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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO GLAUCIA EUNICE GONÇALVES DA SILVA DESENVOLVIMENTO HUMANO DO ALUNO COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL: PRODUÇÕES DISCURSIVAS E SEUS SENTIDOS Cuiabá – MT 2017 GLAUCIA EUNICE GONÇALVES DA SILVA DESENVOLVIMENTO HUMANO DO ALUNO COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL: PRODUÇÕES DISCURSIVAS E SEUS SENTIDOS Tese apresentada como requisito para obtenção do título de Doutorado em Educação, na linha de pesquisa Organização, Formação e Práticas Pedagógicas, do Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Orientadora: Profª Drª Kátia Morosov Alonso Cuiabá – MT 2017 G635d Silva, Glaucia Eunice Gonçalves da. Desenvolvimento humano do aluno com deficiência intelectual: produções discursivas e seus sentidos / Glaucia Eunice Gonçalves da Silva. -- 2017 240 f. ; 30 cm. Orientadora: Kátia Morosov Alonso. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Cuiabá, 2017. Inclui bibliografia. 1. Deficiência Intelectual. 2. Política Educacional. 3. Escola Regular. 4. Prática Pedagógica. 5. Teoria do Discurso. I. Título. Dados Internacionais de Catalogação na Fonte. Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a). Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte. Dedico este trabalho a Maria, Julia e Pedro! AGRADECIMENTOS Não tenho a anatomia de uma garça pra receber em mim os perfumes do azul. Mas eu recebo. É uma bênção. Às vezes se tenho uma tristeza, as andorinhas me namoram mais de perto. Fico enamorado. É uma bênção. Logo dou aos caracóis ornamentos de ouro para que se tornem peregrinos do chão. Eles se tornam. É uma bênção. Até alguém já chegou de me ver passar a mão nos cabelos de Deus! Eu só queria agradecer. Manoel de Barros Uma tese é uma produção discursiva construída a partir de muitas articulações. São relações que possibilitaram forças para prosseguir, verdades para questionar, dilemas para refletir, dúvidas a cultivar, alegrias para viver, encantamentos por se fazer... Eu só queria agradecer! Nesse delicioso processo de constituir-se nas relações com os Outros, são muitos sujeitos que contribuem com o que nos tornamos, são muitas vozes que ecoam e destoam nesse processo que se constitui de diferenças e equivalências, mas todas de alguma maneira me tornaram a pessoa que sou e colaboraram para o trabalho que foi produzido. É interessante destacar que minhas palavras externalizam sentimentos e afeições, mas, que fique claro que, ao atribuir qualidades para uns, não significa que eu não as veja nos outros. Afinal, não podemos dizer o que queremos, só o que a linguagem permite; de tal forma, a fim de evitar anáforas e redundâncias, optei em selecionar algumas palavras que, ao final, poderiam igualmente servir para diferentes pessoas. Para começar, digo que esse trabalho não poderia ser escrito sem orientação da professora, doutora e diva Kátia Morosov Alonso. Eu agradeço pelas conversas francas, honestas, pontuais e objetivas, e ao mesmo tempo alegres, leves e tranquilas. Agradeço pelos incentivos, pela confiança, pela disponibilidade. Certamente, minha identidade de pesquisadora ganhou novos e melhores contornos a partir dessa convivência. A banca examinadora, escolhida pelas suas credenciais de competência e comprometimento com a pesquisa, merece meu sincero agradecimento pelas contribuições no enriquecimento do trabalho. Agradeço à professora Ozerina por estar comigo desde o Mestrado, o carinho e amizade já constituem nossa relação há algum tempo. Igualmente à professora Sumaya que desde o Mestrado também tem contribuído para minha identidade de pesquisadora, traz ricos apontamentos e questionamentos junto às minhas produções. Ao professor Daniel, cuja maior contribuição é sua vasta produção intelectual que me auxiliou na compreensão da teoria do discurso. Agradeço, ainda, à professora Maritza pela leitura atenta e reflexões enriquecedoras. A todas/os, meu sincero obrigado! À professora Myriam Southwell eu agradeço pela intelectualidade, sensibilidade, afetividade e doçura. Aprendi que podemos fazer ciência sem mau- humor, vaidades e excessos. Nos processos de atribuição de sentidos vivenciados por mim, nunca a palavra gratidão foi tão abundante de significados. Ao LêTECE, grupo de pesquisa que me acolheu, me mostrou diferentes significados para tecnologias e produziu profundas marcas na minha identidade. Agradeço pelos conhecimentos que construí, pelas pessoas que conheci, pelos amigos que ganhei e pelas festas de fim de ano que se tornaram inesquecíveis, mostrando que o universo acadêmico pode ser alegre, prazeroso e divertido. Adoro! Ao grupo de pesquisa Políticas Contemporâneas de Currículo e Formação Docente, por possibilitar conversas, discussões e leituras significativas na composição de meus conhecimentos. Quem é professora sabe a dificuldade de ter alguém dentro da sua sala, observando, gravando, fotografando e anotando sobre os acontecimentos, mas as almas generosas da escola Antônio Joaquim de Arruda permitiram nobremente que eu estivesse lá, por 8 meses, realizando a pesquisa. Agradecer é pouco, aos profissionais da Escola Antônio Joaquim toda minha gratidão, respeito e admiração. Sem vossas contribuições, não haveria essa tese. Os processos de subjetivação que me constituem têm muito dos colegas de trabalho que convivi, assim agradeço a todos os colegas da Escola Municipal Antônio Salústio Areias e da Escola Estadual Maria da Cunha Bruno. Agradeço à Eucaris pelas incansáveis e permanentes contribuições no texto, pelos diálogos intermináveis e por ser aquela irmã do ano escolar à frente, aonde vai mostrando o funcionamento da “escola” e me deixando guiar por seus passos. Qualquer caminhada só é possível porque há amigos queridos para me apoiar, conversar, discutir, chorar, sentir... Em especial, aos meus amigos Nina, Mara, Neca, Marcinho, Nica! Pessoas que me ensinam que, mesmo diante da sociedade impossível, podemos construir uma vida comunitária. A simplicidade de nossa convivência, a alegria dos nossos encontros, a persistência dos nossos ideais, a coletividade de nossas práticas sem dúvida permitiram que eu chegasse a esta tese. Amo vocês! Aos meus pais, Claudio e Fátima que, ao seu modo e do seu jeito, permitiram que eu conseguisse ser tudo que me tornei. Desde a mais tenra idade me incentivaram a mergulhar no mundo dos números, das letras, das histórias, dos livros. Minha mãe que sempre nutriu e sustentou afetivamente meus sonhos e tem cuidado do meu tesouro nas minhas ausências. A todos os familiares que contribuíram de alguma forma, eu agradeço o apoio. À Adriana, mocinha linda, que me mostrou outras possibilidades de amar! Apresentou-me outros sentidos para o significante amor. Sua presença me alegra! Ao meu companheiro, amigo, amado e amante Adriano, não há palavras para descrever essa parceria! Sempre assumindo meus sonhos e ajudando a realizá-los; sem seu carinho, presença e compreensão esse caminho seria muito mais difícil. O Doutorado desestabilizou minhas certezas, suscitando muitas dúvidas, mas há uma verdade que não se abala, meu amor incondicional pelo meu filho Nícolas. Meu sonho, minha realidade, meu tesouro! Te amo e amarei infinitamente, todos os dias, todas as horas, onde quer que eu esteja. É em você quebusquei forças, muitas vezes, quando pensei em desistir, é por você que prossegui. Você traz cor aos meus dias! Meu elixir de vida, alegria e felicidade! Obrigada pela sua existência! Por fim, agradeço aos entes metafísicos que me trazem conforto físico e espiritual. Agradeço a Deus e a seu filho Jesus, e em especial a Maria. Gosto da ideia de uma personagem feminina entre os deuses, mais que isso, acredito no poder, proteção e intercessão de Nossa Senhora. Tudo com Jesus, nada sem Maria. Não teria consigo sem Deus. É uma benção. RESUMO Esta tese problematizou o desenvolvimento humano do aluno com deficiência intelectual a partir das políticas educativas produzidas e circulantes no contexto escolar com foco nas práticas articulatórias entre os diferentes elementos do contexto escolar. Propôs-se um estudo cujo objetivo foi compreender o desenvolvimento humano de alunos com deficiência intelectual a partir das articulações estabelecidas entre os elementos do contexto escolar. De tal modo, esta pesquisa buscou especificamente a compreensão dos processos de constituição, produção e operacionalização das políticas voltadas para o desenvolvimento humano de alunos com deficiência intelectual nos espaços escolares por/para/dos seus atores educativos. Este estudo se interessou em reconhecer a deficiência intelectual marcada por características biológicas, mas eminentemente produzida nas relações sociais. O objeto de estudo foi investigado a partir da intelecção da teoria do discurso de Laclau e da etnografia pós- estruturalista. O aporte teórico-metodológico da teoria do discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2015) procura evidenciar as tensões, conflitos e relações de poder que contribuem na produção de sentidos do objeto de estudo. A apropriação da teoria do discurso no campo educativo permitiu integrar ferramentas de análise que enriqueceram os estudos através de conceitos e noções provenientes de outros campos e disciplinas que ampliaram a compreensão dos fenômenos investigados. A etnografia pós-estruturalista litiga um sujeito produzido a partir da discursividade constituída a partir dos fragmentos do cotidiano. Este desenho investigativo inclui novas linguagens e dispositivos, sinalizando modos particulares de construção de conhecimento no marco das relações sociais de poder. Nesse sentido, esta pesquisa utilizou como fonte: os documentos oficiais, anotações, escritos, narrativas, entrevistas, relatórios e fotografias. A abordagem teórico-metodológica tratou de compreender os discursos produzidos através das práticas articulatórias entre os diferentes elementos no campo da discursividade (escola), assim como os antagonismos produzidos entre os diferentes discursos que são políticos, pois estão localizados no terreno da indecibilidade, em uma relação política cingida pela hegemonia. É esse movimento discursivo que estrutura contingencialmente a vida social e produz a subjetividade dos atores escolares. As análises apontaram que o contexto escolar enquanto campo de discursividade produz discursos de segregação, integração e inclusão em torno da deficiência intelectual. De tal maneira, o desenvolvimento humano não tem um significado fixo, mas sentidos que flutuam entre tais discursos. Palavras chave: Deficiência Intelectual; Política Educacional; Escola Regular; Prática Pedagógica; Teoria do Discurso. ABSTRACT This thesis problematized the human development of students with intellectual disabilities based on educational politics produced and circulating in the school context, focusing on the articulatory practices between the different elements of the school context. It was proposed a study whose objective was to understand the human development of students with intellectual disability from the articulations established between the elements of the school context. Thus, this research specifically sought to understand the processes of constitution, production and operationalization of policies aimed at the human development of students with intellectual disabilities in school spaces by / to / of their educational actors. This study was interested in recognizing the intellectual desability marked by biological characteristics, but eminently produced in social relations. The object of study was investigated from the insights of Laclau's discourse theory and post-structuralist ethnography. The theoretical-methodological contribution of the discourse theory of Ernesto Laclau and Chantal Mouffe (2015) seeks to highlight the tensions, conflicts and power relations that contribute in the production of meanings of the object of study. The appropriation of discourse theory in the educational field allowed the integration of analysis tools that enriched the studies through concepts and notions from other fields and disciplines that broadened the understanding of the investigated phenomena. Post-structuralist ethnography litigates a subject produced from the discursiveness constituted from fragments of everyday life. This research design includes new languages and devices, signaling particular ways of building knowledge within the framework of social relations of power. In this sense, this research used as source: the official documents, notes, writings, narratives, interviews, reports and photographs. The theoretical-methodological approach sought to understand the discourses produced through the articulatory practices between the different elements in the field of discursivity (school), as well as the antagonisms produced between the different discourses that are political, since they are located in the terrain of inexpressibility, in a hegemony. It is this discursive movement that structures the social life contingentially and produces the subjectivity of the school actors. The analyzes pointed out that the school context as a field of discursiveness produces discourses of segregation, integration and inclusion around the intellectual disability. In such a way, human development does not have a fixed meaning, but meanings that fluctuate between such discourses. Keywords: Intellectual Disability; Educational Politics; Regular School; Pedagogical Practice; Discourse Theory. RESUMEN Esta tesis problematizó el desarrollo humano del alumno con discapacidad intelectual a partir de las políticas educativas producidas y circulantes en el contexto escolar con foco en las prácticas articulatorias entre los diferentes elementos del contexto escolar. Se propuso un estudio cuyo objetivo fue comprender el desarrollo humano de alumnos con discapacidad intelectual a partir de las articulaciones establecidas entre los elementos del contexto escolar. De tal modo, esta investigación buscó específicamente la comprensión de los procesos de constitución, producción y operacionalización de las políticas dirigidas al desarrollo humano de alumnos con discapacidad intelectual en los espacios escolares por /para/de sus actores educativos. Este estudio se interesó en reconocer la deficiencia intelectual marcada por características biológicas, pero eminentemente producida en las relaciones sociales. El objeto de estudio fue investigado a partir de la intelección de la teoría del discurso de Laclau y de la etnografía post-estructuralista. El aporte teórico-metodológico de la teoría del discurso de Ernesto Laclau y Chantal Mouffe (2015) busca evidenciar las tensiones, conflictos y relaciones de poder que contribuyen en la producción de sentidos del objeto de estudio. La apropiación de la teoría del discurso en el campo educativo permitió integrar herramientas de análisis que enriquecían los estudios a través de conceptos y nociones provenientes de otros campos y disciplinas que ampliaron la comprensión de los fenómenos investigados. La etnografía post-estructuralista litiga a un sujeto producido a partir de la discursividad constituida a partir delos fragmentos de lo cotidiano. Este diseño investigativo incluye nuevos lenguajes y dispositivos, señalando modos particulares de construcción de conocimiento en el marco de las relaciones sociales de poder. En ese sentido, esta investigación utilizó como fuente: los documentos oficiales, anotaciones, escritos, narrativas, entrevistas, informes y fotografías. El enfoque teórico-metodológico trató de comprender los discursos producidos a través de las prácticas articulatorias entre los diferentes elementos en el campo de la discursividad (escuela), así como los antagonismos producidos entre los diferentes discursos que son políticos, pues están localizados en el terreno de la indecibilidad, la relación política ceñida por la hegemonía. Es ese movimiento discursivo que estructura contingentemente la vida social y produce la subjetividad de los actores escolares. Los análisis apuntaron que el contexto escolar como campo de discursividad produce discursos de segregación, integración e inclusión en torno a la discapacidad intelectual. De tal manera, el desarrollo humano no tiene un significado fijo, sino sentidos que fluctúan entre tales discursos. Palabras clave: Deficiencia intelectual; Política Educativa; Escuela Regular; Práctica Pedagógica; Análisis política del Discurso. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Diagnóstico de hipóteses de aquisição do SEA – Julia ................ 150 Figura 2 - Diagnóstico de hipóteses de aquisição do SEA – Maria .............. 169 LISTA DE QUADROS Quadro 01 - Matrículas em classe comum em escola regular ......................... 57 Quadro 02 - Salas de Recurso Multifuncional do município de Várzea Grande - Atendimento Educacional Especializado (AEE) .......... 72 Quadro 03 - Caraterização dos alunos (sujeitos primários) ............................. 76 Quadro 04 - Caracterização das profissionais envolvidas nas práticas pedagógicas (sujeitos secundários) ............................................. 77 Quadro 05 - Plano de AEE do aluno Pedro ...................................................... 118 Quadro 06 - Plano de AEE da aluna Maria ...................................................... 119 Quadro 07 - Plano de AEE da aluna Julia ........................................................ 120 Quadro 08 - Síntese das Estratégias do PNE referentes à meta 4 .................. 123 Quadro 09 - síntese das Estratégias do PME referentes à meta 14 ................ 129 Quadro 10 - Fascículos da coletânea A Educação Especial na Perspectiva da Inclusão Escolar .................................................. 133 Quadro 11 - Frequência na SRM ...................................................................... 185 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AAIDD American Association on Intellectual and Developmental Disabilities AAMR American Association of Mental Retardation AEE Atendimento Educacional Especializado ANFOPE Associação Nacional pela Formação de Profissionais da Educação ANPAE Associação Nacional de Política e Administração da Educação ANPED Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação ANPED Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação APAE Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CBAC Ciclo Básico de Alfabetização Cidadã CENESP Centro Nacional de Educação Especial CEP Comitê de Ética e Pesquisa CID Classificação Internacional de Doenças CIF Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde CNTE Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação CNE Conselho Nacional de Educação Coneds Congressos Nacionais de Educação Consed Conselho Nacional de Secretários de Educação DID Dificuldade intelectual e desenvolvimental FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação GPS Global Positioning System GT Grupo de Trabalho INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LêTECE Laboratório de Estudos sobre Tecnologia da Informação e Comunicação na Educação MEC Ministério da Educação NARC National Association for Retarded Children PHID Pessoa com habilidades intelectuais diversas PME Plano Municipal de Educação PNE Plano Nacional de Educação PNE Portador de necessidades especiais PNEPI Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PSDE Programa Doutorado Sanduíche no Exterior QI Quociente Intelectual SCIELO Scientific Electronic Library Online SEA Sistema de Escrita Alfabética SESPE Secretaria de Educação Especial SME Secretaria Municipal de Educação SRM Sala de Recurso Multifuncional TDEE Técnica de Desenvolvimento Educacional Especializado TIC Tecnologias de Informação e Comunicação UAB Universidade Aberta do Brasil UFMT Universidade Federal de Mato Grosso Uncme União dos Conselhos Municipais de Educação Undime União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação UNE União Nacional dos Estudantes SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................... 15 1 DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E DESENVOLVIMENTO HUMANO: O QUE JÁ DISSERAM SOBRE ESSAS NOÇÕES ............................................ 25 1.1 PRODUÇÕES DE SENTIDOS EM TORNO DA DEFICIÊNCIA INTELECTUAL .............................................................................................. 26 1.2 DESENVOLVIMENTO HUMANO: SENTIDOS E POSSIBILIDADES .......... 34 2 POLÍTICAS PRODUZIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO HUMANO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL ............................................... 43 3 A TRAVESSIA ................................................................................................ 63 3.1 O CENÁRIO DA PESQUISA DE CAMPO .................................................... 74 3.2 OS SUJEITOS DA PESQUISA .................................................................... 75 3.3 PROCEDIMENTOS DE PESQUISA ............................................................ 77 3.3.1 Procedimentos preliminares ...................................................................... 78 3.3.2 A pesquisa de campo ................................................................................ 78 a) Análise documental ............................................................................... 78 b) Observação participante ....................................................................... 79 c) Entrevistas abertas ................................................................................ 79 d) Narrativas ............................................................................................. 80 4 TEORIA DO DISCURSO: SOBRE ENTENDIMENTOS E POSSIBILIDADES DE ANÁLISES ................................................................ 5 OS DISCURSOS FALAM ................................................................................ 5.1 SEGREGAÇÃO, INTEGRAÇÃO E INCLUSÃO: PRODUÇÕES DISCURSIVAS NO CONTEXTO ESCOLAR ............................................... 5.2 O QUE DIZEM OS TEXTOS ........................................................................ 5.3 O QUE DIZEM OS SUJEITOS ..................................................................... 5.4 O QUE DIZEM OS ESPAÇOS ..................................................................... 6 TECENDO CONSIDERAÇÕES ...................................................................... 83 97 98 103 137 180 209 REFERENCIAISBIBLIOGRÁFICOS ................................................................ 215 APÊNDICES ...................................................................................................... 233 APÊNDICE A ...................................................................................................... 233 APÊNDICE B ...................................................................................................... 235 APÊNDICE C ...................................................................................................... 236 APÊNDICE D ...................................................................................................... 237 APÊNDICE E ...................................................................................................... 238 15 INTRODUÇÃO Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza. (João Cabral de Mello Neto) Os nossos problemas de pesquisa não nascem na academia, muitas vezes eles se constituem ao longo de nossa vida. Na academia encontramos caminhos para problematizá-los, analisá-los, talvez compreendê-los. Os nossos problemas de pesquisa ressoam nossas vivências e latências. Deles pulsam nossas emoções e trazem à tona sentimentos que nos fazem querer saber mais sobre algo que, no fundo, também fala de nós mesmos. Essa reflexão também me levou a pensar sobre as minhas relações com a deficiência, então me dei conta de que os esbarros com contextos ligados à deficiência constituíram minha identidade. Na adolescência tive uma irmã que nasceu com mielomeningocele, apresentando posteriormente deficiência física e intelectual. Foi bastante marcante quando minha mãe chegou em casa e disse que minha irmã não se desenvolveria e que seu destino provável era a morte. Essa previsão fatídica se consolidou depois de um ano e três meses. Até então nunca tinha pensado que o desenvolvimento de uma pessoa tivesse um fluxo que poderia ser interrompido ainda tão jovem. Não sei como o desenvolvimento da minha irmã foi classificado pelo campo da Medicina, mas ela viveu, ela sorriu, ela nos fez felizes por algum tempo, então é possível dizer que minha irmã apresentou um desenvolvimento suficiente para permitir relações e possibilidades; diante destas situações o que nos cabe é sensibilidade suficiente para perceber isso. Não se trata somente de um desenvolvimento natural, orgânico, versa sobre um desenvolvimento humano, portanto cultural e social. Os esbarros continuaram quando, ainda na adolescência, cuidei de uma criança com múltiplas deficiências, sempre demonstrando sensibilidade a estas questões. Achava que desenvolvimento, inteligência, conhecimento eram muito mais que as definições simplistas que me apresentaram. Talvez minha escolha pelo curso de Pedagogia tenha sido uma tentativa de buscar meios para entender a complexidade do desenvolvimento humano. 16 As instituições de ensino superior também são campos de discursividade e hoje percebo o quão era discursiva a presença na grade curricular de uma única disciplina ligada à Educação Especial, que era optativa. A universidade só formava os alunos para o padrão, o normal. Mesmo existindo pessoas com deficiência e diferentes documentos normativos garantindo o direito à educação a todos os sujeitos, não me recordo de um currículo formativo que me auxiliasse a enxergar e trabalhar com a diferença. Essas situações vivenciadas despertaram uma insatisfação e descontentamento quando se percebia que o espaço escolar apresentava diferentes identidades, mas o projeto educativo proposto pela universidade era pensado a partir de uma suposta identidade universal que não mudou até hoje; contudo, percebo que isso são os antagonismos produzidos por disputas discursivas que se fazem presentes em todos os espaços sociais, inclusive nas universidades. Finalizei a faculdade e sentia um vácuo teórico-prático que se traduzia em despreparo para educar crianças com deficiência, mas isso não impediu que os alunos chegassem até mim. Inicialmente, trabalhei em escolas privadas com uma aluna com deficiência física (sem os membros inferiores) e outra com deficiência intelectual. Mais tarde, em 2001, atuei na Educação de Jovens e Adultos (EJA) e tinha uma aluna com deficiência física que fazia uso de cadeiras de rodas e não era alfabetizada. A aluna tinha alto comprometimento dos membros superiores e inferiores, mas não tinha qualquer impedimento cognitivo, contudo, o contexto social fazia com que a aluna se sentisse totalmente incapaz, dado à condição física dela. As pessoas da escola chegavam a sugerir que a mesma não fosse às aulas, pois os conhecimentos adquiridos eram inúteis; além do mais, a mesma contava com um benefício social que garantia seu sustento, portanto não precisaria trabalhar, muito menos estudar. Em 2002 iniciei o trabalho na escola da localidade onde moro, local periférico e com um número de pessoas com deficiência que não consigo mensurar, mas tenho contato e apreço por suas identidades. A escola contava com uma sala de educação especial, distribuída em duas turmas, uma em cada turno de funcionamento. As classes especiais acolhiam alunos que tivessem condições de frequentar a escola regular, então permaneceriam na classe especial, para adquirir as habilidades necessárias para estudarem na classe comum. Devido à presença de classe especial, um grande número de alunos com deficiência buscou a escola. Os 17 alunos passavam pela classe especial e, se alcançassem as condições necessárias, eram inseridos na sala regular. Desenvolvi um trabalho na coordenação pedagógica e obtive experiência com todos os alunos da escola; pude me aproximar das práticas pedagógicas desenvolvidas com alunos com deficiência. Em 2004 e nos anos seguintes, voltei a lecionar para alunos com deficiência que tinham passado pela sala especial. Durante esse período, tensionava a presença de adultos na escola entre as crianças; tínhamos alunos com mais de 18 anos que eram vistos como crianças por apresentarem uma idade mental infantil. Não que eu quisesse lhes negar o direito à educação, tampouco que fossem enviados para uma escola especial, afastando-os do convívio com uma comunidade com diferentes identidades e características, mas, discutir desenvolvimento humano é considerar o ciclo da vida, as fases de desenvolvimento que passamos e que nos constituímos como sujeitos. Como é possível condenar alguém a passar uma vida inteira como criança, sem experienciar as inquietudes, curiosidades e frustrações da adolescência, os saberes, dores, alegrias da vida adulta? É segregar o aluno de uma vida humana, diversificada e complexa. Me parecia estranho que uma escola organizasse suas turmas por idades ou anos escolares e mantivesse uma sala especial com alunos de 7 a 25 anos em uma única turma. Não haveria problema, se isso fosse um princípio educativo para todos os alunos, mas essa atitude só era destinada para os alunos especiais, como se todos fossem iguais por conta de uma deficiência intelectual. Esse relato aponta que os discursos em torno do desenvolvimento humano da pessoa com deficiência já existiam e já me envolvia nesse processo antes mesmo de qualquer pensamento sobre esse assunto. Os tensionamentos aconteciam, mas foi o documento produzido em 2008, denominado Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva que orientou os municípios a extinguirem as salas especiais e incluírem os alunos. As salas de educação especial foram fechadas e os alunos incluídos em salas regulares. Em 2010 eu trabalhava na mesma escola, que contava com aproximadamente 400 alunos, desses, aproximadamente 80 eram crianças com deficiência. Eu lecionava emuma sala com 25 alunos, sendo que 7 apresentavam deficiência; os desafios se concentravam nas crianças com deficiência intelectual. 18 Como e o que ensinar a todos? Como respeitar as diferenças? Como fazer com que os alunos se respeitassem? Essas dúvidas suscitaram um problema de pesquisa para o mestrado: como o currículo inclui o aluno com deficiência intelectual na escola regular? O desejo por compreender a inclusão da criança com deficiência na escola regular possibilitou a realização da pesquisa de mestrado intitulada Política de currículo e a inclusão de pessoas com deficiência intelectual em uma escola municipal de Várzea Grande-MT. O decurso da pesquisa evidenciou que, naquele espaço educativo, as pessoas com deficiência intelectual estavam inclusas, mas a inclusão não era um discurso finalístico e completo. Ao término do Mestrado, iniciaram-se indagações sobre quais elementos no contexto escolar favoreceriam a inclusão dos alunos com deficiência e quais demandas ainda se faziam necessárias para que a inclusão de fato ganhasse concretude nas práticas pedagógicas. Em 2013, com o retorno ao trabalho docente, exerci minhas atividades laborais como técnica pedagógica na coordenadoria de Educação Especial, na Secretaria Municipal de Educação de Várzea Grande. O trabalho junto às escolas permitiu constatar que algumas unidades escolares contavam com dispositivos tecnológicos disponibilizados para o público-alvo da educação especial, que nunca chegaram ao seu destino. Percebi, também, a dificuldade encontrada pelos profissionais das escolas em falar do desenvolvimento da criança a partir da ação educativa desenvolvida pela escola. O trajeto vivenciado estendeu meu desejo em perceber, analisar e identificar o desenvolvimento humano do aluno com deficiência. Desenvolver-se é condição de qualquer ser vivo, todavia o desenvolvimento da pessoa humana está imbricado em uma rede de significações que se articulam ao próprio desenvolvimento da pessoa. Nesse sentido, problematizou-se: como o aluno com deficiência intelectual se desenvolve no contexto escolar? Tradicionalmente, a escola é espaço de saberes disciplinarizados e os alunos que apreendem esses saberes são bem sucedidos academicamente. Contudo, será que desenvolver-se é tão somente apreender os conhecimentos hegemonizados pelas disciplinas? Quem são os atores que contribuem para a formação desses saberes? Quais documentos contribuem nesse desenvolvimento? Como as práticas pedagógicas se articulam na produção do desenvolvimento humano? Essas questões exigiram uma abordagem teórico-metodológica para além daquelas tradicionalmente utilizadas no campo da Psicologia, pois o desenvolvimento humano 19 no contexto escolar não é consequência de uma evolução pessoal, mas de uma produção discursiva que envolve diferentes sujeitos. O desenvolvimento humano se constitui em uma dimensão instituinte de ordens sócio-políticas que, ainda que nesta pesquisa perpasse por uma instituição estatal, se afasta dos conceitos de política enquanto produção meramente de Estado, mas que qualifica o lugar do político e dos sujeitos que (re)constroem as políticas, considerando os sentidos que sustentam essas produções. De tal forma, investigar o objeto de estudo a partir de uma teoria que não se baseasse tão somente na Psicologia, mas que buscasse compreender o fluxo de sentidos foi o primeiro desafio imposto. Esse desafio se impôs porque desejava estudar deficiência a partir de outros referenciais, para além da Psicologia; buscava um referencial teórico que empoderasse a pessoa na sua condição de sujeito, considerasse sua pluralidade de posições e movimentos imbricados no jogo político configurado pela lógica da diferença. A partir disso, esta pesquisa se interessou em reconhecer a deficiência intelectual como uma característica biológica, mas preocupada em analisar as relações sociais produzidas em torno do desenvolvimento humano destes sujeitos. As relações de poder e a perspectiva histórica são centrais nessa discussão. O poder opera a partir de forças e essas têm capacidade de resistência. Neste mesmo pensamento, entender as práticas discursivas como contingentes, demonstrando a ausência de causalidade, o estranhamento nas relações, a análise das continuidades e descontinuidades, o que está dito, o que foi silenciado, as regras, as repetições é fundamental para compreender o desenvolvimento humano e as produções de sentidos no contexto escolar. Assim, para estudar o desenvolvimento humano da pessoa com deficiência intelectual, fez-se necessária uma abordagem teórico-metodológica que oferecesse escapes que permitissem a compreensão das características biológicas, sociais, históricas e culturais dos sujeitos pesquisados. Nesse sentido, a teoria do discurso propiciou uma análise suficiente ao objeto de pesquisa, já que potencializa as possibilidades discursivas a cerca da deficiência intelectual. O desejo por discutir esses problemas, encontrados no contexto de diferentes escolas, me conduziu até a seleção para ingresso no curso de Doutorado em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, na linha de pesquisa Organização Escolar, Formação e Práticas Pedagógicas, no grupo de pesquisa 20 Laboratório de Estudos sobre Tecnologia da Informação e Comunicação na Educação (LêTECE). Inicialmente, apresentei um projeto de pesquisa intitulado O uso das tecnologias da informação e comunicação e o desenvolvimento humano de alunos com deficiência intelectual. Mesmo com um projeto de pesquisa já anunciado, ainda as indagações do fim do mestrado me intrigavam. A pesquisa realizada no mestrado defendeu uma possível “inclusão”, a partir do seguinte sentido: Em uma perspectiva discursiva, propõe-se a compreensão de inclusão como práticas de significação que se estabelecem nas relações diferenciais entre grupos identitários no currículo, de tal forma que suas identidades sejam reconhecidas a partir de mudanças produzidas nas relações estabelecidas nesse espaço- tempo chamado currículo. Assim, para que haja inclusão tornam-se necessárias relações de identificação entre os sujeitos. Não se está falando somente da presença ou da tolerância da identidade da pessoa com deficiência intelectual, mas daquilo que se estabelece entre elas. Essa perspectiva de inclusão pretende superar relações binárias do “ou isto, ou aquilo”, “do estar dentro ou estar fora”, “a inclusão tem se dado de forma boa/ruim”, “as relações são excludentes ou includentes?” Incluir é relacionar identidades, é estabelecer lutas por hegemonização de sentidos, são tentativas de universalizar particularidades, de desejar que demandas reprimidas sejam atendidas. (SILVA, 2012, p. 66, grifos da autora). A partir dessa noção de inclusão, definida na dissertação, emergiu a necessidade de investigar os elementos no contexto escolar que (des)favorecem a inclusão dos alunos com deficiência intelectual na escola regular. Somou-se, a isso, os questionamentos sobre o desenvolvimento do aluno com deficiência. Já que a pesquisa de mestrado apontou que o aluno está incluso, então precisávamos conhecer o desenvolvimento nesse contexto e os elementos que se articulam em torno desses processos. Após um amplo processo de discussão com a orientadora, em eventos científicos e nas disciplinas obrigatórias do curso de Doutorado, delimitou-se como objeto de estudo o desenvolvimento do aluno com deficiência no contexto escolar. Dessa forma, expandiram-se os elementos que estavam ligados ao desenvolvimento humano do aluno. Nesta trajetória, cabe lembrar que essa investigação compõe o rol de pesquisas desenvolvidas pelo Laboratório de Estudos sobre Tecnologia da Informação e Comunicação na Educação (LêTECE). Esse grupo de pesquisa realiza 21 estudos voltados para o uso das tecnologias com foco em modos e linguagensproduzidas pelo seu uso, políticas públicas, questões metodológicas, de mediações, sua incorporação nas práticas pedagógicas escolares e formação de professores. O LêTECE se propõe, então, trabalhar com os aspectos mencionados, buscando diálogos com outros grupos/instituições, intentando estabelecer relação local/global, constituindo saberes/fazeres por meio de suas pesquisas (ALONSO; MACIEL, 2016). Diante da condução investigativa do grupo, é salutar apontar as contribuições que este projeto oferecerá ao mesmo. No processo de desenvolvimento humano da pessoa com deficiência, é relevante buscar os sentidos atribuídos ao uso das TIC, já que as tecnologias podem ser compreendidas como instrumentos para que os indivíduos se encaixem nos padrões sociais de normalidade. Seguindo esse pensamento, o uso de tecnologias na educação pode significar a produção de condições materiais e simbólicas voltadas para a extinção da diferença e manutenção dos projetos educacionais que visem um todo padronizado. Em outra perspectiva, o uso das TIC pode ser compreendido como recursos que facilitam o processo de aprendizagem a fim de potencializar o desenvolvimento da pessoa com deficiência. A tecnologia, nesse caso, é vista como meio de alçar o aluno a um lugar de igualdade, sem aniquilar ou inferiorizar as características biológicas que constituem sua identidade. Assim, a mediação proposta oportuniza aos alunos o desenvolvimento de suas potencialidades humanas sem índices a serem alcançados, respeitando sua identidade, subjetividade e diferença. Quanto ao LêTECE, pretende-se oferecer um recorte nos estudos, que considere a relação entre os dispositivos tecnológicos e o desenvolvimento humano da pessoa com deficiência na escola regular. Por fim, a partir dessas reflexões, propõe-se um estudo cujo objetivo geral é compreender o desenvolvimento humano do aluno com deficiência intelectual a partir das articulações estabelecidas entre os elementos do contexto escolar. Os objetivos específicos são: ❖ Problematizar a produção, reprodução e circulação dos discursos em torno do significante desenvolvimento humano da pessoa com deficiência intelectual; ❖ Identificar, no contexto escolar, quais e como os elementos contribuem para o desenvolvimento do aluno com deficiência intelectual; 22 ❖ Compreender o processo de operacionalização das políticas constitutivas dos espaços escolares por/para/dos seus atores educativos; ❖ Investigar como as práticas sociais desenvolvidas na escola se constituem em desenvolvimento humano; ❖ Analisar o uso das tecnologias para o desenvolvimento humano dos alunos com deficiência. Para atingir tais objetivos, estabeleceu-se uma aproximação com o aporte teórico-metodológico da teoria do discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2015), procurando evidenciar as tensões, conflitos e relações de poder que contribuíram na produção de sentidos do objeto de estudo. A fim de aprofundar os estudos referentes à abordagem teórico-metodológica realizou-se, em 2016, um Estágio Doutoral com duração de 4 meses na Universidad Nacional de La Plata, na Argentina, sob orientação da Professora Doutora Myriam Southwell através do Programa Doutorado Sanduíche no Exterior (PSDE), com financiamento da CAPES. No que tange à deficiência intelectual, as condições biológicas do sujeito estão dadas, contudo são as relações estabelecidas que levam à construção de conceitos de normalidade, em que as diferentes formas de desenvolvimento representam um distanciamento dos modelos e padrões estabelecidos, e sua não adaptação, um problema para a sociedade. Dessa forma, há discursos que estabelecem quais são os modelos de desenvolvimento a serem seguidos, quais são considerados prejudiciais ou vantajosos, ou ainda, quais poderão provocar depreciação ou valorização do ser humano. A luta de classe cede lugar às diferentes tensões entre múltiplas identidades; nesta perspectiva, mostrou-se potente uma investigação sobre o desenvolvimento dos alunos em espaços educativos, questionando os padrões escolares pautados na normalidade, já que o estar juntos exige mais que a mera presença da criança na escola, é constituir-se ser humano e desenvolver-se a partir das características de cada sujeito, é a busca por um rompimento com as demarcações temporais, gradeamento de saberes, avaliações meritocráticas e padrões normalizantes. Diante desse desafio, de criar outros olhares e diferentes fazeres pedagógicos, é que se estabeleceu esta pesquisa que está organizada em 5 (cinco) capítulos. O primeiro apresenta as noções de deficiência intelectual e desenvolvimento humano. As discussões empreitadas no primeiro capítulo explicitam os processos e movimentos necessários para que eu conseguisse 23 delimitar o objeto de investigação e configurar um quadro conceitual para avançar no desenvolvimento da pesquisa. O segundo capítulo apresenta as políticas e os movimentos políticos produzidos em torno da deficiência intelectual, que se articulam ao desenvolvimento humano da pessoa com deficiência intelectual. O contexto da pesquisa é construído e recriado a partir de relações com um contexto social mais amplo. Essas articulações e movimentos foram apresentados neste capítulo. O capítulo seguinte estabelece um diálogo necessário sobre a pesquisa pós- estruturalista, teoria do discurso e etnografia pós-moderna com intuito de localizar metodologicamente a investigação. É apresentado o cenário da pesquisa, os sujeitos participantes e os procedimentos de coleta de dados. O quarto capítulo traz noções da teoria do discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, ressignificadas à luz da educação especial e do objeto de estudo. O último capítulo traz os discursos produzidos no contexto escolar, fixa conceitos sobre desenvolvimento humano a partir da flutuação entre diferentes discursos que são produzidos a partir do contexto escolar enquanto campo de discursividade. Este capítulo apresenta as práticas vivenciadas que sustentam os sentidos dos discursos sobre desenvolvimento humano produzidos pelos sujeitos nos documentos e nos espaços. Por fim, apresento as considerações finais que apontam a flutuação de diferentes sentidos para desenvolvimento humano a partir de discursos de segregação, integração e inclusão. Após as considerações, trago os anexos com a documentação técnica necessária para o desencadeamento legal da pesquisa e os roteiros de investigação. 24 25 1 DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E DESENVOLVIMENTO HUMANO: O QUE JÁ DISSERAM SOBRE ESSAS NOÇÕES Estou consciente de que tudo o que sei não posso dizer, só sei pintando ou pronunciando sílabas cegas de sentido. (Clarice Lispector) Há um processo de retroalimentação na incorporação de novos objetos no campo da objetividade. Assim, as noções não são universalizadas, mas resultados de um constante processo de produção de sentidos. Sendo o contexto social uma importante noção, compreendida também como campo discursivo marcado por antagonismos e articulações que exigem momentos de fixação para compreender as relações estabelecidas (LACLAU; MOUFFE, 2015). Nesta perspectiva, este capítulo vislumbra compreender os sentidos produzidos e circulantes socialmente em torno do desenvolvimento humano e deficiência intelectual. Os conceitos são produções discursivas que tentam fixar sentidos, criando significados equivalentes entre determinados grupos. A impossibilidade da predição precisa e da construção de modelos teóricos gerais decorreria da multiplicidade e complexidade quase infinita dos mecanismos envolvidos nos processos sociais. Embora seja possível conhecer alguns mecanismos em atuação, torna-se muito difícil – senãovirtualmente impossível – identificar todos os mecanismos que estão desempenhando um papel em determinado contexto e, mais ainda, determinar qual a resultante final das interações que podem se estabelecer entre todos eles. É válido destacar, entretanto, que a previsibilidade e a generalidade continuam a ser consideradas como ideais, e que a busca do maior grau possível de ambas permanece como orientação, meta e, consequentemente, como um indicador – mesmo que parcial – de sucesso da pesquisa e da teorização. (OLIVEIRA; OLIVEIRA; MESQUITA, 2013, p. 1328). Isso demonstra que conceituar algo não é definir permanentemente, mas apontar onde se conseguiu chegar até dado momento, predizendo o caminho que se pretende alcançar. A compreensão dos discursos perpassa por investigar as produções discursivas em torno de deficiência intelectual e desenvolvimento humano; é necessário inquirir sobre o que os outros autores estão discutindo? As tentativas de fixação de sentidos são em torno de quais significados? Nesse sentido, este capítulo apresenta as compreensões de deficiência intelectual, 26 desenvolvimento humano à luz da teoria do discurso. Neste capítulo fiz dois exercícios: o primeiro, de compreender os sentidos que circulam socialmente em torno das categorias de estudo deficiência intelectual e desenvolvimento humano; depois estabeleci uma fixação de conceitos para orientar as análises no decorrer da pesquisa. 1.1 PRODUÇÕES DE SENTIDOS EM TORNO DA DEFICIÊNCIA INTELECTUAL Historicamente, os estudos sobre deficiência intelectual se aportam nas teorias psicogenéticas do desenvolvimento, nas quais a ontogênese orgânica impõe o fatalismo etiológico e determinista que resume a pessoa com deficiência à sua condição biológica (PESSOTI, 2012). Os estudos sobre deficiência intelectual enfocam as causas orgânicas ou inatas, enfatizando a hereditariedade e a degenerescência humana. A natureza humana, antes definida por um espírito imortal, ganhou uma explicação, segundo preceitos de uma ciência moderna baseados em processos orgânicos (cérebro e lesões anatômicas foram importantes para o caso da deficiência intelectual), comportamentos e sintomatologias clínicas (PAN, 2008). Em recente pesquisa, Angelucci e Prieto (2015) apresentam dados que demonstram o quanto a deficiência ainda é vista numa perspectiva patológica; é expressiva a quantidade de estudos inseridos nas categorias de avaliação, causas/consequências e interferências no desenvolvimento e/ou aprendizagem. As autoras chamam a atenção para a escassez de publicações que tematizam a participação social, o mundo do trabalho, a convivência, entre outras relações fundamentais ao processo socializador de qualquer pessoa. “Surge necessariamente o problema do caráter relacional ou não-relacional da identidade dos elementos envolvidos” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 175). Assim, podemos evidenciar momentos discursivos dispersos que, ora buscam a cura para uma possível patologia, ora apontam meios para tolerar a deficiência, já que é um estado imutável. Esta pesquisa reconhece dois discursos muito presentes nas discussões sobre deficiência intelectual, contudo, há de se dizer que existem inúmeros discursos constituindo as relações sociais que envolvem as pessoas com deficiência 27 intelectual. Os discursos podem anunciar mudanças, garantir a hegemonia de discursos cristalizados, propor novos sentidos ou fixar significados. Para Laclau e Mouffe (2015), discurso é uma totalidade estruturada a partir de relações entre elementos que tiveram suas identidades modificadas nestes movimentos. O discurso só existe na ação social, é contingente e relacional, portanto, refuta a fixação e a não-fixação, há a sobredeterminação do social. “Um diamante no mercado ou no fundo de uma mina é o mesmo objeto físico; porém, só é uma mercadoria dentro de um sistema determinado de relações sociais” (LACLAU, 2000, p. 115). Nada está dado ou definido a priori e as possibilidades de significação são infinitas, assim, não é possível a vitória de um discurso definitivo, mesmo que ancorado em condições objetivas de existência. Isso quer dizer que os discursos em torno da deficiência intelectual não se fecham na condição orgânica das pessoas, pois “os sentidos estão constantemente permeados pela inconstância que as noções de contingência e precariedade carregam” (MENDONÇA; RODRIGUES, 2014, p. 50). Nesta perspectiva, a própria forma de denominar a deficiência intelectual e as identidades que apresentam tais características se encontra permeada por disputas discursivas. Deficiência mental, retardo mental, excepcional, portador de necessidades especiais, qual significante utilizar? Uma revisão de literatura realizada em periódicos indexados ao Scientific Electronic Library Online (SCIELO), e em trabalhos apresentados no GT 15 da Reunião da ANPED, demonstra que essa dúvida constitui diferentes discursos. A pesquisa abarcou o período de 2011 a 2015. O objetivo desta pesquisa não foi quantificar os termos utilizados nos artigos produzidos, mas investigar, a partir dos textos publicados, aqueles que tensionam os significantes vigentes ou propõem novas nomenclaturas, pois o que se pretende é compreender, a partir dos significantes utilizados, os discursos que considerem o sujeito a partir de suas diferenças identitárias, suas relações com o mundo e sua pertença cultural. A busca nos artigos publicados no GT 15 das Reuniões da ANPED se deu através da leitura dos resumos, e extraiu-se três trabalhos cujos objetivos problematizavam significantes ligados à deficiência intelectual e corroboram com sentidos que não enxergam a pessoa com deficiência a partir da falta ou da ausência de um órgão incólume. 28 Destarte, Angelucci e Prieto (2015), no artigo intitulado A patologização das diferenças humanas e seus desdobramentos para a educação especial, problematizam as relações em torno de um olhar sobre a deficiência que “procura pelas ausências, pelas diferenças em relação a uma corporeidade dita normal” (ANGELUCCI; PRIETO, 2015, p. 01). O estudo demonstra o processo de organização do serviço educacional e sua subordinação à lógica de produção de diagnósticos no campo da Medicina. A partir dessa análise, as autoras questionam o significante deficiência e propõem a alteração da terminologia deficiência por diferenças funcionais. O segundo trabalho trata especificamente da deficiência intelectual e recebeu o título de Deficiência mental: possíveis leituras a partir dos manuais diagnósticos, de Fabiane Romano de Souza Bridi. Este artigo investiga “o que dizem os manuais diagnósticos acerca da deficiência mental, principalmente, no que se refere ao conceito de deficiência mental, aos critérios de diagnóstico e classificação” (BRIDI, 2013, p. 01). Esse estudo analisa a influência dos Manuais de Classificações e Diagnósticos produzidos no campo da Medicina, e sua influência na forma de conceber a pessoa com deficiência intelectual no campo da Educação. Isso demonstra a complexidade das relações que se constituem no âmbito escolar e a tentativa de hegemonização de conceitos, discursos e disputas pelo significado da realidade. O terceiro trabalho, produzido por Silva, Oliveira e Ferreira (2012), problematiza a produção identitária do deficiente intelectual a partir da análise de contextos discursivos, empreendendo uma busca pelos significados e sentidos produzidos sobre a deficiência intelectual em um ciclo constituído por diferentes contextos que possibilitaram tensionar o significante deficiente intelectual e propor o significante pessoa com habilidades intelectuais diversas (PHID), como uma denominação enunciativa de direitos e lugar favorável para o sujeito com deficiência intelectual. No site da SCIELO encontrou-se um artigo intitulado Acertando o passo! Falar de deficiência mentalé um erro: deve falar-se de dificuldade intelectual e desenvolvimental (DID). Por quê? Concebido por Santos e Morato (2012), o artigo citado apresenta uma nova proposta de terminologia de deficiência mental/intelectual para dificuldade intelectual e desenvolvimental (DID). Para os autores, com o passar do tempo qualquer terminologia se tornará uma rotulação, 29 mas a escolha de uma nova terminologia implica em um novo paradigma e, consequentemente, renomeação da nomenclatura e mudanças de atitudes da sociedade geral em face das pessoas com deficiência intelectual. Este estudo sobre as produções discursivas em torno do significante utilizado para denominar a pessoa com deficiência intelectual serve para apontar as disputas hegemônicas em torno da deficiência intelectual. Nesse sentido, cabe esclarecer o que se entende por hegemonia. A hegemonia se constitui em movimento, não há cristalização dos elementos envolvidos nesse processo, portanto, esse conceito é dinâmico, relacional e não fixo. “Um sistema de diferenças plenamente bem sucedido, que excluísse todo significante flutuante, não possibilitaria qualquer articulação; o princípio da repetição dominaria toda prática no interior deste sistema e não haveria nada a hegemonizar” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 213). A disputa por hegemonia envolve a incompletude posta como diferença ontológica entre os planos de constituição de cada significante perscrutado nos estudos analisados. A diferença ontológica vem a ser a finitude e a desessencialização dos seres humanos, libertando de toda subordinação a uma essência. É uma diferença não somente entre os seres, mas que impede o sujeito de ser sozinho; é uma diferença que o completa no campo do social. Não é uma diferença entre elementos que coexistem contemporânea ou sucessivamente e que contribuem para a constituição de mútuas identidades diferenciais. É uma diferença que se constitui a partir de todos os projetos humanos (LACLAU, 2011). Nesta perspectiva, considerar as discussões em torno do significante deficiência intelectual é trazer para esta pesquisa esse movimento constituidor da identidade pesquisada, problematizando a identidade do sujeito pesquisado a partir das dinâmicas sociais em que elas são produzidas. Especialmente no que se refere aos sentidos das identidades pesquisadas, poderia se perder inteiramente as reflexões oportunizadas por este estudo se as discussões resultassem em nomenclaturas fechadas que fechassem as cadeias equivalenciais e impusessem uma totalidade discursiva. Se a lógica diferencial e relacional da totalidade discursiva (resultante de práticas articulatórias, hegemônicas) fosse ilimitada, só haveria novamente relações de necessidade - seja na direção de um novo sistema fechado (estruturalismo), seja da proliferação incontrolada e irredutível de diferenças (certas leituras de Foucault ou do pós- modernismo). Este equívoco só pode ser desfeito levando-se em 30 consideração o exterior constituído por outros discursos que limita e ameaça a integridade de um dado discurso, e sem o qual, mais radicalmente, a identidade deste inexiste. Se uma totalidade discursiva nunca é um mero dado, uma positividade claramente delimitada, a lógica relacional deve ser também incompleta e contingente. Assim, todo discurso da fixação do sentido das diferenças é sempre metafórico, sendo a literalidade a primeira das metáforas. (BURITY, 1997, p. 14, grifo do autor). Burity (1997) me ajuda a pensar que a totalidade em torno de um conceito universal para deficiência intelectual é impossível, mas um caminho precisa ser percorrido a fim de traçar um estudo sobre determinado conceito. É necessário fixar um sentido, mesmo que se saiba de antemão que a definição proposta será balizada por sentidos que circulam em outros discursos. Creio que não haverá um sentido para deficiência intelectual que carregue toda a positividade, extirpando toda a lógica diferencial e relacional constituída discursivamente, porém, percorrer essas construções de sentido permite potencializar os processos de significação do significante pessoa com deficiência, Assim, no decorrer desta pesquisa cabe, ainda, analisar as lógicas equivalenciais entre os significantes existentes nos campos discursivos e o significante considerado nesta pesquisa. Há de se enunciar que escolhi o significante pessoa com deficiência intelectual para nomear os sujeitos desta pesquisa. Tal nomenclatura foi construída a partir de discussões históricas envolvendo diversas identidades, inclusive as pessoas com deficiência. As disputas em busca de nomenclaturas para as pessoas com deficiência são antigas; assim, nos anos 2000, o termo com mais forças hegemonizantes era portador de necessidades especiais (PNE), contudo, os pesquisadores e pessoas com deficiência que discutiam identidade questionaram tal significante a partir do argumento de que a pessoa com deficiência não porta e nem carrega tais características. Além de que o termo portadores de necessidades especiais oculta e dilui a deficiência que é uma característica destes sujeitos. A pessoa com deficiência apresenta características orgânicas que exigem políticas públicas para alçá-la a lugares socialmente mais favoráveis. Nesse cenário, ocorreram dois momentos importantes para fortalecer o significante pessoa com deficiência intelectual. O primeiro momento, em 2004, na Conferência Mundial da Pessoa com Deficiência Intelectual, em Montreal, que deu origem à Declaração de Montreal sobre a Deficiência Intelectual (2004). Esse 31 documento, a partir de ampla discussão com vários segmentos da sociedade, inclusive das próprias pessoas com deficiência, propôs a terminologia deficiência intelectual juntamente com a seguinte noção: A deficiência intelectual, assim outras características humanas, constitui parte integral da experiência e da diversidade humana. A deficiência intelectual é entendida de maneira diferenciada pelas diversas culturas o que faz com a comunidade internacional deva reconhecer seus valores universais de dignidade, autodeterminação, igualdade e justiça para todos. (DECLARAÇÃO DE MONTREAL, 2004, p. 03). Esse olhar sobre a deficiência trouxe um deslocamento sobre a forma de conceber a deficiência intelectual. Assim, o que se pretende é compreender o desenvolvimento da pessoa com deficiência intelectual, não a partir de uma régua cujos marcadores são constituídos com as respostas padronizadas pelo homem médio, mas numa perspectiva que busca as interações do sujeito e seu contexto, considerando o modo como são traçados os elos do funcionamento intelectual, as possibilidades de apropriação dos objetos em que se inscreve a cultura humana, as mediações necessárias para as aprendizagens e a materialização desses processos em desenvolvimento. Os estudos em torno da deficiência intelectual possibilitam discussões em torno de uma escola cuja preocupação seja o desenvolvimento de todos os alunos. Articulada nesse discurso houve, em 30 de março de 2007, a adoção da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, reafirmando tal nomenclatura. Essas discussões possibilitaram tensionamentos que permitiram a busca de novos sentidos para a deficiência intelectual. Tal busca permitiu, por exemplo, eleger outras classificações para além do CID 10 e DSM–IV, pois estes manuais adotam a classificação a partir da mensuração do Quociente Intelectual, ou seja, à luz da psicometria determina-se um pressuposto universal e genérico sobre a inteligência humana, que permite quantificá-la, fixando estágios de retardo mental a partir de categorias: ❖ leve (QI entre 70 até 50/55) ❖ moderado (QI entre 50/55 até 35/40) ❖ severo (QI entre 35/40 até 20/25) 32 ❖ profundo (QI abaixo de 20/25) Essa classificação pressupõe o possível desenvolvimento e nível de educabilidade.Assim, o retardo mental leve é educável, o moderado é treinável e os demais dispensam processos socializadores, pois não dispõem de condições intelectuais para se desenvolver e, consequentemente, não precisam ir à escola. Essas nomenclaturas ainda existem no campo médico, cabendo investigar como elas são ressignificadas no campo da educação, pois os termos utilizados são restritos aos limitados testes psicométricos; assim, buscou-se outro sistema de classificação, proposto pela Organização Mundial de Saúde, denominado de Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). Para Pan (2008), esse manual considera as funções e estruturas do corpo humano, mas também os contextos sociais do sujeito. As funcionalidades e incapacidades são determinadas pelo contexto social em que as pessoas vivem. Dessa forma, pode-se analisar a deficiência intelectual a partir de 5 dimensões: • Habilidades intelectuais: considera-se as atividades psicométricas e as escalas de mensuração, mas não é o suficiente para apontar a deficiência intelectual; • Comportamento adaptativo: considera-se os aspectos necessários à vida cotidiana e exercício da autonomia; • Participação e papéis sociais: considera-se a vida comunitária, as interações e a compreensão dos papéis sociais desenvolvidos pelos diferentes sujeitos do contexto em questão; • Saúde: considera-se o estado de saúde, fatores etiológicos e os quadros patológicos; • Contextos: considera-se uma abordagem ecológica do desenvolvimento, que se estende a um vasto número de ambientes, considerando as condições em que a pessoa vive, as práticas e os valores culturais, as oportunidades educacionais, de trabalho, lazer, conforto material, estímulos, segurança, estabilidade. As articulações são postas à mostra e “os sentidos estão constantemente permeados pelas inconstâncias que as noções de contingência e precariedade carregam” (MENDONÇA; RODRIGUES, 2014, p. 50), no momento em que tais noções acerca da deficiência intelectual foram compartilhadas pela American Association of Mental Retardation (AAMR) que, a partir de janeiro de 2007, 33 modificou seu nome para American Association on Intellectual and Developmental Disabilities (AAIDD). Toda “sociedade” constitui suas próprias formas de racionalidade e inteligibilidade dividindo-se; isto é, expulsando de si qualquer excesso de sentido que a subverta. Porém, de outro lado, na medida em que aquela fronteira varia com as flutuações na “guerra de posição”, a identidade dos atores em confronto também, muda. (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 216, grifos dos autores). O sentido de pessoa com deficiência, nesta pesquisa, propõe uma noção multidimensional, funcional e bioecológica de deficiência intelectual, que agrega sentidos (com)partilhados em diferentes espaços e tempos, demonstrando o quanto é dinâmica a identidade dos sujeitos pesquisados, sem lhes negar sua condição fisiológica. A deficiência intelectual pode se consubstanciar a partir de uma condição fisiológica, mas não está presa a uma essência orgânica, ou seja, nem todo sujeito com lesão neurológica apresenta deficiência intelectual, ou, ao contrário, um sujeito sem qualquer comprometimento fisiológico ou psiquiátrico poderá apresentar deficiência intelectual mesmo que a Medicina não identifique uma alteração fisiológica em seu organismo. Há sujeitos, reconhecidos pela medicina, que apresentam retardo mental e, consequentemente, deficiência sem uma causa orgânica conhecida ou explicada. Esses sujeitos são classificados por Outro retardo mental (F78) ou Retardo mental não especificado (F79), demonstrando que, ao contrário de outras características humanas, como a síndrome de Down, por exemplo, onde todos os indivíduos têm um cromossomo a mais e este cromossomo está no par cromossômico 21, para a deficiência intelectual, apesar de a maioria dos casos apresentar uma explicação fisiológica, nem sempre tais respostas são encontradas. Assim, pode-se dizer que a deficiência intelectual é uma característica humana que pode apresentar multiplicidades no transcurso do desenvolvimento intelectual humano, manifestada antes de 18 anos de idade, e que tal característica se manifesta em diversos contextos da atuação humana. Logo, se a criança consegue se desenvolver em todos os contextos, inclusive no escolar, excetuando somente a aquisição do sistema de escrita alfabético e operações matemáticas, cabem releituras desse cenário para apontá-la como pessoa com deficiência intelectual. Isso quer dizer que, se a criança não apresenta deficiência intelectual é 34 porque não aprendeu a ler ou calcular. A deficiência intelectual se manifesta em diversos contextos de atuação da pessoa humana. No que tange à deficiência intelectual, as condições biológicas do sujeito estão dadas, contudo são as categorizações estabelecidas sobre o desenvolvimento humano das pessoas com deficiência intelectual que as classificam, despotencializando-as. Nesse sentido, a importância desta pesquisa está na centralidade dada ao contexto social e à produção da deficiência a partir desse contexto. As pessoas com deficiência intelectual, independente do nível de comprometimento biológico, não são iguais, e como isso é considerado no ambiente escolar? Como os elementos deste contexto se articulam em prol de cada sujeito com deficiência intelectual a fim de que os mesmos se desenvolvam? Estas questões serão investigadas no momento da coleta dos dados. 1.2 DESENVOLVIMENTO HUMANO: SENTIDOS E POSSIBILIDADES Na busca de compreensão dos dilemas vividos pelos sujeitos desta pesquisa, através dos estudos realizados por diferentes pesquisadores, iniciou-se reflexões a partir do significante desenvolvimento humano. Para compreender os sentidos produzidos sobre esse significante no campo da educação, realizou-se uma pesquisa no Banco de Teses e Dissertações da CAPES, nos periódicos indexados ao Scientific Electronic Library Online (SCIELO) e nos trabalhos apresentados no GT 15 da Reunião da ANPED. O período pesquisado se delimitou entre 2011 e 2015. Para a coleta de informações, os descritores desenvolvimento e deficiência foram utilizados a fim de buscar estudos similares e pertinentes à Educação Especial. À luz das leituras, inicialmente dos títulos e depois dos resumos, escolheu- se as temáticas pertinentes para a realização da leitura dos trabalhos, a fim de compreender o significado de desenvolvimento humano apresentado. A pesquisa no banco de dados da CAPES apontou 6 trabalhos. O primeiro trabalho foi uma dissertação intitulada Habilidades em crianças e adolescentes com dificuldades para aprender: cinco estudos de caso, com autoria de Fernanda Santos Souza. Souza (2015) apresenta desenvolvimento humano em conjunto com várias definições, observando as mudanças que tendem a incluir, cada vez mais, outros 35 aspectos do desenvolvimento além do estritamente cognitivo e, também, o contexto sociocultural em que o indivíduo se encontra inserido. A autora observa uma redução da importância da classificação em níveis de QI (leve, moderado, grave e profundo) e uma maior ênfase na modificabilidade da condição biológica. O trabalho seguinte foi uma tese concebida, em 2014, por Sueli de Souza Dias, com o título A quem serve o diagnóstico de deficiência intelectual? Um estudo do desenvolvimento adulto na perspectiva da psicologia dialógica. Dias (2014) enfatiza que desenvolvimento humano e cultura são fenômenos indissociáveis, e que na obra vigotskiana há bases para a compreensão do desenvolvimento humano que se dá, eminentemente, em contexto – cultural, histórico e social – rompendo com teorias que enfatizam ora o individual, ora o social, ora o cultural, como se fossem instâncias isoladas e independentes. A autora defende que o desenvolvimento não deve ser pensado em termosde determinações, mas de constituição recíproca entre processos pessoais e culturais em constante transformação temporal. Desenvolvimento humano, arte-educação: as contribuições do teatro no desenvolvimento e inclusão social de pessoas com deficiência foi uma dissertação produzida, em 2013, sob autoria de Eliana de Cassia Vieira de Carvalho Salgado. A pesquisa apresenta a noção de desenvolvimento humano a partir de Bronfenbrenner, afirmando que o desenvolvimento humano ocorre de uma maneira global biopsicossocial e é necessário considerar a pessoa, o processo, o contexto e o tempo. A pessoa em desenvolvimento integra uma rede social e o mundo onde nasce e cresce são circunstâncias para todas as interfaces dos vários sistemas que nele fazem interconexões. A autora ainda utiliza Vigotski para afirmar que o desenvolvimento humano se constitui a partir de um organismo ativo, cujo pensamento é construído em um ambiente histórico e cultural, no qual o sujeito reconstrói internamente uma atividade externa, como resultado de processos interativos que se dão ao longo do tempo (SALGADO, 2013). A busca encontrou a dissertação A escola de educação especial: uma escolha para crianças autistas e com deficiência intelectual associada de 0 a 5 anos, de autoria de Ricardo Schers de Goes, que apresenta vários tipos de desenvolvimento, afirmando que “o nível de desenvolvimento alcançado pelo indivíduo dependerá não apenas do grau de comprometimento intelectual, mas 36 também de sua história de vida, do apoio familiar e social e das oportunidades vivenciadas” (GOES, 2012, p. 28). No período de 2011, a busca encontrou 2 trabalhos, sendo que o primeiro deles leva o título Virtuosidade em professores de inclusão escolar de crianças com deficiência intelectual, uma tese da autora Gabriela Sousa de Melo Mieto. Há de se informar que, na plataforma pesquisada, o trabalho se encontra como produção de 2011, mas o mesmo foi produzido em 2010. Mieto (2010) define desenvolvimento humano como o processo de construção de um sujeito humano, cujas capacidades de ação, estratégias de conhecimento, afetos, valores e personalidade se constroem através da interação com o ambiente, alterando também o meio social em que se encontra, mediados inter e intrapsicologicamente. O segundo trabalho se trata de uma dissertação intitulada A desinvenção da deficiência mental: um estudo da linguagem durante o uso de um jogo digital, de Cassiano Ricardo Haag. Nesta pesquisa, Haag (2011) revitaliza uma visão de desenvolvimento humano que dispensa a categorização de sujeitos, e conceitua desenvolvimento humano como um processo caótico de auto-organização que ocorre mediante processos de interação e movimentos de criação de sentidos. No banco de dados da SCIELO, realizou-se a pesquisa encontrando o trabalho Sexualidade na deficiência intelectual: uma análise das percepções de mães de adolescentes especiais. Littig et al. (2012) expõem que o desenvolvimento humano é marcado por mudanças físicas, psicológicas e sociais, apontando diversos tipos de desenvolvimento, como o sexual, o afetivo, o psicossocial, o cognitivo, emocional, demonstrando que o desenvolvimento humano é um conjunto de várias facetas do desenvolvimento de uma pessoa. O outro trabalho, nomeado Um estudo sobre as relações de ensino na educação inclusiva: indícios das possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem, define, a partir de Vigotski, o desenvolvimento humano da pessoa com deficiência intelectual como um processo dinâmico que reconhece dificuldades encontradas no processo de desenvolvimento, mas afirma serem essas dificuldades a fonte e o estímulo primário para o surgimento dos processos de compensação. Ao se deparar com a dificuldade, há possibilidade de avançar por uma via indireta e vencê-la. É do processo de interação da criança com o meio que se criam situações que a impulsionam para o caminho da compensação. Assim, o meio social é fator 37 fundamental para o desenvolvimento. Só no processo da vida social coletiva criam- se e desenvolvem-se todas as formas superiores da atividade intelectual próprias do ser humano. É possível que, ao final dos escritos da tese, ainda não tenha respostas convincentes a mim mesma, mas, o que posso dizer é que a imersão nessa problemática através dos trabalhos investigados me arrebata a um universo fluído, movediço e polissêmico, tornando-se um mote a novos olhares sobre as relações entre a escola e a criança com deficiência. As escolas são espaços educativos onde emergem diferentes identidades e se configuram novos cenários de pluralidade. Assim, o contexto escolar se configura como “campo do social e do político para a produtividade e a polissemia, para a ambiguidade e a indeterminação, para a multiplicidade e a disseminação do processo de significação e de produção de sentido” (SILVA, 2012, p. 09). Esse movimento implica em formações discursivas, “é o terreno necessário de constituição de toda prática social” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 189). Essas práticas sociais são constituídas a partir dos sentidos e significados atribuídos pelos sujeitos, compondo um campo discursivo, portanto o desenvolvimento está imbricado nas relações desenvolvidas nesses espaços. Para Laclau e Mouffe (2015), um sistema discursivo só existe como limitação parcial de um excesso de sentidos que o subverte. Este excesso, na medida em que é inerente a toda situação discursiva, é o terreno necessário da constituição de toda prática social. São as modificações experienciadas pelos sujeitos no contexto escolar que constituem o desenvolvimento desses sujeitos. Nesta perspectiva, a noção de desenvolvimento humano não possui um sentido finalístico, igual ou em escala evolutiva; as possibilidades de cada sujeito são infinitas, sempre permeadas por relações que têm características precárias e contingentes. Isto posto, este capítulo propõe um panorama relacional em torno do significante desenvolvimento humano. A discussão sobre o desenvolvimento humano da pessoa com deficiência intelectual é um terreno movediço, já que vários campos de pesquisa se interessam pelo assunto e atribuem sentidos diferentes, e fixam significados numa disputa discursiva em torno do que vem a ser desenvolvimento humano. Entender estas disputas de significação é importante, pois os sentidos permeiam as práticas discursivas, condicionam identidades e fixam significados. 38 Assim, pretende-se ilustrar os sentidos em torno do significante desenvolvimento humano no contexto educacional e as implicações para a pessoa com deficiência intelectual. Para Vigotski (2007), o desenvolvimento humano da criança é um processo dialético e complexo caracterizado pela periodicidade, desigualdade no desenvolvimento de diferentes funções, metamorfose ou transformação qualitativa de uma forma em outra, imbricando fatores internos e externos, juntamente com processos adaptativos que superam os impedimentos que a criança encontra. O desenvolvimento é formado por pontos de viragem, aquelas mudanças convulsivas e revolucionárias que são tão comuns e frequentes no desenvolvimento da criança. A capacidade de raciocínio, a construção das ideias sobre o que a rodeia, as interpretações das causas físicas, o domínio da lógica são processos autônomos que simplesmente acontecem, privilegiando quaisquer espaços da vida da criança, inclusive a escola. Há de se dizer que o desenvolvimento humano perpassa por construções para além da aprendizagem de conteúdos universalizados e legitimados por determinados grupos que ignoram as diversidades identitárias no contexto escolar. “Com base nesse debate, são postos em lados opostos os sujeitos que dominam os saberes considerados legítimos e os sujeitos que dominam os saberes deslegitimados” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 91). De igual maneira, relega-se aqueles