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Perfil Glicídico Ana Daniela Coutinho Vieira Perfil glicídico OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Comparar os dois distúrbios no metabolismo da glicose: hipoglicemia e hiperglicemia. > Reconhecer a importância de manter a glicemia dentro dos valores de re- ferência. > Identificar os principais métodos de análise da glicose no laboratório. Introdução A análise do perfil glicídico se trata de uma das principais investigações laborato- riais, sendo frequentemente o tipo de análise mais realizado no setor de bioquímica. Sua relevância está relacionada ao diagnóstico de distúrbios no metabolismo dos carboidratos, como a hipoglicemia, a hiperglicemia e o diabetes melito. Neste capítulo, você vai conhecer os dois principais distúrbios no metabolismo da glicose, suas características e a forma como são detectados laboratorialmente. Também vai conhecer a definição de glicemia e por que monitorá-la é tão impor- tante. Por fim, vai descobrir quais são as principais metodologias diagnósticas utilizadas na mensuração do perfil glicídico. Metabolismo da glicose Os carboidratos, também chamados de açúcares, são a principal fonte de energia para o corpo humano. Trata-se de moléculas compostas, basicamente, por átomos de carbono, hidrogênio e oxigênio. Porém, a composição de alguns carboidratos inclui grupos aldeído ou cetona, garantindo-lhes características de substâncias redutoras, ou seja, que podem realizar reações de oxidação ou redução em outros compostos (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010). Essa caracte- rística é importante para que se possa entender a lógica por trás de algumas metodologias utilizadas em laboratório para a avaliação de perfil glicídico. Em geral, os carboidratos são classificados em monossacarídeos, dissaca- rídeos e polissacarídeos, de acordo com o tamanho de suas cadeias químicas. 1. Os polissacarídeos são moléculas grandes, formadas pela ligação de mais de 20 monossacarídeos, como é o caso do amido e do glicogênio, as principais formas de armazenamento de carboidratos vegetal e animal, respectivamente. 2. Já os dissacarídeos são compostos pela união de dois monossacarí- deos, como a lactose, um dissacarídeo presente nos produtos lácteos formado por uma molécula de glicose e uma de galactose, ou a saca- rose, conhecida como o “açúcar de cozinha”, que é um dissacarídeo formado pela união de uma molécula de glicose e uma de frutose. A união entre essas moléculas é feita pelas ligações glicosídicas e, para separá-las, é necessário que ocorra uma reação de hidrólise, ou seja, a liberação de uma molécula de água (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; NELSON; COX, 2014). 3. Os monossacarídeos, por sua vez, são os carboidratos mais simples. Contêm de três a seis átomos de carbono e seus principais exemplos são a glicose, a frutose e a galactose, sendo a glicose o único carboidrato que as células conseguem usar para a obtenção de energia. Na digestão dos carboidratos ingeridos pela alimentação, diversas enzimas atuam desde a mastigação até a absorção no intestino, onde a glicose é efetivamente incorporada ao metabolismo. Assim, todos os demais açúcares precisam ser convertidos, no caso dos demais monossacarídeos, ou hidrolisados até glicose para que possam ser utilizados imediatamente, ou armazenados no corpo sob a forma de glicogênio muscular e hepático (BISHOP, FODY E SCHOEFF, 2010; NELSON; COX, 2014). Quando há necessidade metabólica, como em estados de jejum, o orga- nismo pode liberar a glicose armazenada sob a forma de glicogênio, por meio do processo de glicogenólise. Em situações de jejuns mais prolongados, esse fornecimento pode ocorrer pela formação de moléculas de glicose a partir de outras fontes que não sejam carboidratos, como aminoácidos, piruvato, Perfil glicídico2 lactato e glicerol, no processo de gliconeogênese (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; NELSON; COX, 2014). Ao entrar nas células, a glicose pode percorrer diferentes rotas meta- bólicas para produzir energia de forma aeróbica ou anaeróbica. O objetivo dessas rotas é a produção de moléculas ricas em energia, as ATPs (adenosina trifosfato). Para esse fim, as moléculas de glicose podem ser inicialmente oxidadas por diferentes vias: glicólise, com a formação de piruvato, ATP e outros compostos metabólicos intermediários; e via pentoses-fosfato, com a formação de ribose-5-fosfato (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; NELSON; COX, 2014). Segundo Nelson e Cox (2014), os quatro possíveis destinos da glicose ao ingressar no organismo humano estão esquematizados de forma resumida na Figura 1, incluindo a possibilidade de utilização estrutural para a síntese de polímeros utilizados na composição de matriz extracelular e parede celular. De fato, o metabolismo da glicose abrange diversas vias e possibilidades de utilização, envolvendo tanto o catabolismo quanto o anabolismo. Entre- tanto, aqui, vamos focar as principais formas de detecção laboratorial da glicemia, ou seja, da concentração de glicose no sangue. Para isso, inicialmente precisamos explicar como a glicemia é mantida em situações de jejum e de estado alimentado. Figura 1. Destinos metabólicos da glicose no corpo humano. Fonte: Nelson e Cox (2014, p. 543). Perfil glicídico 3 A disponibilização de glicose no sangue pode ser gerada a partir de diversas vias, sendo a alimentação a principal fonte desse nutriente. Para que sua concentração permaneça controlada, ou seja, em homeostasia, é necessário que ocorra um equilíbrio entre a disponibilização e a captação da glicose pelas células. Essa regulação envolve principalmente glândulas endócrinas, o fígado e o pâncreas (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; NELSON; COX, 2014). Nesse sentido, dois hormônios produzidos pelo pâncreas envolvem-se de forma destacada na regulação da glicemia: a insulina e o glucagon. 1. A insulina é um hormônio sintetizado pelas células β das ilhotas de Langerhans do pâncreas e está diretamente relacionada com a utili- zação de glicose, ou seja, com sua entrada nas células. Sempre que há uma elevação considerável da glicemia, as células pancreáticas liberam insulina, o que estimula o transporte de glicose, principalmente, para o interior das células musculares e adiposas, e liberam a glicólise, fazendo a concentração plasmática dessa substância diminuir. Por isso, a insulina é considerada um hormônio hipoglicêmico. 2. Por outro lado, o glucagon é considerado um hormônio hiperglicêmico, pois sua presença causa a elevação da glicemia. Ele é sintetizado pelas células α das ilhotas de Langerhans e liberado em situações de jejum ou de estresse, estimulando a glicogenólise no fígado e a gliconeogênese (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; MURPHY et al., 2019). De forma mais indireta, outros hormônios também atuam nessa regulação. A adrenalina, por inibir a secreção da insulina, estimula a glicogenólise e a lipólise. Dessa forma, aumenta a glicêmia, assim como o cortisol, que aumenta a gliconeogênese, a glicogenólise hepática e a lipólise, além de diminuir a entrada de glicose pela via intestinal. Ambos são hormônios secretados pela glândula adrenal em situações de estresse ou hipoglicemia. Segundo Bishop, Fody e Schoeff (2010), o hormônio adrenocorticotrópico (ACTH), o hormônio do crescimento, a tiroxitina e a somatostatina também podem estimular a elevação da glicemia. A atuação desses hormônios é considerada “anti-insulínica” e geral- mente se relaciona com situações de estresse metabólico. De acordo com Murphy et al. (2019), esse fato é importante porque faz uma correlação com a ocorrência de hiperglicemia em pacientes com doenças que geram estresse aos tecidos. Perfil glicídico4 Distúrbios no metabolismo glicêmico Os principais distúrbios envolvendo os carboidratos se relacionam à ocorrência de hiperglicemia (elevação da concentração plasmáticos de glicose) e de hipoglicemia (diminuição da concentração glicêmica). Es- ses distúrbios podem ocorrer como um estado passageiro em pacientes saudáveis ou por algum desequilíbrio relacionado a patologias (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010). O estado de hipoglicemia pode apresentar desde sintomas brandos como sudorese, tremores, tonturas, fraqueza, náuseas, agitação e taqui- cardia, até sintomas mais graves como turvação da visão, confusão mental, convulsão e coma. Esses sintomas mais graves correlacionam-se com a neuroglicopenia, que é a diminuição da concentração de glicose no tecido cerebral, e podem levar à alteração dos comprometimentos cognitivos. Com a redução da glicemia, há a liberação de glucagon, adrenalina, cortisol e hormônio do crescimento em busca de um aumento das concentrações de glicose e da inibição insulínica (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; MURPHY et al., 2019). A hipoglicemia pode ocorrer tanto no estado de jejum como no estado pós-prandial, mas a sua classificação atual leva em consideração a etiologia e o estado clínico do paciente, portanto, divide-se em hipoglicemia em pacientes enfermos e hipoglicemia em paciente com aspecto saudável. Os pacientes com aspecto saudável não necessariamente possuem uma doença de base pré-existente, podem ser, por exemplo, pacientes que tiveram episódios de hipoglicemia pela ingestão de medicamentos que induzem este estado. Já os pacientes enfermos podem apresentar episódios hipoglicêmicos em decorrência de outras doenças com comprometimento metabólico, ou por uma interação de fármacos e estas doenças, ou ainda em decorrência de tratamentos e evoluções clínicas da doença de base (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; MURPHY et al., 2019). Mesmo em pacientes saudáveis, existem diferenças metabólicas em relação aos níveis toleravelmente baixos de glicose entre homens e mu- lheres. Enquanto homens mantêm uma glicemia entre 55 e 60 mg/dL por alguns dias, as mulheres mantém por 40 mg/dL ou até menos, pois iniciam a produção de corpos cetônicos mais rapidamente (MURPHY et al., 2019). Perfil glicídico 5 Insulinoma é um tipo de tumor que ocorre nas células β pancreáticas e cursa com o desenvolvimento de hipoglicemia. A suspeita de insu- linoma geralmente inicia com a ocorrência da Tríade de Whipple, três critérios que definem a ocorrência de uma crise de hipoglicemia (MURPHY et al., 2019): � níveis de glicemia abaixo de 50 mg/dL; � sintomas associados a hipoglicemia; � reversão desses sintomas com a elevação dos níveis sanguíneos de glicose. Para critérios de diagnóstico definitivo, realizam-se testes de jejum moni- torados em que se encontra (MURPHY et al., 2019): � altos níveis de insulina (≥ 6 μU/mL) associados a baixos níveis glicêmicos (mudança de ≥ 25 mg/dL); � níveis de peptídeo C ≥ 0,2 nmol/L; � dosagens de pró-insulina ≥ 5 pmol/L; � dosagens de β hidroxibutirato ≤ 2,7 mmol/L. Para saber mais a respeito dos insulinomas, digite “Insulinoma pancreático: casuística de um hospital central e revisão da literatura” em seu motor de busca preferido para ter acesso a artigo de mesmo nome, publicado pela Revista Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo. A manutenção da glicemia em níveis adequados é extremamente im- portante, pois a glicose é a fonte primária em alguns tecidos, como ocorre nas células cerebrais. O tecido cerebral depende exclusivamente da ma- nutenção da glicemia em níveis adequados como fonte de energia, pois as células nervosas não possuem capacidade de armazenamento energético, necessitando do aporte de glicose ofertada por meio do líquido extracelular. Segundo Bishop, Fody e Schoeff (2010), caso ocorra uma redução significa- tiva dos níveis glicêmicos, esse tecido pode não ser capaz de manter seu funcionamento. O estado de hiperglicemia também não é adequado. Em um estado fisio- lógico normal, quando há um aumento da glicemia, as células β pancreáticas liberam insulina, que, por sua vez, diminui os níveis glicêmicos estimulando determinadas vias metabólicas e aumentando a permeabilidade das células musculares, hepáticas e adiposas para o armazenamento da glicose. Entre- tanto, um desequilíbrio devido ao mau funcionamento ou à baixa secreção da insulina leva à ocorrência de estados de hiperglicemia persistentes. Esses estados se correlacionam com o aumento da concentração de glicose e da densidade da urina, o aumento da osmolalidade do soro e da urina, a elevação Perfil glicídico6 de corpos cetônicos no soro (cetonemia) e na urina (cetonúria) em decorrên- cia da degradação de lipídios, a acidificação do pH sanguíneo e urinário e o desequilíbrio hidroeletrolítico (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010). Diabetes melito O diabetes melito é uma doença metabólica cuja principal característica é a ocorrência de hiperglicemia, ocasionada por defeitos na secreção ou na funcionalidade da insulina. Os efeitos do diabetes melito incluem lesão no longo prazo, disfunção e insuficiência de vários órgãos, especialmente olhos, rins, coração e vasos sanguíneos. Segundo os consensos da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) e da Associação Americana de Diabetes, os estados de glicemia de jejum alterada e tolerância diminuída à glicose, que consistem na detecção de glicose acima dos valores de referência, mas abaixo do limiar considerado para o diagnóstico de diabetes, compõem fatores de risco aumentados para o desenvolvimento de diabetes, podendo ser considerados condições pré-diabéticas (BARCELOS; AQUINO, 2018; MURPHY et al., 2019). De forma semelhante, o diabetes gestacional é uma situação transitória que ocorre por um conjunto de fatores que envolvem, principalmente, o aumento da adiposidade materna e as alterações hormonais gestacionais. Essa condição pode partir de uma gestação normal para o desenvolvimento de resistência à insulina, que pode gerar níveis glicêmicos semelhantes aos encontrados em pacientes portadores de diabetes tipo 2. Apesar de os níveis glicêmicos retornarem ao normal após o parto, essa condição está relacionada a complicações durante o parto e ao aumento do risco de diabetes para a mãe, além de maiores chances de síndrome do desconforto respiratório, hiperbilirrubinemia e hipercalcemia nos bebês (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; BARCELOS; AQUINO, 2018). Segundo as Diretrizes da SBD (SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIABETES, 2019), todas as gestantes sem diagnóstico prévio de diabetes melito, mas com gli- cemia de jejum acima de 92 mg/dL, devem ser diagnosticadas com diabetes melito gestacional. As que obtiverem níveis abaixo de 92 mg/dL devem realizar o teste oral de tolerância à glicose, após sobrecarga com 75 g de glicose, entre a 24ª e a 28ª semana de gestação, sendo considerado diabetes gestacional nas seguintes situações: glicemia após 1 hora da sobrecarga ≥ 180 mg/dL ou glicemia após 2 horas da sobrecarga ≥ 153 mg/dL. Veja, no Quadro 1, os principais valores de referência utilizados pela SBD para a avaliação do perfil glicídico. Perfil glicídico 7 Quadro 1. Valores de referência para perfil glicídico Normal Glicemia de jejum Abaixo de 100 mg/dL Pré-diabetes ou risco aumentado para diabetes Glicemia de jejum 100 a 125 mg/dL TOTG* 140 a 199 mg/dL HbA1c** (por HPLC***) 5,7 a 6,4 % Diabetes HbA1c (por HPLC) ≥ 6,5 % Glicemia de jejum ≥ 126 mg/dL TOTG ≥ 200 mg/dL Glicemia randômica/aleatória ≥ 200 mg/dL em pacientes com sintomas de hiperglicemia * Teste oral de tolerância à glicose. ** Hemoglobina glicada, também conhecida como glicohe- moglobina. ***Método de cromatografia líquida de alta performance. Fonte: Adaptado de Barcelos e Aquino (2018). Análises laboratoriais do perfil glicídico O diagnóstico laboratorial do perfil glicídico pode ser realizado por meio de um conjunto de exames que envolvem as dosagens de: glicemia de jejum, hemoglobina glicada (HbA1C), frutosamina e 1,5 anidroglicitol, além do teste oral de tolerância à glicose (TOTG). Ainda podem ser avaliadas as concentra- ções de glicose na urina e no líquido cefalorraquidiano (LCR), apesar de suas análises não estarem diretamente ligadas com o perfil bioquímico glicídico (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; BARCELOS; AQUINO, 2018). Apesar da variedade de exames designados para essa função, as dosa- gens de glicemia e de HbA1C (hemoglobina glicada) são os métodos mais rotineiramente utilizados. A glicemia pode ser analisada a partir de amostras de sangue total, soro ou plasma, enquanto a dosagem HbA1C é realizada exclusivamente em amostras de sangue total (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010). Perfil glicídico8 As especificidades e recomendações para cada tipo de dosagem e os prin- cipais métodos utilizados na análise do perfil glicídico serão abordados seguir. Glicemia de jejum A glicemia de jejum consiste na mensuração da concentração de glicose na corrente sanguínea. O jejum é um dos pontos críticos para a realização desse exame, pois é necessário que o paciente esteja em um estado de homeostasia durante a coleta, não em estado logo após a ingestão alimentar (pós-prandial) ou de escassez metabólica por um período longo de jejum. Para padronização desse parâmetro, recomenda-se um jejum de 8 a 10 horas, não sendo aconselhada a coleta em pacientes com jejum superior a 16 horas. Durante o jejum, o paciente não deve ingerir alimentos sólidos ou líquidos, mas pode beber água normalmente (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; BARCELOS; AQUINO, 2018). Outro cuidado pré-analítico importante relaciona-se com a utilização dos inibidores da via glicolítica. Preferencialmente, a dosagem sérica de glicose deve ser realizada a partir de amostras coletadas em tubos contendo fluoreto de sódio ou iodoacetato, pois, assim, há a inibição de enzimas atuantes na via glicolítica: a enolase, pelo fluoreto de sódio, ou gliceraldeído 3-fosfato desidrogenase, pelo iodoacetato. Porém, é válido destacar que a inibição não é imediata e, portanto, uma pequena quantidade de glicose é sempre degradada, mas em situações típicas não ultrapassa 8 mg/dL de diferença no resultado final (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; BARCELOS; AQUINO, 2018; MURPHY et al., 2019). Entretanto, muitas vezes a coleta de amostras para medida da glicemia é feita em tubos mais versáteis, pois outros analitos podem ser dosados na mesma alíquota. Quando a coleta for realizada em tubos sem anticoagulante ou com anticoagulantes, mas sem inibidores da via glicolítica, deve-se ter o cuidado de realizar a centrifugação e a separação da amostra de soro ou plasma em, no máximo, 1 hora. Esse cuidado é importante para evitar que ocorra consumo da glicose pelas células sanguíneas, especialmente pelos leucócitos, em elevadas concentrações. A redução da glicemia final, nesses casos, pode diminuir de 5 a 7% por hora, dependendo das condições da amostra. Segundo Bishop, Fody e Schoeff (2010) e Barcelos e Aquino (2018), caso não seja possível realizar as análises em pouco tempo, é aconselhado que as amostras sejam mantidas em refrigeração. Perfil glicídico 9 É necessário levar em consideração a variabilidade biológica de cada paciente, que é afetada principalmente pelos hábitos de consumo e pelas características hormonais e metabólicas de cada um. Por exemplo, uma glicemia real de 100 mg/dL pode variar entre 87 e 113 mg/dL, em decorrência da própria variabilidade do indivíduo e dos marcadores utilizados. Por isso, valores limítrofes na dosagem de glicemia de jejum devem sempre ser confirmados em uma segunda coleta, para uma avaliação clínica mais fidedigna. Também é necessário estar atento para os diferentes valores de referência entre as amostras, pois a concentração de glicose no sangue total costuma ser cerca de 15% menor que no soro ou no plasma (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; BARCELOS; AQUINO, 2018). Quanto às metodologias utilizadas para a dosagem de glicemia, atualmente predominam métodos baseados em reações enzimáticas. Porém, os primeiros métodos utilizados fundamentavam-se em características químicas dos car- boidratos, como foi o caso dos métodos com O-toluidina e com os reagentes de Benedict e Fehling (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; BARCELOS; AQUINO, 2018). A utilização dos reagentes de Benedict e Fehling baseia-se na capacidade redutora de alguns carboidratos, incluindo a glicose. Quando em uma solução alcalina, esses carboidratos fazem a conversão de íons cúpricos em íons cuprosos, fazendo a coloração azul dos reagentes passar para tons amarelados e avermelhados, dependendo da concentração de carboidratos redutores. Esses métodos foram desenvolvidos para dosagens em urina (Benedict) e em outros líquidos (Fehling). Outra metodologia, já em desuso, baseia-se na formação de bases de Schiff com aminas aromáticas quando, em uma solução ácida, a interação entre carboidratos e O-toluidina forma um composto colorimétrico que pode ser lido no comprimento de onda de 630 nm (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010). Mais recentemente, as técnicas utilizadas na mensuração da glicose baseiam-se em reações enzimáticas, sendo as reações com glicose oxidase e de hexoquinase as principais (BARCELOS; AQUINO, 2018). Atualmente, a metodologia que aplica a reação da glicose oxidase é a mais utilizada no Brasil e é mais específica para a glicose na conformação de β-D-glicose, convertendo-a até ácido glicônico. Nessa reação, há consumo de oxigênio para a formação de peróxido de hidrogênio, e essa etapa pode ser mensurada pela medição da velocidade de consumo do oxigênio por meio de eletrodos específicos ou pela medida de consumo do peróxido de hidrogênio formado em uma reação secundária (acoplada) com peroxidase. O segundo Perfil glicídico10 método é o mais utilizado, com o acoplamento de uma reação de Trinder. Nas metodologias que usam a reação glicose oxidase + reação de Trinder, são utilizadas substâncias cromógenas (3-me-til-2-benzotiazolinona hidrazona ou N,N-dimetilanilina) para a formação de soluções coradas, passíveis de serem medidas em espectrofotometria. Nesse caso, a intensidade da cor será proporcional à quantidade de glicose na amostra (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; BARCELOS; AQUINO, 2018). As principais interferências neste método são devido a níveis elevados de ácido úrico, bilirrubinas e ácido ascórbico, que podem gerar níveis falsamente reduzidos de glicemia pela oxidação desses analitos com a peroxidase. Com a utilização da peroxidade, a oxidação e a detecção do cromógeno ocorrerá de forma reduzida. Por outro lado, substâncias com alta capacidade de oxidação, como a lixívia, podem causar resultados falsamente elevados (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010). Quando são utilizados eletrodos específicos para a detecção da velocidade de consumo do oxigênio pela enzima glicose oxidase, essas interferências são reduzidas. Nesse caso, o peróxido de hidrogênio formado deve ser eliminado, para que não ocorra reversão da reação. Para isso, pode ser utilizada a reação de oxidação de iodeto a iodo, com a utilização de molibdato, ou a oxidação de etanol pelo peróxido de hidrogênio, formando acetaldeído e água (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010). Já as metodologias que utilizam reações com a enzima hexoquinase, pela detecção ultravioleta (UV), são mais exatas, pois a glicose-6-fosfato desidroge- nase utilizada na reação acoplada é bem mais específica que a glicose oxidase. A hexoquinase é uma enzima atuante na via glicolítica e, na presença de ATP, converte a glicose em glicose-6-fosfato, a qual, com a ação da glicose-6-fosfato desidrogenase na presença de NADP+, forma 6-fosfogliconato e NADPH. Nesse método, mede-se a velocidade de formação do NADPH em um comprimento de onda de 340 nm, sendo proporcional à quantidade de glicose presente na amostra. Esse método não sofre interferência do ácido ascórbico ou do ácido úrico e, por isso, é considerado o método de referência. Porém, altas concen- trações de bilirrubinas e ocorrência de hemólise ainda podem gerar resultados falsamente reduzidos (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; BARCELOS; AQUINO, 2018). Além de maior exatidão, uma das grandes vantagens desse método é que ele pode ser utilizado em amostras de soro ou plasma coletadas com diversos anticoagulantes (heparina, EDTA [Ácido etilenodiaminotetracético], fluoreto, oxalato e citrato), de urina, de LCR e de outros líquidos corporais (como ascítico e pleural), diferentemente do método com glicose oxidase, que Perfil glicídico 11 só pode ser utilizado em amostras de soro e plasma (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; BARCELOS; AQUINO, 2018). A Figura 2 apresenta as reações enzimáticas de ambas as técnicas. Teste oral de tolerância à glicose O TOTG é realizado após a ingestão de uma carga oral de uma solução com 75 g de glicose (ou 1,75 g de glicose por kg de peso em crianças). Nesse procedi- mento, é dosada a glicemia de jejum e a glicemia 2 horas após a ingestão da solução. É necessário que o paciente permaneça em repouso durante essas 2 horas, então, geralmente, o paciente permanece no laboratório até a última coleta ser realizada (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; MURPHY et al., 2019). O TOTG, também conhecido como “curva glicêmica”, é utilizado para o diagnóstico de diabetes, mas também pode ser utilizado para a detecção de tolerância diminuída à glicose. Entretanto, esse teste pode sofrer variadas interferências pré-analíticas que acabam diminuindo sua reprodutibilidade. Em primeiro lugar, o teste deve ser realizado, preferencialmente, durante a manhã, em jejum de 10 a 16 horas. É importante que o paciente faça uma ingestão de carboidratos de, pelo menos, 150 g antes do início do jejum, para evitar resultado falso positivo. Também é necessário que a concentração de glicose da solução esteja adequada ao peso/idade do paciente e que sua ingestão ocorra em até 5 minutos. Alguns pacientes consideram a solução enjoativa ao paladar, especialmente por estarem em jejum, podendo ocasio- nar vômitos e diarreia. Nesses casos, o teste deve ser suspendido e repetido posteriormente, ou deve ser utilizada outra metodologia. Além disso, inter- ferentes como exercício físico intenso prévio ao teste, uso de medicamentos e alterações hormonais podem alterar os resultados (BARCELOS; AQUINO, 2018; MURPHY et al., 2019). Figura 2. Métodos enzimáticos de detecção da glicose. Fonte: Bishop, Fody e Schoeff (2010, p. 297). Perfil glicídico12 As metodologias utilizadas para a dosagem de glicemia nos TOTG são as mesmas utilizadas para a dosagem de glicemia de jejum, e os valores de referência recomendados para ambos foram apresentados no Quadro 1 e seguem as diretrizes da SBD (SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIABETES, 2019). O teste de tolerância oral à lactose possui uma metodologia seme- lhante ao TOTG, pois é realizado após a ingestão de uma solução de lactose em concentração de 2 g/kg até um limite de 50 g. Nesse teste, são feitas as dosagens de glicemia sérica em jejum e após a ingestão, aos 15, 30, 60 e 90 minutos. Essa técnica avalia a função da lactase, uma enzima intestinal responsável pela hidrólise da lactose em glicose e frutose. Espera-se que pacientes sem deficiências na lactase apresentem um aumento de glicose acima de 20 mg/ dL nas dosagens após a ingestão da solução, em relação à dosagem em jejum. Em casos de deficiência de lactase, não há a hidrólise de lactose em níveis suficientes para causar esse aumento (MCPHERSON; PINCUS, 2012). Hemoglobina glicada A HbA1c consiste na hemoglobina modificada após a ligação irreversível de moléculas de glicose em decorrência de um estado de hiperglicemia. Essa liga- ção ocorre de forma lenta e, portanto, reflete o estado anterior de exposição à glicose, não apenas em um momento pontual (da colheita sanguínea), como ocorre com a glicemia de jejum. Nessa ligação, o grupo aldeído da molécula de glicose reage de forma não enzimática com o grupo amino livre de uma molécula de hemoglobina formando uma base de Schiff, que, posteriormente, rearranja-se em uma cetoamina. O processo de glicação da hemoglobina também forma as frações HbA1a e HbA1b, mas a HbA1c representa 80% da hemoglobina ligada à glicose e, por isso, é utilizada como o marcador (PINTO, 2017; BARCELOS; AQUINO, 2018). A dosagem de HbA1c reproduz a concentração de glicose predominante durante os últimos 120 dias, o tempo médio de vida de uma hemácia, que é a célula sanguínea que contém hemoglobina. Por isso, esse teste é realizado a partir de amostras de sangue total coletadas com anticoagulante EDTA. Pacientes com anemia ou hemólise podem apresentar resultados errôneos, pela diminuição da vida útil das hemácias, assim como pacientes com he- moglobinopatias, pelas modificações estruturais ocorrentes nas moléculas de hemoglobina. Ainda, de forma significativa, outros tipos de hemoglobinas podem interferir nas dosagens de HbA1c: pacientes que recebem doses ele- Perfil glicídico 13 vadas de ácido acetilsalicílico e formam a hemoglobina acetilada e pacientes em insuficiência renal que formam a hemoglobina carbamilada (ou seja, ligada à ureia) podem apresentar resultados errôneos de hemoglobina glicada (BARCELOS; AQUINO, 2018; MURPHY et al., 2019). Diferentes metodologias são utilizadas para a determinação das concen- trações de hemoglobina glicada, mas os mais utilizados são os imunoensaios e a cromatografia líquida de alto desempenho (HPLC), sendo a HPLC conside- rada o padrão-ouro. Por meio dessa metodologia, a HbA1c é determinada em porcentagem em relação à hemoglobina total e em glicemia média estimada, fornecendo valores mais fidedignos para a avaliação do diabetes, principal- mente. Segundo Barcelos e Aquino (2018), uma das vantagens desse método é a ausência de interferência do estado de jejum no momento da coleta. O Quadro 2 demonstra a relação entre a porcentagem de Hb1Ac e a esti- mativa de glicemia média esperada. Esses valores são determinados a partir de estudos prévios de correlação. Quadro 2. Correlação entre concentração de Hb1Ac e estimativa de glicemia média (mg/dL) Hb1Ac (%) Glicemia média estimada (mg/dL) 5 97 6 126 6,5 140 7 154 8 183 9 212 10 240 Fonte: Adaptado de Barcelos e Aquino (2018). Além desses testes clássicos, outras análises podem auxiliar na avalia- ção do perfil glicídico. A detecção de corpos cetônicos na urina pode ser um marcador útil na avaliação do estado glicêmico, pois a formação elevada de corpos cetônicos pode ocorrer em casos de cetoacidose diabética (por diabetes não controlado), cetoacidose alcoólica ou em indivíduos saudáveis em jejum prolongado ou dietas com baixa ingestão de carboidratos (MURPHY et al., 2019). Perfil glicídico14 A frutosamina também pode ser utilizada para avaliação, pois é derivada da ligação da glicose às proteínas plasmáticas, sendo útil, principalmente, em pacientes com hemoglobinopatias em que a dosagem de HbA1c é preju- dicada. O tempo de referência para a avaliação da frutosamina é de duas a três semanas, pois reflete o tempo de vida média da albumina, a principal proteína do plasma (BARCELOS; AQUINO, 2018; SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIABETES, 2019). Já o anidroglucitol, outro marcador útil na avaliação glicêmica, consiste em uma molécula oriunda da dieta e com estrutura bastante semelhante à da glicose. Por essa semelhança, o anidroglucitol e a glicose competem pelos transportadores tubulares na filtração renal. Quando a glicose ultrapassa o limiar renal (entre 160 e 180 mg/dL no plasma), inibe a reabsorção do anidro- glucitol, aumentando sua excreção renal e fazendo seus níveis sanguíneos diminuírem. Dessa forma, a dosagem sérica de anidroglucitol é inversamente proporcional à glicemia: quanto maior for a concentração plasmática de glicose, menores serão os níveis de anidroglucitol (BARCELOS; AQUINO, 2018; SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIABETES, 2019). Ainda, metodologias visando à detecção de produtos da glicação avan- çada (AGEs) têm sido apontadas como possíveis marcadores, pois estudos relacionam os AGEs a mecanismos de danos celulares e teciduais decorrentes do estado de hiperglicemia (SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIABETES, 2019). Em relação a testes laboratoriais remotos (TLR) para o acompanhamento da glicemia, a principal metodologia utilizada é o automonitoramento por meio de glicosímetros, utilizando sangue capilar, que conseguem detectar níveis glicêmicos de 10 a 600 mg/dL. Pacientes com distúrbios no perfil glicídico, especialmente os diabéticos, devem fazer a medição da glicemia algumas vezes durante o dia, pois é extremamente importante que esses níveis se mantenham o mais próximo possível da normalidade. Para facilitar essa verificação, o automonitoramento oferece a possibilidade de o paciente realizar a medição em casa, com aparelhos portáteis e de uso simplificado (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; MURPHY et al., 2019; SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIABETES, 2019). A dosagem de HbA1c também já está disponível na forma de TLR e é considerada pelas Sociedades Americana e Europeia de Diabetes; porém, existem ressalvas quanto a seu uso, pois não é possível avaliar as flutua- ções de glicemia durante o dia nem a ocorrência de hipoglicemia (BISHOP; FODY; SCHOEFF, 2010; MURPHY et al., 2019; SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIABETES, 2019). Perfil glicídico 15 O automonitoramento por meio da glicemia capilar ocorre a partir de uma pequena incisão no dedo, seguida da absorção de uma gota de sangue por uma fita biossensora. Nessa fita, há a presença de uma enzima glicose desidrogenase ou da glicose oxidase, já explicada anteriormente. A glicose desidrogenase realiza a oxidação da glicose gerando gliconolactona. Essa transformação resulta em reações eletroquímicas ou colorimétricas, depen- dendo do equipamento, proporcionais à concentração glicêmica. A principal diferença na utilização da glicose desidrogenase é que essa enzima não depende das concentrações de oxigênio, diferentemente da glicose oxidase (SOCIEDADE BRASILEIRA DE PATOLOGIA CLÍNICA/MEDICINA LABORATORIAL, 2018; SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIABETES, 2019). Referências BARCELOS, L. F.; AQUINO, J. L. (ed.). Tratado de análises clínicas. Rio de Janeiro: Atheneu, 2018. BISHOP, M. L.; FODY, E. P.; SCHOEFF, L. E. Química clínica: princípios, procedimentos, correlações. Barueri: Manole, 2010. MCPHERSON, R. A.; PINCUS, R. M. Diagnósticos clínicos e tratamento por métodos laboratoriais de Henry. 21. ed. São Paulo: Manole, 2012. MURPHY, M.; SRIVASTAVA, R.; DEANS, K. Bioquímica clínica. 6. ed. Rio de Janeiro: Gua- nabara Koogan, 2019. NELSON, D. L.; COX, M. M. Princípios de bioquímica de Lehninger. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. (E-book). PINTO, W. de J. Bioquímica clínica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2017. SOCIEDADE BRASILEIRA DE DIABETES. Diretrizes Sociedade Brasileira de Diabetes 2019- 2020. São Paulo: Clannad, 2019. SOCIEDADE BRASILEIRA DE PATOLOGIA CLÍNICA/MEDICINA LABORATORIAL. Recomen- dações da sociedade brasileira de patologia clínica/medicina laboratorial (SBPC/ ML): fatores pré-analíticos e interferentes em ensaios laboratoriais. Barueri: Manole, 2018. (E-book). Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Perfil glicídico16
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