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REDAÇÃO JORNALÍSTICA E A SOCIOLINGUÍSTICA Camila Olivia de Melo O jornalismo e sua relação com a língua Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Contextualizar o surgimento histórico do texto jornalístico. Reconhecer os fundamentos do processo de elaboração do texto jornalístico. Explicar a linguagem jornalística e os aspectos linguísticos desse tipo de texto. Introdução A localização histórica do jornalismo está estreitamente ligada ao desen- volvimento da literatura. As atividades de repórter e jornalista já eram exercidas na Grécia Antiga, no tempo da poeta Sappho e do filósofo Sócrates. Entretanto, qual é a relação entre jornalismo e língua portuguesa? Seria impossível separá-los, o que existe é a contaminação entre seus campos de saber, pois o jornalismo está imerso na linguagem, na gramática, na poesia. Contudo, ainda assim é possível (e necessário) entender melhor o que faz de um texto jornalístico. Neste capítulo, você aprenderá os principais fundamentos do jorna- lismo, ou seja, a base do processo da escrita, da elaboração e do trata- mento jornalístico dos fatos. Em relação à linguagem jornalística, verá os aspectos e as diferenças entre gênero e formato, bem como refletirá sobre as particularidades dessa linguagem e suas principais caracterís- ticas. Esse panorama lhe auxiliará, certamente, nas produções textuais cotidianas da profissão. Os primeiros vestígios do texto jornalístico Ao olhar para a linha histórica da humanidade, especifi camente na Grécia Antiga, observa-se que a criação do jornalismo está fortemente ligada ao desenvolvimento das cidades-estados da Roma e da Grécia. Desse modo, é preciso um sobrevoo pelas estratégias de divulgação greco-romanas, pois, a partir delas, pode-se conceber os jornais diários e os tabletes de leitura, por exemplo. Para transmitir as novidades e registrar o ambiente político das cidades- -estados, os gregos criaram os cadernos de anotação efemérides e hupomnê- mata, diários de anotações em que eram relatadas as atividades comerciais, leituras realizadas, dicas de ervas para tratamento da saúde e os acontecimentos da pátria. Além desses cadernos de anotações, os muros e as tábuas feitas de madeira e cera eram utilizados para noticiar os acontecimentos. É a chamada “linguagem noticiosa”. Desse modo, os gregos desenvolveram as primeiras ferramentas e os formatos de divulgação das cidades. Além disso, esse território abrigou também o nascimento da literatura, principalmente com a poesia épica e lírica (FOUCAULT, 2014 e Figura 1). Figura 1. Desenho das mulheres greco-romanas em que podemos pensar na poeta Sappho, que produziu poemas líricos na Grécia Antiga. Fonte: Morphart Creation/Shutterstock.com. O jornalismo e sua relação com a língua2 Literatura e jornalismo tiveram estreita relação no início de seu desen- volvimento, visto que foi na Antiguidade Clássica que tanto o conceito de literatura como a prática de divulgação em larga escala se desenvolveram. Ao longo da história, o jornalismo fundiu-se com diferentes gêneros, até afirmar suas características específicas, na modernidade. É possível afirmar que os primeiros a serem considerados repórteres foram duas personalidades históricas da Grécia Antiga: Xenofonte e Tucídides, ambos relatando os acontecimentos em uma perspectiva histórica dos fatos, e não das divindades, além de trazerem criticidade aos seus textos, nos quais as informações eram colhidas no mundo da vida e no cotidiano greco-romano. Dessa forma, historiografia e etnografia caminham juntas no surgimento do texto jornalístico. Já os primeiros jornalistas foram aqueles que produziram as notícias (acontecimentos das cidades-estados) para uma ampla população. E como eles faziam essa transmissão? Não só em papel (papiro), pois esse material era extremamente caro nesse período, mas também em tábuas de madeira e nos muros de Roma. As primeiras notícias foram veiculadas em grande escala nos muros da cidade e em pequenas tábuas, onde se podia escrever em uma superfície de cera. Além das Acta Urbanas ou Acta Diurnas (como são conhecidas essas transmissões), a troca de cartas também é considerada parte do processo de surgimento do texto jornalístico, visto que, nessa época, as correspondências continham teor de transmissão, seja do que acontecia nos centros cívicos greco-romanos, seja da “conduta de vida” de quem as escrevia (FOUCAULT, 2014). Assim, podemos afirmar que o surgimento histórico do texto jornalístico está atrelado ao desenvolvimento das antigas civilizações, e foi a partir da troca de cartas e da transmissão em tábuas que a narrativa e a organização dos textos adquiriram suas particularidades. A principal delas foi a transmissão informativa das cidades por meio da linguagem noticiosa, ou seja, transmitindo as diretrizes dos governantes das cidades por meio de frases escritas no muro ou em pedaço de madeira. Portanto, a transmissão em larga escala não é uma estratégia textual moderna, mas sim greco-romana. Ainda vale ressaltar que possivelmente são Grécia e Roma as civilizações mais antigas na qual existem evidências da existência de divulgação informativa por meio de notícias. 3O jornalismo e sua relação com a língua Nesta matéria no gênero web, de Fernanda Nidecker, disponível por meio do link a seguir, é possível conferir uma fotografia ilustrativa das “tábuas de cera” romanas, além de perceber a relação entre as mídias sociais contemporâneas e as divulgações noticiosas da Grécia Antiga. https://qrgo.page.link/CkQyZ A prensa dos tipos móveis Por mais que a criação das notícias e os primeiros repórteres e jornalistas te- nham surgido no período clássico da Grécia, apenas com a invenção da prensa móvel de Gutenberg, em 1450, e com a popularização do papiro (barateamento de seu custo) é que foi possível produzir e comercializar as notícias de maneira rápida e com baixo custo (Figura 2). O alemão Johannes Gutenberg foi o criador desse maquinário, sendo responsável pela invenção que transformou radicalmente a comunicação. Até então, a impressão de caracteres era lenta, porém, após a invenção dessa prensa (considerada a primeira impressora), foi possível acelerar e tornar comercializáveis os textos. Mas não só isso, com o baixo custo, a prensa de Gutenberg impulsionou os processos de conhecimento, de divulgação das culturas e do mercado, facilitando e aquecendo as trocas entre os comerciantes da época, mas principalmente facilitando o acesso à cultura. O jornalismo e sua relação com a língua4 Figura 2. Desenho da prensa de Gutenberg, considerada a primeira impressora. Fonte: Morphart Creation/Shutterstock.com. Escrita e processo jornalístico Mesmo que as práticas jornalísticas estejam inseridas no audiovisual, a escrita, inevitavelmente, estará sempre presente nos processos de comunicação. De acordo com Lispector (1998, p. 72), no cotidiano das práticas jornalísticas, será preciso se debruçar sobre essa “[...] coisa estranhamente familiar, mas sempre remota, a palavra”. A escritora, que morava na cidade do Rio de Janeiro, nas décadas de 1950 a 1970, produziu inúmeros textos jornalísticos e literários, podendo ser considerada uma das primeiras mulheres jornalistas do Brasil. 5O jornalismo e sua relação com a língua Para saber mais sobre a famosa escritora e jornalista do século XX, assista a um vídeo rápido sobre Clarice Lispector, produzido pela equipe da Revista Bravo! Há também uma entrevista com a escritora feita pela TV Cultura, em 1977. Seguem os links, respectivamente: https://qrgo.page.link/mLDDm https://qrgo.page.link/X3fUU Pensando que os textos jornalísticos se misturam aos literários, pode-se refletir: quais as particularidades do texto jornalístico e como elas se funda- mentam no processo de elaboração textual? De acordo com Ferrareto e Ferrareto (2009), a matéria-prima dos textos jornalísticos é a informação, que, de maneiraconcisa, pode ser entendida como a descrição do acontecimento; para reconhecer o processo que acontece ao longo da produção textual, é preciso considerar os seguintes tópicos: abordagem na forma da notícia (políticas da empresa, bagagem cultural individual); pesquisa e apuração jornalística dos acontecimentos; ótima redação no tratamento jornalístico dos fatos. Existem diferentes maneiras de se chegar ao texto jornalístico, e os autores apontam que o texto pode ser fruto de uma reunião de pauta (onde diferentes jornalistas sugestionam temas e acontecimentos de relevância para o canal ao qual pertencem); surgir de uma experiência individual do jornalista ou de uma pesquisa recém-lançada, etc. É importante ressaltar que, depois de decidido o que Ferrareto e Ferrareto (2009) chamam de “abordagem” (qual olhar será colocado no objeto a ser escrito), é preciso elencar os “temas”. Com isso, inicia-se o processo da pesquisa e apuração, isto é, reunir os possíveis informantes (fontes) e os fatos mundiais que podem ser relacionados a esses temas, processo que pode, na contemporaneidade, ser facilitado pelos meios digitais. O jornalismo e sua relação com a língua6 É preciso certa organização do material a que se dará tratamento jornalístico. Se- paramos, a seguir, quatro etapas desse processo, a partir da pesquisa de Mike Ward (2006), bem como algumas palavras-chave úteis na hora de mergulhar no processo de redigir as matérias: 1. ter um bom faro, observar ao redor e identificar o que seria interessante transmitir; 2. reunir, o quanto for possível, todo o material necessário (dados, frases, imagens); 3. voltar a esses materiais e fazer uma seleção; 4. ter paciência e persistência para realizar uma escrita eficaz. Palavras-chave: espécie de escritores, jornalismo é processo, gerar material inédito, notícia original e requentada, evento noticioso, dominar sinônimos, consultar dicio- nários, responsabilidade e atitude ética. Ward (2006, p. 31) nos inspira a pensar que “[...] o bom jornalismo, em nível profissional, é uma atividade ágil, sensitiva e criativa”, e Lispector (1998, p. 72) nos convida a observar, na palavra, sua “[...] beleza extrema e íntima”. Entretanto, todos esses elementos, se desvinculados da curiosidade pelas téc- nicas de redação, podem levar a produção textual ao fracasso. Nesse sentido, é imprescindível a união das práticas de leitura e de escrita. A produção de resumos, desenhos e esquemas utilizando-se de ferramentas, em particular da paráfrase (i.e., dizer ou escrever de maneira distinta o que já foi dito), são importantes na elaboração de qualquer texto, principalmente dos jornalísticos. Isso é o que Garcez (2004) nos incentiva a fazer durante o processo de criação de textos. A autora aponta que a criação de textos com desenvoltura e coesão requer paciência, persistência, curiosidade e apoio técnico. Gêneros e formatos Para entender as particularidades dos textos produzidos pelos jornalistas, é preciso refl etir sobre a linguagem utilizada por quem os escreve e sobre a escrita propriamente dita. Ou seja, percebe-se que, intuitivamente, o profi s- sional dessa área parece falar uma língua própria. Para além dos jargões da área, qual é a língua falada entre os jornalistas? Existe alguma característica nos textos jornalísticos? 7O jornalismo e sua relação com a língua Pode-se colocar que, além de uma forma de dizer as coisas (bem próprias), os jornalistas possuem também certo “ritual jornalístico” (MELO; ASSIS, 2016) e, por isso, acabam criando vocabulários jornalísticos e determinadas maneiras de produzir a informação ou o conteúdo, os chamados gêneros e formatos. Se arriscarmos em dizer qual é a língua dos jornalistas, esta seria uma mistura da prática individual (expressões do dia a dia do trabalho e bagagem cultural), dos conselhos teóricos (técnicas desenvolvidas pelos pesquisadores da área) e das plataformas midiáticas nas quais os conteúdos produzidos serão veiculados (impresso, web, assessoria, etc.). Entretanto, não há como, exata- mente, definir como são esses textos, pois isso abrange camadas subjetivas, políticas das empresas e veículos. O que é possível fazer e, os pesquisadores dessa área sugestionam, é encontrar uma maneira de classificar e ordenar suas principais particularidades. O pesquisador Denis McQuail (2003) evidencia os fatores imprescindíveis aos gêneros midiáticos, que são diferentes, por exemplo, dos de um gênero literário (por mais que ambos tenham surgido quase ao mesmo tempo). Na visão do autor, os gêneros midiáticos têm as seguintes características: identidade coletiva: isto é, os conteúdos precisam dialogar com canais de comunicação da mesma espécie; relação entre “função e identidade”, quando forma e conteúdo (revista e texto de revista) cumprem seus papéis (entreter, informar ou ensinar); conservação: precisam ser conservados ao longo do tempo de sua identidade (garantindo historicidade e a preservação dessa linguagem); estrutura narrativa: com a qual será possível organizar o texto de maneira a guiar o leitor por uma sequência previsível, de modo que a informação oferecida pelos textos será distribuída dentro de códigos de entendimento comuns. Nesse sentido, há certo “pacto” entre quem produz os textos e quem irá consumi-los. O consumo cultural desse conteúdo será garantido pela manu- tenção dos gêneros midiáticos. Essa é a aposta da perspectiva teórica aqui refletida. Cabe, ainda, uma reflexão sobre os estereótipos que a classificação em “gêneros jornalísticos” pode gerar (MELO; ASSIS, 2010). Segundo Melo e Assis (2016), o fato de dar seguimento a um gênero jorna- lístico, mantendo sua forma e conteúdo, torna essa falta de variação um “mal necessário”, porém é essa repetição que levará o público ao entendimento desses códigos e formatos. Quando se inicia a leitura de um texto de gênero informativo (jornal impresso), sabe-se que, ali, o conteúdo principal será a O jornalismo e sua relação com a língua8 informação de fatos ocorridos recentemente, pois o meio “jornal impresso” tem sido repetido ao longo do tempo, construindo, assim, o estereótipo do jornal diário, por exemplo. Quando se fala em formatos, é fundamental que se compreenda que são eles os mecanismos textuais que farão a diferença. Ou seja, dentro de um mesmo gênero informativo, existem diferentes formatos, como, por exemplo, repor- tagem e nota em jornal on-line, visto que, entre elas, há uma variação textual, mas ambas pertencem ao gênero informativo e ao formato reportagem web. De acordo com Melo e Assis (2016, p. 47), formato “[...] trata-se da matéria concreta veiculada em suporte impresso, eletrônico ou digital”, por isso, os aspectos linguísticos do jornalismo estão atrelados aos seus gêneros midiáticos, e estes entrelaçam-se seus formatos. No jornal on-line El País: o jornal global, é possível visualizar diferentes formatos dentro de um único meio, webjornal, onde os formatos “ao vivo, destaques, opinião, internacional, etc.” compõem a linguagem textual específica do gênero informativo. Mesmo oferecendo diferentes formatos, os textos do site pertencem ao mesmo gênero: informativo web. Além disso, é importante lembrar que os formatos “vídeos diver- sionais” do jornal on-line BBC Brasil não poderiam necessariamente ser utilizados (na íntegra) para veiculação no gênero informativo de um meio televisivo, por exemplo, o qual possivelmente exigiria o formato informativo televisivo para esse vídeo, e não o diversional. É importante destacar que os gêneros jornalísticos não estão separados dos gêneros midiáticos, pois eles compõem todos os meios de comunicação, ou seja, as mídias. Então, quando falamos em gêneros pertencentes aos tex- tos jornalísticos, estamos falando também dos produtos da mídia em geral (informação, diversão, opinião, etc.). Nessa multiplicidade de linguagens às quais o jornalismo se conecta, é preciso reconhecer e explorar os canais de comunicação(e seus gêneros e formatos), pois os suportes e as plataformas, ou seja, os canais pelos quais o texto circulará, determinarão qual formato será possível seguir. 9O jornalismo e sua relação com a língua Cuidado para não confundir o meio, também chamado de canal de comunicação, com o gênero a qual ele pertence. Dizer gênero web seria um erro, já que, dentro do canal web, é possível trabalhar com diferentes gêneros (informativo, diversional, etc.). Na posição de jornalista, caso tenha sido requisitado a você que produza conteúdo textual para uma revista científica impressa, será necessário, antes mesmo de abrir o documento do Word, se apropriar das particularidades desse veículo. A repetição do formato textual precisa acontecer para que o leitor entenda os gêneros e formatos dos meios/canais. Assim, ao ler uma revista no gênero diversional, esse leitor entenderá que o formato e o próprio conteúdo não será, necessariamente, informativo. FERRARETTO, E. K.; FERRARETO, L. A. Assessoria de imprensa: teoria e prática. São Paulo: Summus Editorial, 2009. FOUCAULT, M. A escrita de si. In: MOTTA, M. B. (org.). Ética, sexualidade e política: ditos e Escritos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. GARCEZ, L. H. C. Técnica de redação: o que é preciso saber para bem escrever. São Paulo: Martins Fontes, 2004. LISPETOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. MCQUAIL, D. Teoria da comunicação de massas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. MELO, M. J.; ASSIS, F. (org). Gêneros jornalísticos no Brasil. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2010. MELO, M. J.; ASSIS, F. Gêneros e formatos jornalísticos: um modelo classificatório. Revista Eletrônica Intercom-RBCC, v. 39, n. 1, p. 39-56, 2016. WARD, M. Jornalismo online. São Paulo: Roca, 2006. O jornalismo e sua relação com a língua10