dos direitos sexuais e reprodutivos. Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento da ONU, no Cairo, onde se firmou o conceito de direitos reprodutivos. A Constituição brasileira reconhece o direito à igualdade de gênero e ao planejamento reprodutivo. Criação do PAISM – Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher no Brasil. Formulação do conceito de direitos sexuais por movimentos gays e lésbicos pelo mundo. China: cada família só poderiater um filho. Criação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra no Brasil. Peru: mais de 272.028 mulheres e 22.004 homens esterilizados forçosamente. Criação da Política Nacional dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos pelo Ministério da Saúde brasileiro. Aprovação da Lei de Planejamento Familiar nº 9.263 no Brasil. Criação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher do Ministério da Saúde e Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal no Brasil. Criação do conceito de “justiça reprodutiva” nos EUA, por um grupo de mulheres negras. Anos 80 1995 1994 1988 1983 1990 1980 até 2016 2007 Entre 1996 e 2001 2005 1996 2004 1994 1950 Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 9 A partir dos anos 1950, governos nacionais em diferentes partes do mundo passa- ram a implementar políticas de planejamento e controle populacional, com a justi- ficativa de impulsionar o desenvolvimento econômico. Tais políticas se funda- mentavam na ideia de que há uma forte relação entre fecundidade e crescimento econômico, sendo, portanto, dever do estado administrar a vida reprodutiva de sua população, por meio de ações controlistas ou pró-natalistas (MARTINS, 2019). A principal característica desse tipo de política é seu caráter hierárquico e tecno- crático, ou seja, agentes do Estado definem o perfil de população desejada – por exemplo, por raça, classe social e tamanho da família – e desenham políticas públi- cas para a criação desse perfil. Esse tipo de política nega a autonomia e a capacidade das pessoas de decidir sobre suas vidas reprodutivas, ao mesmo tempo que cria hierarquias entre grupos da população, categorizados como desejados ou indesejados, como brancos versus negros e indígenas, ricos versus pobres. Em alguns países, como o Peru entre os anos de 1996 a 2001, esses programas consistiram na esterilização forçada de milhares de mulheres, em sua maioria pobres e indígenas (GUTIERREZ, 2014). Já na China, vigorou por mais de três déca- das, até 2016, a política que determinava que cada família poderia ter apenas uma criança (FENG; GU; CAI, 2016). Direitos reprodutivos Pare um instante para refletir... Você consegue identificar, nos dias de hoje, práticas do Estado que possam ser caracterizadas como políticas controlistas? Ponto de reflexão No Brasil, também houve a atuação de instituições de caráter controlista finan- ciadas por capital estrangeiro e, na década de 1980, vieram a público denúncias de programas de controle da natalidade e planejamento familiar que esterilizaram mulheres negras sem o consentimento delas. Tais denúncias culminaram em uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPMI), cujo relatório serviu de base para a Lei do Planejamento Familiar nº 9.263, aprovada em janeiro de 1996. Os direitos reprodutivos surgem como resposta feminista contra essas políticas de controle populacional e por autodeterminação, integridade corporal, equidade e diversidade. No Brasil, a Constituição de 1988 reconhece o direito à igualdade de gênero e ao planejamento reprodutivo fundamentado na dignidade humana e na livre decisão de cada pessoa. Fique por dentro Conheça o relatório da CPMI na íntegra. É um dos princípios fundamentais dos direitos humanos e significa autonomia, abrangendo autorresponsabilidade, autorregulação e livre- arbítrio de todo ser humano. Autodeterminação https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/85082/CPMIEsterilizacao.pdf?sequence=7&isAllowed=y https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/85082/CPMIEsterilizacao.pdf?sequence=7&isAllowed=y Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 10 No plano internacional, a Conferência Internacional da ONU sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo em 1994, foi o marco mundial de mudança de uma abordagem de disciplinamento e controle para um paradigma de direitos, autonomia e respeito no campo da reprodução humana. Agora que você já conheceu um pouco sobre os direitos reprodutivos, verá a seguir o que são direitos sexuais e como esses dois campos estão relacionados, levando inclusive à utilização da expressão “direitos sexuais e reprodutivos (DSR)”. O conceito de direitos sexuais tem uma história distinta e mais recente. Sua formu- lação inicial se deu nos anos 1990 pelo trabalho incansável de movimentos gays e lésbicos em diferentes partes do mundo, que logo foram abraçados por segmentos dos movimentos feministas e por outras minorias sexuais, como os movimentos trans e travesti, e intersexo. Direitos sexuais Fique por dentro Conheça o relatório da Conferência sobre População e Desenvolvimento. http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 11 Direitos reprodutivos se ancoram no reconhecimento do direito básico de todo casal e indi- víduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número e espaçamento de filhos e ter a informação e os meios para assim fazer, e o direito de gozar do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução livre de discriminação, coerção ou violência. (ONU, 1994: parágrafo 7.3) Um ano mais tarde, na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim em 1995, foram confirmados e ampliados os acordos estabelecidos no Cairo com relação aos direitos sexuais e reprodutivos. Na Plataforma de Pequim, os direitos sexuais foram definidos de forma mais explícita e autônoma em relação aos direitos reprodutivos. Os direitos humanos das mulheres incluem seus direitos a ter controle e decidir livre e respon- savelmente sobre questões relacionadas à sexualidade, incluindo saúde sexual e reproduti- va livre de coerção, discriminação e violência. Relacionamentos igualitários entre homens e mulheres nas questões referentes às relações sexuais e à reprodução, inclusive o pleno respei- to pela integridade da pessoa, respeito mútuo, consentimento e divisão de responsabilidades sobre o comportamento sexual e suas consequências. (ONU, 1995 parágrafo 96) Como você pode observar, foi um longo caminho entre as políticas controlistas iniciadas nos anos 1950 e o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos nos anos 1990. Esse reconhecimento é um grande avanço a ser celebrado, pois confere um pata- mar mínimo que todas as pessoas podem exigir ser traduzido em políticas públicas por seus governos. Contudo, há ainda vários grupos sociais cujos direitos humanos são violados com base na sexualidade, como lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, inter- sexos e pessoas não binárias, bem como pessoas que exercem a prostituição como trabalho e também aquelas que vivem com HIV/Aids. Embora não conste a expressão “direitos sexuais” no documento oficial da Confe- rência de Cairo da ONU, o texto inclui, de modo explícito, o conceito de “saúde sexual” como elemento essencial para o exercício dos direitos reprodutivos: Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 12 Há também o caso de suposições errôneas com relação à sexualidade, como a crença de que pessoas idosas e pessoas com deficiências não tenham uma vida sexual ativa. Há ainda o preconceito e a discriminação contra determinados grupos sociais, em que a reprodução é vista como não desejável, como é o caso das pessoas com deficiência, pessoas em situação de prisão, adolescentes e pessoas com orien- tações sexuais que não sejam heterossexuais. Contra essas visões reducionistas, é importante destacar a universalidade dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, que protegem e garantem a todas as pessoas, sem estigmas,distinções e preconceitos, um cuidado em saúde sexual e reprodutiva humanizado e de qualidade. 1 Orientação sexual – refere-se à direção do desejo erótico e afetivo de cada pessoa. Há pessoas heterossexuais, que se sentem atraídas por pessoas do sexo/gênero oposto, homossexuais, que sentem atração por pessoas do mesmo sexo/gênero, e bissexual, que se relacionam afetiva e sexualmente com pessoas de todos os sexos/gêneros. 2 Identidade de gênero – é a forma como a pessoa se sente e se apresenta para si mesma e para as demais pessoas, como masculina ou feminina, ou ainda como uma mescla de ambos, independentemente do sexo assinalado no nascimento ou da orientação sexual – pessoas cis são aquelas que se identificam com o sexo assinalado em seu nascimento e trans são aquelas que se identificam de forma diferente daquela que lhes foi atribuída ao nascimento. 3 Pessoa não binária – pessoa cuja identidade de gênero ou expressão de gênero não está limitada às definições de masculino ou feminino. Ou seja, pessoa que define seu gênero como estando “em algum lugar entre homem e mulher” ou como totalmente diferente dos dois polos. Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 13 A seguir, veja o leque de direitos sexuais garantidos a todas as pessoas, indepen- dentemente de gênero, idade, classe e situação social. O direito de viver e expressar livremente a sexualidade sem violência, discriminações e imposições, e com total respeito pelo corpo do(a) parceiro(a). O direito de escolher a parceria sexual. O direito de viver a sexualidade, independentemente de estado civil, idade ou condição física. O direito de expressar livremente sua orientação sexual: heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade. O direito ao sexo seguro para prevenção da gravidez e de infecções sexualmente transmissíveis (IST) e HIV/Aids. O direito a serviços de saúde que garantam privacidade, sigilo e atendimento de qualidade, sem discriminação. O direito de viver plenamente a sexualidade sem medo, vergonha, culpa e falsas crenças. O direito de escolher se quer ou não quer ter relação sexual. O direito à informação e à educação sexual e reprodutiva. O direito de ter relação sexual, independentemente da reprodução. Direitos sexuais Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 14 Agora, veja quais são os direitos reprodutivos que protegem também todas as pessoas, sem distinção. O direito de as pessoas decidirem, de forma livre e responsável, se querem ou não ter filhos, quantos filhos desejam ter e em que momento de suas vidas. O direito de acesso a informações, meios, métodos e técnicas para ter ou não ter filhos. O direito de exercer a sexualidade e a reprodução livre de discriminação, imposição e violência. Todos os direitos elencados anteriormente estão garantidos no Brasil, que parti- cipou ativamente dos espaços internacionais – a Conferência do Cairo (1994) e a Conferência de Pequim (1995) – em que esses direitos foram definidos, pela primeira vez, em nível internacional, como já vimos antes. Mas, além de aderir aos acordos internacionais que resultaram dessas conferên- cias, o Estado brasileiro também internalizou essas ideias em leis e políticas públi- cas. Agora, vamos compreender os principais Marcos Referenciais para as Políticas de Saúde Sexual e Reprodutiva no Brasil: Lei nº 9.263/1996, que regulamenta o planejamento familiar. Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher. PAISM (1984). Constituição Federal de 1988. Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 15 Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher/2004. Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal/2004. Política Nacional dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos/2005. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra/2007. Talvez você já conheça ou tenha ouvido falar do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM). Mas você sabia que ele, tal como originalmente formu- lado, instituiu uma agenda ampla e compreensiva de saúde da mulher no lugar da assistência médica pautada por ações programáticas e isoladas? Assim, o PAISM (1984) incorporou uma perspectiva de empoderamento, em que o acesso à informação é central para que as mulheres possam fazer suas escolhas de forma autônoma e consciente. Essas escolhas estão relacionadas não apenas à regulação da fecundidade, mas também à assistência no ciclo gravídico puerperal. Em todas essas dimensões, deveria haver atenção não apenas aos aspectos médicos, mas também aos psicoló- gicos e sociais. O PAISM inovou, indo além da reprodução para cuidar também do envelhecimento e da saúde mental e ocupacional. Agora, pense na atenção às pessoas com útero nas unidades básicas de saúde. Você identifica um atendimento integral às necessidades de saúde, inclusive as necessidades psíquicas e sociais, ou apenas ações de atenção programática, como o pré-natal, e medidas de prevenção de câncer de colo uterino? Ponto de reflexão No contexto do PAISM, o material educativo produzido sobre gravidez ou sobre como evitá-la deixa claro o seu caráter inovador e emancipador. O Programa rompeu com o conservadorismo predominante da época e contribuiu para a disse- Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 16 minação da perspectiva da “integralidade” para outras áreas da saúde que, mais tarde, veio a ser um dos princípios orientadores do SUS (DINIZ; LANSKY; D’OLI- VEIRA, 2012). Além disso, a Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, inclui no Título VIII da Ordem Social, em seu Capítulo VII, art. 226, § 7º, a responsabilidade do Estado no que se refere ao planejamento familiar, nos seguintes termos: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo aos Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. Para o exercício do direito ao planejamento familiar, serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção. A Lei n. 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que regulamenta o planejamento familiar, estabelece em seu art. 2º: Determina, ainda, a mesma lei, em seu art. 9º, que: Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal. Parágrafo único - É proibida a utilização das ações a que se refere o caput para qualquer tipo de controle demográfico. Como vemos nos trechos anteriores, as leis brasileiras deixam claro que as instân- cias gestoras do Sistema Único de Saúde (SUS), em todos os seus níveis, bem como profissionais de saúde que nelas atuam, devem garantir a atenção integral que inclua a assistência à concepção e à contracepção. Conheça a seguir algumas etapas do estabelecimento das políticas públicas de atenção à saúde da mulher. Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 17 Em 2004, o Ministério da Saúde instituiu a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher em parceria com diversos setores da sociedade civil. Essa política reflete o compromisso com a implementação de ações de saúde que contribuam para a garantia dos direitos humanos das mulheres e reduzam a morbimortalidade por causas preveníveis e evitáveis. Além disso, essa política enfatiza a melhoria da atenção obstétrica, o planejamento familiar, a atenção ao abortamentoa mulheres e meninas em situação de violência doméstica e sexual, e amplia as ações para grupos historicamente excluídos das políticas públicas em suas especificidades e necessidades. Em 2005, o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos. Entre as diretrizes e ações propostas por essa política, estão: Políticas públicas de atenção à saúde da mulher A ampliação da oferta de métodos anticoncepcionais reversíveis no SUS e incentivo à implementação de atividades educativas em saúde sexual e reprodutiva para as pessoas que utilizam a rede SUS. A capacitação de profissionais da atenção básica em saúde sexual e saúde reprodutiva. A ampliação do acesso à esterilização cirúrgica voluntária (laqueadura tubária e vasectomia) no SUS. A implantação e implementação de redes integradas para atenção às mulheres e adolescentes em situação de violência doméstica e sexual. A ampliação dos serviços de referência para a realização do abortamento previsto em lei e garantia de atenção humanizada e qualificada às mulheres em situação de abortamento. Índice de pessoas que adquirem determinada doença ou morrem em decorrência dela em uma população. Morbimortalidade Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 18 Já em 2007, reconhecendo as desigualdades étnico-raciais e o racismo institucio- nal como determinantes sociais de saúde, o Ministério da Saúde adotou a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra. Essa política propõe a qualificação e humanização da atenção à saúde das mulheres negras – assistência ginecológica e obstétrica e também no climatério, bem como em situação de abortamento. Ela reconhece, ainda, a maior vulnerabilidade das mulheres negras à morbimortalidade materna, doença falciforme, câncer de colo uterino, bem como ISTs/HIV/Aids, tuberculose, hanseníase e transtornos mentais. Diante desse quadro, essa política estabelece ainda ações que visam combater o racismo e a discriminação social nos serviços de saúde e garantir a atenção integral, com qualidade e respeito, a toda a população negra. Para continuar a compreensão deste assunto, discutiremos a seguir a justiça repro- dutiva. Você já ouviu falar nela? Então, siga em frente! O conceito de justiça reprodutiva foi criado em 1994 por um grupo de mulheres negras estadunidenses que se autodenominaram “mulheres afrodescendentes por justiça reprodutiva” (Women of African Descent for Reproductive Justice). O seu objetivo é ampliar o entendimento dos direitos sexuais e reprodutivos para além de uma perspectiva individual centrada na escolha, e incluir o contexto em que as pessoas fazem suas escolhas e as condições desses processos de tomada de decisão. Assim, a justiça reprodutiva foi definida por aquele grupo de mulheres como: “o direi- to humano à autonomia corporal pessoal, a ter filho/as, a não ter filho/as, e a criar o/as filho/as que temos em comunidades saudáveis e sustentáveis” (SisterSong Collective). Desse modo, o paradigma da justiça reprodutiva propõe uma abordagem mais ampla para os direitos reprodutivos e a saúde reprodutiva. Ela vincula esses direi- tos às lutas por justiça social, racial e ambiental de mulheres negras e de suas comu- nidades, e relaciona suas trajetórias reprodutiva e sexual à busca por cidadania, dignidade e bem-viver em todos os espaços de vida, individual e coletiva. A justiça reprodutiva ganhou espaço ao longo dos anos, e é importante que você conheça como ela é discutida em nosso país. Um exemplo no Brasil é a organização Criola que atua na defesa e promoção dos direitos das mulheres negras no Brasil há quase três décadas. Justiça reprodutiva Fique por dentro Assista ao vídeo da Fiocruz “Juventudes e Justiça Reprodutiva: contribuições contemporâneas para o campo da saúde”. Acesse a cartilha do Coletivo Margarida Alves e saiba mais sobre o assunto. É científico! Fique por dentro Ouça o podcast da Organização Criola. https://www.youtube.com/watch?v=RG7d74a5MT8&ab_channel=AgendaJovem https://www.youtube.com/watch?v=RG7d74a5MT8&ab_channel=AgendaJovem https://www.youtube.com/watch?v=RG7d74a5MT8&ab_channel=AgendaJovem https://www.youtube.com/watch?v=RG7d74a5MT8&ab_channel=AgendaJovem https://www.youtube.com/watch?v=RG7d74a5MT8&ab_channel=AgendaJovem https://coletivomargaridaalves.org/cartilha-idealizada-pelo-coletivo-margarida-alves-reune-informacoes-para-a-luta-por-justica-reprodutiva-no-brasil/ https://coletivomargaridaalves.org/cartilha-idealizada-pelo-coletivo-margarida-alves-reune-informacoes-para-a-luta-por-justica-reprodutiva-no-brasil/ https://criola.org.br/wp-content/uploads/2019/07/justicareprodutiva.mp3 Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 19 Você, profissional de saúde, acredita que existam situações práticas da assis- tência à saúde em que os direitos sexuais e reprodutivos são violados? Se sim, quais seriam essas situações? Para você, qual a relevância dos serviços de saúde na garantia desses direitos? Ponto de reflexão O vídeo e o podcast apresentados no Fique por dentro mostram como um concei- to, desenvolvido por mulheres negras nos Estados Unidos, viajou e encontrou embasamento no contexto brasileiro, onde a população negra também sofre as consequências brutais do racismo estrutural. Você pôde ver até aqui como se desenvolveram os direitos sexuais e reproduti- vos e também o conceito de justiça reprodutiva. A seguir, você entenderá um dos temas centrais deste curso, que é o abortamento, e por que precisamos discuti-lo no âmbito da saúde pública. Vamos lá? O abortamento é a interrupção de uma gestação pela remoção ou expulsão de um embrião ou feto do corpo da pessoa que está gestante. Chamamos de induzido o abortamento que ocorre por meios artificiais, sejam eles cirúrgicos ou farmacológi- cos. Já o abortamento espontâneo é aquele que ocorre naturalmente. Você sabia que o abortamento, seja espontâneo ou induzido, é um dos aconte- cimentos ginecológicos mais comuns? De modo geral no mundo, 15% a 20% das gestações terminam em um abortamento espontâneo (GARCÍA-ENGUÍDANOS; CALLE; VALERO et al., 2002) e 56% das gestações indesejadas terminam em um abortamento induzido (GUTTMACHER INSTITUTE, 2017). Estudos antropológicos e sociológicos mostram que, ao longo da história da humani- dade, o abortamento induzido é um fato comum nas diversas sociedades. As pessoas sempre regularam sua fertilidade, e o faziam pelo uso de contracepção ou abortamento. O que é abortamento e por que ele é uma questão de saúde pública Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 20 Até o século XVIII, abortamento e contracepção, assim como parto e nascimento, eram tratados como vivência das mulheres, quer dizer, faziam parte da vida reprodu- tiva das mulheres tanto gestar e parir quanto abortar; e as parteiras eram as principais prestadoras de cuidados e serviços de planejamento familiar (JOFFE, 2009). Apenas a partir do século XIX, como consequência do desenvolvimento da medici- na moderna, especialmente das especialidades de ginecologia e obstetrícia, é que leis passaram a regular o abortamento induzido por pressão dos órgãos de repre- sentação da classe médica. Assim, as leis passaram a restringir o abortamento em muitas situações e a permitir em poucas, sempre com supervisão médica, trans- formando-o em uma questão controvertida, que reflete uma variedade de forças religiosas, sociais e políticas (JOFFE, 2009). Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 21 Tratar o abortamento induzido como uma questão de saúde pública – e não como questão moral ou criminal – implica uma redefinição de argumentos e prioridades. Os argumentos relevantes passam a ser aqueles embasados em evidências científicas eas prioridades passam a ser os cuidados em saúde da pessoa em situação de abortamento, seja aquela que recorre ao serviço de atenção ao abortamento previsto em lei ou aquela que busca o cuidado pós-aborto, espontâneo ou induzido. A regulação jurídica do abortamento induzido, o seu tratamento como uma ques- tão social polêmica e sua consequente estigmatização levam muitas pessoas a abortar de forma insegura, sem os devidos cuidados. Desse modo, o abortamento inseguro mata e adoece pessoas. Existe um consenso internacional de órgãos de direitos humanos e saúde de que esse é um sério problema de saúde pública em muitos países e precisa ser discutido e estu- dado pelos profissionais de saúde. (ASSEMBLEIA MUNDIAL DA SAÚDE, 1967). Este é um ponto importante! Profissional de saúde não deve nem pode inves- tigar, julgar, recriminar ou discriminar – seu papel é cuidar. O que você pensa sobre isso? Ponto de reflexão Fique por dentro Ouça a entrevista com o professor Jefferson Drezett, que explica por que o abortamento inseguro é uma questão de saúde pública. Como vimos, o abortamento é um evento comum na vida reprodutiva das pessoas. Contudo, quando realizado de forma insegura, ele pode produzir muitos danos à saúde e até mesmo a morte. Nesta seção, veremos a relação entre abortamento inseguro e mortalidade materna. Abortamento inseguro e mortalidade materna Antes de tudo, é preciso saber o que é mortalidade materna. Você conhece a defini- ção da Organização Mundial de Saúde (OMS)? A OMS define morte materna como aquela decorrente de problemas relacionados à gravidez ou por ela agravados, ocorridos no período da gestação ou até 42 dias após o parto. A razão de morte materna é um indicador das condições de vida e cuidados de saúde de uma população e reflete no desenvolvimento humano de um país. Mortalidade materna https://jornal.usp.br/atualidades/aborto-e-questao-de-saude-publica/ https://jornal.usp.br/atualidades/aborto-e-questao-de-saude-publica/ Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 22 Fique por dentro Saiba mais sobre os objetivos da ODS. Sobre o abortamento inseguro, leia o artigo dos Cadernos de Saúde Pública. É científico! Níveis baixos de instrução, condições nutricionais inadequadas, apoio social insu- ficiente e falta de acesso a cuidados de saúde estão fortemente associados às mortes maternas. Além disso, a mortalidade materna é, habitualmente, o principal indicador da mortalidade diferencial entre mais ricos e mais pobres, entre nações, grupos sociais e famílias. A aceleração da redução da mortalidade materna foi estabelecida como uma das metas globais prioritárias nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas. Mas por que a morte materna é um importante indicador de saúde? Ela é considerada “um evento sentinela, um importante marcador da qualidade do sistema de saúde, em especial em relação ao acesso, à adequação e à oportunidade do cuidado” e está “intimamente relacionado à vulnerabilidade social das popula- ções" (FREITAS-JUNIOR, 2020, p. 616). No Brasil, a razão de morte materna está próxima a 50 por 100 mil habitantes. Esses valores são muito superiores àqueles considerados aceitáveis pela OMS, que estabelece que a razão de morte materna nunca deve ser superior a 20. O acesso à atenção pré-natal e a adequada assistência ao parto são importantes para a redução da mortalidade materna. Mas igualmente relevante para a redução desse índice é o entendimento de que o abortamento inseguro contribui para mortes maternas evitáveis e deve ser enfrentado como um problema de saúde pública. Você sabe como se calcula a razão de mortalidade materna? A razão de mortalidade é um indicador utilizado para se conhecer o número de mortes de mulheres grávidas (independentemente da localização ou tempo de gestação) ou mulheres com até 42 dias após o parto, por qualquer causa exceto acidentes, a cada 100 mil crianças nascidas vivas, em determinado local e espaço de tempo. Veja a seguir como o Datasus (Ministério da Saúde) realiza esse cálculo: Razão de mortalidade 100.000 número de óbitos maternos diretos e indiretos número de nascidos vivos Para saber mais sobre os indicadores de mortalidade, acesse o site do Datasus. É científico! Apesar de ainda ser elevada, a razão de mortalidade materna vem se reduzindo no Brasil nos últimos anos. Em 2017, ela foi de 56,88; em 2018, de 49,66 e em 2019, de 48,33. Essa redução pode ser atribuída à melhoria da qualidade de informação sobre a saúde reprodutiva e à maior qualidade dos serviços de atenção e cuidado. Apesar disso, o fato de que o abortamento inseguro continua sendo uma das quatro maiores causas de mortalidade materna no Brasil é um dado sério, que não pode ser ignorado. https://ods.imvf.org/ https://www.scielo.br/j/csp/a/Vz5bVgLTWS54g4KLXDynSqf/?lang=pt&format=pdf https://www.scielo.br/j/csp/a/Vz5bVgLTWS54g4KLXDynSqf/?lang=pt&format=pdf http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/idb2000/fqc06.htm Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 23 Morte materna no mundo (OMS) As cinco maiores complicações, que respondem por aproximadamente 75% de todas as mortes maternas, são: 27 a 1% Hemorragia severa (a maior parte hemorragia após o parto) 10 a 7% Infecções (normalmente após o parto) 3 a 2% Complicações resultantes do parto 14 a 0% Hipertensão durante a gravidez (pré-eclâmpsia e eclampsia) 7 a 9% Aborto inseguro Consulte aqui a base de dados do SUS. É científico! Você quer saber como está a situação de seu estado ou cidade em relação à mortalidade materna? O gráfico a seguir mostra as principais causas de morte materna no mundo. Você pode notar que o abortamento inseguro está entre elas. O gráfico mostrou que o abortamento inseguro é uma das principais causas evitáveis de mortalidade materna mundialmente, e infelizmente a situação do Brasil não é diferente. De acordo com o Ministério da Saúde, entre os óbitos maternos ocorridos de 1996 a 2018, as causas obstétricas diretas que se destacaram foram: hipertensão, hemorragia, infecção puerperal e abortamento inseguro. http://tabnet.saude.sp.gov.br/deftohtm.exe?tabnet/ind14_matriz.def Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 24 Abortamento no mundo A seguir você conhecerá dados sobre o abortamento no mundo e mais à frente sobre o abortamento no Brasil. Continue! As leis sobre abortamento no mundo Totalmente proibido Para salvar a vida da mulher Para preservar a saúde Razões sociais ou econômicas amplas Sob solicitação (limites gestacionais variam) Fique por dentro Interaja com o mapa As Leis de Aborto do Mundo e entenda melhor suas categorias. É importante destacar que os órgãos internacionais de direitos humanos consi- deram, cada vez mais, que a restrição do acesso ao abortamento seguro é incom- patível com o direito à igualdade, à autonomia, à dignidade e à saúde e, por isso, solicitam que os governos nacionais removam todas as punições penais ao abor- tamento (ERDMAN; COOK, 2020). Você sabia que a América Latina e o Caribe são as regiões com as leis mais restritivas ao abortamento no mundo? E que o Brasil está entre aqueles com leis criminais mais severas? A partir do mapa anterior você pode observar em quais regiões do mundo a legis- lação sobre abortamento é mais permissiva e mais restritiva. É possível também identificar que os países do sul global tendem a ter leis mais restritivas. https://maps.reproductiverights.org/worldabortionlaws https://maps.reproductiverights.org/worldabortionlaws Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 25 Você já se perguntou quais são as consequências sociais, políticas e econômi- cas para as pessoas que vivem em países com leis restritivas ao abortamento? Pontode reflexão O gráfico a seguir mostra como as taxas de abortamento inseguro aumentam à medida em que as legislações se tornam mais restritivas. Assim, nos contextos mais permissi- vos, em que a interrupção voluntária da gravidez está autorizada, o abortamento inse- guro corresponde a 13% dos casos. Já nos contextos mais restritivos, como é o caso brasileiro, o abortamento menos seguro e inseguro chega a 56% dos casos. A proporção de todos os abortamentos que são estimados ser inseguros aumenta à medida que as leis se tornam mais restritivas. Moderadamente restritiva Seguro Menos seguro Inseguro Inseguros: são abortamentos que não cumprem nenhum dos dois critérios citados. Muito restritiva Abortamentos seguros usam estes dois critérios: são feitos por uma pessoa apropriadamente treinada e utilizando um método seguro. Menos restritiva Menos seguros: são abortamentos que cumprem apenas um dos dois critérios citados. 87% 42% 25% 44% 31% 17%12% 41% 1% O gráfico, portanto, deixa evidente a relação entre restrição e insegurança no aborta- mento. Leis que criminalizam o abortamento não impedem que as pessoas abortem, mas as levam a procurar métodos inseguros, que colocam em risco sua saúde e vida. Fonte: https://www.guttmacher.org report/abortion-worldwide-2017 https://www.guttmacher.org/report/abortion-worldwide-2017 Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 26 Ainda segundo dados da OMS (2020), a cada ano entre 4,7% a 13,2% das mortes maternas podem ser atribuídas ao abortamento inseguro. Além disso, o abortamento inseguro implica despesas públicas que poderiam ser evitadas com políticas públicas. Estimativas mostram que, nos países em desenvolvimento, o gasto anual para os siste- mas de saúde inclui US$ 553 milhões de dólares para tratar complicações por aborta- mento inseguro e US$ 6 bilhões para tratar infertilidade pós-abortamento inseguro. E no Brasil, você sabe qual a situação atual? Siga em frente para conhecer! Segundo a pesquisa Nascer no Brasil, da Fiocruz, 55% das gestações não são planeja- das. Isso se deve a uma série de barreiras sociais, econômicas ou educacionais. Muitas vezes, as pessoas não têm informações adequadas sobre planejamento reprodutivo, outras vezes não têm acesso aos métodos, como contraceptivos e preservativos. Muitas dessas gestações indesejadas são interrompidas, o que faz do abortamento um evento comum na vida de pessoas, com maior incidência em pessoas em situa- ção de vulnerabilidade, como será explicado no decorrer do curso. Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto (2016): Abortamento no Brasil Metade das mulheres aborta usando medicamentos. O aborto foi realizado com medicamentos em 48% (115) dos casos válidos. Se considerados os 4% (10) de não-resposta ao quesito, a proporção seria ainda próxima, 46%. O aborto é comum entre as mulheres brasileiras. Das 2.002 mulheres alfabetizadas entre 18 e 39 anos entrevistadas pela PNA em 2016, 13% (251) já fizeram ao menos um aborto. Cerca de metade das mulheres precisou ser internada para finalizar o aborto: 48% (115) das mulheres foram internadas no último aborto. Segundo dados da OMS, a maior parte dos abortamentos inseguros (98%) ocorre em países em desenvolvimento. Isso evidencia como a organização sócio-político-econômica determina a exclusão ou acesso aos direitos. Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 27 Em outras palavras, isso significa que: Na faixa etária de anos 18 a 38 Apesar da lei severa no Brasil Fonte: Pesquisa Nacional do Aborto 2010 a 2016. 1 por minuto 1369 por dia 57 por hora 500.000 por ano 4,7 milhões de mulheres já fizeram aborto 1 em cada 5 mulheres até os 40 anos já fez aborto 56% são católicas 25% evangélicas protestantes 7% possuem outras religiões Aborto 67% têm filhos 88% têm religião Dessas: O gráfico nos revela que o abortamento é um evento comum na vida reprodutiva de mulheres comuns – pelo menos uma em cada cinco mulheres até os 40 anos já fez um aborto, e a grande maioria delas tem religião e já possui filhos. Com certeza você tem alguém em seu círculo próximo que já passou por um abortamento induzido. Para compreender melhor, leia a Pesquisa Nacional Aborto, que explica em detalhes o panorama destacado no infográfico anterior. É científico! https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232017000200653&script=sci_abstract&tlng=pt https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232017000200653&script=sci_abstract&tlng=pt Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 28 No entanto, esses números podem ser ainda maiores. Há falhas no preenchimento de declaração de óbito de pessoas por abortamento e também existe uma subnoti- ficação. Por exemplo, a quinta causa de morte mais frequente de mulheres aparece no atestado de óbito como mal definida, ou seja, trata-se de causa não estabele- cida, isso corresponde a 3500 mortes de mulheres em idade reprodutiva (15 a 49 anos) no Brasil anualmente (BRASIL, 2018). O abortamento realizado em condições de risco frequentemente é acompanhado de complicações severas, agravadas pelo desconhecimento dos sinais de risco e pela demora em procurar os serviços de saúde, que em sua maioria não estão capacitados para esse tipo de atendimento (OLIVEIRA, 2003). As complicações imediatas mais frequentes são a perfuração do útero, a hemor- ragia e a infecção, que podem levar a graus distintos de morbidade e mortalidade (OMS, 2020). Estima-se que 20-30% dos abortos realizados de maneira insegu- ra possam levar a infecções do sistema reprodutivo, sendo que uma em cada 10 mulheres vão desenvolver uma disfunção temporária ou permanente e vão preci- sar de cuidados médicos. 5 mil complicações graves 250 mil hospitalizações 15 mil complicações (abortamento incompleto com restos ovulares, infecção, perfuração uterina, lesão de órgãos adjacentes, hemorragia) 203 mortes, ou seja, umamorte a cada dois dias No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde (2018), o abortamento é respon- sável anualmente por: Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 29 Dados da OMS mostram que pessoas submetidas a situação de abortamento inseguro sofrem pesados custos fisiológicos, financeiros e emocionais. Você conhece alguém que já passou por essa situação? Ponto de reflexão É importante, contudo, que você perceba que o risco à saúde e à vida relacionado ao abortamento inseguro não ocorre igualmente na população. De acordo com o estudo de Cardoso, Vieira e Saraceni (2020), as brasileiras em maior risco de óbito por abortamento são mulheres de cor preta e indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-o- este, e sem companheiro. Aula 1. O aborto no mundo e no BrasilAmpara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 30 Você, como futura/o profissional de saúde, tem um papel fundamental tanto na mudança desse cenário, por meio da oferta adequada de planejamento reproduti- vo, quanto no acolhimento e adequada orientação sobre o tema. Além disso, deve também enfrentar as iniquidades e desigualdades no acesso ao cuidado em abor- tamento e pós-aborto. Você chegou ao final dessa aula. Aqui você conheceu os conceitos de direitos sexu- ais e reprodutivos e de justiça reprodutiva. Conheceu também dados sobre o abor- tamento no Brasil e no mundo e sua relação com a saúde pública. Siga em frente para conhecer mais sobre o acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto. Até lá! Isso se explica porque classe, condição geográfica, raça, idade, e contexto cultural são fatores determinantes no acesso à informação e a recursos para a realização de um abortamento, mesmo em contexto de clandestinidade. Essesfatores estão entre as chamadas “determinantes sociais da saúde”, definidas como os fatores sociais, econômicos, culturais, étnico-raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e os fatores de risco na população, produzindo desigualdade e iniquidade (FUSCO; SILVA; ANDREONI, 2012). No caso do abortamento inseguro, as principais determinantes sociais incluem restrições legais, ausência de apoio social, inadequação dos serviços de planejamento reprodutivo e deficiência em infraestrutura dos serviços de saúde. Ampara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 31 Aula 2. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil • As situações em que o abortamento é previsto em lei no Brasil. • Os desafios para a implementação desses serviços. • As dificuldades de exercício desse direito e as barreiras de acesso aos serviços. • Os conceitos de objeção de consciência, confidencialidade e sigilo. • O que se espera de quem atua em contato ou diretamente em um serviço de abortamento previsto em lei. As leis brasileiras sobre o abortamento Nesta aula, você vai conhecer a legislação sobre abortamento no Brasil e entender como funciona o chamado sistema das exceções. De modo geral, o abortamento induzido é criminalizado no Brasil, mas há algumas situações em que ele é permitido. São essas situações que você conhecerá mais a fundo, mas também aprenderá um pouco sobre as consequências danosas da criminalização. O Código Penal de 1940 autoriza o abortamento nas situações em que há risco à vida da pessoa gestante e no caso da gravidez resultante de estupro. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal, no contexto da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, autorizou também a interrupção da gestação em casos de fetos anencefálicos. Apesar de ser previsto em lei há muitas décadas, o primeiro serviço para assistên- cia de abortamento legal no Brasil foi estruturado apenas em 1989, no Hospital Dr. Arthur Ribeiro de Saboya, na cidade de São Paulo. Conhecendo a legislação Fique por dentro Conheça, na íntegra, a Lei nº 2.848 do Código Penal e a decisão do STF na Arguição de descumprimento de preceito fundamental 54. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil Aula 2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334 https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334 https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334 https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334 Ampara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 32 Aula 2. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil Aqui vale uma pequena pausa para refletirmos. Considerando-se o Código Penal de 1940, e tendo o primeiro serviço para abortamento começado a funcionar em 1989, o que será que mudou até os dias de hoje? Sua cidade conta com um serviço de abortamento legal? Você sabe como ele funciona? Ponto de reflexão Para entender melhor esse cenário, veja ao lado, no É científico o mapa com os estabelecimentos do SUS que oferecem os serviços de abortamento previsto em lei no Brasil. Apesar da ampliação do número de serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no país desde a criação do primeiro em 1989, há ainda uma série de barreiras de acesso. A primeira delas é a concentração em algumas regiões do país. Como você pôde observar, praticamente não há serviços estruturados na região Norte e há poucos na região Centro-Oeste. Quer saber mais sobre as barreiras de acesso ao abortamento previsto em lei? Veja a seguir as principais barreiras identificadas pelo estudo de Madeiro e Diniz (2016). Interaja com o mapa Tudo sobre aborto legal no Brasil, que contém a localização desses estabelecimentos. É científico! Barreiras encontradas para o serviço de atenção ao abortamento no Brasil: • O isolamento geográfico e a falta de serviços em todos os estados. • Nem todos os serviços existentes se encontram ativos. • Muitos serviços desencorajam as pessoas que os buscam a realizar a interrupção da gestação. • Muitos serviços, contrariando a lei, exigem boletim de ocorrência para realizar o atendimento. • Muitas pessoas não têm acesso à informação de que podem buscar ajuda em um serviço de atenção ao abortamento previsto em lei. • Muitas mulheres não declaram que sofreram violência sexual, especial- mente quando o agressor é parceiro íntimo. • A veracidade do estupro muitas vezes é questionada por profissionais de saúde e mulheres são revitimizadas ao buscar um serviço que é seu direito. • Profissionais se recusam a realizar o abortamento, fazendo uso da chama- da objeção de consciência (conceito que será estudado mais à frente). https://mapaabortolegal.org https://mapaabortolegal.org Ampara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 33 Aula 2. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil • Profissionais de atenção primária à saúde desconhecem os direitos de uma pessoa frente a uma gravidez indesejada e para quais serviços encaminhar. • Muitas pessoas sofrem violências institucionais nos serviços, como negligência, atendimento tardio, interrogações repetidas, discriminação social e racismo. • Muitos serviços não contam com equipe de assistência específica. • A maioria dos serviços impõe limite gestacional para a realização do procedimento. Ampara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 34 Aula 2. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil Teste seus conhecimentos Como você pôde observar na longa lista, as barreiras de acesso ao abortamento previsto em lei no Brasil são inúmeras e de diferentes ordens – há barreiras sociais, econômicas, educacionais e estruturais, mas muitas dessas podem ser superadas com o trabalho de profissionais de saúde como você. Fique por dentro Leia este artigo do portal digital Catarinas e saiba mais sobre abortamento previsto em lei no Brasil. Fique por dentro Para saber mais sobre o acesso ao abortamento previsto em lei no Brasil, ouça o podcast “Inovação, ciência e tecnologia para avançar o acesso ao aborto no SUS”. Como podem profissionais de saúde atuar na superação dessas barreiras? Escolha todas as opções que lhe pareçam corretas. a) ( ) Comprometer-se com a saúde sexual e reprodutiva das pessoas, entendendo suas demandas e necessidades. b) ( ) Conhecer a legislação que regula os serviços de atenção ao abortamento previsto em lei. c) ( ) Oferecer acolhimento e escuta qualificada em quaisquer pontos da atenção à saúde. d) ( ) Recusar o atendimento a uma pessoa cujo relato não pareça verídico. e) ( ) Atualizar-se tecnicamente para oferecer uma assistência empática e de qualidade. Feedback Positivo: Se você escolheu as letras A, B, C e E, está no caminho certo! A escuta atenta e acolhedora, sem julgamentos e preconceitos, é funda- mental para o reconhecimento das demandas e necessidades assistenciais. Alia- do a isso, o conhecimento das legislações e das melhores e mais atuais evidências científicas para uma prática clínica segura contribuirá para a oferta de cuidado capaz de promover a saúde sexual e reprodutiva. Feedback negativo: Se você escolheu a letra D, você precisa refletir sobre o papel da saúde e do cuidado. Não cabe a você profissional de saúde julgar ou averiguar a veracidade do relato da situação de violência apresentado pela víti- ma. O objetivo do atendimento em saúde é garantir o cuidado. Discutiremos mais esse aspecto ao longo da aula. Sobre o limite de idade gestacional para realização de abortamento, é importan- te saber que o Código Penal brasileiro não o estabelece. Assim, o abortamento previsto em lei pode ser realizado sempre que a equipe de saúdeentenda ser segu- ro e adequado. As Normas Técnicas do Ministério da Saúde definem o abortamento de acordo com a idade gestacional (até 20-22 semanas). Contudo, as normas técnicas são regula- ções que estabelecem um mínimo do cuidado a ser prestado e devem ser interpre- tadas de acordo com a Constituição, as leis e as melhores evidências científicas. https://catarinas.info/aborto-previsto-em-lei-no-brasil/ https://almalondrina.com.br/ict-para-avancar-o-acesso-ao-aborto-no-sus/ https://almalondrina.com.br/ict-para-avancar-o-acesso-ao-aborto-no-sus/ https://almalondrina.com.br/ict-para-avancar-o-acesso-ao-aborto-no-sus/ https://almalondrina.com.br/ict-para-avancar-o-acesso-ao-aborto-no-sus/ Ampara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 35 Aula 2. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil Nos hospitais em que há uma equipe específica para esse serviço, ela é multipro- fissional e formada por profissionais das seguintes áreas: assistência social, psico- logia, enfermagem, obstetrícia, ultrassonografia e anestesia. Esses(as) profissionais de saúde precisam se comprometer com o acolhimento e a realização de procedi- mentos técnicos eficazes e seguros. Como devem ser os atendimentos nos serviços de atenção ao abortamento previsto em lei? Vídeo com especialista Quer saber mais sobre como deve ser o acolhimento humanizado na saúde para casos de abortamento? Então, vá até o ambiente virtual e assista ao vídeo com a doutora em saúde pública Emanuelle Goes. E como deve ser o acolhimento feito por essa equipe? É o que você vai saber a seguir. No caso do serviço de atenção ao abortamento previsto em lei, o acolhimento deve ser pautado pelo atendimento integral às necessidades da pessoa sob cuidados e envolve escuta qualificada em atenção às recomendações e às Normas Técnicas do Ministério de Saúde. O acolhimento realizado pela equipe multiprofissional Dar as orientações corretas sobre o abortamento pressupõe fornecer à pessoa sob cuidados, de modo claro e acessível, as informações necessárias para que ela condu- za o seu próprio tratamento, tenha segurança na tomada de decisões e possa exercer o autocuidado, em consonância com as diretrizes do Sistema Único de Saúde – SUS. Acolhimento é o tratamento digno e respeitoso, que inclui a escuta ativa sem pré-julgamentos ou imposição de valores, o reconhecimento e a aceitação das diferenças. Ele inclui também o acesso à assistência e o respeito ao direito da pessoa de decidir sobre os procedimentos a serem tomados. Acolhimento é uma tarefa de toda a equipe de saúde. Ampara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 36 Aula 2. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil Cuidados em saúde É muito importante que você, como profissional de saúde, certifique-se de que cada dúvida e preocupação seja devidamente esclarecida para garantir que a pessoa tome uma decisão informada. Cabe a você adotar uma “atitude terapêu- tica”, buscando desenvolver uma escuta ativa e uma relação de empatia. A empatia requer uma comunicação em sintonia com as demandas da pessoa sob cuidados e a capacidade de se colocar no lugar dela, de modo a compreender a situação pela qual ela está passando. Como você pôde observar na aula anterior, o abortamento ainda é um tema carre- gado de estigma na sociedade brasileira e, por isso, passar por essa situação pode causar sofrimento, dor, autojulgamento e vergonha. Da mesma forma, há pessoas que relatam sentir alívio e conforto. Essa multiplicida- de de reações e sentimentos que a experiência do abortamento pode gerar é que torna tão importante o acolhimento por parte de profissionais de saúde. Como é destacado na Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento do Ministério da Saúde, a postura acolhedora da equipe multiprofissional é funda- mental para a criação de um ambiente de empatia e confiança que dará segurança e conforto à pessoa em situação de abortamento. Fique por dentro Conheça na íntegra a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento do Ministério da Saúde. O que cabe a profissionais de medicina e enfermagem Dentro da equipe, algumas responsabilidades são específicas de cada categoria profissional. As atribuições a seguir são de toda a equipe, mas principalmente de profissionais de medicina e enfermagem. Respeitar a fala da pessoa, lembrando que nem tudo é dito verbalmente, auxiliando-a a compreender seus sentimentos e elaborar a experiência vivida, buscando a autoconfiança. Organizar o acesso da pessoa, priorizando o atendimento de acordo com necessidades detectadas. São responsabilidades de profissionais de medicina e enfermagem: Identificar e avaliar as necessidades e riscos dos agravos à saúde em cada caso, resolvendo-os, conforme a capacidade técnica do serviço, ou encaminhando-a para serviços de referência. Dar encaminhamentos aos problemas apresentados pela pessoa, oferecendo soluções possíveis e priorizando seu bem-estar e comodidade. Realizar os procedimentos técnicos de forma humanizada e informando a pessoa sobre as intervenções necessárias. Garantir a privacidade no atendimento e a confidencialidade das informações. Responsabilidades de profissionais https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uploads/2018/01/Aten%C3%A7%C3%A3o-humanizada-ao-abortamento-2014.pdf https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uploads/2018/01/Aten%C3%A7%C3%A3o-humanizada-ao-abortamento-2014.pdf https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uploads/2018/01/Aten%C3%A7%C3%A3o-humanizada-ao-abortamento-2014.pdf https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uploads/2018/01/Aten%C3%A7%C3%A3o-humanizada-ao-abortamento-2014.pdf Ampara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 37 Aula 2. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil Respeitar a fala da pessoa, lembrando que nem tudo é dito verbalmente, auxiliando-a a compreender seus sentimentos e elaborar a experiência vivida, buscando a autoconfiança. Organizar o acesso da pessoa, priorizando o atendimento de acordo com necessidades detectadas. São responsabilidades de profissionais de medicina e enfermagem: Identificar e avaliar as necessidades e riscos dos agravos à saúde em cada caso, resolvendo-os, conforme a capacidade técnica do serviço, ou encaminhando-a para serviços de referência. Dar encaminhamentos aos problemas apresentados pela pessoa, oferecendo soluções possíveis e priorizando seu bem-estar e comodidade. Realizar os procedimentos técnicos de forma humanizada e informando a pessoa sobre as intervenções necessárias. Garantir a privacidade no atendimento e a confidencialidade das informações. Responsabilidades de profissionais Agora que você já conheceu as responsabilidades que lhe cabem como profissional da medicina ou enfermagem, chegou a hora de conhecer o que a Norma Técnica indica como responsabilidade específica de profissionais do serviço social e da saúde mental. O que cabe a profissionais de saúde mental e serviço social Como você já viu neste curso, a atenção integral à saúde requer não apenas que tenhamos atenção à dimensão biomédica do cuidado, mas também que cuidemos dos impactos sociais e psíquicos relacionados. Por isso, a participação de profis- sionais da psicologia e do serviço social no atendimento à pessoa em situação de abortamento é fundamental! São responsabilidades de profissionais de saúde mental e serviço social: 1 Prestar apoio emocional imediato e encaminhar, quando necessário, para o atendimento continuado em médio prazo. 2 Identificar as reações do grupo social(família, amigos(as), colegas) em que está envolvida. Ampara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 38 Aula 2. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil 3 Reforçar a importância da pessoa, respeitando o estado emocional em que se encontra, adotando postura autocompreensiva, que busque aautoestima. 4 Perguntar sobre o contexto da relação em que se deu a gravidez e as possíveis repercussões do abortamento no relacionamento com a parceria. 5 Conversar sobre gravidez, abortamento inseguro, menstruação, saúde reprodutiva e direitos sexuais e reprodutivos. Você já tomou conhecimento das responsabilidades da equipe multiprofissio- nal, mas você sabe o que é consentimento livre e informado? Siga em frente para conhecer esse conceito. Consentimento livre e informado O consentimento livre e informado consiste na aceitação pela pessoa que está sob cuidados dos procedimentos a que ela será submetida. Ele se dá por meio da assi- natura de um documento. Para que seja livre, a pessoa não pode estar sob qualquer tipo de pressão, coação ou constrangimento, físico ou psicológico. Ampara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 39 Aula 2. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil Para que seja informado, é fundamental que sejam fornecidas informações claras e acessíveis sobre os procedimentos técnicos que serão adotados, as medidas para o alívio da dor, o tempo de duração do procedimento, o período de internação, a garantia do sigilo e privacidade, a segurança do procedimento e os possíveis riscos envolvidos. No caso do abortamento, é comum haver dúvidas envolvendo riscos sobre o proce- dimento, tempo de recuperação, seu impacto sobre a fertilidade futura e questões legais. Por isso, é muito importante esclarecer todas as dúvidas que a pessoa sob cuidados possa ter. Legislação sobre consentimento livre e informado A legislação exige o consentimento livre e informado para o abortamento em quaisquer circunstâncias, salvo em caso de iminente risco de vida. Se a pessoa esti- ver impossibilitada de consentir, esse consentimento deverá ser obtido junto a seus familiares próximos. De acordo com os artigos 3º, 4º, 5º, 1631, 1690, 1728 e 1767 do Código Civil brasileiro: A partir dos 18 anos: a pessoa é capaz de consentir sozinha. A partir dos 16 e antes dos 18 anos: a adolescente deve ser assistida pelos pais ou por seu representante legal, que se manifestam com ela. a adolescente ou criança deve ser representada pelos pais ou por seu representante legal. Antes de completar 16 anos: A outra circunstância em que é necessário o consentimento de representante legal (pessoa curadora ou tutora) refere-se à pessoa que, por qualquer razão, não tenha condições de discernimento e de expressão de sua vontade, por exemplo: uma pessoa com deficiência mental, em situação de extrema vulnerabilidade, declarada incapaz em procedimento judicial ou ainda alguém inconsciente. Ampara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 40 Aula 2. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil Exames complementares Além do exame clínico, a ultrassonografia é o exame complementar utilizado para esses casos. Esse exame determina a idade gestacional e auxilia na escolha do método do abortamento. Quando não for possível realizar a ultrassonografia, e afastados os fatores de risco para gravidez ectópica (sangramento e dor pélvica), é possível calcular a idade gestacional a partir da data da última menstruação (DUM), contando o número de dias da DUM até o dia atual e dividindo esse valor por 7. A seguir você vai conhecer quais os documentos necessários para realizar o abor- tamento legal. Termos de compromisso Como o abortamento é autorizado apenas em algumas situações pela lei brasileira, exige-se a assinatura de alguns documentos pela pessoa ou pela criança ou adoles- cente que fará o procedimento e seu responsável. Conheça agora esses documentos: É a gestação em que o óvulo fertilizado está fora do útero. Os principais fatores indicativos de que estamos diante de uma gravidez ectópica são sangramento e dor pélvica. Gravidez ectópica Termo de Responsabilidade – é assinado pela pessoa e/ou seu(sua) representante legal, que declara corresponderem as informações prestadas para a equipe de saúde à legítima expressão da verdade. Termo de Relato Circunstanciado – é exigido nas situações de violência sexual, e consiste na descrição das circunstâncias da violência sexual sofrida que resultaram na gravidez. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – é assinado pela pessoa ou por seu(sua) representante legal, que declara estar de acordo com o procedimento e saber dos riscos e efeitos esperados. Mas não é só a pessoa ou seu(sua) representante legal que precisa assinar docu- mentos, a equipe médica também tem a responsabilidade de assinar alguns termos. Veja a seguir quais são eles: Ampara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 41 Aula 2. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil Parecer Técnico, assinado pelo profissional de medicina assistente, em que constará a avaliação de compatibilidade entre a idade gestacional e a data da violência sofrida pela mulher ou criança ou adolescente. Termo de aprovação de Procedimento de Interrupção de Gravidez, assinado por no mínimo três profissionais da equipe multiprofissional. A assinatura desses documentos é importante para garantir a segurança de profis- sionais e da pessoa em situação de abortamento previsto em lei. Mas você não pode esquecer que o objetivo central do atendimento é o cuidado humanizado e empático e, portanto, a documentação é apenas um meio para se atender esse objetivo. É fundamental que a equipe esteja atenta para não trans- formar esse momento de cuidado em um processo frio e burocrático e não criar barreiras ao acesso do direito. Sobre as especificidades de cada situação de abortamento previsto em lei Como você pôde observar no início desta aula, o direito brasileiro autoriza o abor- tamento em três situações específicas: risco à vida, violência sexual e em casos de fetos anencefálicos. Veja as especificidades de cada caso a seguir. Risco à vida Nessa situação, é necessário o laudo de dois(duas) médicos(as), incluindo, sempre que possível, especialista na área médica da doença que coloca a vida em risco. O laudo deve conter uma descrição detalhada do quadro clínico e do impacto na saúde de quem está gestante, baseando em evidência científica a recomendação da interrupção da gestação. O prontuário médico deverá conter as justificativas médicas, detalhando o risco materno. Além disso, é indispensável obter o consentimento prévio, livre e informado (Termo de Consentimento Livre e Informado) da pessoa gestante ou familiares, quando ela não tiver condições de concedê-lo. É importante também saber se a gestação era desejada e assegurar um acompa- nhamento psicológico adequado. Ampara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 42 Aula 2. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil Importante ressaltar que, no caso em que a pessoa gestante corre risco de morte, não é necessária autorização judicial, boletim de ocorrência ou comunicação ao CRM. Essa é uma das situações de abortamento previstas em lei. A seguir veja o que você, profissional de saúde, deve fazer em caso de violência sexual. Violência sexual Há uma alta prevalência de violência e abuso sexual no Brasil. Por isso, profissionais de saúde têm diante de si a importante tarefa de identificar situações de violência que possam autorizar o direito ao abortamento previsto em lei, mesmo quando elas não se apresentem como tais, e oferecer às vítimas a informação sobre seu direito. Assim elas poderão decidir se querem levar adiante a gestação fruto de uma relação não consentida ou se querem interrompê-la. Precisamos ter claro que estupro não é só aquele que acontece por um desconhe- cido que aponta uma arma para a cabeça da vítima. Qualquer situação de relação sexual não consentida pode ser considerada estupro. Por isso, é necessário que profissionais de saúde tenham uma postura que chama- mos de “altasuspeição”, ou seja, deve-se investigar se a gestação é desejada e se é fruto de uma relação consentida. Ampara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 43 Aula 2. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil No caso de suspeita de violência sexual sofrida por paciente com resultado positivo para gravidez, deve-se iniciar a conversa procurando entender as circunstâncias em que a gravidez ocorreu e como a pessoa sob cuidados se sente em relação a ela. É necessário também que você garanta um espaço que ofereça privacidade para a entrevista, de preferência onde não haja a presença de pessoas que possam inibir o relato. A equipe deve estar alerta para manter o sigilo, a fim de não criar estigmas sobre o atendimento. Podem-se utilizar perguntas diretas e indiretas e avaliar se a pessoa deseja falar sobre o assunto ou não, respeitando seu desejo. As perguntas a seguir podem auxiliar em uma efetiva comunicação com pacientes: Fonte: Quadro adaptado de Comunicação Clínica: aperfeiçoando os encontros em Saúde (DOHMS, 2021). Perguntas indiretas: • Como estão as coisas em casa? • Como está seu relacionamento? • Você e sua parceria discutem muito? Perguntas diretas: • Já foi forçada a ter relações sexuais contra a sua vontade? • Já vi problemas como o seu em pessoas agredidas fisicamente. Isso está acontecendo com você? • Sabemos que é comum que pessoas sofram agressões dentro de casa, isso já aconteceu com você alguma vez? Todos os documentos necessários para o abortamento nos casos de violência sexual serão colhidos no hospital em que o procedimento será realizado. São três os docu- mentos pelos quais a pessoa opta pelo abortamento e se responsabiliza pelos fatos narrados à equipe médica como verdadeiros: Termo de Relato Circunstanciado, Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e Termo de Responsabilidade. Segundo a Portaria MS/GM n° 2.282/2020 do Ministério da Saúde, são necessá- rios ainda um parecer técnico do(a) profissional de medicina que ateste a compa- tibilidade da idade gestacional com a data da violência sexual relatada e um termo que aprove o procedimento de interrupção da gravidez, assinado por no mínimo três integrantes da equipe multiprofissional. Não é necessário apresentar Boletim de Ocorrência Policial, Laudo do Instituto Médico Legal ou Autorização Judicial. Para o abortamento previsto em lei em caso de estupro, é suficiente o relato da vítima ao serviço de saúde. A palavra da pessoa que busca os serviços de saúde afirmando ter sofrido violên- cia tem credibilidade ética e legal, devendo ser recebida como verdadeira por Ampara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 44 Aula 2. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil profissionais de saúde. Segundo Diniz et al. (2014, p. 293): O objetivo do serviço de saúde é garantir o exercício do direito à saúde, portanto não cabe à equipe de saúde duvidar da palavra da vítima, o que agravaria ainda mais as consequências da violência sofrida. Os procedimentos do serviço de saúde não devem ser confundidos com procedimentos investigativos reservados à Polícia e à Justiça. Assim, para o atendimento às pessoas em situação de violência sexual, são neces- sários alguns cuidados importantes. Veja quais são eles: É preciso acreditar no que diz a mulher que se apresenta como vítima e testemunha de sua própria violência. No entanto, estudos demonstram que não basta o texto da mulher; a verda- de do estupro é construída no encontro entre os testes de verdade sobre o acontecimento da violência e a leitura sobre a subjetividade da vítima. Essa situação, tão comum na sociedade em geral, também ocorre em alguns servi- ços de saúde. Em muitos desses serviços, as pessoas que buscam cuidado passam por procedimentos interrogatórios que se assemelham a inquéritos policiais, com múltiplas entrevistas que parecem buscar possíveis contradições na sua narrativa. Esse tipo de comportamento é inaceitável, tanto do ponto de vista legal quanto ético, dentro de um serviço de saúde. É nessa duplicidade de guardiões da lei penal e da imoralidade do aborto que as práticas de inquérito pela verdade do estupro surgem no encontro dos profissionais com as mulheres. (DINIZ et al., 2014, p. 294). Atendimento precoce e facilitado Segundo o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum Brasileiro de Segu- rança Pública, 2019), em 2018 foram registrados 66.041 casos de violência sexual em todo o país. O dado representa 180 estupros por dia e um aumento de 4,1% quando comparado ao ano anterior. Ampara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 45 Aula 2. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil Quem são as vítimas de violência sexual? negras 50,9% brancas 48,5%81,8% sexo feminino tinham até 13 anos 53,8% Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019, p. 9). Com esses dados você pode perceber que quatro meninas de até 13 anos são estupradas por hora no Brasil! A elevada prevalência da violência sexual exige, portanto, que o maior número possí- vel de unidades de saúde estejam preparadas para atuar nos casos de emergência. O atendimento imediato aos casos de violência sexual permite oferecer medidas de proteção e prevenção, como a anticoncepção de emergência e as profilaxias das Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), hepatite B e HIV/Aids, evitando assim danos futuros para a saúde da pessoa vítima de violência. Embora a maioria dos casos sejam atendidos em hospitais, todos os estabelecimen- tos de saúde deveriam estar preparados para oferecer esse cuidado da forma mais facilitada possível. São causadas por vírus, bactérias ou outros microrganismos e são transmitidas, principalmente, por meio do contato sexual (oral, vaginal, anal) sem o uso de camisinha masculina ou feminina, com uma pessoa que esteja infectada. A transmissão pode acontecer, ainda, da mãe para a criança durante a gestação, o parto ou a amamentação. Infecções Sexualmente Transmissíveis Registro adequado Os dados obtidos durante a entrevista, no exame físico e ginecológico, os resulta- dos de exames complementares e relatórios de procedimentos devem ser cuidado- samente registrados em prontuário. É recomendada a utilização de fichas específi- cas de atendimento para os casos de violência sexual. O cuidado com o prontuário é de extrema importância, tanto para a qualidade da atenção em saúde quanto para eventual uso em processo judicial. Os danos físicos, genitais ou extragenitais, devem ser cuidadosamente descri- tos em prontuário. Se possível, os traumatismos físicos devem ser fotografados e também anexados ao prontuário. Na indisponibilidade desse recurso, represen- tações esquemáticas ou desenhos podem ser utilizados e igualmente incluídos no prontuário. Ampara. Acolhimento de pessoas em situação de abortamento e pós-aborto 46 Aula 2. Serviços de atenção ao abortamento previsto em lei no Brasil Sigilo e segredo profissional O atendimento de pessoas em situação de violência sexual, assim como qualquer outro atendimento de saúde, exige que sejam observados o sigilo e a ética profissional. A Constituição Federal, artigo 5°, estabelece que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indeniza- ção material ou moral decorrente de sua violação”. Portanto, é direito da pessoa sob cuidados que os fatos e informações relatados a você profissional da saúde não sejam revelados a quem quer que seja. O artigo 154 do Código Penal Brasileiro caracteriza como crime “revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem”. Vídeo com especialista Para entender melhor sobre o sigilo profissional, assista ao vídeo com o Juiz de Direito José Henrique Rodrigues Torres no ambiente virtual do curso. Ou seja,