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LITERATURA INFANTOJUVENIL Mariana Terra Teixeira Narrativa literária Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deverá apresentar os seguintes aprendizados: Diferenciar os papéis de autor, narrador e narratário. Reconhecer os níveis do discurso. Identificar os recursos técnico-discursivos utilizados em narrativas. Introdução Neste capítulo, você estudará sobre as narrativas literárias, as quais fazem parte do gênero literário narrativo. Gêneros literários são um conjunto de textos e obras que apresentam características similares de forma e conteúdo. Eles são divididos, na teoria literária clássica, em três grandes grupos: gênero épico e/ou narrativo, gênero lírico e gênero dramático. Neste capítulo, você aprenderá especificamente sobre o gênero literário narrativo, ao qual pertencem as narrativas literárias. Recursos técnico-discursivos específicos, como as falas de perso- nagens, por meio de discurso direto e discurso indireto, compõem as narrativas literárias, assim como os papéis de autor, narrador e narratário. Assim, reconhecer os diferentes níveis do discurso é uma importante fer- ramenta para se analisar e compreender a riqueza das narrativas literárias. Ao final deste capítulo, você será capaz de identificar os elementos da narrativa literária e de seu gênero discursivo. Autor, narrador e narratário A narrativa literária tem características na sua forma e no seu conteúdo que identifi cam certas obras como pertencentes ao gênero narrativo. A principal característica desses textos é que eles narram, relatam, contam histórias, fatos, situações e acontecimentos reais ou imaginários. Todos esses eventos e histórias podem ser cronológicos ou psicológicos (p. ex., quando o narrador está contando uma história do seu passado, a partir de sua memória). O narrador é um elemento central da narrativa, pois é ele quem conta a história ao leitor. Dessa forma, é por meio do narrador que o leitor toma conhecimento da história. Segundo Gérard Genette (1980), teórico do gênero narrativo, a análise do discurso narrativo deve levar em consideração o conteúdo narrado e a forma como este é narrado. Por isso, é importante aprendermos sobre os níveis do discurso e os diferentes papéis do narrador e do narratário na compreensão da história. Veremos os níveis do discurso no próximo tópico deste capítulo. Os acontecimentos narrados pelo narrador constituem o enredo da his- tória. As narrativas possuem elementos estruturais que asseguram a sua verossimilhança, isto é, a coerência interna da história. Para criar um texto narrativo com verossimilhança, o autor deve responder a perguntas básicas: quem? Onde? Quando? O que aconteceu? E por quê? Aqui, podemos observar uma importante diferença entre autor, narrador e narratário. Autor é quem cria a história, inventa, escreve o texto narrativo; narrador é aquele que conta a história ao leitor; ao passo que narratário é o receptor desse texto e desse discurso, conforme veremos no próximo tópico. As narrativas são sequências lógicas de acontecimentos que têm um estado inicial, um meio e um fim. São sequências de ações que ocorrem e mudam o estado inicial dos fatos. Segundo Bronckart (1999, p. 219), o esquema narrativo pode ser dividido conforme a seguir. Situação inicial ou apresentação: há uma situação inicial estável. Complicação: provocada por uma força perturbadora, que instaura um desequilíbrio. Clímax: é o ponto alto da narrativa, que determinará o final. Desfecho: o equilíbrio retorna. Como podemos ver no esquema de Bronckart (1999), há uma situação inicial estável, em que, normalmente, o autor descreve o lugar onde estão as personagens e seus estados. Na complicação, algo acontece e perturba esse estado inicial, é uma situação que desequilibra o estado das coisas. O clímax é o auge do enredo, vem depois da complicação, é como os personagens reagem à situação perturbadora, o que eles pensam, falam, fazem, o que leva a história ao seu estado final. Bronckart (1999) diz que, no desfecho, fase final da história, o equilíbrio normalmente retorna, no entanto, é importante observar que, em muitas narrativas, esse equilíbrio não é o mesmo do estado inicial e não precisa, necessariamente, ser um estado final feliz. Entretanto, em narrativas literárias infantis clássicas, como os contos de fadas, vemos que Narrativa literária2 o desfecho representa, sim, um estado final de equilíbrio em que a situação se estabiliza e o final é feliz para as personagens da história narrada. Em geral, os eventos acontecem em ordem cronológica nas narrativas literárias, mas há também o tempo psicológico. Quando um fato que acon- teceu anteriormente ao tempo presente da história é lembrado pelo narrador e contado ao narratário em ordem não cronológica, isto é, não sequencial, ocorre o tempo psicológico. A forma do texto e os recursos formais da lin- guagem atuam sempre em conjunto com o conteúdo nos diferentes gêneros textuais. Na narrativa, os tempos verbais utilizados ajudam o autor a escrever a sua história. Um dos tempos verbais mais empregados em narrativas é o pretérito imperfeito, utilizado para descrever o estado inicial da história, o cenário e as personagens. Por exemplo, na tradicional introdução dos contos de fadas “era uma vez...”, o verbo “ser” está no pretérito imperfeito. O pre- térito perfeito, por sua vez, é utilizado para narrar os acontecimentos, o que acontece na história que desestabiliza o estado inicial, bastante utilizado na complicação e no clímax, mas que pode permear todo o texto para narrar as ações das personagens. Por exemplo, em um final infeliz — “o príncipe morreu”, “o príncipe virou sapo” —, os verbos “morrer” e “virar” estão no pretérito perfeito. Os pretéritos perfeito e mais que perfeito composto também são utilizados nas narrativas. Esses tempos verbais podem ser empregados quando o narrador quebra a ordem cronológica dos acontecimentos e conta ao leitor uma situação que ocorreu antes de outra situação no passado. Por exemplo, quando o narrador da história lembra de algo: “A essa altura, José já tinha visitado Maria”, “Quando a mãe chegou, Pedro já tinha sido levado”. As locuções verbais “tinha visitado” e “tinha sido levado” estão no pretérito perfeito composto. Autor & narrador O narrador é uma parte central do gênero narrativo, pois é ele quem conta a história. O narrador é diferente do autor da obra literária, pois ele é integrado ao texto e, como veremos, muitas vezes, é uma personagem da narrativa também. Já o autor é o ser humano da vida real, aquele que escreveu o livro e inventou, inclusive, o narrador. O foco narrativo é estudado na literatura, pois pode mudar a compreensão da história, dependendo do ponto de vista do narrador. A divisão clássica dos tipos de narrador são os narradores de primeira pessoa e os narradores de terceira pessoa. Quando a história é contada em terceira pessoa, o narrador é onisciente e está de fora da história. Os narradores dos contos de fadas são todos oniscientes, pois eles sabem a história e estão 3Narrativa literária narrando os acontecimentos sem participar deles. Eles não são, portanto, personagens. Quando a história é contada em primeira pessoa, o narrador é também uma personagem e está contando a história ao mesmo tempo que participa ou participou dela. Aqui, reside a importância do foco narrativo, pois os narradores em primeira pessoa contam a história desde o seu ponto de vista. O narrador-personagem não é neutro, pois a história contada passa pelo seu julgamento subjetivo. O gênero diário, que é um tipo de narrativa literária, é um exemplo de narrador em primeira pessoa, pois o narrador é justamente quem está escrevendo o diário e contando histórias de seu dia a dia. Para saber sobre os tipos de narrador e foco narrativo, leia o livro O foco narrativo, de Ligia Chiappini Moraes Leite, professora de Teoria da Literatura da USP, disponível também em formato digital.O narrador é sempre fictício, é criado pelo autor e é ele o emissor do discurso da narrativa. Assim, pertence somente ao mundo interno da obra literária. Já o autor pertence à realidade, ao mundo empírico, e é o escritor das obras literárias. Ele pode criar quantos narradores quiser, um para cada livro ou conto, se assim desejar. Podemos citar o escritor brasileiro Machado de Assis como exemplo. Como autor, escreveu mais obras utilizando narradores em primeira pessoa, mas também escreveu obras nas quais criou narradores em terceira pessoa. No romance Quincas Borba, Machado de Assis utiliza um narrador em terceira pessoa. Nesse tipo de narrador onisciente, há um distanciamento entre narrador e personagens, pois o narrador não participa da história. No entanto, pode comentá-la, quando se trata de um narrador intruso. Nos romances Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas, o escritor Machado de Assis criou dois narradores que falam em primeira pessoa. Esses narradores contam a história a partir de seus pontos de vista e também fazem parte dela, são narradores-personagem. Esses dois romances de Machado demonstram a importância do foco narrativo. Em Dom Casmurro, a história é contada pelo narrador-protagonista Bento Santiago, Bentinho, que se transforma no velho Dom Casmurro. Bentinho é supostamente traído por Capitu, sua esposa, e o ciúme permeia toda a história. No entanto, os fatos e acontecimentos são todos narrados por Bentinho, im- Narrativa literária4 possibilitando o leitor de ter certeza ao final da história se a traição realmente ocorreu, ainda mais porque Bento Santiago era um homem extremamente ciumento. Ainda, Bento Santiago está contando a história de maneira cro- nológica, mas Machado de Assis também utiliza o tempo psicológico, pois Bento Santiago já é um homem maduro de 54 anos, advogado, aristocrata, e está lembrando e contando a história que começou quando ele era jovem. É interessante que, por muitos anos depois que o romance foi publicado, acreditou-se que Capitu tinha traído Bentinho. Somente com o passar dos anos, os pesquisadores e estudiosos atentaram para o fato de o livro estar escrito em primeira pessoa e a história estar sendo contada pelo narrador- -personagem Bentinho. Dessa forma, o romance Dom Casmurro evidencia o brilhantismo do autor Machado de Assis, que conseguiu, por meio do uso da técnica discursiva do narrador-personagem em primeira pessoa, criar uma obra literária na qual a dúvida do acontecimento principal da narrativa, a traição de Capitu, não fosse nunca resolvida. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis evidencia o seu talento na escrita narrativa criando, pela primeira vez, um narrador-personagem morto. Brás Cubas morre e começa a contar a sua história depois de morrer. É um narrador em primeira pessoa, que conta a história e participa dela, ao mesmo tempo que já não está mais vivo quando a história é narrada. É um bom exemplo de uso do tempo psicológico como técnica narrativa. Leitor & narratário O leitor tem também o seu papel na construção da narrativa literária. Leffa (1996, p. 17) diz que “[...] ler é interagir com o texto”. O leitor é o receptor da mensagem da narrativa, é o público-alvo do autor, escritor da obra literária. No entanto, ao contrário do que se pode pensar, o leitor não é um ser passivo, pois a leitura não é um processo passivo, visto que ler é atribuir signifi cado ao texto. A obra literária, sem seus leitores, não produz signifi cado, não tem sentido. É o leitor que dá sentido ao texto. Dessa maneira, é o leitor que faz a interpretação, a compreensão da narrativa literária, completando-a com a sua visão de mundo. O mesmo texto pode ter uma interpretação diferente se for lido por pessoas distintas. Uma obra literária pode provocar reações diferentes em cada pessoa que a lê. E mais ainda, uma mesma narrativa literária pode ter efeitos de sentido diferentes para uma mesma pessoa dependendo da época que a leitura acontece. Se você ler Harry Potter com 14 anos e depois relê-lo aos 45 anos, sua interpretação do texto, dos acontecimentos da história, pode não ser a mesma. Isso porque a interpretação de um texto, literário ou não, 5Narrativa literária depende também do conhecimento prévio do leitor. As pessoas têm diferentes visões de vida, da realidade e da sociedade. As obras literárias trazem em si elementos sociais que são escritos pelos autores com uma intenção, mas nem sempre a intenção do autor é captada pelo leitor. Ao escrever um texto e publicá-lo, o autor coloca no mundo a sua obra aberta para interpretações distintas, mesmo que alguma não seja espe- cificamente a interpretação do autor ao escrever esse texto. Se a linguagem utilizada, o enredo narrativo da história e a característica das personagens dão margem à interpretação do leitor, a interpretação é válida. Também não se pode esquecer que as obras literárias são escritas em uma certa época, em determinado contexto social. Ao lermos hoje a obra Dom Quixote, escrita por Miguel de Cervantes, na Espanha, em 1605, podemos não entender todas as nuances pertinentes à época. Leffa (1996) nos ajuda a entender o papel do leitor na constituição da obra literária comparando a leitura de uma narrativa à leitura de mundo: Numa leitura do mundo, o objeto para o qual se olha funciona como um espelho. Se o objeto for, por exemplo, uma casa, vai oferecer tantas leituras quantas forem as posições de cada um dos observadores em relação à casa. O arquiteto fará uma leitura arquitetônica, o sociólogo uma leitura sociológica, o ladrão uma leitura estratégica, e assim por diante. Sem triangulação não há leitura (LEFFA, 1996, p. 11). Dessa forma, vemos, na explicação do autor, que é na relação entre leitor e texto que se dá a interpretação. O leitor parte de um ângulo singular e, de- pendendo dos seus objetivos, toma um posicionamento em relação ao objeto, neste caso, o texto. Não temos como fazer a leitura de uma casa se não for de uma das posições possíveis. Entretanto, fica claro, na explicação, que o leitor é dono de sua compreensão da obra literária, e a faz de seu ponto de vista, com o seu conhecimento de mundo, completando a leitura com a sua interpretação dos acontecimentos narrados, por exemplo. Precisamos identificar os papéis do leitor na narrativa literária em espe- cífico. Como vimos na seção anterior, o autor e o narrador não têm a mesma função. Aqui, também, falando de quem recebe o texto, leitor e narratário não têm a mesma função. O leitor é o público, a audiência do autor, a quem o autor destina o texto. É extratextual, isto é, tanto o leitor quanto o autor estão fora do texto. O narratário, por sua vez, está dentro do texto. O narratário é o destinatário do narrador, o narrador conta a sua história para um narratário, que faz parte do texto em si, constituindo uma relação intratextual. Tanto o Narrativa literária6 narrador quanto o narratário estão dentro do texto. O leitor, ser empírico, é o receptor final do texto, quem atribui a ele uma interpretação. Em algumas narrativas literárias, os autores — escritores — habilmente utilizam o narratário como técnica discursiva na composição de sua narrativa. O narratário aparece evidente no texto, quando o narrador se dirige ao leitor diretamente. O romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, é um exemplo. Podemos ver que o narrador, Bentinho, se dirige abertamente ao leitor. Esse leitor que faz parte da narrativa do narrador é, na verdade, o narratário, pois ele está dentro do universo do texto. Assim, podemos ver que, às vezes, o narratário fica explícito nas obras literárias. Dom Casmurro é um bom exemplo para entendermos como Machado de Assis utiliza a técnica discursiva do narratário para chamar o leitor para a cons- trução do significado dessa narrativa literária. Quem interpreta, compreende e completa a obra literária é o leitor, receptor final da obra, pois dá sentido a ela. No entanto, o ser queaparece explícito no texto é o narratário, pois é fictício e comum a todos os leitores. Analisemos o exemplo de Dom Casmurro. Na obra, o narrador, que é o personagem protagonista, Bentinho, cria uma relação muito peculiar com o seu leitor, o narratário, pois ele conversa com o narratário no meio da narrativa. O narrador se dirige, assim, explicitamente, ao narratário no meio do texto, com intuito de convencê-lo, de trazê-lo para o seu lado. Assim, no romance Dom Casmurro, o autor Machado de Assis, habilmente, dá um papel explícito ao seu leitor, o de juiz. Bentinho, como narrador, tenta convencer o leitor de que Capitu o traiu, contanto situações e mostrando acontecimentos dúbios. O leitor, no entanto, tem de estar atento para o fato de que Bentinho é também personagem da história, e a sua versão é uma das versões da história. É o leitor quem decide, ao final, se acredita na traição de Capitu ou não. A seguir, temos um trecho dessa obra, em que podemos ver a fala direta do narrador Bentinho com o seu narratário, que ele chama, obviamente, de leitor: Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela ve- rossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas, não adiantemos; vamos à primeira tarde, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ela me denunciou. Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que denun- ciara a mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, 7Narrativa literária a eterna Verdade não valeria mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitu! “Capitu amava-me” E as minhas pernas andavam, desandavam, estacavam, trêmulas e crentes de abarcar o mundo (ASSIS, 2008, p. 213, grifo nosso). Podemos ver, nas partes destacadas, que o narrador-personagem estabelece uma conversa com o leitor, através do narratário, personagem fictício que aparece no texto na forma de ser que está atento à narrativa contada pelo narrador. Bentinho dirige-se ao narratário como “leitor amigo” e conversa com ele durante a narrativa. Dessa forma, o autor Machado de Assis está, claramente, tentando atingir, conversar, com o leitor. Assim, temos um exemplo bem ilustrativo de como o leitor também contribui para o sentido da narrativa literária. A interpretação do leitor será uma convergência da compreensão das palavras escritas pelo autor, da avalição de como o autor escreveu a história e de seu conhecimento prévio (i.e., conhecimento de mundo que o leitor traz consigo e utiliza na compreensão final do texto). Níveis do discurso Gêneros literários são um conjunto de obras que possuem características similares tanto na sua forma quanto no seu conteúdo. Existem três grandes gêneros literários: o gênero narrativo, o gênero lírico e o gênero dramático. Os gêneros literários se diferenciam pelos seus gêneros discursivos/textuais. Isto é, cada gênero literário é um tipo de texto diferente. Os gêneros textuais, segundo Bakhtin (1992), são gêneros do discurso, são tipos relativamente estáveis de enunciados produzidos nas diferentes esferas da atividade humana. Os gêneros do discurso são variados e ilimitados, pois representam as infinitas situações comunicativas presentes nas relações humanas. São exemplos de gêneros textuais: cartas, e-mails, receitas culinárias, romances, reportagem, contos, horóscopo, cardápios, sermão, entre muitos outros. Ou seja, quanto mais situações de linguagem, tanto orais quanto escritas, forem criadas pelas relações humanas, mais gêneros textuais existirão. Segundo Marcuschi (2002), os gêneros textuais surgem de acordo com as necessidades e atividades socioculturais e também na relação com as inovações tecnológicas. A tecnologia e os novos aparelhos, como tablets e smartphones, interferem nas situações comunicativas diárias das pessoas. Assim, temos uma explosão de novos gêneros textuais, devido a essas novas formas de comunicação, tanto faladas quanto escritas, influenciadas pela tecnologia. Narrativa literária8 Na linguística, a ciência da linguagem, os cientistas diferenciam gêneros textuais de tipos textuais. Gêneros textuais, tomando a definição de Bahktin, são tipos relativamente estáveis de enunciados utilizados na comunicação humana, como vimos acima. Por exemplo, bilhetes, e-mails, livros, como romance, contos, reportagens. Já os tipos textuais são ferramentas que estão a serviço dos gêneros textuais. Dominar a tipologia textual é uma habilidade fundamental para diferenciar os gêneros textuais. São, segundo Marcuschi, sequências previamente definidas pela natureza linguística predominante em sua composição (2002). Precisamos nos familiarizar com aspectos lexicais, sintáticos e tempos verbais predominantes em cada tipo textual. Os principais tipos textuais são: o tipo injuntivo, o narrativo, o descritivo e o dissertativo-argumentativo. Para se aprofundar no tema, você pode ler os seguintes artigos: TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A caracterização de categorias de texto: tipos, gêneros e espécies. ALFA – Revista de Linguística. V. 51, n. 1. 2007. FURLANETTO, Maria Marta. Produzindo textos: gêneros ou tipos? Perspectiva, v. 20, n.1. Florianópolis, Santa Catarina. 2002. Os gêneros literários são gêneros do discurso que tem a literariedade como característica, como, por exemplo, a narrativa literária. Assim, são normalmente escritos e tem uma estética definida. A literariedade é um termo cunhado por Roman Jacobson para distinguir textos não literários, comuns, de textos pertencentes à literatura. Os textos literários se servem da realidade para criar mundos fictícios, fantásticos, utilizando-se da linguagem literária para criar outras formas de ver a experiência humana. Assim, a ficcionalidade é uma das características principais do texto literário (ainda que nem toda a literatura seja ficcional), além da linguagem literária. A linguagem literária é aquela cuidadosamente selecionada pelo autor, uma linguagem estética, que pode utilizar metáforas e tem como um de seus objetivos a fruição do texto pelo leitor. Apesar de poderem ser de ficção, ou sobre mundos alternativos, inventados, as obras literárias precisam ter verossimilhança. Não necessa- riamente o que está sendo contado, declamado ou lido necessita existir no mundo real, mas a história inventada necessita de verossimilhança, isto é, lógica interna, o que ocorre no interior da história deve fazer sentido naquele mundo interno ao texto. Em resumo, a narrativa literária é um tipo de texto específico que constitui o gênero literário narrativo. A narrativa literária é, portanto, um gênero do discurso e difere de outros gêneros literários quanto às suas características 9Narrativa literária formais. A narrativa possui elementos indispensáveis para a sua caracterização e técnicas discursivas próprias. O Quadro 1 nos ajuda a visualizar e a entender a diferença entre gêneros do discurso e gêneros literários. Fonte: Adaptado de Bakhtin (1992). Gêneros O que são Tipos Exemplos Gêneros do discurso Tipos estáveis de enunciados utilizados na interação humana. Não necessariamente literários. As narrativas literárias são um tipo de gênero do discurso. Gêneros primários (simples): informais, relação direta com a realidade. Enunciados da vida cotidiana. Gêneros secundários (complexos): comunicação cultural complexa, organizada e, normalmente, escrita. Primários: bilhetes, diálogos familiares, cartas de amigos. Secundários: romances, novelas, contos, teses, palestras. Gêneros literários Gêneros discursivos/ textuais da literatura. Textos literários. Gênero épico/ narrativo. Gênero lírico. Gênero dramático. Narrativas literárias (contos,romances, fábulas); poesia; peças de teatro. Quadro 1. Os gêneros do discurso e os gêneros literários O gênero narrativo literário tem características discursivas bem marcan- tes. A sua tipologia textual é narrativa. Nas narrativas, necessariamente, se transmite uma mensagem, que está inserida em um tempo específico, escrita de modo que o receptor consiga entendê-la. Essa mensagem começa no estado inicial e termina no desfecho. A mensagem é emitida pelo narrador, que conta a história, e captada pelo receptor do texto, o narratário, mas só é Narrativa literária10 compreendida e interpretada pelo leitor real, que faz a interpretação dessa mensagem olhando o todo: o que foi enunciado e como foi enunciado. Entre o que é enunciado, por quem e para quem e como, temos os níveis do discurso. Émile Benveniste é o primeiro linguista, cientista da linguagem, a distinguir a língua em si do emprego da língua. Benveniste introduz uma visão enunciativa da linguagem com a Teoria da Enunciação, trazendo para análise o discurso, que é a língua posta em ação pelo sujeito. Segundo Benveniste (1995), há dois tipos de signos, códigos utilizados na linguagem: os que pertencem à sintaxe da língua e os que são característicos das “instâncias do discurso”. Segundo o autor, “Instâncias do discurso” são “[...] atos discretos e cada vez únicos pelos quais a língua é atualizada em palavra por um locutor” (BENVENISTE, 1995, p. 277). Os signos que são característicos às instâncias do discurso são os pronomes pessoais eu e tu, que só existem na rede de indivíduos que a enunciação cria e se produzem na e pela enunciação do locutor. Enunciação, para Benveniste, é o ato de se apropriar da língua e colocá-la em prática no discurso. Cada eu tem sua referência própria e corresponde cada vez a um ser único. Eu é o “[...] indivíduo que enuncia a presente instância de discurso que contém a instância linguística ‘eu’” e tu é o “[...] indivíduo alocutado na presente instância de discurso contendo a instância linguística ‘tu’” (BENVENISTE, 1995, p. 279, grifo nosso). Eu e tu não existem como signos virtuais, pois só existem à medida que são atualizados nas instâncias de discursos, e são eles que marcam o processo de apropriação do discurso pelo locutor. Benveniste ressalta que eles não remetem à realidade nem a posições objetivas no espaço ou no tempo, mas remetem à enunciação, cada vez única, que os contém. Aqui, vemos que Benveniste amplia a visão de linguagem para uma lin- guagem que é assumida como exercício pelo indivíduo, em contrapartida a uma linguagem vista como um sistema de signo, códigos escritos, sem interação com o mundo. Dessa maneira, é possível perceber a preocupação de Benveniste com o discurso, com a enunciação e o sujeito, ressaltando a presença do homem na língua. A comunicação intersubjetiva proposta por Benveniste se realiza no discurso. E “[...] é no discurso atualizado em frases que a língua se forma e se configura. Aí começa a linguagem” (BENVE- NISTE, 1995, p. 140), ou seja, “[...] o discurso como a linguagem posta em ação – e necessariamente entre parceiros” (BENVENISTE, 1995, p. 284). Para Benveniste, o discurso é a língua assumida pelo homem que fala, sob a condição de intersubjetividade, isto é, entre sujeitos, o que torna possível a comunicação linguística. 11Narrativa literária Níveis do discurso específicos da narrativa Podemos aplicar de forma mais prática os conceitos das teorias do discurso à narrativa literária em específi co. Como aprendemos com o conceito de gêneros do discurso de Bakhtin, a narrativa é um gênero discursivo e, como tal, tem sua função própria para a comunicação humana. É um tipo de enunciado estável, que tem sempre os elementos vistos neste capítulo, e transmite uma mensagem de um autor para um leitor, por meio de narrador e narratário, respectivamente. Fiorin (2007) relaciona as teorias do discurso e os sujeitos da enunciação aos sujeitos envolvidos nas narrativas. Segundo o autor, os sujeitos da enun- ciação são divididos em três níveis do discurso: o nível do enunciador e do enunciatário; o nível do narrador e do narratário; e o nível das personagens da narrativa. Todos fazem uso do discurso, em diferentes níveis. Vejamos a explicação do autor para que possamos melhor entender a distribuição dos sujeitos no discurso narrativo: Os sujeitos da enunciação aparecem em três níveis distintos: 1. o autor e o leitor implícitos, que são pressupostos pela própria existência do enunciado, chamados enunciador e enunciatário; 2. aquele que narra e aquele para quem se narra, projetados no interior do enunciado, denominados narrador e narra- tário; 3. as personagens que dialogam entre si no interior do texto, nomeados de interlocutor e interlocutário (FIORIN, 2007, p. 26). O autor e o leitor são os sujeitos da enunciação em si. Podemos pensar neles como as instâncias do discurso de Benveniste — o eu é o autor e o tu é o leitor. O autor é o eu que se apropria da língua e a coloca em ação na sua narrativa. O narrador e o narratário são, segundo Fiorin (2007), sujeitos da enunciação. Isto é, o narrador e o narratário são internos ao texto, mas, dentro do texto, eles são os sujeitos, eles são quem fala e quem ouve, quem narra e quem lê. As personagens da narrativa também falam dentro da história, dialogam entre si e põem, de certa forma, a língua em prática, se utilizam do discurso. As personagens são denominadas interlocutor e interlocutário, pois dialogam dentro do texto (FIORIN, 2007). A proposta de sujeitos da enunciação feita por Benveniste abriu novas pos- sibilidades de análise do discurso. O locutor e o destinatário não são somente Narrativa literária12 polos da comunicação, mas sim entidades que se situam num determinado tempo histórico e espaço sociocultural. Assim, a Teoria da Enunciação de Benveniste, bem como as demais teorias de discurso, abrem a possibilidade de análise das vozes, dos enunciadores, dos sujeitos que participam da transmissão e da recepção da mensagem da narrativa literária. O narrador é o enunciador da mensagem do autor, e este, por sua vez, é o eu real que instancia o discurso da narrativa. A Teoria da Enunciação de Emile Benveniste é uma das teorias do discurso. As teorias do discurso são um ramo da linguística que estuda a língua posta em uso. A seguir, estão listadas diferentes vertentes de Teorias do Discurso. As vertentes diferem em relação ao papel que dão ao sujeito do discurso, ou ao discurso em si. Em uma separação grosseira, Benveniste e Ducrot ficariam do lado do sujeito, Bakhtin e Pêcheux, do lado do discurso. Os dois primeiros autores priorizam o ato da enunciação do sujeito — quando o sujeito põe a língua em uso e esta se torna o discurso. Os dois últimos autores priorizam o discurso. Bakhtin fala dos gêneros discursivos/textuais, isto é, os diferentes usos socialmente estabelecidos da língua em forma de textos; Pêcheux foca na ideologia por trás da seleção de palavras e frases do discurso de um sujeito, a intertextualidade com discursos já estabelecidos na sociedade. Dessa forma, se você deseja se aprofundar no estudo do sujeito como enunciador da linguagem e criador do discurso, você pode ler textos de Benveniste e/ou Ducrot; se você se interessa mais pelo discurso em si, já posto no mundo e, então, material de análise ideológica e linguística, você pode ler Peucheux e/ou Bakhtin. Recursos técnico-discursivos utilizados nas narrativas literárias Alguns dos elementos das narrativas literárias que vimos são recursos técnico- -discursivos utilizados pelos autores na escrita da obra literária narrativa. O recurso mais enfatizado neste capítulo foi o diálogo estabelecido na narrativa 13Narrativa literária entre narrador e narratário. O narrador é um importante recurso, pois pode tornar a narrativa mais subjetiva ou mais objetiva. O narrador pode ser onis- ciente e contar os fatos, ou pode ser uma personagem e contar a sua visão da história.Já o narratário, como vimos, é um recurso utilizado pelos escritores para falar com o leitor, atingir o público, chamá-lo para integrar a narrativa. Uma outra técnica discursiva que compõe as narrativas literárias são os tipos de discurso utilizados pelo narrador para registrar as falas das persona- gens. As personagens interagem na história, e o registro dessas falas é feito pelo narrador. Há três tipos de discurso que são utilizados pelos narradores: o discurso direto, o discurso indireto e o discurso indireto livre. O discurso direto é o registro direto da fala da personagem, a transcrição ipsis litteris do que e do modo como o personagem falou. Você pode identificar a fala dos personagens em discurso direto pelo travessão, pelos dois pontos e pelas aspas. A fala direta dos personagens fica bem evidente nas narrativas em que há diálogos, em que um personagem fala com outro diretamente, sem intervenção do narrador. O discurso indireto é diferente do direto, pois nele temos a inter- ferência do narrador. No discurso indireto, a fala do personagem é transmitida indiretamente, tendo o narrador como intermediário, ou seja, o leitor não tem acesso à fala literal do personagem. Assim, como leitores, somente lemos a voz do narrador, que passa a nós a mensagem da fala do personagem. Nas narrativas, podemos ver falas indiretas dos personagens quando o narrador utiliza verbos de introdução de discurso indireto, por exemplo: “Capitu falou que...”, “Quincas Borba contestou o que foi decidido por...”. O discurso indireto livre é uma mistura do discurso direto e do indireto, é um meio termo entre a fala literal do personagem e a voz do narrador. Normalmente, são falas típicas dos personagens, expressões ou, principal- mente, pensamentos que são mediados pelo narrador. Quando lemos alguma expressão, como “droga!”, por exemplo, no meio do texto, é uma fala indireta de um personagem, mediada pelo narrador e transmitida para nós, leitores, no texto da narrativa. Como vimos, a narrativa literária tem elementos específicos, como nar- rador, personagens, tempo, espaço, enredo. Além disso, o gênero narrativo é um gênero do discurso, e a narrativa possui técnicas discursivas específicas a esse gênero. As técnicas discursivas são utilizadas pelos autores para criar o mundo da narrativa e transmitir a mensagem da história ao leitor, seu receptor final. Os níveis do discurso são importantes neste jogo de comunicação entre autor/escritor e leitor/receptor. O Quadro 2, a seguir, apresenta os diferentes papéis discursivos das narrativas literárias e esclarece quem são os sujeitos envolvidos nessas narrativas. Narrativa literária14 Papéis discursivos Definição Níveis do discurso Autor Escritor do texto. Criador do narrador e do narratário, bem como das personagens e do enredo (a história em si). Extratextual (fora do texto). Pertencem ao mundo real, são seres empíricos. Leitor Receptor do texto. Público-alvo do autor. Completa o texto com a sua interpretação, sua compreensão final da obra. Narrador Aquele que conta a história, que narra os acontecimentos. Intratextual (dentro do texto). Pertencem ao mundo interno da narrativa, são seres fictícios. Narratário Destinatário do narrador. Aquele para quem o narrador narra os fatos da história. Com quem o narrador conversa — explícita ou implicitamente — no texto. Quadro 2. Papéis discursivos nas narrativas literárias ASSIS, M. de. Dom casmurro. Cotia: Ateliê Editorial, 2008. BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral. 4. ed. 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