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Química Farmacêutica Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Dr.ª Carina Rodrigues Amorim Revisão Textual: Maria Cecília Andreo Introdução à Química Farmacêutica Introdução à Química Farmacêutica • Estudar aspectos importantes para a ação biológica dos fármacos: interações entre fármaco- -receptor e fatores tridimensionais dinâmicos importantes a esse reconhecimento, como volume molecular do fármaco, as distâncias interatômicas e o arranjo espacial entre os grupa- mentos farmacofóricos. OBJETIVO DE APRENDIZADO • Interações entre Fármacos e Receptores; • Fatores Estereoquímicos e Conformacionais Envolvidos na Interação Fármaco e Receptor. UNIDADE Introdução à Química Farmacêutica Interações entre Fármacos e Receptores Você já pensou como os fármacos atuam de formas distintas e seletivas no sistema biológico? O estudo da fase farmacodinâmica está relacionado com as interações dos fárma- cos (micromoléculas) com sítios de ação dos receptores (biomacromoléculas) no sistema biológico. Essas interações ocorrem entre forças intermoleculares atrativas e repulsivas, isto é, interações eletrostáticas, hidrofóbicas e estéricas. A partir da resposta biológica dos fármacos, é possível classificá-los em dois grandes grupos: fármacos estruturalmente inespecíficos e específicos. Lembre-se de que as interações eletrostáticas e hidrofóbicas estão relacionadas aos tipos de ligações químicas entre as moléculas e as estéricas ao volume da molécula e distância entre os grupos desta. Os fármacos estruturalmente inespecíficos são aqueles que dependem única e exclu- sivamente de suas propriedades físico-químicas para promover ação farmacológica, por exemplo, solubilidade e constante de ionização. Geralmente, têm uma dose eficaz alta, ou seja, necessitam de altas doses para surtir ação farmacológica. Os anestésicos gerais, como halotano, isoflurano e sevoflurano, são exemplos de substâncias que pertencem a essa classe de fármacos, uma vez que seu mecanismo de ação envolve depressão do sis- tema nervoso central e diminuição da neurotransmissão, devido à interação inespecífica com sítios lipofílicos de proteínas do sistema biológico, provocando perda de consciência. Nesse caso, em que a complexação do fármaco com macromoléculas do sistema biológico ocorre predominantemente por meio de interações de Van der Waals, a lipossolubilidade do fármaco está diretamente relacionada à sua potência (BARREIRO; FRAGA, 2015). Outro exemplo de fármacos inespecíficos são os antiácidos, como hidróxido de mag- nésio e hidróxido de alumínio, utilizados para tratar os sintomas da secreção excessiva de ácido gástrico. Essas substâncias apresentam características básicas e atuam por meio de reação química com o excesso de ácido gástrico neutralizando o meio, forman- do sal e água (HANG, 2016). Os fármacos estruturalmente específicos exercem seu efeito biológico pela interação seletiva com um determinado receptor que, na maior parte dos casos, são enzimas, recep- tores metabotrópicos (acoplados à proteína G), receptores ionotrópicos (acoplados a canais iônicos), receptores ligados a quinases, receptores nucleares e, ainda, ácidos nucleicos. O reconhecimento molecular do fármaco pelo receptor é dependente das proprieda- des da estrutura química do fármaco, que devem ser complementares ao sítio de ação localizado na biomacromolécula, ou seja, no receptor. Emil Fischer, químico alemão, propôs representar as interações entre fármacos e re- ceptores com o modelo chave-fechadura. Esse modelo considera o receptor como fecha- dura, e a chave, como fármaco. Na aplicação desse modelo, a ação de “abrir a porta” ou 8 9 “não abrir a porta” representa as respostas biológicas decorrentes da interação chave- -fechadura. A Figura 1 demonstra os três principais tipos de chaves: Figura 1 – Modelo chave-fechadura ilustrando as interações entre fármacos e receptores Fonte: BARREIRO; FRAGA, 2015, p. 21 • Chave original: Encaixa-se adequadamente à fechadura, permitindo a abertura da porta – corresponderia ao agonista natural (endógeno) ou substância natural, que interage com o sítio de ação do receptor localizado respectivamente em uma proteína-receptora ou enzima, desencadeando uma resposta biológica; • Chave modificada: Tem propriedades estruturais que a torna semelhante à cha- ve original e permitem seu acesso à fechadura e consequente abertura da porta – corresponderia ao agonista modificado do sítio de ação do receptor, sintético ou de origem natural, capaz de ser reconhecido complementarmente pelo sítio de ação do receptor e promover uma resposta biológica semelhante àquela do agonista natural, mas com diferentes magnitudes; • Chave falsa: Apresenta propriedades estruturais mínimas que permitem seu acesso à fechadura, sem, entretanto, ser capaz de permitir a abertura da porta – correspon- deria ao antagonista, sintético ou de origem natural, capaz de se ligar ao sítio receptor sem promover a resposta biológica e bloqueando a ação do agonista endógeno e/ou modificado (BARREIRO; FRAGA, 2015). O grau de afinidade e a especificidade da ligação entre o fármaco e o receptor são determinados por interações intermoleculares, que compreendem forças eletrostáticas, tais como: iônicas, íon-dipolo, dipolo-dipolo, ligações de hidrogênio, ligações covalentes e interações hidrofóbicas. Forças Eletrostáticas As forças de atração eletrostáticas ocorrem a partir da interação entre dipolos e/ou íons de cargas opostas que são formados nos fármacos e estão presentes nos receptores. No pH fisiológico, alguns aminoácidos presentes nos receptores se encontram ioniza- dos, formando cargas positivas ou negativas, por exemplo, os aminoácidos com caráter básico (arginina, lisina, histidina) e aminoácidos com caráter ácido (ácido glutâmico, ácido aspártico), podendo interagir com fármacos que apresentem grupos carregados negati- va ou positivamente. Portanto, as interações eletrostáticas entre fármacos e receptores 9 UNIDADE Introdução à Química Farmacêutica acontecem pela atração de dipolos ou cargas opostas, como veremos em alguns exem- plos adiante (LEMKE, 2008). Ligação Iônica As ligações iônicas são caracterizadas pela interação entre íons, ou seja, uma molé- cula com carga positiva (cátion) interage com outra molécula com carga positiva (ânion). A Figura 2 ilustra esse tipo de ligação entre um fármaco com o átomo de oxigênio ionizado (carga negativa) solvatado (interagindo com moléculas de água do meio) e um receptor com o átomo de nitrogênio ionizado (carga positiva) também solvatado. Portan- to, ocorre a atração entre essas cargas opostas, permitindo a interação entre fármaco e receptor liberando as moléculas de água (LEMKE, 2008). Fármaco ionizado solvatado Receptor ionizado solvatado Interação iônica Entre fármaco e receptor R R R R H H H H H H H H H H H H H H H H H H H H H H HO O O O O O O O O O O OH + N + C H2 N + C H2 - - Figura 2 – Demonstração da interação iônica entre fármaco e receptor Fonte: Adaptada de BARREIRO; FRAGA, 2015 Um exemplo de fármaco que interage com o sítio de ação por meio de ligação iônica é o flurbiprofeno, como podemos analisar na Figura 3. O átomo de oxigênio do grupo carboxilato do fármaco flurbiprofeno encontra-se ionizado (carga negativa) interagindo com o resíduo do aminoácido arginina na posição 120 (Arg 120) da prostaglandina (PGHS) – receptor. Nesta figura também podemos observar essa interação na forma tridimensional (FRAGA, 2001). Figura 3 – Exemplo da interação iônica entre o flurbiprofeno e o sítio de ação Fonte: qnesc.sbq.org 10 11 Interação Íon-Dipolo Força resultante da interação de um íon (carga positiva ou negativa) e uma molécula neutra polarizável, com carga oposta àquela do íon. Na Figura 4 podemos observar um esquema de interação íon-dipolo entre um fármaco e um receptor. O átomo de carbono do grupo carboxilato do fármaco apresenta um dipolo positivo, que interage com o íon oxigêniocom carga negativa no sítio do receptor (LEMKE, 2008). R O O OC Receptor Fármaco Interação íon-dipolo - R Figura 4 – Esquema demostrando a interação íon-dipolo entre fármaco e receptor Interação Dipolo-Dipolo É uma interação entre dois grupamentos com polarizações de cargas opostas. Essa polarização decorre da diferença de eletronegatividade entre os átomos. Átomos com maior eletronegatividade, como o oxigênio, o nitrogênio e o halogênio, são capazes de atrair os elétrons ao qual estão ligados e aumentar a densidade eletrônica, formando polos negativos. Consequentemente, ocorre a redução da densidade eletrônica sobre o átomo a que estão ligados, formando um polo positivo. A Figura 5 ilustra esse tipo de interação onde os átomos de oxigênio, do fármaco e do receptor, devido a alta eletronegatividade, formam dipolos negativos, estes dipolos interagem com os dipolos positivos dos átomos de carbono, desta forma ocorre a inte- ração dipolo-dipolo (LEMKE, 2008). Fármaco Interação dipolo-dipolo Receptor C O R C O O R Figura 5 – Exemplo de interação dipolo-dipolo entre fármaco e receptor 11 UNIDADE Introdução à Química Farmacêutica Ligação de Hidrogênio As ligações de hidrogênio são as mais importantes e abundantes interações existentes nos sistemas biológicos e nas interações fármaco e receptor. Essas interações são for- madas entre átomos eletronegativos, como oxigênio, nitrogênio, e flúor com o átomo de hidrogênio (O-H, N-H e F-H), por meio de suas polarizações. Esses grupos apresentam características de doadores de H, em que a ligação ocorre com grupos aceptores de hidrogênio, ou seja, recebem os átomos de hidrogênio. Esses grupos são demonstrados na Figura 6 (LEMKE, 2008; BARREIRO; FRAGA, 2015). Doadores de Ligações de Hidrogênio Aceptores de Ligação de Hidrogênio R R R R R O O O N S S 2 1 R1 R1 R1 R2 H H H O N F C2 O R2R1 N R2 R2 R1 R2R1 O R R R R H H H O N F C2 Figura 6 – Grupos doadores e aceptores de hidrogênio Fonte: Adaptada de BARREIRO; FRAGA, 2015 Entre os diversos fármacos que se ligam aos receptores por meio dessas interações, a Figura 7 demostra como exemplo o antiviral saquinavir interagindo com os resíduos de ácido aspártico e glicina no sítio de ação da enzima protease do vírus HIV-1. Observe que ocorrem várias interações de hidrogênio entre o fármaco e o receptor. Essas intera- ções inibem a enzima protease, impedindo a proliferação viral. O R R N H H N O O O O O O O O O O O OO O N N N N N H H H H H H H H H H H H HN N N R C C C 3.6Å 3.0Å 3.0Å 3.0Å Asp30 Asp25 Asp25’ 3.1Å 2.9Å NN 3.2Å 2.5Å 2.5Å saquinavir Asp = ácido aspártico Gly = glicina Asp29 3 3 3 Gly49 Gly48 Asp29’ H H H Gly27 2 Ɵ Ɵ Figura 7 – Ilustração das interações de hidrogênio entre o antiviral saquinavir e a enzima protease (receptor) Fonte: Adaptada de FRAGA, 2001 12 13 Ligação Covalente Esse tipo de ligação envolve a formação de uma ligação sigma entre dois átomos que compartilham elétrons. As interações intermoleculares envolvendo a formação de liga- ções covalentes apresentam alta energia, entre 77 e 88 kcal/mol. No sistema biológico, esse tipo de ligação entre fármaco e receptor muitas vezes é irreversível, pois é dificil- mente rompida em processos não enzimáticos, resultando em inibição do sítio receptor. Um exemplo clássico de fármaco que promove esse tipo de ligação é o ácido acetilsa- licílico. Na Figura 8 é possível observar a interação do ácido acetilsalicílico com o sítio de ação da enzima prostaglandina endoperóxido sintase (PGHS) – receptor, promovendo a transacetilação desse sítio enzimático. A inibição dessa enzima por esse fármaco promove ações analgésicas e antipiréticas (LEMKE, 2008). OHO O O O O O O O O H H H HN C Ácidoacetilsalicílico Interação covalente fármaco e receptor PGHS O O O O O H HO H HN PGHS C3 3 O O O O O H H C O HN PGHS 3 Ser 530 O Ser 530 Ser 530 Figura 8 – Inibição irreversível da enzima PGHS pelo ácido acetilsalicílico Fonte: Adaptada de BARREIRO; FRAGA, 2015 Em razão de as ligações covalentes apresentarem alta energia, seu uso no plane- jamento de novos fármacos que atuam em alvos do organismo humano não é a mais adequado em razão da toxicidade e irreversibilidade com o receptor. Por outro lado, esse tipo de ligação é interessante quando se trata de fármacos quimioterápicos, incluindo antibacterianos, antiprotozoários, antifúngicos e antitumorais, em que o alvo molecular é do patógeno causador da doença. Forças de Dispersão Essas forças caracterizam-se pela aproximação entre moléculas apolares, ou seja, não apresentam dipolos permanentes. Essa aproximação ocorre por meio de dipolos induzidos, que são resultado de uma flutuação local transiente de densidade eletrônica entre grupos apolares adjacentes. Ocorrem entre carbono-hidrogênio ou carbono-car- bono, como apresentado na Figura 9 (LEMKE, 2008). 13 UNIDADE Introdução à Química Farmacêutica Fármaco Receptor Interações de Van der Walls Figura 9 – Representação das interações de Van der Walls entre fármaco e receptor As forças de dispersão são conhecidas como forças de dispersão de London, tipo de in- teração de Van der Waals. Normalmente, essas interações são de fraca energia, entre 0,5 e 1,0 kcal/mol. Apesar disso, são de extrema importância para o processo de reconhecimen- to molecular do fármaco pelo sítio receptor, uma vez que, normalmente, caracterizam-se por interações múltiplas que, somadas, acarretam contribuições energéticas significativas. Como as forças de dispersão, as interações hidrofóbicas são individualmente fracas (cerca de 1 kcal/mol) e ocorrem em razão da interação entre cadeias ou subunidades apolares. Hidrofóbica é sinônimo de lipossolúvel, e compostos ou subunidades apolares são aqueles que não apresentam de forma permanente os dipolos negativos e positivos. O fármaco anti-hipertensivo losartana faz importantes interações de Van der Waals com os resíduos de aminoácidos localizados na bolsa lipofílica L1 no receptor AT1 de angiotensina (Figura 10). Essa interação gera uma ação antagonista, ou seja, bloqueia a enzima, promovendo diminuição da pressão arterial (FRAGA, 2001). Bolsa L1 AT R Phe182 Phe171 Ala163 Ser109 Val108 1 OH ClN N N N N HN H C3 Figura 10 – Esquema da representação da interação do fármaco losartana e o receptor AT1 Fonte: Adaptada de FRAGA, 2001 Interações Intermoleculares. Disponível em: https://bit.ly/2QqnAKe 14 15 Fatores Estereoquímicos e Conformacionais Envolvidos na Interação Fármaco e Receptor O modelo chave-fechadura é uma representação parcial do reconhecimento para a interação entre fármaco e receptor. Outros fatores tridimensionais dinâmicos são impor- tantes para esse reconhecimento: o volume molecular do fármaco, as distâncias intera- tômicas e o arranjo espacial entre os grupamentos farmacofóricos compõem aspectos fundamentais na compreensão das diferenças na interação fármaco-receptor. Grupo farmacofórico é o conjunto de características eletrônicas e estéricas que caracterizam um ou mais grupos funcionais ou subunidades estruturais, necessários ao melhor reconhecimento molecular pelo receptor e, portanto, para o efeito farma- cológico desejado, ou seja, o grupo farmacofórico pode ser considerado a “parte” molecular do fármaco essencial à atividade desejada, que, se modificado, pode reduzir ou inibir a atividade farmacológica do medicamento (THOMAS, 2007). Configuração Absoluta e Atividade Biológica Em estereoquímica, a configuração absoluta é o arranjo espacial dos átomos de uma molécula quiral bem como a sua descrição estereoquímica (por exemplo, R, S) para dife- renciar a conformação da molécula. A importância da configuração absoluta em relação à atividade biológica dos fármacos permaneceu desconhecida até a década de 1960, quando, infelizmente, ocorreu a tragédia da talidomida, decorrente do uso de sua forma racêmica (R e S),indicada para náuseas em gestantes, resultando no nascimento de cerca de 12.000 crianças com malformações congênitas. A partir desse episódio, o estudo do metabolismo da talidomida permitiu evidenciar que o metabólito do enantiômero (S) apresentava teratogenicidade, enquanto o enantiômero (R) era responsável pelas propriedades hipnótico-sedativas. Os enantiômeros da talidomida são demonstrados na Figura 11 (PATRICK, 2009; ELIEZER 2015). Figura 11 – Enantiômeros R e S da talidomida Fonte: Adaptada de BARREIRO; FRAGA, 2015 15 https://pt.wikipedia.org/wiki/Estereoqu%C3%ADmica https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81tomo https://pt.wikipedia.org/wiki/Mol%C3%A9cula https://pt.wikipedia.org/wiki/Quiralidade_(qu%C3%ADmica) https://pt.wikipedia.org/wiki/Isomerismo_conformacional UNIDADE Introdução à Química Farmacêutica Importante! Observe a alteração da posição do anel entre os enantiômeros R e S da talidomida. Essa pequena alteração promove diferentes respostas biológicas. Esse episódio foi o marco de nova era no desenvolvimento de novos fármacos. Atual- mente, a quiralidade passou a ser cuidadosamente estudada tanto em razão dos fatores farmacocinéticos, isto é, absorção, distribuição, metabolismo e eliminação, quanto dos fatores farmacodinâmicos, ou seja, interação fármaco-receptor. Esses estudos passaram a ser fundamentais para os novos fármacos antes de sua liberação para uso clínico. O termo quiralidade (atributo geométrico) é aplicado na química orgânica para definir um objeto que não pode ser sobreposto à sua imagem especular (espelho), ou seja, um quiral. Já no caso de um objeto aquiral, a sua imagem especular pode ser sobreposta à sua imagem original. O conceito de quiral é adjunto do átomo ligado a quatro substituintes diferentes, formando uma simetria tetraédrica. Easson e Stedman propuseram que o reconhecimento do fármaco pelo receptor, em que o fármaco apresenta um único centro quiral, seria necessário em pelo menos três pontos de interação entre o fármaco-receptor para gerar ação terapêutica. Assim, o enantiômero correspondente não seria capaz de realizar esses três pontos de interação com o sítio de ação, podendo diminuir ou perder sua eficácia (ELIEZER, 2015). O fármaco propranolol, um β-bloqueador, é um exemplo de reconhecimento este- reoespecífico com o sítio de ação, como pode ser observado no modelo esquemático da Figura 12. O enantiômero S (A) é reconhecido por esses receptores por meio de três principais pontos de interação: interação hidrofóbica, ligação de hidrogênio e por meio de interações do tipo íon-dipolo. Nesse caso particular, o enantiômero R (B) não apresenta atividade farmacológica β-bloqueadora, devido à menor afinidade pelo sítio de ação, decorrente da mudança de posição do substituinte. O enantiômero R, além da per- da de atividade biológica, apresenta efeitos colaterais indesejáveis relacionados à inibição da conversão do hormônio da tireoide tiroxina a tri-iodotironina (ELIEZER, 2015). 16 https://pt.wikipedia.org/wiki/Qu%C3%ADmica_org%C3%A2nica 17 Figura 12 – Esquematização da interação dos enantiômeros R e S do propranolol no sítio do receptor β Fonte: Adaptado de BARREIRO; FRAGA, 2015 Razões da Atividade Biológica: Interações Micro- e Biomacro-Moléculas. Disponível em: https://bit.ly/3trPvIf Configuração Relativa e Atividade Biológica Configuração relativa significa que a molécula tem a mesma posição relativa de seus substituintes. Alterações da configuração relativa dos grupamentos farmacofóricos de um fármaco (cis-trans, E-Z) formando isômeros também podem repercutir diretamente no seu reconhecimento pelo receptor, uma vez que as diferenças de arranjo espacial dos grupos envolvidos nas interações com o sítio receptor implicam perda de complementari- dade e consequente perda ou redução da ação terapêutica, como ilustrado na Figura 13. Observe que a mudança de posição de um substituinte promove a perda de um ponto de interação com o receptor (representado em laranja), podendo afetar a eficácia de ação do fármaco. 17 UNIDADE Introdução à Química Farmacêutica Isômeros de Posição: Alicíclicos Grupos A e B / A e C (TRANS) Grupos B e C (CIS) Isômeros Geométricos Grupos A e B (CIS) Grupos A e C / B e C (TRANS) A A' B B' C' C D D' Grupos A e D / B e C (CIS) Grupos A e C / B e D (TRANS) Grupos A e B / C e D (CIS) Grupos A e C / B e D (TRANS) A A' B B' C' C D D' D B B C A A B C A A' B' C' A B C A B C A' B' C' Figura 13 – Ilustração da interação de isômeros cis-trans com o receptor Fonte: Adaptada de BARREIRO; FRAGA, 2015 Na Figura 14, é possível analisar um exemplo clássico que ilustra a importância da isomeria geométrica (cis-trans, E-Z) na atividade biológica de um fármaco, o trans- -dietilestilbestrol (antineoplásico agonista estrogênico), cuja configuração relativa dos grupamentos hidroxilas (–OH) apresenta distância (12,1 Å) e similaridade química ao hormônio endógeno estradiol (10,8 Å). Esses fatores são necessários ao seu reconhe- cimento pelos receptores de estrogênio. O estereoisômero cis-dietilestilbestrol possui distância entre esses grupamentos farmacofóricos (7,7 Å) inferior à necessária ao reconhecimento pelo receptor e, consequentemente, apresenta atividade estrogênica 14 vezes menor que o isômero trans. Dessa forma, a configuração relativa é um fator muito importante na ação dos fármacos. Angstron (Å) significa unidade de medida em relação à distância entre átomos e grupos. H H CH HO OH 3 10,8Å 12,1Å HO OH 7,7Å HO OH estradiol cis-dietilestilbestrol trans-dietilestilbestrol Figura 14 – Estrutura química do hormônio endógeno estradiol e os isômeros cis-trans do antineoplásico dietilestilbestrol 18 19 Portanto, podemos concluir, a partir do estudo desta unidade, que a maioria dos nossos medicamentos apresenta fármacos específicos, ou seja, o reconhecimento do fármaco pelo sítio de ação do receptor e ação terapêutica depende das características da sua estrutura química, como tipos de interações, volume e distância, entre outros. Grupos da estrutura química responsável pela ação são denominados farmacofó- ricos. Esses grupos precisam ser cuidadosamente estudados no desenvolvimento de um novo fármaco. Na disciplina de Química Farmacêutica estuda-se a relação da estrutura química com a atividade biológica e os métodos de desenvolvimento de fármacos, como veremos nas próximas unidades. 19 UNIDADE Introdução à Química Farmacêutica Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros Química Farmacêutica KOROLKOVAS, A.; BURCKHALTER, J. H. Química farmacêutica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988. Farmacologia SILVA, P. Farmacologia. 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002. The practice of medicinal chemistry WERMUTH, C. G. The practice of medicinal chemistry. 2. ed. Califórnia: Elsevier Academic Press, 2004. Vídeos Ligações Químicas: Forças Intermoleculares (1/2) [Química Geral] https://youtu.be/yJN6a_mPe6A Ligações Químicas: Forças Intermoleculares (2/2) [Química Geral] https://youtu.be/Cl7Su7PesCE Forças Intermoleculares I Dia 03 | Desafio de Carnaval https://youtu.be/51MC34eXJDY Ligações Químicas: A Ligação Iônica [Química Geral] https://youtu.be/JJt2UEBSvlw Ligações Químicas: A Ligação Covalente [Química Geral] https://youtu.be/3jYy4XhtpxU Leitura Aspectos Gerais da Ação dos Fármacos https://bit.ly/3snFxXb Química Medicinal Moderna: Desafios e Contribuição Brasileira https://bit.ly/3tnR5Le Modelagem molecular no ensino de química farmacêutica https://bit.ly/3mTBMHZ 20 21 Referências BARREIRO, E. J.; FRAGA, C. A. M. Química medicinal: bases moleculares da ação dos fármacos. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2015. FRAGA, C. A. M. Razões da atividade biológica: interações entre micro e biomacro- moléculas. Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola, n. 3, p. 33-42, 05/2001. PATRICK, G. L. Introduction to medicinal chemistry. 4. ed. Oxford: OxfordUniversity Press, 2009. RANG, H. P; DALE, M. M.; RITTER, J. M. Farmacologia. 8. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2016. THOMAS, G. Química medicinal: uma introdução. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2007. WILLIAMS, D. A., LEMKE, T. L. Foye’s principles of medicinal chemistry. 5. ed. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2008. 21
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