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Freud e o mal-estar inerente à condição
humana
De acordo com o pensamento freudiano, os homens estão fadados a serem
infelizes ou, ao menos, a não gozar de uma felicidade plena
 Fátima Caropreso*
"O propósito de que o homem seja `feliz` não está contido no plano da
Criação". Esta afirmação de Freud sintetiza bem a ideia geral do seu texto
Mal-estar na cultura, publicado em 1930. Nesse texto, Freud envereda por
uma longa reflexão sobre a origem da cultura e as condições de sua
possibilidade, tendo em vista esclarecer os motivos que fazem que certo
"mal-estar" seja inevitavelmente inerente à vida humana na civilização.
No texto O futuro de uma ilusão (1927) Freud define "cultura" ou
"civilização" como tudo aquilo no qual a vida humana se elevou acima de
suas condições animais e se distingue da vida animal. Por um lado, diz ele, a
cultura abarca todo o saber e o poder-fazer que os homens têm adquirido para
governar as forças da natureza e lhes arrancar bens que satisfaçam suas
necessidades. Por outro lado, compreende todos os meios usados para regular
os vínculos entre os homens e para regular a distribuição dos bens entre eles.
Este último aspecto da cultura (a regulação dos vínculos entre os homens),
como veremos, seria a fonte principal do mal-estar inerente à vida humana,
mas seria, ao mesmo tempo, a condição de sua existência.
"A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido.
Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz" FREUD
Essas duas orientações da cultura não são independentes, argumenta Freud.
Primeiro, porque os vínculos recíprocos entre os seres humanos são
profundamente influenciados pela medida de satisfação das necessidades
pulsionais que os bens existentes tornam possível. Segundo, porque o ser
humano individual pode se relacionar com seu semelhante como se fosse ele
mesmo um bem, por exemplo, quando explora a sua força de trabalho. E, em
terceiro lugar, porque todo indivíduo é virtualmente um inimigo da cultura, a
qual, contudo, está destinada a ser um interesse humano universal.
Sigmund Freud (1856- 1939)
foi o fundador da Psicanálise.
Sua descoberta da existência
do inconsciente e de que
somos movidos por ele é
considerada uma revolução
na condição humana
No texto Mal-estar na cultura, Freud se pergunta o que os seres humanos
querem alcançar na vida e responde que seu objetivo é atingir a felicidade e
mantê-la. No entanto, o máximo que conseguem é gozar de uma felicidade
momentânea, resultante, na verdade, da satisfação de necessidades retidas com
alto grau de estase. Só podemos gozar o "contraste", diz ele, e nunca o estado.
Por exemplo, sentimo-nos felizes quando encontramos alguém amado que há
tempo não víamos, mas o estado de felicidade que vivenciamos nos primeiros
momentos do encontro, logo se dissipa, dando lugar a um sentimento menos
intenso. Mas se os momentos de felicidade são raros, os de infelicidade são
bem mais frequentes, discorre o autor.
O sofrimento nos ameaça de três lados:
1) a partir do corpo, que destinado à ruína, não pode evitar a dor e a angústia;
2) a partir do mundo externo, que nos ameaça com suas forças hiperpotentes;
3) a partir dos vínculos com os outros seres humanos.
As duas primeiras fontes de sofrimento nos parecem facilmente
compreensíveis e inevitáveis, embora, é claro, possamos fazer muito para
amenizar o sofrimento por elas provocado. Já a terceira nos causa certa
estranheza, dado que aparentemente parece ser supérflua. No entanto, ao
julgarmos essa terceira fonte de sofrimento como algo que poderia ser evitado,
nos enganamos.
Tendo em vista a gênese e as condições de manutenção da civilização, a
relação entre os homens seria fonte inevitável de sofrimento, segundo o
pensamento freudiano.
Os vínculos entre os seres humanos são influenciados pela medida de
satisfação das necessidades pulsionais que os bens existentes tornam
possível
Segundo Freud, o passo cultural decisivo, no âmbito das relações entre os
homens, teria sido a substituição do poder do indivíduo pelo da comunidade.
Antes disso, os vínculos entre os homens teriam estado submetidos à
arbitrariedade de alguns indivíduos: aqueles de maior força física dominariam
os demais de acordo com seus próprios interesses e necessidades.
A partir de certo momento, o poder do indivíduo passa a ser condenado como
"violência bruta" e o poder da comunidade se contrapõe como "direito" àquele
do indivíduo. Como consequência, surge uma limitação das possibilidades de
satisfação (dos impulsos agressivos e sexuais) que os membros da
comunidade até então desconheciam. Nesse momento, portanto, a maior parte
dos homens troca parte de sua liberdade por uma maior segurança.
A gênese da Cultura
O próximo requisito cultural que se torna necessário é a justiça, ou seja,
encontrar meios para garantir que a ordem jurídica estabelecida não seja
quebrada para favorecer a um indivíduo ou grupo.
O desenvolvimento cultural passa, então, a buscar evitar que as leis que regem
os homens sejam expressão da vontade de uma comunidade restrita (de um
extrato da população, de uma etnia...), que pudesse voltar a se comportar a
respeito do restante da população como o faria um indivíduo violento.
O resultado desse processo seria, então, alcançar certa regulação para os
vínculos entre os homens, à qual requereria destes certa renúncia de suas
satisfações pulsionais, mas lhes garantiria, em compensação, que ninguém
fosse vítima da violência bruta. Tendo isso em vista, conclui Freud: "a
liberdade individual não é um patrimônio da cultura", pois o desenvolvimento
cultural impôs aos homens certa limitação de sua liberdade; e boa parte da luta
da humanidade gira em torno da tarefa de encontrar um equilíbrio entre as
demandas individuais e as exigências culturais das massas.
Mas será que é possível, a partir de certa configuração cultural, alcançarmos
esse equilíbrio, ou o conflito é inevitável? - pergunta-se Freud. Para tentar
encontrar uma resposta a esta questão, é preciso aprofundar um pouco mais a
reflexão sobre as limitações das satisfações pulsionais exigida pela Cultura.
"(...) a satisfação do instinto equivale para nós à felicidade, assim também um grave sofrimento
surge em nós, caso o mundo externo nos deixe definhar, caso se recuse a satisfazer nossas
necessidades. Podemos, portanto, ter esperanças de nos libertarmos de uma parte de nossos
sofrimentos, agindo sobre os impulsos instintivos.
Esse tipo de defesa contra o sofrimento se aplica mais ao aparelho sensorial; ele procura
dominar as fontes internas de nossas necessidades. A forma extrema disso é ocasionada pelo
aniquilamento dos instintos, tal como prescrito pela sabedoria do mundo peculiar ao Oriente e
praticada pelo ioga. caso obtenha êxito, o indivíduo, é verdade, abandona também todas as
outras atividades: sacrifica a sua vida e, por outra via, mais uma vez atinge apenas a felicidade
da quietude.
Seguimos o mesmo caminho quando os nossos objetivos são menos extremados e
simplesmente tentamos controlar nossa vida instintiva. Nesse caso, os elementos controladores
são os agentes psíquicos superiores, que se sujeitaram ao princípio da realidade. Aqui, a meta
da satisfação não é, de modo algum, abandonada, mas garante-se uma certa proteção contra o
sofrimento no sentido de que a não satisfação não é tão penosamente sentida no caso dos
instintos mantidos sob dependência como no caso dos instintos desinibidos. (...)"
Trecho de O mal-estar na civilização, de Sigmund Freud
Repressão sexual
Uma das bases sobre a qual se edifica a cultura é a repressão da sexualidade,
pois ela retira parte da energia psíquica necessária para a sua manutenção da
limitação da satisfação sexual direta, ou seja, ela exige que os homens usem
parte de sua energia sexual para o trabalho e para outras atividades culturais.
Assim, diz Freud, a cultura se comporta em relação à sexualidade como um
povo que submete outro para explorá- lo. Essa limitação da sexualidade,
contudo, não é algo facilmente alcançado.
É necessário um trabalho de domesticação das pulsõessexuais desde o início
do desenvolvimento psíquico do indivíduo, o que faz que seu primeiro passo
consista na proibição das exteriorizações da vida sexual infantil.
 
"É quase impossível conciliar as exigências do instinto sexual com as da
civilização" FREUD
A cultura acaba, então, impondo a reivindicação de uma vida sexual uniforme
para todos os seus membros: a escolha de objeto do sujeito sexualmente
maduro é circunscrita ao sexo contrário; a maioria das satisfações não genitais
é proibida como perversão; além da exigência de monogamia e legitimidade
das relações. Em outras palavras, a cultura só permite relações sexuais sobre a
base de uma ligação definitiva e indissolúvel entre um homem e uma mulher.
Semelhança entre Freud e Hobbes
Na visão de Freud, o passo cultural decisivo, no âmbito das relações entre os homens, foi a
substituição do poder do indivíduo (o mais forte submete o mais fraco) pelo da comunidade
(que institui regras de convívio). Decisão esta que limitou as possibilidades de satisfação dos
impulsos agressivos e sexuais, mas, em troca da perda de liberdade de ação, trouxe mais
segurança para a vida.
Esta linha de raciocínio corrobora as teorias de Thomas Hobbes (1588-1679), filósofo inglês.
Em uma de suas obras mais conhecidas, o Leviatã, Hobbes escreve sobre a necessidade de
governos e de sociedades. Segundo ele, no estado natural, cada homem tinha direito a tudo e,
para satisfazer seus desejos, havia um estado permanente de guerra de todos contra todos, em
que venciam os mais fortes ou mais inteligentes. Mas o homem, para garantir uma existência
mais tranquila, também tinha o desejo de acabar com a guerra (e a insegurança de possíveis
ataques a todo momento).
É impulsionado por este desejo que os homens criam as sociedades, baseadas em um contrato
social. Hobbes explica que todos os membros desta sociedade concordam em ceder parte de su
liberdade individual (o que, segundo Freud, seria a repressão de impulsos agressivos e sexuais)
a uma autoridade inquestionável, que irá garantir a paz e a defesa comum - o governo. Assim,
tanto na linha de raciocínio de Freud quanto na de Hobbes, o homem, em sociedade, apesar de
ter mais segurança, não vive a felicidade plena por ter seus desejos pessoais reprimidos pelas
regras do convívio social.
O máximo que os homens conseguem é gozar de uma felicidade
momentânea, resultante, na verdade, da satisfação de necessidades
retidas com alto grau de extase
No entanto, esta exigência de vida sexual uniforme imposta aos indivíduos,
argumenta Freud, não leva em conta as desigualdades na constituição sexual
inata e adquirida dos seres humanos, o que acaba por distanciar grande parte
deles do gozo sexual.Muitas pessoas não conseguem satisfizer-se sexualmente
a partir das atividades sexuais consideradas legítimas e, dado que a
sexualidade consiste em uma necessidade humana - assim como a de
alimentação, respiração e tantas outras -, a impossibilidade de obter satisfação
sexual acaba levando muitos homens a adoecer psiquicamente.
As pulsões sexuais insatisfeitas buscam uma forma de satisfação substitutiva
por meio dos sintomas neuróticos. Dessa maneira, a sexualidade converte-se
em uma das fontes de sofrimento impostas pela cultura aos homens. Freud
conclui, então, que "a vida sexual do homem culto recebeu grave dano (...)
podemos supor que experimentou um sensível retrocesso quanto ao seu valor
como fonte de felicidade". (Freud, 1930, p.103).
Agressividade reprimida
Não é apenas sobre a repressão da sexualidade que a cultura se edifica, mas
também sobre a repressão da agressividade. Segundo Freud, os impulsos
agressivos fazem parte da natureza humana e a vida em cultura tem como
condição também certa limitação das possibilidades de manifestação da
agressividade. Tal condição estaria por trás da tentativa feita pela cultura de
ligar libidinalmente os indivíduos, assim como da reivindicação expressa no
mandamento "amarás a teu próximo como a ti mesmo".
A contenção da agressividade é buscada promovendo-se a identificação entre
os homens, pela criação de vínculos amorosos de meta inibida entre eles e a
partir da limitação da vida sexual. No entanto, a cultura espera prevenir a
agressividade entre os indivíduos, outorgando-se o direito de exercer ela
mesma uma violência sobre aqueles que desobedecem a suas leis, o que leva
Freud a dizer que ela ainda não obteve êxito na sua tentativa de conter a
agressividade.
Uma vez que os impulsos agressivos são parte integrante da natureza
humana, eles não podem ser totalmente suprimidos como se não
existissem
Na verdade, uma vez que os impulsos agressivos são parte integrante da
natureza humana, eles não podem ser totalmente suprimidos como se não
existissem. Tais impulsos precisam encontrar algum tipo de descarga e disso
se segue a impossibilidade de uma vida em sociedade sem hostilidade, sem
violência entre seus membros.
Portanto, a vida em cultura exige que a agressividade seja parcialmente
inibida, mas ela nunca poderá suprimi- la totalmente. Freud afirma que por
causa da hostilidade primária e recíproca entre os homens, a sociedade culta
permanece sob uma constante ameaça de dissolução.
O futuro nos dirá se o impulso presente no homem de preservar a vida - o que
ele chamou de "pulsões de vida" - irá conseguir se impor sobre os seus
impulsos destrutivos, ou seja, se as pulsões de vida se imporão sobre as
pulsões de morte.
O inevitável mal-estar
Como vimos, de acordo com o pensamento freudiano, a constituição da
cultura tem como condição certo nível de repressão de dois impulsos naturais
do homem: a sexualidade e a agressividade. A limitação das possibilidades de
satisfação dessas duas pulsões não se faz, no entanto, sem a produção de certo
mal-estar, maior ou menor, dependendo da capacidade de cada ser humano de
suportar a renúncia pulsional que lhe é exigida. Assim, na cultura, os vínculos
entre os homens acabam se tornando fonte inevitável de sofrimento, devido ao
seu caráter artificial, tendo em vista a disposição natural dos seres humanos.
Certa hostilidade entre os indivíduos ou grupos de indivíduos é inevitável.
Resta sabermos se essa hostilidade permitirá que a cultura continue existindo.
Freud termina seu texto sobre o mal-estar na cultura com as seguintes
palavras:
"Eis aqui, no meu entender, a questão decisiva para o destino da espécie
humana: se seu desenvolvimento cultural conseguirá, e em caso afirmativo em
que medida, dominar a perturbação da convivência que provém da pulsão
humana de agressão e de autoaniquilamento. Essa questão merece uma
atenção particular em nossa época. Hoje os seres humanos levaram tão longe
seu domínio sobre as forças da natureza que com o seu auxílio será fácil
exterminarem-se uns aos outros, até o último homem.
Eles sabem disso e daí resulta boa parte da inquietude contemporânea, de sua
infelicidade, de sua angústia. E agora cabe esperar que o outro dos dois
"poderes celestiais", o Eros eterno, faça um esforço para sustentar-se na luta
contra seu inimigo igualmente imortal. Mas quem pode prever qual será o
desenlace?
(Freud, 1930, p.140)
REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1927) "El porvenir de una ilusión". Sigmund Freud Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu
Editores, vol.21, p.1-56, 1998.
FREUD, S. (1930[1929]) "El mal estar en la cultura". Sigmund Freud Obras Completas. Buenos Aires:
Amorrortu Editores, vol.21, p.57-140, 1998.

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