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Guia de aula Agente Facilitador de Carnavais e Festas Populares Festas Rituais e sociedade Semana 3 Ritual e Simbolismo Agente Facilitador em Carnavais e Festas Populares 1 Apresentação Rituais são, sem dúvida, uma parte integral e fascinante da existência humana, permeando todos os aspectos de nossas vidas, muitas vezes de maneiras que nem mesmo percebemos conscientemente. A beleza dos rituais reside em sua diversidade e ubiquidade, desde os atos mais mundanos até cerimônias complexas e profundamente significativas. Ao considerar algo tão rotineiro quanto o ato de escovar os dentes, podemos começar a desvendar a rica tapeçaria de práticas ritualísticas que moldam nosso cotidiano. Este ato diário transcende sua funcionalidade básica, transformando-se em um marco de autocuidado e ordem pessoal, refletindo a natureza ritualística de nossas rotinas. Expandindo nossa visão para além da esfera pessoal, percebemos que rituais abrangem uma vasta gama de práticas, das sagradas às seculares, das pessoais às coletivas. Eles não se limitam apenas a práticas religiosas ou cerimônias elaboradas, mas também incluem gestos cotidianos como apertos de mão, cumprimentos e até o ato de preparar uma refeição. Esses rituais, por mais simples ou complexos que sejam, desempenham um papel crucial na definição do tecido social, ajudando-nos a navegar e a dar sentido às nossas relações interpessoais e ao mundo ao nosso redor. Em um nível mais profundo, os rituais refletem e reforçam valores, crenças e tradições, atuando como veículos através dos quais culturas e identidades são expressas, preservadas e transmitidas de geração em geração. Eles são, em sua essência, uma expressão viva da criatividade humana, da busca por significado e da necessidade de conexão com algo maior do que nós mesmos. Ao ampliar nossa compreensão dos rituais para além de suas manifestações mais óbvias, abrimos a porta para uma apreciação mais rica da complexidade e beleza das práticas que definem e enriquecem a experiência humana. Essa percepção nos permite ver além do ordinário, reconhecendo a magia e o mistério tecidos nas rotinas do dia a dia e nas cerimônias que marcam nossas vidas. Agente Facilitador em Carnavais e Festas Populares 2 Objetivo(s) Ao final dos estudos dessa semana, esperamos que você seja capaz de: • Entender o que é ritual e interpretar símbolos em rituais e festas. • Compreender como símbolos atuam em rituais e festas. • Entender a importância dos rituais e festas como marcadores temporais da vida em sociedade.. Plano de estudos Nesta semana, você deverá: 1) Ler a trilha de aprendizagem e guia de estudos semanal Agente Facilitador em Carnavais e Festas Populares 3 O que é ritual? Ao abordarmos o conceito de ritual, é essencial evitar definições demasiadamente rígidas e absolutas. É crucial que essa definição reflita as descobertas da etnografia, uma ferramenta vital da antropologia para compreender o funcionamento das sociedades. Isso implica que, ao invés de impormos uma interpretação, devemos consultar aqueles que praticam o ritual para entender o que consideram distintivo e relevante em suas práticas sociais. O conceito de eventos rituais é fundamental para a compreensão das práticas culturais e sociais de uma sociedade. Os rituais podem variar grandemente em sua forma e significado, refletindo a diversidade e complexidade das culturas humanas. Existem rituais profanos e sagrados, onde os primeiros são geralmente associados a atividades cotidianas e os segundos a práticas religiosas ou espirituais. Os rituais religiosos são frequentemente profundamente simbólicos, envolvendo a veneração de divindades ou a busca por uma conexão espiritual. Por outro lado, os rituais festivos, como celebrações de marcos importantes, aniversários e feriados nacionais, tendem a enfatizar a alegria, a união comunitária e o entretenimento. A simplicidade ou elaboração de um ritual também varia significativamente. Alguns podem ser atos íntimos e pessoais, como uma oração silenciosa, enquanto outros podem ser grandes e complexos, como uma cerimônia de coroação. Agente Facilitador em Carnavais e Festas Populares 4 Além disso, rituais podem ser formais ou informais. Os formais geralmente têm regras e procedimentos estruturados, muitas vezes transmitidos através de gerações, como em casamentos tradicionais ou cerimônias de iniciação. Já os informais podem ser mais espontâneos e adaptáveis, refletindo as necessidades e circunstâncias contemporâneas. Quando cientistas sociais estudam rituais, eles buscam entender não apenas a estrutura e a execução dos rituais, mas também seu significado e impacto na sociedade. Isso envolve analisar como os rituais fortalecem as relações sociais, transmitem valores e normas culturais, e contribuem para a identidade e coesão de um grupo. Por exemplo, rituais de passagem, como cerimônias de formatura ou casamentos, marcam a transição de um indivíduo para um novo estágio de vida, reforçando laços sociais e normas culturais. Essa análise dos rituais ajuda a revelar as crenças subjacentes, valores e estruturas de poder dentro de uma sociedade. Além disso, permite compreender como as tradições se adaptam ou resistem às mudanças ao longo do tempo, oferecendo uma janela para o dinamismo cultural e social. Os rituais indígenas são partes integrantes das apresentações dos dois principais grupos do Festival de Parintins (AM), os Bois-bumbás Garantido e Caprichoso. Um dos momentos mais marcantes e emocionantes do festival é o Ritual Indígena. Sob a liderança do Pajé, figura central nas tradições indígenas e um dos itens avaliados no festival, o ritual representa uma recriação de rito xamanístico. Essa apresentação é um dos grandes destaques de cada boi, marcada pela interação intensa com a galera, ou seja, os torcedores e o público. O Pajé, atuando como o curandeiro ou xamã, conduz esses rituais, reforçando o Assista aos vídeos Assista aos vídeos com trechos da encenação de rituais indigenas no Festival de Parintins (AM). No primeiro o Boi Caprichoso encena o Rito de Iniciação Munduruku Marupiara. Já no segundo o Boi Garantido encena a iniciação das mulheres Saterê-Mawé na "Cerimônia da Moça Nova". Agente Facilitador em Carnavais e Festas Populares 5 simbolismo da força e beleza indígena, e é considerado um dos itens individuais avaliados pelo júri. Além do Pajé, outros elementos como a Cunhã Poranga, que simboliza a moça bonita, guerreira e guardiã, também contribuem para a representação cultural indígena no festival. Cada apresentação do festival é única, com alegorias, indumentárias e rituais variados, refletindo a riqueza da cultura indígena e amazônica. O festival, assim como as escolas de samba do Rio de Janeiro, é também uma competição. Os bois são avaliados em vários itens, tanto individuais quanto coletivos, por uma comissão de jurados. Os rituais indígenas são um dos itens coletivos avaliados, juntamente com outros como a evolução do boi bumbá, a batucada ou marujada (grupos rítmicos dos bois), toadas (letras e músicas), tribos indígenas, tuxauas (representação do universo indígena e caboclo), entre outros. Podemos entender disto que um ritual é uma forma de comunicação cultural. Consiste em sequências específicas e padronizadas de palavras e ações, muitas vezes expressas de várias maneiras. Estas sequências têm características como formalidade, rigidez e repetição. O ritual não é apenas sobre o que se diz, mas também sobre o que se faz, como o ato de posse do Rei Momo nos dias de carnaval e que normalmente é respondido ao prefeito com a saudação carnavalesca "evoé" -expressão de origem grega que era utilizada em festivais e rituais em homenagem ao deus Dionísio, o deus do vinho, da festa e do êxtase. E os símbolos? Osimbolismo é uma técnica artística e literária fundamental, onde símbolos são empregados para representar ideias e emoções que não podem ser expressas de maneira direta e literal. Esta prática pode ser encontrada em diversas formas de expressão humana, como na arte, na literatura, na música e até mesmo em rituais culturais e religiosos. A força do simbolismo reside na sua capacidade de evocar conceitos e sentimentos complexos de maneira sutil e muitas vezes intuitiva, permitindo uma comunicação que transcende as palavras ou imagens comuns. Os símbolos utilizados podem ter origens variadas, sendo alguns universais, enquanto outros são específicos de determinadas culturas ou contextos históricos. Por exemplo, a pomba frequentemente simboliza a paz em muitas culturas, enquanto a cor vermelha pode representar paixão, perigo ou Agente Facilitador em Carnavais e Festas Populares 6 outras emoções dependendo do contexto cultural. O simbolismo pode ser muito pessoal e subjetivo, com o mesmo símbolo tendo significados distintos para pessoas diferentes, refletindo suas experiências, crenças e antecedentes culturais. No contexto literário, o simbolismo permite que escritores expressem ideias complexas e temas multifacetados de uma maneira que é tanto rica em significado quanto esteticamente agradável. Em poesia, por exemplo, o uso de metáforas e alegorias muitas vezes depende fortemente do simbolismo para transmitir emoções e ideias profundas de forma condensada e poderosa. Na arte visual, o simbolismo pode ser encontrado na escolha de cores, formas e composição, onde cada elemento pode ter um significado específico que contribui para a interpretação geral da obra. Os artistas usam o simbolismo para expressar pensamentos e sentimentos que talvez não possam ser capturados através de representações diretas, permitindo uma forma de expressão que fala diretamente ao subconsciente ou às emoções do espectador. Além disso, o simbolismo desempenha um papel crucial em rituais e práticas religiosas, onde símbolos e rituais podem representar crenças profundas, valores e a história de uma comunidade. Em muitas tradições, esses símbolos ajudam a conectar os indivíduos com o divino, o transcendental ou com aspectos mais profundos de sua própria identidade e história. Figura 1 - Alegoria "Adeus Capitão" da Imperatriz Leopoldinense campeã do carnaval de 2023-Foto de Lorrana Penna (Mídia Ninja) Agente Facilitador em Carnavais e Festas Populares 7 Em um turbilhão de cores e ritmos, o carnaval se desdobra pelo globo como um mosaico de culturas, cada uma destilando seus rituais e tradições em uma celebração efervescente. Mas é no Brasil onde o carnaval ascende a um espetáculo de significados, com as escolas de samba transformando a avenida em um palco épico de narrativas vivas. Observamos que além das máscaras, que em Veneza e Nova Orleans ganham contornos de mistério e liberdade, o Brasil eleva o simbolismo a outro patamar com seus carros alegóricos. Não são meros veículos decorados; são cápsulas do tempo, narrativas rolantes que compõem nossa identidade. Cada escola de samba, com seu enredo, tece uma história que transcende a pura alegria do samba. São odes visuais e musicais que exploram desde os mitos ancestrais até os debates contemporâneos. Um carro alegórico sobre a história brasileira, por exemplo, não é apenas um objeto; é uma cátedra móvel que fala de descobertas, de conflitos e de resistências culturais. Observando, com olhos de quem busca entender as entrelinhas, que cada detalhe nos carros alegóricos carrega um peso simbólico: cores que narram emoções, formas que delineiam histórias, materiais que refletem nosso ambiente. O dourado pode ser uma alusão à opulência ou ao sagrado, enquanto figuras animais podem ser emblemas de forças naturais ou de características humanas. As escolas de samba, em sua engenhosidade, também transformam esses carros em plataformas de comentário social e político. Ao abordar temas como desigualdade, direitos humanos ou a crise ambiental, esses carros alegóricos se tornam mais que espetáculos; são manifestos rolantes, que desafiam, questionam e educam. Agente Facilitador em Carnavais e Festas Populares 8 Rituais e o tempo Os rituais, conforme analisado pelo folclorista holandês Arnold van Gennep, desempenham um papel crucial na estruturação do tempo e na demarcação de transições significativas dentro das sociedades. Van Gennep, com sua visão inovadora, introduziu o conceito de "rito de passagem", enfatizando a importância desses rituais como marcadores de mudanças e transições para novas fases da vida ou alterações de status dentro de um grupo social. A abordagem de Van Gennep destaca-se por dividir os ritos de passagem em três fases distintas, cada uma com um papel específico no processo de transição. A primeira etapa, a separação, envolve o distanciamento do indivíduo de seu estado ou papel anterior. É um momento de desligamento, onde se inicia o processo de deixar para trás uma fase ou status específico. Este momento pode ser visto em diversos contextos, como rituais de iniciação, casamentos ou cerimônias de formatura, onde o indivíduo se prepara para entrar em um novo estágio da vida. A segunda fase, conhecida como liminaridade, é talvez a mais intrigante e complexa. Nesta etapa, o indivíduo encontra-se num estado transitório, nem mais pertencendo ao seu status anterior, nem ainda integrado ao novo. Esta fase é marcada por uma sensação de ambiguidade e incerteza, muitas vezes acompanhada de provações ou ensinamentos. É um período de transformação, onde as estruturas sociais normais são temporariamente dissolvidas, permitindo a formação de novas identidades ou a aquisição de novos papéis. A liminaridade Artigo "Formas do efêmero: alegorias em performances rituais" Alegoria é um termo nativo que designa os grandes carros decorados que integram o desenrolar das performances rituais contemporâneas do Bumbá de Parintins, Amazonas, e do Carnaval das escolas de samba no Rio de Janeiro. Construídas para a fruição ritual, as alegorias produzem efeitos decisivos na dinâmica das apresentações festivas anuais. Assumindo o ponto de vista do espectador e baseada em pesquisas etnográficas, analiso e comparo as distintas modalidades de ação das alegorias, em especial a produção diferenciada do almejado efeito de maravilhamento e os riscos aí implicados. O artigo de Maria Laura Cavalcanti é uma leitura complementar disponível no AVA. Agente Facilitador em Carnavais e Festas Populares 9 é frequentemente vista como um período de perigo ou crise, devido à sua natureza indefinida e ao potencial de mudança que carrega. Finalmente, a terceira fase é a de incorporação, onde o indivíduo emerge do estado liminar e é reintegrado à sociedade com um novo status ou identidade. Esta fase é muitas vezes acompanhada de rituais ou cerimônias que celebram e reconhecem formalmente a nova posição ou fase de vida do indivíduo. A possibilidade de separação ou reintegração nesta etapa final ressalta a flexibilidade e a adaptabilidade dos rituais para lidar com diferentes desfechos. . Este momento extraordinário marca nossas vidas. Quem nunca ouviu alguém dizer que "no brasil as coisas só funcionam depois do carnaval". O carnaval é um importante marcador do tempo em nossa sociedade. A análise do carnaval por Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti se aprofunda nas dinâmicas sociológicas e culturais que definem essa festa popular. Em seu livro "Carnaval Carioca: dos Bastidores ao Desfile", Cavalcanti explora a complexa relação entre o desfile e a cidade do Rio de Janeiro, destacando como ele serve como uma arena para confrontos de forças políticas e culturais. Ela ressalta a natureza do desfile não apenas como um evento, mas como um processo contínuo que começa logo após o término do carnaval anterior, integrandodiversas camadas sociais e culturais da cidade. Este aspecto reflete a ideia do "ano carnavalesco", onde o carnaval não é um momento isolado, mas uma parte contínua e influente da vida social e cultural. Dica de Podcast: "Arte e Antropologia Podcast Arte e antropologia - Liminaridade e Comunitas. Neste episódio uma análise do capítulo "liminaridade e Comunitas" do livro "O Processo Ritual" de Victor Turner. Ouça na Trilha de Aprendizagem. Agente Facilitador em Carnavais e Festas Populares 10 A temporalidade particular do carnaval, conforme explorada por Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti e outros estudiosos, desempenha um papel significativo na vida dos moradores das cidades, especialmente em locais como o Rio de Janeiro, onde o carnaval é uma instituição cultural profundamente enraizada. Este fenômeno pode ser ilustrado pelo exemplo de pessoas que relacionam eventos marcantes de suas vidas ao samba que sua escola de samba apresentaria no ano seguinte. Essa conexão entre eventos pessoais significativos e o samba de uma escola de samba pode ser vista como uma manifestação do conceito de "ano carnavalesco". Neste contexto, o carnaval não é apenas um evento isolado no tempo, mas uma referência contínua ao longo do ano. Os cidadãos que vivem essa realidade tendem a marcar o tempo e suas experiências pessoais com base nos ciclos do carnaval. Assim, um evento importante em suas vidas, como um casamento, nascimento, ou até uma perda, pode ser lembrado e celebrado em relação ao samba que estava sendo preparado ou apresentado pela sua escola de samba naquele ano. Esse fenômeno reflete a integração profunda do carnaval na vida cotidiana dos cidadãos, onde a festa, a música e a dança do carnaval servem como um pano de fundo para experiências pessoais e coletivas. A música de carnaval, especialmente o samba, é mais do que entretenimento; ela se torna um meio de expressão emocional e uma forma de documentar a história pessoal e coletiva. Por exemplo, um samba-enredo pode contar uma história que ressoa com as experiências dos membros da comunidade, tornando-se uma parte integral de suas memórias. Quando as pessoas se lembram de eventos significativos, elas podem associá-los ao samba-enredo desse ano, criando uma narrativa pessoal que está intrinsecamente ligada ao calendário carnavalesco. Além disso, essa temporalidade do carnaval permite que os eventos da vida cotidiana sejam vistos através de uma lente festiva e coletiva. Isso oferece uma forma de lidar com as alegrias e tristezas da vida, integrando-as em um Agente Facilitador em Carnavais e Festas Populares 11 contexto cultural mais amplo. O carnaval, portanto, não é apenas uma celebração anual, mas um elemento constante que molda a percepção do tempo, a memória e a identidade dos indivíduos nas cidades. Bibliografia PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Zahar Ed; 2003. CAVALCANTI, Maria Laura. Carnaval Carioca: dos Bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006. ___________________________. "Formas do efêmero: alegorias em performances rituais". In: Ilha Revista de Antropologia, vol. 13, n. 1 e 2, 2011. GENNEP, Arnold van. Ritos de Passagem. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. TURNER, Victor W. O Processo Ritual: Estrutura e Antiestrutura. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
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