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UNIDADE 3. Psicologia e a pessoa com deficiência: saúde mental, transtornos e cuidado interdisciplinar Sofia Rafaela Oliveira de Aquino OBJETIVOS DA UNIDADE • bullet Conhecer os principais distúrbios de comportamento, cognitivos e de linguagem; • bullet Diferenciar os distúrbios de linguagem, com base no tipo de função comunicativa que afeta; • bullet Entender as semelhanças e as diferenças conceituais entre deficiência e transtorno mental; • bullet Aprender os direitos garantidos às pessoas com transtorno mental; • bullet Estudar sobre o que é transtorno invasivo do desenvolvimento; • bullet Saber diferenciar os principais transtornos invasivos do desenvolvimento, a partir de suas características, sintomas e causas; • bullet Assimilar o conceito de atendimento multidisciplinar e compreender sua importância na atenção à pessoa com deficiência. TÓPICOS DE ESTUDO Clique nos botões para saber mais Distúrbios de comportamento, cognitivo e de linguagem – // Distúrbios do comportamento // Distúrbios cognitivos // Distúrbios de linguagem Diferença entre deficiência e transtorno mental – // Implantação do SUS e da RAPS: garantindo direitos // Aproximações e separações: deficiência intelectual e transtorno mental Definição de transtorno invasivo do desenvolvimento (TID) – // Síndrome de Williams // Síndrome de Rett // Transtorno desintegrativo da infância (TDI) // Transtornos invasivos do desenvolvimento sem outra especificação A importância do atendimento multidisciplinar à pessoa com deficiência – // Equipe de trabalho: conjunto de agentes ou equipe integrada // Ações conjuntas e particulares Distúrbios de comportamento, cognitivo e de linguagem Seção 2 de 5 O funcionamento humano, como demonstrado pela Psicologia nas mais diversas teorias e abordagens, não é constituído por causas e consequências unilaterais e simplórias. Na verdade, somos fruto da interação de diversos fatores: a genética, nosso aparato biológico, nossa socialização primária; a sociedade; e as comunidades nas quais estamos inseridos, entre outros. Esses fatores influenciam em fenômenos, como a memória, a linguagem e o desenvolvimento físico que, por sua vez, interagem uns com os outros. Em outras palavras, somos seres tão complexos que todo estudo a nosso respeito é apenas uma pequena parte do todo. Uma das estratégias de estudo adotadas diante dessa complexidade é a categorização de fenômenos. Ela permite que esses fenômenos sejam analisados de maneira mais focal e específica, ainda que não sejam isolados do todo. Assim, categorias como comportamento, cognição e linguagem são essenciais nos estudos da Psicologia. Por isso, estudaremos alguns distúrbios – ou transtornos – que afetam a cada uma dessas categorias do desenvolvimento humano, a fim de entender suas características e peculiaridades. DISTÚRBIOS DO COMPORTAMENTO O que você entende por comportamento? Se pensarmos em uma perspectiva ampla, comportamento é toda ação humana no mundo. Nos nossos primeiros anos, boa parte do nosso desenvolvimento consiste em descobrir novas formas dessa ação. Por meio da interação social, aprendemos como utilizar nosso corpo de forma intencional para realizar tarefas, como pegar algo. Aprendemos também a demonstrar afetos e vontades a partir das ações, bem como descobrimos quais comportamentos são aprovados e quais são reprovados no nosso convívio em sociedade. O núcleo familiar primário, a escola e os demais espaços de interação do indivíduo são essenciais para que esse desenvolvimento – que é sempre marcado por conflitos e readequações – ocorra de forma positiva. Entretanto, como acontece com o desenvolvimento humano como um todo há parâmetros a serem considerados, especialmente de acordo com a idade do indivíduo. A fuga expressiva desses parâmetros, de forma que haja prejuízo à saúde e à vida social do indivíduo, pode apontar para a presença de Distúrbios de Comportamento. No entanto, devemos lembrar que não existe apenas um Distúrbio do Comportamento. Essa é uma categoria ampla que abarca uma série de transtornos e diagnósticos que dizem respeito a não adequação ao comportamento saudável. Observe o Quadro 1 que lista uma série de transtornos categorizados como do Comportamento. Quadro 1. Distúrbios de Comportamento descritos no CID-10. Fonte: PSICOEDU, 2018, n. p. É importante, porém, atentarmos para o risco da hiperpatologização da infância. Ou seja, é importante diferenciar o que é uma patologia do que é uma adequação natural do comportamento humano, e infantil em especial. Um exemplo disso seria o distúrbio de CID-10 F98.1, a Enurese de origem não orgânica. Enurese é conhecida popularmente como o "fazer xixi na cama". Apesar de ficar claro que muitas crianças apresentam esse sintoma a nível patológico, tantas outras simplesmente o fazem porque estão em um processo transicional de adaptação. O mesmo vale para a agitação característica de um indivíduo frente ao possível diagnóstico de TDAH. Para evitar uma hiperpatologização, devemos considerar o indivíduo como um todo, com sua história, seu aparato orgânico, as características da sua família, suas condições psíquicas, entre outros. Também é válido atentar para o tempo, a frequência e a intensidade dos sintomas antes de definir o comportamento observado como um distúrbio. É essencial o cuidado Interdisciplinar frente a esses transtornos, havendo o cuidado biopsicossocial. Também se faz necessária a promoção de práticas inclusivas e adaptativas no contexto relacional, como a escola. DISTÚRBIOS COGNITIVOS Os distúrbios cognitivos são aqueles em que o impacto funcional aparece nas funções cognitivas, como a memória, a atenção, o processamento de informações e, especialmente, as funções executivas. As funções executivas referem-se à habilidade cognitiva de organizar um comportamento como solução para um problema complexo, como aprender e organizar novas informações, formar conceitos, copiar figuras e buscar sistematicamente fatos memorizados. Está profundamente envolvida na ativação de memórias remotas, na independência das contingências ambientais, na mudança e manutenção apropriada de estratégias, geração e utilização adequada de programas motores e capacidade de utilizar a habilidade verbal para guiar o comportamento (GALHARDO; AMARAL; VIEIRA, 2009, p. 255). Os distúrbios cognitivos aparecem frequentemente em casos de demência ou doenças degenerativas, mas podem ter múltiplas origens afetando, assim, níveis diferentes da cognição. Veja no Diagrama 1 alguns dos sintomas de disfunções cognitivas: Diagrama 1. Lista de sintomas de problemas cognitivos. Fonte: ONCOGUIA, 2013, n.p. (Adaptado). Essas alterações funcionais podem se dar de forma reversível em alguns casos, quando decorrentes, por exemplo, de uma experiência traumática recente. Assim, sabe-se que a intervenção trabalha no sentido de resgatar a funcionalidade da cognição do indivíduo. Entretanto, como é mais comum acontecer dada a presença de demências e do envelhecimento, muitos desses problemas agravam-se com o tempo, de forma progressiva. Em ambos os casos, a intervenção multidisciplinar visa retardar essa perda funcional, bem como exercitar o uso de recursos assistivos que permitam manter a autonomia do indivíduo. DISTÚRBIOS DE LINGUAGEM A linguagem é uma das funções humanas mais essenciais. Para muitos teóricos, é ela que nos diferencia dos outros seres vivos, uma vez que, por meio dela, construímos a cultura. A linguagem, como fenômeno psíquico, “situa-se entre aquelas funções psicológicas superiores que possibilitam ao homem a organização de formas complexas de comportamento e atividades simbólicas, qualitativamente distintas da experiênciaanimal” (BEZERRA; ARAUJO, 2013, p. 85). É importante observarmos que a linguagem tem mais de uma função, e podemos classificar isso em dois princípios objetivos: a função conceitual, de nomear os entes da realidade concreta e abstrata; e a função comunicativa, pela qual nos relacionamos com o mundo. Os distúrbios, ou transtornos de linguagem, são aqueles em que a linguagem, no indivíduo, tem o seu desenvolvimento afetado em alguma das suas funções. Os principais distúrbios são a afasia, a apraxia, a agnosia e a inibição cognitiva. Conheceremos um pouco melhor cada um desses quadros e suas características na sequência. // Afasia A afasia é um distúrbio caracterizado pela alteração na função da linguagem. Ela é “uma condição decorrente de uma lesão no cérebro, comumente no hemisfério esquerdo, frequentemente causada por acidentes vasculares cerebrais (AVC's)” (FONTANESI; SCHMIDT, 2016, p. 253). Quando decorrente de AVCs, causa mais comum em pessoas idosas, seu impacto cerebral pode chegar a ser permanente. Como consequência, muitas vezes a afasia acontece associada a deficiências físicas como a hemiplegia (perda total do movimento de um lado do corpo) ou a hemiparesia (perda parcial do movimento de um lado do corpo). Porém, a afasia pode decorrer também de outras doenças ou alterações neurológicas, como tumores, traumas e doenças degenerativas. Veja, na Figura 1, as principais características da afasia e seu impacto nas relações interpessoais. Figura 1. Explicação do conceito e das principais características da Afasia. Fonte: Notícias UFSC, 2018, n.p. (Adaptado). Mas, em termos práticos, como a afasia se apresenta? Ela se expressa principalmente pela [...] desorganização da linguagem, podendo afetar habilidades de acesso ao vocabulário, organização sintática, e codificação e decodificação das mensagens. A depender do tipo de afasia, o indivíduo pode apresentar dificuldades na fluência, compreensão, repetição, nomeação, leitura, escrita, parafasias, agramatismos ou Apraxia [...] (FONTANESI; SCHMIDT, 2016, p. 253). Ou seja, a depender do tipo, os sintomas apresentados pela afasia podem ser diferentes. Esses tipos são definidos de acordo com a região cerebral afetada, e cada um deles afeta de forma diferente a fluência do discurso do indivíduo, a sua compreensão do que é dito, sua capacidade de nomear e de repetir. Veja na sequência o Quadro 2 que lista cada tipo de afasia e seu respectivo impacto. Quadro 2. Tipos de Afasia e seu impacto quanto à fluência, compreensão, nomeação e repetição. Fonte: MONTEIRO, 2019. (Adaptado). As pessoas com afasia geralmente experimentam essa condição na idade adulta, quando o seu desenvolvimento linguístico já está bem consolidado. Dessa forma, são pessoas que, ao longo de toda a vida, foram aptas no uso da linguagem verbal, conseguindo se comunicar tranquilamente. Entretanto, quando são acometidas da afasia como consequência de alguma lesão cerebral, essa função antes bem consolidada acaba ficando comprometida. Isso gera um impacto não apenas na interação social, mas também na saúde mental e na autoestima dos indivíduos. Por isso, é necessário que haja intervenções visando à saúde integral, contando com a Psicologia, a Medicina Neurológica, Fonoaudiologia, Terapia Ocupacional etc. Destaca-se que a pessoa com afasia também pode recorrer a outras estratégias comunicativas não verbais, como as imagens, gestos e escrita, caso não esteja comprometida. // Apraxia de fala É uma perda de capacidade em executar os movimentos que conduzem à fala esperada. A apraxia em si diz respeito à limitação ou à dificuldade de realizar determinados movimentos, a despeito da intencionalidade ou da capacidade estrutural do corpo. Poderíamos dizer, de um modo coloquial, que a Apraxia é quando, por conta de algum dano cerebral, o cérebro não consegue mais comandar adequadamente o corpo, de forma que o corpo passa a lhe "desobedecer". Falando, então, de apraxia da fala, podemos defini-la como um distúrbio motor da fala, no qual as alterações na capacidade de controle do movimento culminam em alterações no aspecto comunicativo. Souza (2009) propõe a seguinte definição: A apraxia da fala é definida como um transtorno da articulação no qual há comprometimento da capacidade de programar voluntariamente a posição da musculatura dos órgãos fonoarticulatórios e a seqüência dos movimentos musculares para a produção de fonemas e palavras. Essas dificuldades de programação de posição e seqüência dos movimentos ocorrem, apesar de sistemas motores, sensoriais, das habilidades de compreensão, atenção e cooperação encontrarem-se preservados. Assim, em um paciente apráxico, um movimento pode ser realizado automaticamente, mas não voluntariamente (SOUZA, 2009, p. 193). Observe agora a Figura 2, que descreve o processo pelo qual a fala é construída, e onde as pessoas com apraxia têm dificuldades. Figura 2. Processo de elaboração da fala e sua relação com a Apraxia. Fonte: SANTANA, 2017. (Adaptado). Perceba que a apraxia não diz respeito à capacidade de adquirir os conceitos da linguagem, ou de entender o que é dito. Também não tem a ver com a incapacidade de o indivíduo construir um raciocínio conceitualmente coerente. Na verdade, o uso da escrita como ferramenta comunicativa por muitas pessoas com apraxia da fala evidencia que a dificuldade desses indivíduos está não no aspecto cognitivo ou interativo da fala, mas na questão motora. O apráxico demonstra, em suas tentativas de falar, que tem clara em sua mente a palavra que deseja emitir, mas que não é capaz de realizar a programação das posturas específicas dos órgãos fonoarticulatórios (OFA) para produzir os sons desejados, na ordem e seqüência adequadas para a articulação da fala (SOUZA, 2008, p. 193). A apraxia da fala tem relação causal com a Síndrome de Down, de forma que 15% dos indivíduos com a Síndrome têm DAS (SOUZA, 2009). O transtorno se apresenta em graus, desde o mais leve, com menor comprometimento, até o severo, que pode apresentar até mesmo a ausência total da fala. O tratamento desse transtorno é desafiador, porém é possível alcançar uma comunicação funcional, tendo como principal recurso a terapia fonoaudiológica. O cuidado com o desenvolvimento psicossocial e motor também é essencial, de forma a garantir que as dificuldades comunicativas não sejam obstáculo para o desenvolvimento saudável do indivíduo nas mais diversas áreas. O diagnóstico precoce é primordial para a melhor eficácia das intervenções e para a promoção da inclusão do indivíduo no contexto familiar, social e educacional. // Agnosia Agnosia diz respeito à dificuldade ou incapacidade de reconhecer elementos da realidade. De modo geral, é um distúrbio que implica em limitações no aspecto da identificação dos objetos. A agnosia pode afetar diversas esferas: o indivíduo pode não conseguir identificar pessoas, sons, cheiros, objetos, símbolos ou gestos. A agnosia auditiva afeta aproximadamente 3% da população mundial, e diz respeito ao não reconhecimento de sons como vozes, mesmo que de pessoas próximas. Sua origem é multicausal, sendo relevantes tanto os aspectos genéticos quanto os ambientais, como memórias traumáticas. Também pode ser adquirida por meio de lesões cerebrais no córtex auditivo e no lobo temporal. Vale ressaltar que a agnosia não é um problema auditivo. Nesse transtorno, pode haver a perfeita captação do som pelo aparelho auditivo, pois não se trata da escuta, mas da discriminação dos sons. Dessa forma, o indivíduo ouve e pode até descrever o que ouve (por exemplo, reconhece que o toque do telefone é um som agudo e estridente, mas não consegue associá-lo à sua origem).Diferença entre deficiência e doença mental transtorno Pode-se dizer que o campo da deficiência e dos transtornos mentais compartilha a mesma origem histórica: “ambos situados na luta pela defesa dos direitos dirigidos a populações com histórico de institucionalização” (SURJUS; CAMPOS, 2014, p. 533). Depois de um tempo, cada campo seguiu caminhos próprios. A saúde mental instaurou-se como um campo de saberes e práticas com foco na desinstitucionalização, devido ao excesso de hospitais psiquiátricos e o tratamento manicomial presente nas formas de cuidado. No Brasil, a instalação dessas práticas se deu de modo gradativo e com a implantação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) como forma de substituir os leitos psiquiátricos. De modo geral, vale a pena situar um pouco da RAPS. Na década de 1970, teve início no Brasil um movimento que hoje é chamado de Reforma Psiquiátrica. Diversos profissionais de saúde protestavam e questionavam o modelo e a forma de tratar pessoas com doenças mentais. O movimento foi tomando força e crescendo, até que em 06 de abril de 2001 foi promulgada a Lei nº 10.216 que dispunha sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtorno mental. Pode-se dizer então que a Reforma Psiquiátrica instituiu novas práticas que têm como objetivo a inclusão social e cultural dos usuários dos serviços de saúde mental. O modelo anterior, o manicomial, era composto por uma série de problemas que não favoreciam o tratamento de sujeitos com transtornos mentais, entre essas o fato de ser hospitalocêntrico, ou seja, sem contato com outros recursos da saúde e da comunidade. Também era um modelo inadequado para a execução de projetos terapêuticos específicos e possuía uma estrutura física fechada, tornando o tratamento limitante em alguns momentos, e incentivando o preconceito e a estigmatização. Assim, aos poucos, a partir da implantação da lei em 2001, os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) foram substituindo progressivamente os hospitais psiquiátricos, que eram excludentes, opressivos e reducionistas (SILVA, 2012, p. 217). Em seu lugar, foi construído um sistema de assistência orientado pelos princípios do SUS, que atua em conjunto com a rede integral, a comunidade e a família. IMPLANTAÇÃO DO SUS E DA RAPS: GARANTINDO DIREITOS O SUS (Sistema Único de Saúde), assim como a Reforma Psiquiátrica, foi surgindo a partir da organização da classe trabalhadora e da população. Durante muito tempo ele foi tomando forma, mas só em 1988 a saúde foi institucionalizada como [...] direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988, n.p.). Até então, a saúde era tratada de outras formas e, por muito tempo, a saúde pública no Brasil foi tratada como privilégio e não como direito social. Isso implica na negação de uma série de direitos à população. Souza (2009) divide o modo como a saúde era oferecida à população brasileira antes do SUS em três períodos históricos: república velha, a era Vargas e a ditadura militar. Vejamos as especificidades em cada modelo. No primeiro período, a saúde era totalmente atrelada às instituições de caridade, mas começa a surgir uma discussão apontando a necessidade da construção de políticas públicas tanto de saúde como de educação, e o movimento sanitarista surge nesse contexto. Na era Vargas, surge uma pequena mudança: O Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC) fornecia assistência médica individual previdenciária aos inseridos formalmente no mercado de trabalho. Por outro lado, a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública (Mesp) atenderia àqueles que não foram abrangidos pela medicina previdenciária, tais como os desempregados e os trabalhadores informais, a ralé propriamente. Os habitantes das zonas rurais, por não trabalharem em regime regular e não contribuírem com as organizações de seguro médico-social, recebiam assistência dispersa de algumas instituições de caridade ou de serviços oficiais. Com essas medidas, o trabalhador formal é explicitamente recompensado pelos serviços de saúde de maior qualidade, pois contribui para a expansão do mercado. Estava, pois, delineada a distinção institucional que marcaria as ações de saúde no Brasil durante décadas (SOUZA, 2009, p. 305). Assim, o acesso aos serviços de saúde mostrava-se mais como recompensa do que como direito. Essa lógica se mantém durante o período da ditadura militar. Surge o Instituto Nacional de Previdência Social, e os trabalhadores formais que contribuíam tinham direito aos serviços, deixando de fora trabalhadores rurais, urbanos informais e desempregados. Em contraponto, “houve grande expansão e reformas de inúmeras clínicas e hospitais particulares com dinheiro público advindo da Previdência Social” (SOUZA, 2009, p. 306). Quadro 3. A saúde no Brasil em três períodos históricos. Estudar a história da saúde e a implantação da RAPS é uma clara expressão de duas formas diferentes de tratamento à população, moldada por um caráter meritocrático: por um lado quem era capaz de contribuir de alguma maneira recebia assistência, e a ralé, que representava a pobreza, recebia pequenas ações de saúde como forma de caridade. À primeira, destinavam-se recursos advindos das contribuições previdenciárias, e à última, investimentos escassos. CITANDO A pobreza não era encarada como um fenômeno estrutural da sociedade, portanto não parecia uma questão social a ser apreciada pela agenda pública (SOUZA, 2009) Embora a Constituição de 1988 venha instaurar novos direitos e novas práticas de saúde, não podemos ignorar esse histórico. Ele é importante para refletir os avanços ao longo do tempo, e também para observar como a manutenção das desigualdades foi sendo administrada no campo da saúde. Todo avanço conquistado pelo SUS foi por meio de muita luta, de muitos embates políticos. Somente a partir de uma mudança nas leis foram criadas novas práticas, o que demonstra como a saúde também se constrói pelo caráter político. Na Lei de nº 8.080 estão descritos os princípios e diretrizes do SUS (BRASIL, 1990). Estes acabam orientando a organização, doutrina e prática dos serviços destinados à pessoa com algum transtorno mental, como apontamos anteriormente. Assim, basicamente podemos citar como objetivos: • Atender todas as pessoas que necessitarem do serviço (universalidade); • Ver as pessoas e suas demandas de saúde de forma completa (integralidade); • Atender a todos os cidadãos, independente de cor, raça, etnia, gênero, orientação sexual, religião, sem qualquer preconceito ou privilégio (igualdade); • Organizar os serviços de saúde evitando oferecer diferentes ações e unidades para um mesmo objetivo (hierarquização); • Prestar assistência igualmente a todas as pessoas, independente de quaisquer condições das pessoas e da demanda (equidade); • Implantar os serviços de saúde perto de onde as pessoas moram sob a gestão municipal e estadual (descentralização); • Garantir a participação da comunidade (participação social); • Não cobrar qualquer valor pelos serviços prestados (gratuidade). Segundo Bittencourt e Boing (2017, p. 54), esses princípios determinam que os serviços sejam organizados em três níveis: Atenção Básica - Conta com uma tecnologia de baixa densidade, e utiliza procedimentos mais simples que atendem a maioria dos problemas comuns de saúde; Atenção Secundária - Demanda profissionais especializados e recursos para apoio de diagnóstico e tratamento; Atenção Terciária - Demanda profissionais especializados e recursos para apoio de diagnóstico e tratamento;Os CAPS organizam-se na atenção secundária e têm uma função estratégica na articulação, assistência e regulação da rede de saúde. É um espaço de referência comunitária, que deve promover cuidado intensivo, individualizado e promotor de vida para os usuários. Seu funcionamento está estabelecido pelas portarias nº 336/2 e 189/2 que direcionam as modalidades de CAPS. Em aspectos gerais, todas as modalidades funcionam, pelo menos, de segunda à sexta. Os horários nos fins de semana ficam a depender do tipo de Centro (AMARANTE, 2007, p. 84). Em linhas gerais, existem dois aspectos diferenciais do CAPS para os demais serviços de saúde. O primeiro deles é o atendimento individualizado às demandas, mediante a realização do Projeto Terapêutico Singular (PTS), que é estabelecido mediante necessidades observadas, contando com o auxílio da equipe. Além disso, o paciente também pode colaborar, comprometendo-se com as decisões tomadas em conjunto. O segundo diferencial é a organização de uma equipe multidisciplinar, com o objetivo de acompanhar os usuários de forma integral, oferecendo cuidado em diversos setores da vida dos pacientes. Amarante (2007) argumenta que o modelo hospitalocêntrico produziu diversas sequelas e desastres na vida de milhares de pessoas. Para esse autor, o processo de ressocialização saudável desses usuários depende dessa equipe multiprofissional, alcançando diversas esferas, como a saúde física, mental, acesso à cidadania, à arte, entre outros direitos. Por outro lado, o campo constitutivo da deficiência intelectual se originou quase que a partir dos anos 2000, a partir de avanços conceituais, como a própria definição desse termo como um marco importante. É válido ressaltar que “a deficiência é enfatizada como condição e deve ser abordada considerando a verificação de apoios necessários e de transformações em seu entorno” (SURJUS; CAMPOS, 2014, p. 533). A definição mais aceita de deficiência intelectual é a proposta pela Association on Intellectual and Developmental Disabilities, que se caracteriza por “limitações significativas no funcionamento intelectual e no comportamento adaptativo, como expresso nas habilidades práticas, sociais e conceituais, originando-se antes dos 18 anos” (SURJUS; CAMPOS, 2014, p. 533). O próprio campo político da deficiência intelectual tem se desenvolvido ao longo dos anos. De maneira geral, diversas pessoas com deficiência têm se envolvido em movimentos políticos que visam à expansão de direitos para esse público. Tem se reivindicado “a grande vulnerabilidade da população com deficiência intelectual em termos de violação de direitos, privação de serviços mínimos de apoio e propensão à institucionalização” (SURJUS; CAMPOS, 2014, p. 534). É possível ver essa vulnerabilidade quando se observa o público de pessoas com deficiência e a ausência de direitos básicos desse público. Em geral, pode-se dizer que “pessoas com deficiência intelectual enfrentam importantes obstáculos para o cuidado de sua saúde, [...] intensificados pela dificuldade de acesso aos serviços, constituindo uma ‘cascata de disparidades’” (SURJUS; CAMPOS, 2014, p. 534). APROXIMAÇÕES E SEPARAÇÕES: DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E TRANSTORNO MENTAL Conforme discutimos, o processo de implantação da Reforma Psiquiátrica não serviu apenas para desinstitucionalizar os hospitais psiquiátricos no Brasil, mas também como ampliação do cuidado, fornecendo a criação de diversas redes de apoio tanto para sujeitos com transtornos mentais como também para pessoas com deficiências intelectuais. Apesar dos grandes avanços e desenvolvimento da luta política das pessoas com deficiência, ainda não há um serviço na Rede de Atenção Psicossocial destinado ao atendimento exclusivo desse público como há com outros: álcool, drogas e crianças, por exemplo. Isso faz com que muitas pessoas com deficiência intelectual sejam atendidas no CAPS, serviço que não é estruturado para atender esse público. Esse fato só contribui para a concepção de que deficiência intelectual e transtorno mental é um único fenômeno. Historicamente uma série de opiniões também alimenta essa visão, que partem muitas vezes de uma perspectiva limitada de um dos fenômenos. Não poucas vezes, a deficiência não é entendida como a insuficiência de uma estrutura, mas como uma doença. Também não é difícil ver o termo "deficiente mental” como uma tentativa de ofender outras pessoas, como uma forma de estigma. Assim, parte de alguns desafios enfrentados pelas pessoas com deficiência ocorre da falta de conhecimento sobre as particularidades de cada quadro clínico. Enquanto o transtorno mental remete a condições de saúde que causam sofrimento e comprometimento de ordem psíquica e geram mudanças na personalidade e comportamento, a DI sempre reflete uma especialidade que ocasiona alterações no desenvolvimento cerebral da pessoa. Não é uma doença, mas um desenvolvimento que ocorre de modo diferente. O entendimento de que são fenômenos diferentes auxiliam a implantação de intervenções diferentes para eles. No caso do transtorno por exemplo, muitas intervenções envolvem terapia constante e medicações, enquanto na deficiência intelectual focam em construir atividades e ferramentas que possibilitam a realização de atividades cotidianas. Definição de transtorno invasivo do desenvolvimento (TID) Seção 4 de 5 Os transtornos invasivos do desenvolvimento (TID) remetem a uma família de distúrbios de socialização que afetam diversas áreas do desenvolvimento. Têm início precoce e são de natureza crônica, isto é, não se resolve em um tempo curto de tratamento e também não apresentam um grande risco de vida. Devido à ampliação da ciência e à discussão sobre os transtornos mentais em geral, tem-se falado com maior frequência sobre essa temática. O TID mais conhecido hoje é o transtorno do espectro autista, mas esse não é o único. Além desses, inclui-se a “Síndrome de Asperger, a Síndrome de Rett, o Transtorno Desintegrativo da Infância e uma Categoria Residual denominada Transtornos Invasivos do Desenvolvimento sem outra Especificação” (PESSIM; HAFNER, 2014, p. 1). Como marcos históricos importantes para a definição do conceito, temos no final dos anos 70 o Journal of Autism and Childhood Schizophrenia para Journal of Autism and Development Disorders, de Rutter, Kolvin e Cohen, e a publicação do DSM-III, que apresentam as discussões iniciais e as temáticas na literatura (MERCADANTE; GAAG; SCHWARTZMAN, 2006). De modo geral, pode-se dizer que os transtornos presentes no quadro de TID comportam três domínios: o social, o da comunicação e o do comportamento. Social porque as habilidades de interação social ficam totalmente prejudicadas. Parte dessa dificuldade se dá devido às dificuldades de comunicação presentes nos sujeitos com TID. Quanto aos comportamentos, eles tendem a ser estereotipados e repetitivos. Na sequência, conheceremos alguns dos transtornos invasivos do desenvolvimento. Essa exposição não é exaustiva, uma vez que existem outros transtornos sobre os quais a produção científica ainda é escassa. Os transtornos que veremos, apesar de pouco abordados nos estudos da Psicologia, são necessários de serem conhecidos, podendo assim haver intervenções mais eficazes. CURIOSIDADE O transtorno do espectro autista é um dos transtornos invasivos do desenvolvimento mais diagnosticados na atualidade, sendo estimado que 1 criança em cada 160 tenha o diagnóstico. Sua principal característica é o prejuízo no desenvolvimento social e linguístico, bem como o estabelecimento da empatia e da percepção emocional. SÍNDROME DE WILLIAMS A Síndrome de Williams é um transtorno do desenvolvimento pouco conhecido e bastante raro. Causada por uma alteração genética que pode atingir ambos os sexos, essa síndrome pode ser identificadaainda nos primeiros anos de vida. Vale ressaltar que ela apresenta um fenótipo peculiar, identificável geralmente pelo nariz pequeno e empinado, os lábios grandes e o sorriso frequente. Entretanto, o impacto da síndrome se dá principalmente no desenvolvimento psicomotor do indivíduo, afetando o equilíbrio, a coordenação motora e o tônus muscular. Além do aspecto psicomotor, indivíduos com Síndrome de Williams podem apresentar deficiência intelectual em níveis diversos e um desenvolvimento psicossocial diferente, especialmente na presença de desinibição, interação espontânea com pessoas desconhecidas e a dificuldade de estabelecer empatia (percepção das emoções do outro). Podemos entender melhor o comportamento da pessoa com Síndrome de Williams em comparação com o TEA. Enquanto um dos principais sintomas de TEA é a esquiva à interação social, a pessoa com Síndrome de Williams apresenta o oposto, chegando a ter uma iniciativa à interação até mesmo inadequada ou arriscada. Nessa síndrome, portanto, é essencial o suporte profissional no desenvolvimento de habilidades sociais, a fim de permitir que o indivíduo consiga, a partir desse cuidado, estabelecer relações seguras e comportamentos desejados no seu convívio coletivo. SÍNDROME DE RETT A Síndrome de Rett é de origem genética que afeta o desenvolvimento neurológico da criança. Essa Síndrome foi identificada por Rett em um grupo de meninas, de forma que, por muitos anos, acreditou-se ser essa uma condição que afetasse apenas as crianças do sexo feminino. Com o passar do tempo, descobrimos que isso não é verdade, apesar de haver maior prevalência nas meninas. Essa condição, apesar de genética, não é hereditária. Nela, o que ocorre é que a criança nasce com seu aparato neurológico saudável, porém a partir de aproximadamente o sexto mês o crescimento do perímetro craniano começa a se lentificar, não crescendo como esperado. Esse tamanho menor do crânio culmina em sintomas motores e cognitivos, bem como a perda de funções que já haviam sido adquiridas anteriormente. Dentre os sintomas da Síndrome de Rett, o mais evidente e característico é o movimento estereotipado das mãos. Esse movimento passa a ser constante e com uma perda significativa das habilidades motoras, podendo inclusive haver a perda da capacidade de andar. O movimento de pegar objetos também fica comprometido, bem como a própria fala, caso já tenha sido adquirida. Esse quadro clínico também está associado a dificuldades respiratórias. Veja o Quadro 4 que traz os principais sintomas da Síndrome de Rett. Quadro 4. Características da Síndrome de Rett. Fonte: Instituto Andaluz, 2018. (Adaptado). O tratamento da Síndrome de Rett deve ser ofertado de maneira multidisciplinar. Uma vez que há um padrão sintomático para a evolução da doença, é possível que os profissionais se utilizem de intervenções para promover a qualidade de vida do indivíduo. Fatores como a alimentação, a prevenção de lesões físicas, a locomoção, as habilidades sociais e a autonomia do sujeito com Síndrome de Rett são habilidades essenciais a serem desenvolvidas por cada um. O diagnóstico precoce, feito entre o 6º e o 18º mês, contribuem para o alcance de uma melhor qualidade de vida. O tratamento da Síndrome de Rett deve ser ofertado de maneira multidisciplinar. Uma vez que há um padrão sintomático para a evolução da doença, é possível que os profissionais se utilizem de intervenções para promover a qualidade de vida do indivíduo. Fatores como a alimentação, a prevenção de lesões físicas, a locomoção, as habilidades sociais e a autonomia do sujeito com Síndrome de Rett são habilidades essenciais a serem desenvolvidas por cada um. O diagnóstico precoce, feito entre o 6º e o 18º mês, contribuem para o alcance de uma melhor qualidade de vida. TRANSTORNO DESINTEGRATIVO DA INFÂNCIA (TDI) O transtorno desintegrativo da infância (TDI) é uma patologia rara, também conhecida como Psicose Infantil por alguns psicopatologistas. Como toda psicose, pode haver como sintoma a perda da capacidade de julgamento e percepção da realidade, bem como a perda dos limites do próprio eu. Pode conter delírios, alucinações e desorganização do discurso. No entanto, a principal característica do TDI é a própria desintegração, ou seja, a perda do que foi estruturado a nível psíquico e funcional. Há a desintegração da estrutura psíquica, culminando na perda da percepção da realidade – a psicose. Há também a desintegração de funções estabelecidas, como a linguagem e as habilidades psicomotoras e sociais. Essa desintegração geralmente ocorre após os três primeiros anos do indivíduo, nos quais o desenvolvimento se dá normalmente. TRANSTORNOS INVASIVOS DO DESENVOLVIMENTO SEM OUTRA ESPECIFICAÇÃO Dentro da psicopatologia, a maioria dos diagnósticos é de inclusão. Ou seja, o indivíduo precisa preencher uma série de critérios diagnósticos para se enquadrar nele. Isso é feito para garantir que os estudos e as propostas de intervenção pensadas para uma determinada patologia seja eficaz para o máximo de pessoas possível dentro da mesma categoria. Em outras palavras, quanto mais preciso o diagnóstico, melhor são realizadas as pesquisas e intervenções nele. Esse é um dos motivos pelos quais você, ao longo da vida profissional, conhecerá vários novos conceitos diagnósticos e documentos de referência como a CID e o DSM. É porque, para que esse diagnóstico seja ainda mais preciso, periodicamente os termos, critérios e observações acerca da patologia são revistos. Entretanto, nem sempre é possível alcançar essa precisão nos diagnósticos. Então, além das categorias inclusivas, também temos as categorias de exclusão, ou residuais. Esse é o caso dos transtornos invasivos do desenvolvimento sem outra especificação (TID-SOE). O TID-SOE é um diagnóstico a que se chega quando o indivíduo apresenta características de um Transtorno Invasivo do Desenvolvimento, mas sem as especificações que permitem o refinamento do diagnóstico, como é possível mais facilmente, por exemplo, na Síndrome de Williams. Essa categoria também [...] não possui regras especificadas para sua aplicação. Alguém pode ser classificado como portador de TID-SOE se preencher critérios no domínio social e mais um dos dois outros domínios (comunicação ou comportamento). Além disso, é possível considerar a condição mesmo se a pessoa possuir menos do que seis sintomas no total (o mínimo requerido para o diagnóstico do autismo), ou idade de início maior do que 36 meses (MERCADANTE; GAAG; SCHWARTZMAN, 2006, p. 514). O alcance desse diagnóstico geralmente é complexo devido à baixa familiaridade dos profissionais de saúde com essa categoria. Também é possível que haja o diagnóstico equivocado, sendo tratado como TEA ou TDAH, principalmente. Assim, é necessário realizar um diagnóstico diferencial e por exclusão, investigando o máximo de possibilidades diagnósticas e traçando comparativos, com base nos critérios diagnósticos de cada uma das opções analisadas. A importância do atendimento multidisciplinar à pessoa com deficiência Uma das práticas interventivas mais comuns em saúde é o uso da equipe multidisciplinar como uma estratégia e método de atuação, visando o desenvolvimento da integralidade do sujeito em atendimento. De maneira geral, entende-se que a deficiência é multifatorial e afeta diversas áreas da vida do sujeito, demandando também uma série de intervenções e estímulos. Não recentemente, a Psicologia tem largado mão de certos pensamentos e visões dicotômicas sobre a experiência do sujeito no mundo. Não há uma separação demarcada, por exemplo, entre sujeito e sociedade, corpo e mente. Isso porque o ser humano é entendido de modo integral, e não apenas como a soma de diversas partes. Assim comoum bolo não é apenas a soma de todos os seus ingredientes, o ser humano não é apenas resultado do funcionamento de partes específicas. Assim, entende-se que não é necessário apenas intervir de maneira direta no fenômeno ao qual a deficiência está atrelada, mas atuar de modo mais amplo. Vamos a um exemplo? Gabriel, de 28 anos, sofreu um acidente de moto enquanto ia para o trabalho. Esse acidente foi bastante grave, fazendo com que ele perdesse o movimento dos membros inferiores de seu corpo. Ele recebeu toda assistência médica desde o momento do acidente, realizando cirurgias e intervenções que reduzissem o dano causado. Gabriel precisou usar cadeira de rodas e outras tecnologias assistivas que contribuíram para a sua adaptação a essa sua nova forma de vida, mas depois de alguns meses sem conseguir trabalhar, ele se sentia triste, pois apresentava uma grande necessidade pessoal de sentir-se útil para alguma coisa. Nesse caso, apesar de ter recebido toda assistência médica necessária, Gabriel também precisava de intervenções feitas por um profissional de Psicologia, por exemplo. A deficiência, de modo geral, por apresentar uma adaptação a um novo estilo de vida, demanda a participação de diversos campos e áreas de estudo que contribuem para o desenvolvimento do paciente. Assim, pode-se dizer que a equipe multidisciplinar consiste em uma modalidade de trabalho em grupo, isto é, coletivo “que se configura na relação recíproca entre as múltiplas intervenções técnicas e a interação dos agentes de diferentes áreas profissionais” (PEDUZZI, 2001, p. 108). EQUIPE DE TRABALHO: CONJUNTO DE AGENTES OU EQUIPE INTEGRADA A diversidade de áreas não deve ser um impedimento para o trabalho e, para isso, a equipe multidisciplinar precisa ter a comunicação muito bem treinada. É comum que essa equipe tenha reuniões semanais para discutir casos, com cada profissional apresentando as contribuições do campo de estudos ao qual pertence, para que juntos tracem estratégias para cada caso em particular. Assim, pode-se dizer que Trabalhar em equipe de modo integrado significa conectar diferentes processos de trabalho, com base no conhecimento do trabalho do outro e valorização da participação deste na produção de cuidados. Significa construir consensos quanto aos objetivos e resultados a serem alcançados pelo conjunto de profissionais, bem como quanto à maneira mais adequada de adquiri-los. Significa também a utilização das interações entre os agentes envolvidos, com vistas ao entendimento e ao reconhecimento recíproco de autoridades de saberes e da autonomia técnica (MACIEL e colaboradores, 2007, p. 12). Peduzzi (2001) apresenta de modo bastante completo e coerente a discussão na temática de equipe multidisciplinar. Para ela, há uma distinção clara entre interdisciplinaridade e multiprofissionalidade. Enquanto o primeiro estaria ligado à construção e produção do conhecimento, ou seja, uma visão mais epistêmica, o segundo remeteria à nossa discussão atual: a uma atuação conjunta de profissionais das mais variadas categorias e campos do saber com o foco em um aspecto específico. É comum que, nesse processo de implantação da equipe multiprofissional, haja um trabalho de integração para que a colaboração possa fluir. Caso isso não aconteça, a equipe não será nada além de um conjunto de profissionais que trabalham em um mesmo lugar. Nesse caso, a fragmentação se sobressai e não se torna possível desenhar estratégias de atuação para o paciente em conjunto. Quando a equipe deixa de ser um conjunto de profissionais e passa a funcionar de modo integrado, pode-se dizer que há uma articulação conjunta com o objetivo de desenvolver ações de saúde mais efetivas. Esse fator é extremamente essencial, pois, como já falamos, o sujeito é integral. Assim, apenas distribuir recursos humanos de diversas áreas do conhecimento em um mesmo espaço de trabalho não é o suficiente para oferecer uma atenção integral. AÇÕES CONJUNTAS E PARTICULARES A atuação dessa equipe multiprofissional deve se dar de mão dupla: na mesma medida que o profissional atua em grupo, contribuindo com seu campo do saber para o planejamento conjunto de intervenções, ele precisa atuar diretamente com o paciente para auxiliá-lo. Em outras palavras, o médico pode dar uma opinião baseada em seus saberes sobre o caso, mas sua atuação não se limita a isso, já que ele também precisa atender os pacientes. Assim, podemos dizer que existem ações conjuntas, feitas por toda a equipe, e ações particulares, realizadas pelo profissional junto ao paciente de modo direto. Quanto à composição da equipe multiprofissional, essa pode variar de acordo com a particularidade de cada tipo de deficiência. Em geral, ela é construída por, pelo menos, um médico e outros dois profissionais das demais áreas da saúde, podendo ser psicólogo, fonoaudiólogo, enfermeiro, nutricionista, farmacêutico, educador físico, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, pedagogo, assistente social, dentre tantas outras opções. Podemos listar alguns aspectos com base em algumas das ações conjuntas, embora sejam muitas e em cada serviço isso pode mudar, sendo eles: Quadro 2. Ações conjuntas da equipe multidisciplinar. Na mesma medida que existem essas atuações comuns, também há atribuições específicas para cada profissional da equipe multidisciplinar. Falaremos de maneira breve sobre as atribuições de alguns, em especial os mais presentes em diversos contextos de equipes multidisciplinares. O profissional mais comum e presente na equipe multidisciplinar é o médico. A especialidade desse médico pode variar, a partir do foco e do campo onde essa equipe atua. Assim, se falamos de uma equipe multidisciplinar de um posto de saúde, o médico normalmente é um clínico geral, e se falamos de um CAPS, o médico é psiquiatra. Esse profissional tem a função de realizar as consultas médicas, diagnosticar os pacientes atendidos e realizar uma avaliação clínica ao menos duas vezes por ano. Ele também realiza a prescrição de remédios, se necessário. Outro profissional frequente em equipe multiprofissional é o profissional de Enfermagem. A depender da complexidade do serviço, a formação pode se dar a nível técnico ou superior. O enfermeiro pode realizar a medida de pressão arterial, altura e peso, medida de cintura e quadril com o objetivo de especificar o índice de massa corporal. Sua principal atribuição é de investigar e orientar os pacientes acerca de fatores de risco e seus hábitos de vida. Assim, ele pode orientar a família ou o próprio usuário do serviço sobre o uso de remédios, fornecer informações sobre o quadro clínico, bem como acompanhar e encaminhar pacientes para o atendimento médico, dentro ou fora do serviço em que o enfermeiro atua. Há, ainda, dois campos profissionais bastante frequentes em diversas equipes multidisciplinares: o profissional de psicologia e o de assistência social. O psicólogo é responsável por fazer os atendimentos e consultas psicológicas do espaço, avaliando os aspectos emocionais, cognitivos e comportamentais que interferem na qualidade de vida do paciente. Ele também observa fatores como o estresse e a adesão ao tratamento. Pode também atuar com a equipe e a família, treinando observar e intervir nesses aspectos. DICA É importante reiterar que os campos do saber não abordados aqui não são menos importantes. O critério de escolha para discussão foi a frequência em diversas equipes multidisciplinares. Você pode e deve buscar mais informações acerca da atuação de muitas outras áreas e suas contribuições para a saúde e inclusão de pessoas com deficiência. Em alguns casos, atua também com uma visão voltada para o grupo de trabalho, visando promover saúde mental no espaço em que atua, auxiliandona criação de um ambiente saudável e harmônico para o desenvolvimento de um trabalho conjunto entre todos. O assistente social, por sua vez, realiza atividades como a entrevista social para identificação da condição socioeconômica do paciente, realiza levantamento de expectativas quanto ao tratamento e coleta dados referentes ao trabalho e situação previdenciária. Faz, ainda, a atualização dos cadastros de programas sociais dos pacientes e atua no atendimento de orientações às possíveis dúvidas referentes aos direitos da população. As equipes multidisciplinares em saúde normalmente funcionam com a presença de técnicos de referência, que são profissionais das diversas áreas do saber e que se dividem e ficam sob a responsabilidade do acompanhamento do tratamento de um número específico de usuários. Os técnicos podem ser de qualquer campo do saber: psicologia, enfermagem, assistência social ou outras áreas. A divisão é apenas uma forma estratégica para que cada usuário do serviço seja cuidado e receba uma atenção individualizada e especial. Assim, é de responsabilidade do técnico de referência do usuário realizar uma busca mais ativa dos faltantes ao tratamento, além de realizar um levantamento do caso quando necessário nas reuniões de equipe e realizar a elaboração do Projeto Terapêutico Singular (PTS) de cada paciente. Falaremos sobre o PTS em breve. Por hora, é importante dizer que a equipe multiprofissional com o foco na deficiência é composta pelos mesmos aspectos já previamente citados. Como sabemos, a deficiência não é um fenômeno estático, já que existem diversos tipos e quadros clínicos. Cada tipo de deficiência vai demandar a estruturação de uma equipe com profissionais diferentes e com focos de intervenção também diferentes. Uma pessoa com tetraplegia, por exemplo, não precisa de um tratamento com um fonoaudiólogo, o que pode tornar a presença de um na equipe pouco funcional para esse usuário, enquanto outros com paralisia cerebral necessitam bastante desse profissional. Isso mostra que, assim como cada deficiência é particular, a formação da equipe também tem essa mesma particularidade. Conforme apresentamos, uma das estratégias utilizadas em todos os casos e profissionais é o Projeto Terapêutico Singular (PTS), que se caracteriza como uma ferramenta de planejamento do trabalho que será realizado, e cada paciente em atendimento possui um PTS específico que é atualizado de modo frequente durante o tratamento. O PTS pode levar em conta aspectos comuns dos usuários, como diagnóstico, comorbidades, padrão de vida, mas também leva em conta o que há de pessoal (história pessoal, capacidades, dificuldades, habilidades, apoio ou ausência da família no tratamento, participação do usuário em alguma atividade de trabalho, suas escolhas no tratamento etc.). Larentis e Maggi (2012) delimitam ainda que esse PTS é de evolução contínua, possibilitando uma troca ou renovação dos planejamentos e metas. Assim, essa ferramenta se configura como uma forma de cuidado integral, humanizado e personalizado. Agora é a hora de sintetizar tudo o que aprendemos nessa unidade. Vamos lá?! SINTETIZANDO No processo de inclusão social, precisamos ir além do conceito de deficiência e nos atentar para toda diferença humana que demande estratégias de promoção de igualdade no âmbito social. Algumas dessas diferenças são os distúrbios cognitivos, do comportamento e da linguagem, os quais afetam respectivamente as funções cognitivas, comportamentais e de comunicação. Descobrimos que não existe apenas um distúrbio do comportamento, mas sim vários, que podem afetar o comportamento frente à autoridade, o comportamento alimentar, a comunicação, a capacidade de atenção e autocontrole, entre outros. Esses distúrbios podem decorrer de lesões cerebrais, como o AVC, de desenvolvimento inadequado das funções linguísticas, por exemplo. Vimos que a deficiência e o transtorno mental são nomes dados a conceitos muito diferentes, mas que têm como suporte para as políticas de atenção a Reforma Psiquiátrica, o modelo antimanicomial e a Reforma Sanitária. Também estudamos sobre os transtornos invasivos do desenvolvimento, que são aqueles em que há um prejuízo significativo no desenvolvimento do indivíduo, não apenas em um aspecto pontual, mas de forma global. Um desses transtornos é a Síndrome de Williams, uma condição genética marcada pelo fenótipo característico e pela baixa inibição e grande iniciativa para o contato social, podendo afetar a funcionalidade do indivíduo. Já a Síndrome de Rett, que também tem origem genética, apresenta desenvolvimento tardio dos sintomas e o aparecimento da doença, além da inquietação e dos movimentos repetitivos das mãos. O Transtorno Desintegrativo da Infância, também relacionado à Psicose Infantil, é caracterizado pela perda de funções anteriormente bem desenvolvidas. Por fim, entendemos a importância do atendimento multidisciplinar, uma vez que essa perspectiva multidisciplinar rompe com as visões binárias de corpo-mente ou indivíduo- sociedade. Além disso, permite que as intervenções propostas ao indivíduo sejam realizadas através da contribuição de diversas áreas do conhecimento, e sejam pensadas a partir de suas particularidades.
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