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2010 Deficiência intelectual: funDamentos e metoDologias Prof.ª Fernanda Ambrósio Testa Copyright © UNIASSELVI 2010 Elaboração: Prof.ª Fernanda Ambrósio Testa Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 362.4 T342d Testa, Fernanda Ambrósio. Deficiência Intelectual: Fundamentos e Metodologias/ Fernanda Ambrósio Testa. Centro Universitário Leonardo da Vinci – Indaial: Grupo UNIASSELVI, 2010.x ; 152. p.: il Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7830-285-6 1. Deficiência Intelectual 2. Educação Especial I. Centro Universitário Leonardo da Vinci II. Núcleo de Ensino a Distância III. Título III apresentação Prezado(a) acadêmico(a)! Estamos dando início à disciplina de Deficiência Intelectual: Fundamentos e Metodologias. De uma maneira geral, esta disciplina tem como norte a educação inclusiva e como fundamento a teoria histórico-cultural. Na educação inclusiva todos têm o direito a participar de um espaço escolar onde se fazem presentes a diversidade e a diferença. A educação inclusiva ganha força com a atual Política Nacional de Educação Especial numa Perspectiva Inclusiva. Um grande peso, nesta disciplina, também é a teoria histórico-cultural. Com alguns desses fundamentos, acadêmico(a), nossa disciplina não tem a intenção de se prender a dados classificatórios da deficiência intelectual. Você encontrará, sim, fundamentos que possibilitam ter outro olhar para a peculiaridade da pessoa e dos estudantes com deficiência intelectual. Esse olhar é para que possamos ver as possibilidades da pessoa com deficiência intelectual e tentar propor caminhos para seu desenvolvimento. Assim, a Primeira Unidade traz alguns fundamentos para se compreender a pessoa com deficiência intelectual. A Segunda Unidade apresenta considerações a respeito da ação docente para com a pessoa com deficiência intelectual no Brasil, tanto no âmbito histórico quanto atual. Também traz fundamentos em relação à avaliação no espaço escolar e um olhar sobre as características individuais dos alunos. Na Unidade três temos algumas sugestões de recursos para o desenvolvilmento da ação docente, tanto em nível de planejamento quanto de recursos, podendo ser utilizados por qualquer estudante. Nossa intenção não é trazer receitas prontas, mas que os estudos desse Caderno possam mudar seu olhar em relação à pessoa com deficiência intelectual. Existe uma estória que foi construída em torno da dor da diferença: a criança que se sente não bem igual às outras, por alguma marca no seu corpo, na maneira de ser... Esta, eu bem sei, é estória para ser contada também para os pais. Eles também sentem a dor dentro dos olhos. Alguns dos diálogos foram tirados da vida real. Ela lida com algo que dói muito: não é a diferença, em si mesma, mas o ar de espanto que a criança percebe nos olhos dos outros [...] IV O medo dos olhos dos outros é sentimento universal. Todos gostaríamos de olhos mansos... A diferença não é resolvida de forma triunfante, como na estória do Patinho Feio. O que muda não é a diferença. São os olhos... Rubem Alves, 1987 Prof.ª Fernanda Ambrósio Testa V Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA VI VII UNIDADE 1 – A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL ............................................... 1 TÓPICO 1 – ENTENDIMENTOS ACERCA DA DEFICIÊNCIA INTELECTUAL ................... 3 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 3 2 IDADE ANTIGA E MÉDIA .............................................................................................................. 3 2.1 IDADE MODERNA ....................................................................................................................... 6 2.2 SÉCULOS XX E XXI ....................................................................................................................... 7 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................. 14 RESUMO DO TÓPICO 1...................................................................................................................... 20 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................... 21 TÓPICO 2 – TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL ............................................................................ 23 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 23 2 FUNÇÕES MENTAIS......................................................................................................................... 24 2.1 MEDIAÇÃO .................................................................................................................................... 25 2.2 DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM ............................................................................ 27 RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................... 30 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................... 31 TÓPICO 3 – INTRODUÇÃO À DEFECTOLOGIA ......................................................................... 33 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 33 2 DEFECTOLOGIA ............................................................................................................................... 33 2.1 TEORIA DA COMPENSAÇÃO ................................................................................................... 34 2.2 DEFICIÊNCIA INTELECTUAL ................................................................................................... 35 RESUMO DO TÓPICO 3...................................................................................................................... 39 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................40 TÓPICO 4 – FATORES DE RISCO ..................................................................................................... 41 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 41 2 OCORRÊNCIAS PRÉ-NATAIS ........................................................................................................ 42 2.1 OCORRÊNCIAS PERINATAIS .................................................................................................... 42 2.2 OCORRÊNCIAS PÓS-NATAIS .................................................................................................... 43 RESUMO DO TÓPICO 4...................................................................................................................... 45 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................... 46 UNIDADE 2 – A EDUCAÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL .............. 47 TÓPICO 1 – EDUCAÇÃO E DEFICIÊNCIA INTELECTUAL NO BRASIL ............................... 49 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 49 2 AS PRIMEIRAS INICIATIVAS ........................................................................................................ 49 2.1 INTERFERÊNCIA MÉDICA ........................................................................................................ 51 2.1.1 A experiência de Jean Itard ................................................................................................. 52 2.2 A INTERFERÊNCIA PSICOPEDAGÓGICA ............................................................................. 53 3 DESPERTA O INTERESSE PELA EDUCAÇÃO ........................................................................... 54 sumário VIII 4 A BUSCA PELA EQUIDADE ........................................................................................................... 55 RESUMO DO TÓPICO 1...................................................................................................................... 59 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................... 61 TÓPICO 2 – A PROPOSTA ATUAL DA EDUCAÇÃO ESPECIAL ............................................. 63 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 63 2 A POLÍTICA EDUCACIONAL ATUAL ......................................................................................... 63 3 O ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO ......................................................... 64 3.1 A INTERVENÇÃO PRECOCE ..................................................................................................... 66 3.1.1 Sugestões de atividades a serem desenvolvidas .............................................................. 67 3.1.2 Sugestões de brinquedos ..................................................................................................... 69 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................. 71 RESUMO DO TÓPICO 2...................................................................................................................... 76 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................... 77 TÓPICO 3 – DESAFIOS E PERSPECTIVAS DA AÇÃO DOCENTE .......................................... 79 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 79 2 FORMAÇÃO DOCENTE .................................................................................................................. 79 3 DIFERENÇA ........................................................................................................................................ 81 3.1 DIFERENÇAS INDIVIDUAIS E APRENDIZAGEM ................................................................ 82 3.2 DIVERSIDADE E ESCOLARIDADE........................................................................................... 85 RESUMO DO TÓPICO 3...................................................................................................................... 88 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................... 89 TÓPICO 4 – AVALIAÇÃO DAS NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS ................ 91 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 91 2 AVALIAÇÃO ........................................................................................................................................ 91 3 AVALIAÇÃO DAS NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS .................................... 92 3.1 O CONTEXTO EDUCACIONAL ESCOLAR ............................................................................ 94 3.1.1 A instituição educacional ..................................................................................................... 94 3.1.2 Ação pedagógica ................................................................................................................... 95 3.2 O ALUNO ....................................................................................................................................... 98 3.2.1 O nível de desenvolvimento ............................................................................................... 98 3.2.2 As condições pessoais ..........................................................................................................102 3.3 A FAMÍLIA .....................................................................................................................................102 RESUMO DO TÓPICO 4......................................................................................................................106 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................107 UNIDADE 3 – PRÁTICA EDUCACIONAL INCLUSIVA .............................................................109 TÓPICO 1 – PLANEJAMENTO ESCOLAR INCLUSIVO .............................................................111 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................111 2 PLANEJAMENTO ESCOLAR ..........................................................................................................111 2.1 O PLANO DE AULA .....................................................................................................................112 2.1.1 Elaboração de um plano de aula ...............................................................................................112 3 PLANEJAMENTO E DIVERSIDADE.............................................................................................115 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................117 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................118 TÓPICO 2 – ADAPTAÇÃO CURRICULAR .....................................................................................119 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................119 2 ADAPTAÇÃO CURRICULAR .........................................................................................................119 IX 2.1 ADAPTAÇÕES CURRICULARESDE GRANDE PORTE .......................................................120 2.2 ADAPTAÇÕES CURRICULARES DE PEQUENO PORTE .....................................................120 2.2.1 A formulação das adaptações curriculares .......................................................................120 2.2.2 A implementação das adaptações curriculares ................................................................121 2.2.3 A continuidade e avaliação das adaptações curriculares................................................121 2.3 ADAPTAÇÕES NA SALA DE AULA .........................................................................................121 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................124 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................126 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................127 TÓPICO 3 – RECURSOS PEDAGÓGICOS .....................................................................................129 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................129 2 A LINGUAGEM VISUAL .................................................................................................................129 3 JOGOS PEDAGÓGICOS ..................................................................................................................131 4 MÉTODO NEUROPEDAGÓGICO ................................................................................................133 4.1 O CÉREBRO ....................................................................................................................................134 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................138 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................139 TÓPICO 4 – INFORMÁTICA E EDUCAÇÃO .................................................................................141 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................141 2 COMPUTADOR E APRENDIZAGEM ...........................................................................................141 2.1 O PROCESSO DE ENSINO CONSTRUCIONISTA ..................................................................142 2.2 O SOFTWARE HAGÁQUÊ ...........................................................................................................143 2.2.1 Informática e cognição .........................................................................................................145 RESUMO DO TÓPICO 4......................................................................................................................146 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................147 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................149 X 1 UNIDADE 1 A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir desta Unidade, você será capaz de: • conhecer a deficiência intelectual ao longo dos tempos; • compreender a teoria histórico-cultural e os estudos da defectologia para a ação docente com estudantes com deficiência intelectual; • conhecer os fatores de risco que podem incidir no desenvolvimento da deficiência intelectual. Esta Primeira Unidade está dividida em quatro tópicos, sendo que ao final de cada um deles você encontrará atividades que contribuirão para sua reflexão e análise dos conteúdos estudados. TÓPICO 1 – ENTENDIMENTOS ACERCA DA DEFICIÊNCIA INTELECTUAL TÓPICO 2 – TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL TÓPICO 3 – INTRODUÇÃO À DEFECTOLOGIA TÓPICO 4 – FATORES DE RISCO 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 ENTENDIMENTOS ACERCA DA DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 1 INTRODUÇÃO Iniciamos nossos estudos com o objetivo de conhecer a deficiência intelectual ao longo dos tempos, e perceber que essa trajetória é complexa. Embora se tenha progredido em relação ao seu entendimento, ainda existem discussões a esse respeito. A necessidade de entender a deficiência intelectual surge, justamente, na tentativa de desvelar as ideias fatalistas e desumanas, que não são mais aceitáveis e que contribuem para que a atuação do profissional desenhe, na escola, uma trajetória inclusiva. Mesmo que discutamos a deficiência intelectual, nesta disciplina é importante que tenhamos como objeto maior de questão o ser humano, que não pode ser categorizado, mas sim considerado em suas diferenças. Assim, através do estudo dos tópicos que seguem, buscaremos o entendimento da deficiência intelectual. UNI Olá, acadêmico(a)! A partir desse momento vamos, juntos, conhecer os diferentes entendimentos acerca da deficiência intelectual ao longo da história. Bom trabalho! 2 IDADE ANTIGA E MÉDIA A deficiência, na Idade Antiga, aparece como uma condição sub- humana e induz à eliminação ou ao abandono. Em Esparta, essas práticas eram justificadas pela predominante dedicação à guerra, pela valorização da ginástica, dança, estética, perfeição do corpo, pela beleza e pela força. A prática do sacrifício justificava-se àqueles que eram ausentes das suas plenas faculdades físicas. UNIDADE 1 | A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 4 FIGURA 1 – GUERREIROS ESPARTANOS FONTE: Disponível em: <http://www.unoeste.br/fipp/infoeste/20info/_ images/300.jpg>. Acesso em: 24 mar. 2010. Se na Idade Antiga as pessoas com deficiência eram consideradas sub- humanas e sem direito à vida, na Idade Média alguns ideais, como o cristão, por exemplo, deram o direito à vida, mas em outros momentos, como o da Inquisição, a deficiência estava relacionada ao demônio e, sendo assim, foram também perseguidas. (PESSOTTI, 1984). NOTA Na Idade Antiga apareceu a relação CORPO/MENTE, e na Idade Média apareceu a relação CORPO/ALMA. E ainda, se em Esparta na Idade Antiga o sujeito era eliminado por não se enquadrar num estereótipo, na Idade Média esse não enquadramento se relacionava a um padrão considerado normal. Entretanto, com esse não enquadramento, o cidadão ganha o direito à vida, passa a ter alma e a ser filho de Deus. Isso trazia como consequência o estigma pela diferença, pois para o moralismo cristão/católico a diferença passava a ser um sinônimo de pecado. Havia também, na época, o entendimento de ligação com o demônio, ou de serem possuídos pelo próprio, sendo perseguidos e condenados às fogueiras da Inquisição. TÓPICO 1 | ENTENDIMENTOS ACERCA DA DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 5 UNI Ei, psiu! Estamos somente no início de nossos estudos e eu já estou aqui de novo... Você sabia que toda marca ou estigma traduz um conjunto de valores e de atitudes dependentes do envolvimento cultural em que o indivíduo se encontra? Pense nos sujeitos com deficiência intelectual que você conhece. Você percebe algum estigma em relação a eles? Como ainda são fundamentados os estigmas em relação a essas pessoas? Ao fim deste caderno tente contrapor os estigmas que você conhece com as discussões aqui apresentadas. Contudo, a superstição envolveu o conceito de deficiência intelectual, na Idade Média, em torno da divindade ou em relação com o demônio, de certa forma. Disso resultou uma ideia fatalista dos seres humanos com deficiência intelectual e, como consequência, a sua exclusão da experiência e dos eventos ambientais, sociais. Aqui, o inatismo das ideias desses sujeitos e das suas funções mentais superiores esteve obscurecido por superstições relacionadas à divindade e ao demônio. (PESSOTTI, 1984). IMPORTANTE Utilizamos o termo deficiência intelectual, pois há uma tendência mundial e brasileira por este termo. Entretanto, temos que considerar que ao longo da história a nomenclatura deficiência intelectual teve várias definições de conceituação, como, por exemplo: oligofrênico, cretino, tonto, imbecil, mongoloide, criança excepcional, deficiente mental em nível leve, moderado, severo ou profundo. UNI Tenho uma leve impressão de que esta terminologia despertou sua curiosidade. Neste momento, é interessante você conhecer mais sobre a discussão acessando o site: <http://www.todosnos.unicamp.br:8080/lab/links-uteis/acessibilidade-e-inclusao/deficiencia- mental-ou-deficiencia-intelectual/>. Acesso em: 14 abr. 2010. UNIDADE 1 | A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 6 2.1 IDADE MODERNA Na Idade Moderna, o entendimento da deficiência intelectual aparece sob a autoridade da medicina, que não mais a relaciona a superstições da divindade ou a possessões demoníacas. A forte doutrina médica ganhou espaço por discutir tal conceito. Nesse período da História, outro grupo, que se preocupou com a educabilidade das pessoas com deficiência intelectual, surgiu paralelamente e ganhou destaque em razão de ter, como base, as ideias de John Locke, as quais concebiam que a experiência é a fonte das ideias e, assim, as operações da mente resultariam da experiência sensorial. A abordagem de John Locke (1632-1704) foi contra uma ideia anterior que concebia o sujeito com capacidades inatas, logo essa nova concepção repercutiu na educação e abriu a didática da Educação Especial. NOTA Preste atenção!!! Podemos perceber que, neste tempo, começa-se a deixar de lado a ideia da divindade, de possessões demoníacas, e surge a ideia de explicação médica, que de imediato não foi aceita pelas massas devido aos ideais da hierarquia religiosa e também aos donos do poder político-econômico. NOTA Nas contribuições empíricas de Locke, o conhecimento provém da experiência. Isso significa valorizar o objeto do conhecimento e considerar o sujeito como uma tábula rasa, na qual as impressões do mundo são formadas pelos órgãos dos sentidos. Esse entendimento epistemológico forma a concepção de aprendizagem associacionista, na qual a aprendizagem é tida como mudança de comportamento, resultado do treino ou da experiência. O processo de ensino e aprendizagem centraliza-se no professor. É ele quem organiza as informações do meio externo que deverão ser internalizadas pelos estudantes que são apenas receptores de informações. No entanto, mesmo com o surgimento de um novo entendimento sobre o conhecimento que veio a refletir na educabilidade do sujeito com deficiência intelectual, o domínio da medicina prevaleceu. TÓPICO 1 | ENTENDIMENTOS ACERCA DA DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 7 Na abordagem médica, a deficiência intelectual deixou de ser de natureza sobrenatural, teológica e ética para ser assunto médico. Podemos citar a obra de Thomas Willis (1621-1675), Cerebri anatome, editada em Londres, em 1664. Esta foi uma obra típica da neurofisiologia seiscentista aliada a consistentes descrições anatômicas e morfológicas e conceitos fisiológicos hipotéticos, mas, com o advento da eletricidade, foi abandonada como recurso de pesquisa e como princípio explicativo. (PESSOTTI, 1984). A supremacia médica se apresentou até o século XX, começando a ser abalada neste século pela interferência dos progressos da Psicologia, Biologia, da Genética, e de iniciativas pedagógicas ousadas a desafiar e revolucionar as teorias da deficiência, nascidas no ambiente médico, marcadas por uma concepção fatalista. IMPORTANT E No século XIX, teremos a contribuição de um importante médico para educação da pessoa com deficiência intelectual, Jean Itard, o qual desenvolveu um trabalho com Victor de Averion, o chamado menino selvagem. Jean Itard tinha como base a teoria empirista do conhecimento. ESTUDOS FU TUROS Estudaremos sobre Jean Itard na unidade seguinte! 2.2 SÉCULOS XX E XXI O entendimento da deficiência intelectual chegou ao século XX com o domínio exclusivo da medicina. No entanto, segundo Pessotti (1984), já se considerava de domínio público o conhecimento dos primeiros produtos de uma psicologia científica, como, por exemplo, os estudos sobre percepção e memória, que proliferaram, e o exame dos limites das capacidades mentais que atraía a atenção de numerosos pesquisadores. A psicologia científica interferiu no conceito da deficiência intelectual, pois os estudos tinham como ponto de partida o padrão da normalidade para a busca dos desvios padrões. Percebemos uma ação contrária à da medicina, na qual o estudo do deficiente partia do patológico, já que o normal não era entendido como problema. UNIDADE 1 | A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 8 Nessa época, Pessotti (1984) também destaca o trabalho de Alfred Binet, um cientista do comportamento que, no contexto histórico-científico da época, apresentou um diagnóstico psicológico da deficiência intelectual. Com o olhar da psicologia para a deficiência intelectual, Binet destacou que as considerações etiológicas, ou seja, as causas consideradas pela abordagem médica são secundárias, parecem incertas e só valeriam para uma minoria de indivíduos deficientes. Binet teve uma decisiva influência teórica na área do diagnóstico da deficiência intelectual. A proposta, de Binet, do diagnóstico na área da deficiência intelectual entendia a necessidade de negar o diagnóstico médico ou aceitá-lo somente para as formas mais graves do distúrbio. Assim, embora tenha apresentado essa proposta de diagnóstico, ainda considerava que o diagnóstico médico poderia ser um método ideal para avaliar deficiências dos casos mais graves. Nessa discussão sobre a deficiência intelectual, Binet apresentou uma proposta de dualismo metodológico, os sintomas anatômicos ao lado da avaliação psicológica. A avaliação psicológica considerava a inteligência com variação em graus, ficando com Binet a definição de inteligência em termos que permitiram comparar, efetivamente, o desenvolvimento normal e o atrasado. Logo, se, para as classificações médicas, as deficiências intelectuais eram sintomas relativamente seguros de lesões funcionais ou estruturais do organismo, e aí se destacando o sistema nervoso central, para Binet, o comprometimento intelectual de maior ou menor grau era o que estava associado com a atividade intelectual. A atividade intelectual transformaria a inteligência num sintoma seguro em relação ao atraso ou à parada do desenvolvimento, para Binet. Nesse sentido, a deficiência intelectual é sinônimo de atraso maior ou menor do desenvolvimento intelectual, qualquer que seja sua causa, orgânica ou não. Para o diagnóstico da deficiência intelectual, a proposta de Binet primeiramente quantifica a inteligência para depois estabelecer níveis de deficiência. Binet definiu então a inteligência em níveis, o que permitiu elaborar uma comparação no desenvolvimento de sujeitos normais com os atrasados. Esses níveis são chamados de quociente de inteligência. Podemos perceber dessa discussão que Pessotti (1984) trouxe, com Binet, que a deficiência intelectual passou da medicina para discussão teórica da psicologia, que iniciou com a identificação de quanto vale a inteligência. Mas o déficit desse teórico, a preocupação em como se processa o desenvolvimento do sujeito com deficiência intelectual, ainda não apareceu. A compreensão de Binet teve como reflexo, na prática, os encaminhamentos para a escola especial. Enquanto Binet se preocupou com uma avaliação diagnóstica que apresentava uma constatação deficitária, este mesmo século foi beneficiado com os estudos de Vygotsky na área da defectologia. TÓPICO 1 | ENTENDIMENTOS ACERCA DA DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 9 ESTUDOS FU TUROS Estudaremos, no Tópico 3, sobre o princípio da compensação na defectologia. Vygotsky (1997), na defectologia, diz que a ideia da compensação pode ser entendida como a superaçãodas necessidades do indivíduo diante da percepção de consciência da deficiência que implica uma força motriz para o desenvolvimento psíquico, consistindo na sua valorização social. No caso do deficiente intelectual, a contribuição de Vygotsky sobre a compensação fundamenta o trabalho educacional com os indivíduos com esta deficiência, pois, preocupados em conhecer como estes indivíduos desenvolvem seus processos psíquicos, podemos entender a peça chave que representa o processo de interação da criança com o meio, para desenvolver e impulsionar o processo de compensação. Já que o processo de compensação na pessoa com deficiência intelectual, muitas vezes, não é impulsionado pela não consciência de sua deficiência, tornando quase que impossível a reação contra a deficiência, há necessidade de valorizar, reconhecer e aceitar socialmente as pessoas com deficiência intelectual. Isto representa também a força motriz do desenvolvimento. Essas atitudes são contrárias a posturas preconceituosas, segregativas que criam barreiras à escolarização, já que o que vai mover o desenvolvimento dessa pessoa será o ambiente social e as relações por meio de instrumentos simbólicos do contexto social. Além de convivermos com a contribuição dos valiosos estudos de Vygotsky, referentes às décadas de 20 e 30 do século XX, na área da defectologia, convivemos com outro discurso sobre a deficiência intelectual: o da Associação Americana de Deficiência Intelectual e de Desenvolvimento – AAIDD, significado em inglês. Nesta área Vygotsky (1997) vem a contribuir para com os sujeitos com deficiência, a partir de seus estudos no Instituto de Estudo de Defectologia. A tese central da defectologia da sua época foi a de que todo defeito, termo utilizado na época para a deficiência, criava estímulos para elaborar uma compensação, ou seja, é uma reação do organismo e da personalidade da criança ao defeito. No caso da deficiência intelectual apresentou discussões importantes. Podemos, a partir da ideia de Vygotsky sobre a defectologia, ter um forte fundamento para desenvolver uma educação inclusiva, ao possibilitar uma compreensão da construção social da pessoa com deficiência. UNIDADE 1 | A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 10 DICAS Você pode conhecer mais sobre a mudança de nome desta associação mundialmente conhecida em relação à deficiência intelectual, acessando o site <http://www.planetaeducacao. com.br/portal/impressao.asp?artigo=1321>. Acesso em: 14 abr. 2010, que apresenta uma discussão de Romeu Kazumi Sassaki. Neste artigo, você poderá também conhecer que o autor destaca que a palavra deficiência, no Brasil, deve ser formalmente utilizada no singular. IMPORTANT E Nesta unidade, o entendimento sobre deficiência intelectual da AAIDD é referente à sua publicação de 2002, com edição brasileira em 2006 e, por isso, ainda utiliza o termo retardo mental, como será apresentado a seguir. O entendimento da deficiência intelectual de 2002, da AAIDD, é “Retardo mental é uma incapacidade caracterizada por importantes limitações, tanto no funcionamento intelectual quanto no comportamento adaptativo; está expresso nas habilidades adaptativas conceituais, sociais e práticas. Essa incapacidade tem início antes dos 18 anos.” (AAMR, 2006, p. 20). NOTA Aqui ainda se utiliza o termo retardo mental. No entanto, a terminologia atual já é deficiência intelectual e isso pode ser consultado no site <http://www.aamr.org/ content_100.cfm?navID=21>. Acesso em: 14 abr. 2010. O conceito apresentado referente a 2002 é muito similar ao utilizado atualmente. A utilização da definição do Sistema de Classificação da Associação Americana de 2002, abrange cinco recomendações: A Associação Americana de Deficiência Intelectual e de Desenvolvimento, nome atual, pois há pouco tempo era conhecida por Associação Americana de Retardo Mental, iniciou seu trabalho na área da deficiência intelectual em 1876. TÓPICO 1 | ENTENDIMENTOS ACERCA DA DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 11 1 As limitações no funcionamento atual devem ser consideradas dentro do contexto dos ambientes da comunidade característicos das pessoas da mesma faixa etária e da mesma cultura do indivíduo. 2 A Avaliação valida [torna válido], considera a diversidade cultural e linguística e também as diferenças na comunicação, nos fatores sensoriais, motores e comportamentais. 3 Em cada indivíduo, as limitações frequentemente coexistem com as potencialidades. 4 Um propósito importante ao descrever as limitações é o de desenvolver um perfil dos apoios necessários. 5 Com os apoios personalizados apropriados durante um determinado período de tempo, o funcionamento cotidiano da pessoa com retardo mental em geral melhora. (AAMR, 2006). Além dessas recomendações referentes à definição de deficiência intelectual, a Associação propõe cinco dimensões para a compreensão da deficiência intelectual. IMPORTANT E Perceba como a medida quantitativa dos testes psicométricos permanecem na definição da Associação Americana de Deficiência Intelectual e de Desenvolvimento. QUADRO 1 – DIMENSÕES PARA COMPREENSÃO DA DEFICIÊNCIA INTELECTUAL DIMENSÃO I: HABILIDADES INTELECTUAIS Inclui o raciocínio, planejamento de problemas, pensar abstratamente, compreender ideias complexas, aprender rapidamente e aprender pela experiência. A inteligência é entendida como uma competência mental geral. As habilidades intelectuais são objetivamente avaliadas por meio dos testes psicométricos de inteligência. A dimensão intelectual passa a ser, no Sistema de 2002, um dos indicadores de déficit intelectual, considerado em relação às outras dimensões. Assim, a mensuração da inteligência continua ocupando um lugar de destaque, mas não é suficiente para o diagnóstico da deficiência intelectual. UNIDADE 1 | A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 12 DIMENSÃO II: COMPORTAMENTO ADAPTATIVO Diz respeito ao conjunto de habilidades conceituais e práticas aprendidas pelas pessoas para funcionarem no seu cotidiano. Este comportamento estaria envolvido por três fatores: habilidades conceituais (linguagem receptiva e expressiva, leitura e escrita, conceito de dinheiro e autodirecionamento); habilidades sociais (interpessoal, responsabilidade, autoestima, ingenuidade, seguir regras, obedecer a leis); e habilidades de vida prática (atividades da vida diária, atividades instrumentais da vida diária, habilidades ocupacionais). Uma outra análise que podemos fazer em relação a essas dimensões é apresentada por Carneiro (2007) em relação à dimensão do comportamento adaptativo. A autora destaca que a avaliação deste tipo de comportamento deve ser realizada mediante o uso de medidas padronizadas, as quais não existem para o Brasil. Logo, também afirma que fica frágil essa avaliação quantitativa de dimensões que são formadas por elementos subjetivos, interativos e contextuais, em que não consegue se sustentar se não houver dados mensuráveis e quantificáveis para avaliar e diagnosticar. DIMENSÃO III: PARTICIPAÇÃO, INTERAÇÕES E PAPÉIS SOCIAIS Aqui é apresentada a importância da participação na vida comunitária por meio da observação direta do envolvimento nas atividades cotidianas proporcionadas ao indivíduo. DIMENSÃO IV: SAÚDE É destacada pelo Sistema de 2002, tanto na questão física quanto mental, influencia no funcionamento humano nas outras dimensões apresentadas, por isso considera na avaliação diagnóstica da deficiência intelectual os fatores etiológicos (causa) e de saúde física e mental. DIMENSÃO V: CONTEXTO (AMBIENTE E CULTURA) A dimensão do contexto está relacionada às condições de como vivem as pessoas em seu cotidiano. Esta dimensão considera, para a avaliação, as oportunidades oferecidas aos sujeitos (referentes à educação, trabalho, lazer) e também os estímulos ao bem-estar (saúde, segurança pessoal, atividades de lazer e recreação). Apresentamos alguns entendimentos acerca da deficiência intelectual, o que representa um avanço diantede compreensões do passado. Quanto ao Ministério da Educação – BRASIL (2008) –, ele inicialmente apresenta que a pessoa com deficiência seria aquela com impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental ou sensorial que, em interação com diversas barreiras, podem ter restringida sua participação plena e efetiva na escola e na sociedade. E aí podemos ter uma noção maior desses impedimentos de natureza mental quando GOMES (2007) traz as seguintes discussões sobre a deficiência intelectual: • dificuldade de construir conhecimento e de demonstrar a sua capacidade cognitiva como os demais alunos; • apresentam prejuízos no funcionamento, na estruturação e na construção do conhecimento. Diante de alguns entendimentos sobre a deficiência intelectual, temos que considerar que não se admite mais uma compreensão que envolva a incapacidade. Também conhecemos que a quantificação da incapacidade é contrária a uma proposta de perceber as particularidades de desenvolvimento da pessoa com deficiência intelectual, e a partir daí lançar os princípios compensatórios. Concordamos com a ideia que traz GOMES (2007) de que a deficiência intelectual não está esgotada na sua condição orgânica e/ou intelectual e muito menos a definição de um único saber. Temos que considerar que ela é questão e objeto de pesquisa de inúmeras áreas do conhecimento. FONTE: Adaptado de: (AAMR, 2006) TÓPICO 1 | ENTENDIMENTOS ACERCA DA DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 13 DICAS Para que você se aprofunde nessa discussão, sugerimos o livro do MEC: Atendimento Educacional Especializado – Deficiência Mental, disponível no site: <http:// portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/aee_dm.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2010. UNI Olhe só! Achei mais uma novidade na rede! Você sabia que o DEFNET é um banco de dados Para e Sobre Pessoas com Deficiências? O site Defnet é um espaço dedicado a todo tipo de informações sobre deficiências e tem como fundamento o Projeto Geo-Orgos, que visa à criação e implantação de um banco de dados que pode ser utilizado por pais, parentes, amigos, profissionais, prestadores de serviços e pelos próprios deficientes na internet. É neste site que você encontrará o texto sobre a DECLARAÇÃO DE MONTREAL SOBRE A DEFICIÊNCIA INTELECTUAL. UNIDADE 1 | A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 14 DECLARAÇÃO DE MONTREAL SOBRE A DEFICIÊNCIA INTELECTUAL Montreal – Canadá OPS/OMS – 06 DE OUTUBRO DE 2004 TRADUÇÃO: Dr. Jorge Márcio Pereira de Andrade, novembro de 2004 Afirmando que as pessoas com deficiências intelectuais, assim como os demais seres humanos, têm direitos básicos e liberdades fundamentais que estão consagradas por diversas convenções, declarações e normas internacionais; Exortando todos os Estados Membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) que tornem efetivas as disposições determinadas na Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiências; Aspirando reconhecer as desvantagens e barreiras históricas que as pessoas com deficiências intelectuais têm enfrentado e, conscientes da necessidade de diminuir o impacto negativo da pobreza nas condições de vida das pessoas com deficiências intelectuais; Conscientes de que as pessoas com deficiências intelectuais são frequentemente excluídas das tomadas de decisão sobre seus Direitos Humanos, Saúde e Bem-Estar, e que as leis e legislações que determinam tutores e representações legais substitutas foram, historicamente, utilizadas para negar a estes cidadãos os seus direitos de tomar suas próprias decisões; Preocupados porque a liberdade das pessoas com deficiências intelectuais para tomada de suas próprias decisões é frequentemente ignorada, negada e sujeita a abusos; Apoiando o mandato que tem o Comitê ad hoc das Nações Unidas (ONU) em relação à formulação de uma Convenção Internacional Compreensiva e Integral para Promover e Proteger os Direitos e a Dignidade das Pessoas com Deficiências; Reafirmando a importância necessária de um enfoque de Direitos Humanos nas áreas de Saúde, Bem-Estar e Deficiências; Reconhecendo as necessidades e as aspirações das pessoas com deficiências intelectuais de serem totalmente incluídos e valorizados como cidadãos e cidadãs tal como estabelecido pela Declaração de Manágua (1993); Valorizando a significativa importância da cooperação internacional na função de gerar melhores condições para o exercício e o pleno gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais das pessoas com deficiências intelectuais; LEITURA COMPLEMENTAR TÓPICO 1 | ENTENDIMENTOS ACERCA DA DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 15 Nós Pessoas com deficiências intelectuais e outras deficiências, familiares, representantes de pessoas com deficiências intelectuais, especialistas do campo das deficiências intelectuais, trabalhadores da saúde e outros especialistas da área das deficiências, representantes dos Estados, provedores e gerentes de serviços, ativistas de direitos, legisladores e advogados, reunidos na Conferência Internacional sobre Deficiência Intelectual, da OPS/OMS (Organização Pan- Americana de Saúde e Organização Mundial de Saúde), entre os dias 5 e 6 de outubro de 2004, em Montreal, Canadá, JUNTOS DECLARAMOS QUE: 1 As Pessoas com Deficiência Intelectual, assim como outros seres humanos, nascem livres e iguais em dignidade e direitos. 2 A deficiência intelectual, assim como outras características humanas, constitui parte integral da experiência e da diversidade humana. A deficiência intelectual é entendida de maneira diferenciada pelas diversas culturas, o que faz com que a comunidade internacional deva reconhecer seus valores universais de dignidade, autodeterminação, igualdade e justiça para todos. 3 Os Estados têm a obrigação de proteger, respeitar e garantir que todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais e as liberdades das pessoas com deficiência intelectual sejam exercidos de acordo com as leis nacionais, convenções, declarações e normas internacionais de Direitos Humanos. Os Estados têm a obrigação de proteger as pessoas com deficiências intelectuais contra experimentações científicas ou médicas, sem um consentimento informado, ou qualquer outra forma de violência, abuso, discriminação, segregação, estigmatização, exploração, maus tratos ou castigo cruel, desumano ou degradante (como as torturas). 4 Os Direitos Humanos são indivisíveis, universais, interdependentes e inter- relacionados. Consequentemente, o direito ao nível máximo possível de saúde e bem-estar está interconectado com outros direitos fundamentais, como os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais ou outras liberdades fundamentais. Para as pessoas com deficiências intelectuais, assim como para as outras pessoas, o exercício do direito à saúde requer a inclusão social, uma vida com qualidade, acesso à educação inclusiva, acesso a um trabalho remunerado e equiparado, e acesso aos serviços integrados da comunidade. 5 A. Todas as pessoas com deficiências intelectuais são cidadãos plenos, iguais perante a lei e como tais devem exercer seus direitos com base no respeito nas diferenças e nas suas escolhas e decisões individuais. B. O direito à igualdade para as pessoas com deficiência intelectual não se limita à equiparação de oportunidades, mas requer também, se as próprias pessoas com deficiência intelectual o exigem, medidas apropriadas, ações afirmativas, adaptações ou UNIDADE 1 | A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 16 apoios. Os Estados devem garantir a presença, a disponibilidade, o acesso e utilização de serviços adequados que sejam baseados nas necessidades, assim como no consentimento informado e livre destes cidadãos e cidadãs. 6 A. As pessoas com deficiências intelectuais têm os mesmos direitos que outras pessoas de tomar decisões sobre suas próprias vidas. Mesmo que algumas pessoas possam ter dificuldades de fazer escolhas, formular decisões e comunicar suas preferências, elas podemtomar decisões acertadas para melhorar seu desenvolvimento pessoal, seus relacionamentos e sua participação nas suas comunidades. Em acordo consistente com o dever de adequar o que está estabelecido no parágrafo 5 B, as pessoas com deficiências intelectuais devem ser apoiadas para que tomem suas decisões, as comuniquem e estas sejam respeitadas. Consequentemente, quando os indivíduos têm dificuldades para tomar decisões independentes, as políticas públicas e as leis devem promover e reconhecer as decisões tomadas pelas pessoas com deficiências intelectuais. Os Estados devem providenciar os serviços e os apoios necessários para facilitar que as pessoas com deficiências intelectuais tomem decisões significativas sobre as suas próprias vidas. B. Sob nenhuma condição ou circunstância as pessoas com deficiências intelectuais devem ser consideradas totalmente incompetentes para tomar decisões baseadas apenas em sua deficiência. Somente em circunstâncias mais extraordinárias o direito legal das pessoas com deficiência intelectual, para tomada de suas próprias decisões, poderá ser legalmente interditado. Qualquer interdição deverá ser por um período de tempo limitado, sujeito às revisões periódicas e, com respeito apenas a estas decisões, pelas quais será determinada uma autoridade independente, para determinar a capacidade legal. C A autoridade independente, acima mencionada, deve encontrar evidências claras e consistentes de que, apesar dos apoios necessários, todas as alternativas restritivas de indicar e nomear um representante pessoal substituto foram, previamente, esgotadas. Esta autoridade independente deverá respeitar o direito a um processo jurídico, incluindo o direito individual de ser notificado, ser ouvido, apresentar provas ou testemunhos a seu favor, ser representado por uma ou mais pessoas de sua confiança e escolha, para sustentar qualquer evidência em uma audiência, assim como apelar de qualquer decisão perante um tribunal superior. Qualquer representante pessoal substituto da pessoa com deficiência ou seu tutor deverá tomar em conta as preferências da pessoa com deficiência intelectual e fazer todo o possível para tornar efetiva a decisão que essa pessoa teria tomado caso não o possa fazê-lo. Com este propósito, os participantes de Conferência OPS/OMS de Montreal sobre Deficiências Intelectuais, em solidariedade com os esforços realizados a nível nacional, internacional, individual e conjuntamente, ACORDAM: 7 Apoiar e defender os direitos das pessoas com deficiências intelectuais; difundir as convenções internacionais, declarações e normas internacionais TÓPICO 1 | ENTENDIMENTOS ACERCA DA DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 17 que protegem os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais das pessoas com deficiências intelectuais; e promover, ou estabelecer, quando não existam, a integração destes direitos nas políticas públicas nacionais, legislações e programas nacionais pertinentes. E 8 Apoiar, promover e implementar ações, nas Américas, que favoreçam a Inclusão Social, com a participação de pessoas com deficiências intelectuais, por meio de um enfoque intersetorial que envolva as próprias pessoas com deficiência, suas famílias, suas redes sociais e suas comunidades. Por conseguinte, os participantes da Conferência OPS/OMS de Montreal sobre a Deficiência Intelectual, RECOMENDAM: 9 Aos Estados: a) reconhecer que as pessoas com deficiências intelectuais são cidadãos e cidadãs plenos da sociedade; b) cumprir as obrigações estabelecidas por leis nacionais e internacionais criadas para reconhecer e proteger os direitos das pessoas com deficiências intelectuais. Assegurar sua participação na elaboração e avaliação de políticas públicas, leis e planos que lhes digam respeito. Garantir os recursos econômicos e administrativos necessários para o cumprimento efetivo destas leis e ações; c) desenvolver, estabelecer e tomar as medidas legislativas, jurídicas, administrativas e educativas, necessárias para realizar a inclusão física e social destas pessoas com deficiências intelectuais; d) prover para as comunidades e para as pessoas com deficiências intelectuais e suas famílias o apoio necessário para o exercício pleno destes direitos, promovendo e fortalecendo suas organizações; e) desenvolver e implementar cursos de formação sobre Direitos Humanos, com treinamento e programas de informação dirigidos a pessoas com deficiências intelectuais. Aos diversos agentes sociais e civis: f) Participar de maneira ativa no respeito, na promoção e na proteção dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais das pessoas com deficiências intelectuais. UNIDADE 1 | A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 18 g) Preservar cuidadosamente sua dignidade e integridade física, moral e psicológica por meio da criação e da conservação de condições sociais de liberação e não estigmatização. Às Pessoas com Deficiência Intelectual e suas famílias: h) Tomar a consciência de que eles têm os mesmos direitos e liberdades que os outros seres humanos; de que eles têm o direito a um processo legal, e que têm o direito a um recurso jurídico ou outro recurso eficaz, perante um tribunal ou serviço jurídico público, para a proteção contra quaisquer atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos por leis nacionais e internacionais. i) Tornarem-se seguros de que participam do desenvolvimento e da avaliação contínua da legislação vigente (e em elaboração), das políticas públicas e dos planos nacionais que lhes dizem respeito. j) Cooperar e colaborar com as organizações internacionais, governamentais ou não governamentais, do campo das deficiências, com a finalidade de consolidação e fortalecimento mútuo, em nível nacional e internacional, para a promoção ativa e a defesa dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais das pessoas com deficiências. Às Organizações Internacionais: k) Incluir a “DEFICIÊNCIA INTELECTUAL” nas suas classificações, programas, áreas de trabalho e iniciativas com relação a “pessoas com deficiências intelectuais” e suas famílias a fim de garantir o pleno exercício de seus direitos e determinar os protocolos e as ações desta área. l) Colaborar com os Estados, pessoas com deficiências intelectuais, familiares e organizações não governamentais (ONGs), que os representem, para destinar recursos e assistência técnica para a promoção das metas da Declaração de Montreal, incluindo o apoio necessário para a participação social plena das pessoas com deficiências intelectuais e modelos integrativos de serviços comunitários. Montreal, 6 de outubro de 2004. FONTE: Disponível em: <http://www.defnet.org.br/decl_montreal.htm>. Acesso em: 12 nov. 2009. TÓPICO 1 | ENTENDIMENTOS ACERCA DA DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 19 UNI Vamos lá!, é hora de navegar e buscar mais informações! Se você quer saber mais sobre o assunto abordado, aconselho pesquisa no site: <http://infoativodefnet.blogspot.com/>. Acesso em: 15 abr. 2010. Este é um espaço que aborda questões que envolvem a deficiência. UNI Ah, veja só que legal! Chegou um dos melhores momentos de nosso estudo. Que tal assistirmos ao filme Uma lição de Amor? Essa película retrata a história de um homem com deficiência intelectual que cria sua filha Lucy com uma grande ajuda de seus amigos. Porém, assim que faz 7 anos, Lucy começa a ultrapassar intelectualmente seu pai, e esta situação chama a atenção de uma assistente social que quer Lucy internada em um orfanato. A partir de então Sam enfrenta um caso virtualmente impossível de ser vencido por ele, contando, para isso, com a ajuda da advogada Rita Harrison, que aceita o caso como um desafio com seus colegas de profissão. Considerando o que já foi discutido sobre o entendimento a respeito da deficiência intelectual, o filme, Uma Lição de Amor, pode nos ajudar a entender o processo de inclusão na sociedade. A todo momento, a questão da inteligência é argumentada enquanto a questão subjetiva da afetividadefica num segundo plano. 20 Neste resumo, vamos rever algumas informações para que você conheça a deficiência intelectual ao longo dos tempos. Nesse sentido, você viu que: • Na Idade Antiga, o entendimento do sujeito com deficiência intelectual ou física era de condição sub-humana, sem direito à vida, eliminado da sociedade. • Na Idade Média, a superstição e o sobrenatural se destacam; os ideários cristãos católicos dão o direito à vida para o deficiente intelectual, mas também aparecem ideias da inquisição por entender que são possuídos pelo demônio. • Na Idade Moderna, o entendimento ganha domínio da autoridade médica, a qual vê a deficiência como algo patológico que está no indivíduo. Parte do anormal para entender o deficiente. • Nos séculos XX e XXI, o entendimento ganha destaque com a abordagem psicológica, partindo da normalidade para classificar aqueles que não se enquadram. • A defectologia de Vygotsky visava ao processo de desenvolvimento da pessoa com deficiência e não a quantificação. • A Associação Americana de Deficiência Intelectual apresentou uma definição mais ampla, embora continue fazendo os testes psicométricos para medir a limitação. • A concepção do MEC, de maneira mais ampla, refere-se à deficiência como um todo, sendo a pessoa com deficiência aquela com impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental ou sensorial que, em interação com diversas barreiras, pode ter restringida sua participação plena e efetiva na escola e na sociedade. RESUMO DO TÓPICO 1 21 Considerando o que até o momento foi discutido sobre a deficiência intelectual, vamos pensar numa realidade educacional no âmbito municipal, estadual ou nacional em relação à pessoa com essa deficiência. Enumere, pelo menos, cinco conceitos que precisam ser superados em relação à deficiência intelectual. AUTOATIVIDADE 22 23 TÓPICO 2 TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Este tópico tem como principal objetivo apresentar a importância da teoria histórico-cultural proposta por Vygotsky a fim de que tenhamos elementos para a compreensão do processo de desenvolvimento sobre a deficiência intelectual, num projeto educacional inclusivo. A proposta da teoria histórico-cultural (sociocultural ou sociointeracionista) de Vygotsky está envolvida na busca de uma explicação da origem e desenvolvimento do psiquismo humano. Essa abordagem psicológica rompe com a dicotomia das abordagens psicológicas da sua época em que, de um lado, havia grupos baseados em pressupostos idealistas e, de outro, em pressupostos empiristas. Os idealistas concebiam a psicologia como uma ciência mental, que não podia ser objeto de estudo da ciência objetiva, cabendo a esta psicologia a descrição subjetiva dos fenômenos psíquicos tipicamente humanos. Os empiristas entendiam a psicologia como uma ciência natural, ocupando-se em estudar os fenômenos observáveis, ou seja, habilidades mecanicamente constituídas, restringindo-se então aos processos mais elementares, desconsiderando assim processos mais complexos do consciente especificamente humano. (CARNEIRO, 2007). Superando essas duas abordagens psicológicas, a teoria histórico-cultural teve como essência apresentar uma teoria do homem, sua origem e formação, seu estado atual entre outras espécies e um esquema para seu futuro. Nessa abordagem teórica, o homem destacou-se pela sua racionalidade emancipando- se e assumindo o controle de seu próprio destino, para além dos limites que a natureza restringia. (VEER; VALSINER, 1996). UNIDADE 1 | A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 24 IMPORTANT E A teoria histórico-cultural é um dos fundamentos que dá sustentação para a ação docente inclusiva. 2 FUNÇÕES MENTAIS O entendimento da teoria histórico-cultural toma como ponto de partida a emergência das funções mentais superiores a partir das funções mentais elementares. As funções mentais elementares, de origem biológica, estão associadas à determinação da maturação biológica, caracterizam-se por ações involuntárias (ou reflexas), por reações imediatas (ou automáticas) e sofrem controle do ambiente externo. As funções mentais superiores (sociais) caracterizam-se como a memória, o pensamento, o planejamento das ações a serem realizadas, a fala, a atenção e a consciência. (LUCCI, 2009). A emergência das funções mentais superiores foi uma preocupação na abordagem histórico-cultural, pois tratando-se das funções mentais superiores tipicamente humanas, aconteceriam nas relações com a cultura. A teoria histórico-cultural evidencia a importância da cultura, pois, conforme destacam Veer e Valsiner (1996, p. 243), “Embora tendo cérebros idênticos e processos psicológicos inferiores idênticos, pessoas de diferentes substratos culturais podiam apresentar processos psicológicos superiores profundamente diferentes”. Logo, compreende-se que não havia diferença genética entre os membros de diferentes culturas, mas havia diferença nos processos mentais superiores, influenciados pelos sistemas simbólicos ali estabelecidos. Em outras palavras, as funções psicológicas superiores são de origem sociocultural e sua existência deve-se às atividades cerebrais. Logo, mesmo não se originando no cérebro dependem dele, pois exigem das funções psicológicas inferiores que, em última instância, estão ligadas às funções cerebrais. IMPORTANT E Vygotsky apresenta que, da interação do indivíduo com o seu contexto social e cultural, resultam as funções psíquicas e, por isso, são de origem sociocultural. TÓPICO 2 | TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL 25 Logo, ao considerarmos como ponto de partida as funções mentais que constituem o psiquismo humano, destacamos que, numa perspectiva histórica, este psiquismo pode ser compreendido por planos históricos. Esses planos históricos, conforme a teoria histórico-cultural, se interconectam e marcam a dimensão histórica do psiquismo humano. Apresentamos os seguintes planos históricos: o filogenético, sociogenético, ontogenético e o microgenético de análise. (SCHROEDER; FERRARI; MAESTRELLI, 2009). QUADRO 2 – PLANOS HISTÓRICOS Filogenético Diz respeito à espécie humana e sua história. Assim, apresenta a preocupação em conhecer as formas de desenvolvimento da espécie humana, Homo sapiens. Sociogenético Relaciona-se à sociedade humana, assim, explora a história dessas sociedades. Ontogenético Está relacionado à história pessoal do sujeito no decorrer da vida numa sociedade. Assim, diz respeito à atenção no desenvolvimento das características psicológicas do sujeito, no decorrer de sua vida em sociedade. Microgenético É mais específico. É a experiência situada do indivíduo. Ele se caracteriza pela atividade imediata dos sujeitos que se relacionam em um momento particular do seu desenvolvimento em um determinado contexto histórico-cultural, relacionando aprendizagem e desenvolvimento. FONTE: Adaptado de: Schroeder, Ferrari e Maestrelli (2009) É muito importante destacar que os planos históricos do homem não acontecem separadamente, mas se interconectam. Logo, o desenvolvimento mental (funções mentais elementares e superiores) é marcado pelos modos como interiorizamos processos históricos e culturalmente organizados de operar com os signos. 2.1 MEDIAÇÃO A partir da discussão inicial de entender a emergência das funções mentais superiores a partir das elementares, e entendermos que a cultura é o elemento chave desse desenvolvimento, apesar de não se desconsiderar a questão biológica, destacamos agora um conceito importante na teoria histórico-cultural, o da mediação. A mediação é apresentada por Oliveira (1997, p. 26) como “um processo de intervenção de um elemento intermediário numa relação; a relação deixa, então, de ser direta e passa a ser mediada por esse elemento”. Este conceito é mais um elemento importante na teoria histórico-cultural, que justamente apresenta a cultura para o sujeito. Com este conceito podemos entender que a relação do homem com o mundo não é umarelação direta, mas uma relação mediada pelos sistemas simbólicos. Essa relação do homem, ou seja, do sujeito com o objeto UNIDADE 1 | A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 26 do conhecimento (SUJEITO → OBJETO), pode ser mediada por uma pessoa ou instrumento, e estes serão os portadores de significados, concretizados pela linguagem (signos). Obtém-se um exemplo de mediação quando um indivíduo aproxima sua mão da chama de uma vela e a retira rapidamente ao sentir dor. Estabeleceu- se, nesse momento, uma relação direta entre o calor da chama e a retirada da mão. Em outro momento, uma reação diferente pode acontecer no instante em que o indivíduo retirar a mão quando apenas sentir calor e lembrar-se da dor sentida em outra ocasião. Aqui, nesta situação, a relação entre a chama, a vela e a retirada da mão estará mediada pela lembrança da experiência anterior, ou ainda, se numa outra situação ele retirar a mão quando alguém lhe disser que pode se queimar, a relação está mediada pela intervenção dessa pessoa. Temos então dois elementos mediadores à lembrança da experiência anterior no segundo exemplo e a intervenção de uma pessoa no último exemplo. (OLIVEIRA, 1997). No processo de mediação, Oliveira (1997) destaca que Vygotsky distinguiu dois tipos de elementos mediadores: os que atuam externos ao indivíduo, voltados para fora dele, cuja função é provocar mudanças nos objetos, os chamados instrumentos. E um segundo elemento que também é chamado de instrumento, mas, nesse caso, de instrumentos psicológicos (signos) cuja função é orientar-se para dentro do sujeito, com o intuito de nortear suas funções psicológicas, do próprio indivíduo ou de outras pessoas. IMPORTANT E Mais adiante, perceberemos que os elementos mediadores também podem ser considerados como elementos culturais ou recursos culturais. NOTA A linguagem é o principal elemento mediador na formação e no desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Ela é um sistema simbólico construído historicamente pelo homem que organiza os signos em estruturas complexas. Esses elementos mediadores (instrumento e instrumentos psicológicos) são característicos da espécie humana, constituída atualmente, como a conhecemos, pela sua organização social baseada no trabalho e, a partir disso, pela invenção e o uso de instrumentos. TÓPICO 2 | TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL 27 Consideramos que ao mesmo tempo em que o desenvolvimento biológico e psicológico aconteciam, os sistemas de signos também se desenvolveram, como a fala e recursos de memória, o que ocasionou um consequente desenvolvimento da psique humana; as pessoas se utilizam desses signos em seu funcionamento para o desenvolvimento de suas funções mentais superiores. Então, foi atuando sobre a natureza por meio do trabalho e dos instrumentos que o ser humano criou a cultura e a história humana e, nesse processo de criação, desenvolveu-se a atividade coletiva, baseada na utilização de instrumentos. Os instrumentos representam os elementos localizados entre o trabalhador e o objeto de seu trabalho que seria algo concreto, que carrega uma função que é desenvolvida no decorrer da história do trabalho coletivo. Assim, ele se torna um objeto social e mediador da relação entre o indivíduo e o mundo. (OLIVEIRA, 1997). Os signos são também instrumentos interpostos entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Assim, os signos são meios para solucionar um problema psicológico (lembrar coisas, relatar, colher etc.). Conforme destaca a autora, é análoga à invenção e ao uso de instrumentos, só que agora diz respeito ao campo psicológico. Enquanto os instrumentos são elementos externos aos indivíduos, com a função de controlar processos de natureza, os signos são instrumentos psicológicos orientados para o próprio sujeito para dentro do indivíduo. (OLIVEIRA, 1997). IMPORTANT E Os signos são produções simbólicas de uma determinada sociedade e, levando- se em conta também a importância da utilização dos signos para o desenvolvimento das funções mentais superiores, destacamos que esse domínio, por parte do indivíduo, só acontecerá por um elemento mediador. 2.2 DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM Outros dois conceitos que fazem parte da teoria histórico-cultural são o de desenvolvimento e o de aprendizagem. Esses acontecem de maneira relacional à aprendizagem e promovem o desenvolvimento. A aprendizagem é apresentada na teoria histórico-cultural como um processo no qual o indivíduo adquire informações, habilidades, atitudes, valores no contato com a realidade, valorizando, nesse processo, a interdependência dos indivíduos. Relacionado com o processo de desenvolvimento, o aprendizado é um processo presente desde o nascimento. (OLIVEIRA, 1997). UNIDADE 1 | A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL 28 O processo de desenvolvimento é entendido em dois níveis: o nível de desenvolvimento real, que é aquilo que a criança já é capaz de desenvolver sozinha e o nível potencial, que é a sua capacidade de desempenhar algo com a ajuda de outros. Diante desses dois níveis, aparece também um nível que é chamado de transição. Este nível é a zona de desenvolvimento proximal, que representa a distância entre o nível de desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento potencial. Esta se refere a uma zona de desenvolvimento do domínio psicológico que está em constante transformação. O conceito de desenvolvimento na presença da deficiência, como destaca Carneiro (2007), não se dá naturalmente, mas é iniciado em situações concretas da vida, e essas não estão predefinidas, nem no sujeito, nem na família ou no grupo cultural do qual fazem parte, mas são construídas nas relações sociais. Entendemos, desta maneira, que o processo de desenvolvimento dos sujeitos com deficiência não tenha uma sentença pessimista por causa das suas deficiências. Compreendemos, sim, e concordamos com Carneiro (2007, p. 33), que seu desenvolvimento se dá [...] “a partir das significações atribuídas inicialmente pelo outro e, mais tarde, internalizadas pelo próprio sujeito, no seu contexto, em que cada um se constitui de maneira singular”. Assim, ao falarmos de desenvolvimento e entendermos a perspectiva apresentada anteriormente por Carneiro (2007), temos um ponto muito importante no processo de ensino e de aprendizagem. Ao avaliarmos o que nossos alunos já sabem fazer sozinhos e o que eles conseguem com a ajuda de outro, vamos identificar a zona de transição, ou seja, a zona de desenvolvimento proximal na qual temos que atuar enquanto educadores. A zona de desenvolvimento proximal na qual acontecerá a mediação dos signos será local. Nesta zona, perceberemos que o ensino deve anteceder ao desenvolvimento, pois este ensino deve se apoiar não somente no que já foi alcançado pela criança, mas nos processos em desenvolvimento que ainda não se consolidaram, ou seja, que ainda estão na Zona de Desenvolvimento Potencial. Contudo, Carneiro (2007) destaca que, quando falamos em desenvolvimento e aprendizagem, nos limitamos às possibilidades e não às dificuldades das crianças, mesmo daquelas com deficiência. TÓPICO 2 | TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL 29 UNI Voltei para convidá-lo(a) a assistir comigo ao filme O enigma de Kaspar Hauser. Para tal, precisamos ter um olhar crítico a respeito das relações sociais para o desenvolvimento do psiquismo humano. Kaspar Hauser é um jovem que foi trancado a vida inteira num cativeiro, desconhecendo toda a existência exterior. Quando ele é solto nas ruas sem motivo aparente, a sociedade se organiza para ajudar Kaspar, que sequer conseguia falar ou andar, mas logo acaba se tornando uma atração popular. Baseado em uma história real. 30 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico vimos importantes fundamentos para o desenvolvimento e aprendizagem da pessoa com deficiência intelectual, quando se conhece a teoria histórico-cultural e a defectologia. Dentre o conteúdo abordado, você estudou: • A teoria histórico-cultural toma como pontode partida a preocupação da origem e do desenvolvimento do psiquismo humano, ou seja, a emergência das funções superiores a partir das elementares. • As funções mentais elementares são de origem biológica. • As funções mentais superiores são de origem social. • O surgimento das funções mentais superiores não elimina as funções mentais elementares. • A relação do homem com o mundo é uma relação mediada pelos sistemas simbólicos. • A existência de dois tipos de elementos mediadores: instrumentos e signos (instrumentos psicológicos). • Que os signos são produções simbólicas de uma determinada sociedade. • Que os conceitos de desenvolvimento e de aprendizagem acontecem de maneira relacional à aprendizagem e promovem o desenvolvimento. • Que o desenvolvimento é entendido por níveis: real, potencial e proximal. 31 1 Em relação à teoria histórico-cultural, vamos resgatar alguns conceitos essenciais. Defina: a) Funções mentais elementares. b) Funções mentais superiores. c) Mediação. AUTOATIVIDADE 32 33 TÓPICO 3 INTRODUÇÃO À DEFECTOLOGIA UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Caro(a) acadêmico(a)! Neste terceiro tópico, objetivamos abordar os estudos da defectologia desenvolvidos por Vygotsky e algumas contribuições que envolvem a deficiência intelectual. Esta discussão sobre a defectologia deve agregar-se aos elementos já apresentados no tópico anterior. 2 DEFECTOLOGIA Defectologia é o nome dado por Vygotsky aos estudos sobre a deficiência. Para o entendimento da defectologia não podemos desconsiderar o que, até então, foi apresentado pela teoria histórico-cultural: o contato e o domínio dos instrumentos culturais de determinada cultura é que possibilitam o desenvolvimento dos processos mentais superiores. Em relação à deficiência, Carneiro (2007) apresenta os aspectos considerados por Vygotsky. Esses se distinguem em ordem primária e secundária. Os aspectos de ordem primária são identificados como lesões orgânicas, lesões cerebrais, malformações orgânicas, alterações cromossômicas, sendo, então, as características físicas normalmente apontadas como causas da deficiência que interferem significativamente no processo de desenvolvimento de indivíduos considerados com deficiência. Os aspectos de ordem secundária não são relacionados diretamente aos aspectos primários e, no entanto, traduzem as dificuldades geradas pelos aspectos primários. Assim, a deficiência está muito mais relacionada com a escassez de oportunidades de mediação do que com qualquer condição orgânica, significada como incapacidade individual. A defectologia apresentada por Vygotsky criticou a concepção aritmética quantitativa da deficiência, apresentada por Binet. A ideia central da defectologia é que todo defeito, no caso a deficiência, cria estímulos para elaborar uma compensação diferente do conceito de tendência intelectual, em que a preocupação apenas evidenciava a forma negativa da deficiência. 34 UNIDADE 1 | A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL Ao se referir a defeito, ele está discutindo sobre a deficiência. ATENCAO Essa tendência de ver apenas deficiência em si não era a preocupação dos estudos da defectologia de Vygotsky, a preocupação estava no processo de desenvolvimento diante das consequências que a deficiência trazia para o desenvolvimento da pessoa. 2.1 TEORIA DA COMPENSAÇÃO A respeito da defectologia, Vygotsky (1997) apresenta e discute a teoria da compensação que se constitui num processo de superação e luta em reação ao defeito. Essa reação ao defeito acontece a partir do lugar social que a criança passa a ocupar na presença de alguma limitação. O termo defeito, assim como anormal e insuficiência, é utilizado por Vygotsky para caracterizar as crianças com deficiência intelectual, sensorial ou psíquica. ATENCAO A criança, ao tomar consciência da sua deficiência em relação à posição social que ocupa, sente-se numa condição de inferioridade e, assim, uma força surge para reagir a esse defeito. Na relação deficiência-compensação aparece uma situação intermediária, o sentimento de inferioridade, ficando deficiência- inferioridade-compensação. Assim, a compensação não acontece diretamente pela situação da deficiência. A riqueza da discussão de defectologia apresentada por Vygotsky é que, junto ao defeito orgânico, ao se referir à deficiência, estão dadas as forças para superá-lo. Essa força de superação é o que impulsiona a criança deficiente a criar formas de desenvolvimento diversas, e às vezes, profundamente raras, iguais ou semelhantes às que se observam nas crianças normais. É assim que surge a teoria da compensação que descobre o caráter criativo do desenvolvimento orientado. Vygotsky defende a tese da compensação, enfatizando que esta teoria é de importância fundamental e serve de base psicológica para a teoria e prática da TÓPICO 3 | INTRODUÇÃO À DEFECTOLOGIA 35 educação da criança com deficiência de audição, visão etc. Mas também esclarece que nessa compensação haveria graus possíveis de compensação, dos mínimos aos máximos. Outra discussão envolve o sentimento de inferioridade, que não seria a valorização do sofrimento, mas que esse sentimento motivaria a superação pelo defeito, assim não haveria debilidade em si, mas energia para a compensação. Destaca-se também que na teoria da compensação a perda de uma função impulsiona o desenvolvimento de outras funções ocupadas em seu lugar. Na presença de um defeito há uma reorganização da personalidade, pondo em jogo novas forças psíquicas, impondo um novo direcionamento. Como conclusão, Vygotsky diz que o processo de compensação está determinado por duas forças: as exigências sociais que se apresentam ao desenvolvimento e à educação e as forças intactas da psique. 2.2 DEFICIÊNCIA INTELECTUAL Podemos trazer algumas discussões sobre a compensação e a deficiência intelectual, destacando algumas considerações feitas por Vygotsky. Inicialmente, a teoria da compensação discutiu o processo pelo qual acontece a reação subjetiva da personalidade da criança, situação criada como consequência da deficiência. Deste ponto, decorreriam processos do desenvolvimento como a tomada de consciência pela própria criança, de sua insuficiência, o sentimento de inferioridade, ou seja, dessa carência, e como consequência surgiria a reação para vencer esse sentimento de inferioridade e, deste modo, elevar-se a um nível superior. A tomada de consciência por parte da criança com deficiência intelectual merece atenção e, diante desse processo, é importante considerar os meios em que se educa a criança e as dificuldades que a deficiência apresenta. Outra importante contribuição de Vygotsky é o princípio de substituição das funções psicológicas. Por exemplo: a linguagem que pode ser representada pela fala, mas pode também ser substituída pela linguagem brasileira de sinais. A memória, que é uma função psicológica importante, pode ser resgatada ao se falar sobre determinado conceito por meio dos fatos experimentados que evidenciam o conceito. O que ocorre com crianças mais novas é que não se pode falar sobre um conceito abstratamente sem remetê-las à experiência. Logo, não se deixou de resgatar a memória e falar sobre determinado conceito, mas utilizou-se de formas diferentes, até porque um adolescente sem deficiência já consegue utilizar a memória nesse sentido. Na substituição das funções psicológicas é apresentada a importância dos recursos auxiliares, ou seja, outros signos, que têm como papel enriquecer o desenvolvimento da criança com deficiência. Carneiro (2007) também discute 36 UNIDADE 1 | A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL a compensação. A autora apresenta que as causas orgânicas inatas não atuam diretamente por si mesmas, mas de forma indireta a partir do lugar social que a criança passa a ocupar na presença de alguma limitação. Então, diante do lugar social que a criança com deficiência intelectual apresenta, é importante perceber essas limitações e o próprio