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Educação de Jovens e Adultos: Fundamentos e Práticas Responsável pelo Conteúdo: Prof.ª Dr.ª Márcia Pereira Cabral Revisão Textual: Prof.ª Me. Sandra Regina Fonseca Moreira A Formação do Educador e a Educação de Jovens e Adultos A Formação do Educador e a Educação de Jovens e Adultos • Elucidar a importância do papel do docente na Educação de Jovens e Adultos, analisando as políticas e desafios relacionados à formação do educador. OBJETIVO DE APRENDIZADO • Introdução; • Os Programas de Alfabetização de Jovens e Adultos e a Formação do Educador; • Contextualizando a Formação de Educadores de Jovens e Adultos: Identidade e Compromisso; • As Dimensões da Formação do Educador de Jovens e Adultos: Aspectos Políticos e Pedagógicos; • Desafios Colocados ao Educador de EJA. UNIDADE A Formação do Educador e a Educação de Jovens e Adultos Introdução Após entender o percurso histórico e as características da educação de jovens e adultos, é hora de se aprofundar melhor na questão da formação do docente. Por isso, esta Unidade apresenta discussões sobre a identidade e compromisso do educador de jovens e adultos e sua formação como alfabetizador e educador com- prometido de forma ética, política e social com o processo de escolarização desta modalidade de ensino. O texto busca contextualizar a questão da identidade do educador da EJA e da sua formação e expor os desafios políticos e pedagógicos da formação desses educadores no Brasil. Nesse sentido, apresentamos brevemente o contexto da educação de jovens e adultos, a legislação e o debate sobre o educador da EJA e, ainda, analisamos os desafios que se colocam para uma formação específica considerando aspectos polí- ticos e pedagógicos. Figura 1 Fonte: Getty Images Para tanto, organizamos a apresentação desta unidade em duas partes: na primeira, há uma exposição centrada no contexto das últimas décadas, a legislação e o debate sobre o educador da EJA; na segunda, são analisados os desafios que se colocam para uma formação específica considerando aspectos políticos e pedagógicos. Os Programas de Alfabetização de Jovens e Adultos e a Formação do Educador Como vimos nas unidades anteriores, a partir da década de 1990, assistimos na Educação de Jovens e Adultos a tendência à descentralização do financiamento e dos serviços, bem como o deslocamento dos programas de EJA de setores de gestão educacional para outros setores da administração pública. 8 9 Nesse contexto, foram criados três programas de formação continuada voltados para a educação de jovens e adultos. Os três apresentam como traço comum características que não foram coordenadas pelo Ministério da Educação e que foram desenvolvidas em regime de parceria entre Governo, Organizações Não Governa- mentais e Empresas. São eles: • PAS: Programa Alfabetização Solidária, idealizado em 1996; • PRONERA: Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – delineado em 1997; • PLANFOR: Plano Nacional de Formação do Trabalhador – idealizado em 1995. Os programas de alfabetização de jovens e adultos eram desvinculados do Minis- tério da Educação. Todos apontavam para um processo de alfabetização aligeirado e com alfabetizadores populares, com uma formação precária para exercer o papel de educador. Não se pretende desmerecer a sua importância em longo prazo e nem o seu papel no contexto histórico em que se inseriam. O que se objetiva, no entanto, é entender de que maneira as necessidades sociais, políticas e cidadãs da Educação de Jovens e Adultos se fizeram fundamentais na formação dos educadores desses projetos. O que se observa com a idealização desses programas é que mais uma vez nos deparamos com a dificuldade da EJA em adquirir um estatuto próprio, e se constituir enquanto política educacional comprometida a romper com a visão assistencialista, muito presente nesta modalidade de ensino. A partir de 2002, contudo, a política da EJA passou a ser vista como responsabili- dade do Ministério da Educação, sendo criada a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) que, em articulação com os sistemas de ensino, tem elaborado e implementado políticas direcionadas para a alfabetização e educação de jovens e adultos. Ocorre, assim, a institucionalização da EJA, e se assume o compromisso com esta modalidade na qualidade de educação, rompendo com a visão assistencialista que até então tinha sido aplicada em diferentes contextos e políticas de governo. Para entender melhor a relevância da SECADI no contexto da EJA, assista à entrevista de 2016, da então secretária Ivana da Siqueira, disponível no canal do Ministério da Educação. Acesse em: https://youtu.be/y9D0X_qfN50 Essa alteração de status da EJA, a partir de 2002, representou um ganho no campo das políticas de educação, bem como a conquista de um estatuto próprio e a constituição da EJA como campo pedagógico. Para que pudesse atender às demandas da EJA, o SECADI foi dividido em diferentes diretorias, dentre elas, encontramos a Diretoria de Políticas de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (DPAEJA) desenvolvendo as seguintes ações: Programa Brasil Alfabetizado (PBA); Programa Nacional do Livro Didático para a Alfabetização de Jovens e Adultos (PNLDEJA); Educação em Prisões e Medalha Paulo Freire. 9 UNIDADE A Formação do Educador e a Educação de Jovens e Adultos Política de Formação em Educação de Jovens e Adultos Quanto à formação de educadores de jovens e adultos, identificamos no Portal do Ministério da Educação o programa Política de Formação em Educação de Jovens e Adultos, que apoia as iniciativas que atendem aos professores e educadores que trabalham com jovens e adultos que estejam fora da escola ou em processo de alfabe- tização, escolarização e qualificação profissional integrada ao processo educacional. Essa iniciativa integra a Política de Formação de Professores da Educação Básica do Ministério da Educação. Criado em 2007, o programa tinha como objetivo o apoio às iniciativas que fossem capazes de ampliar, diversificar e melhorar possibilidades de formação continuada para docentes de redes de ensino públicas. Até o seu lançamento, não existiam pro- gramas específicos para a EJA. Em 2008, durante a Conferência Nacional da Educação Básica, foi ressaltada a importância de uma política de Educação de Jovens e Adultos sólida e integral, no sentido de preparar os alunos para a vida no contexto social em que estão inseridos. Nesse cenário, ressalta-se a importância de uma formação docente que seja capaz de acionar as habilidades do educador em levar a consciência cidadã a seus alunos. O documento final produzido durante a Conferência destaca que, para a demo- cratização da educação, é preciso que haja a: consolidação de uma política de educação de jovens e adultos (EJA), concretizada na garantia de formação integral, da alfabetização e das demais etapas de escolarização, ao longo da vida, inclusive àqueles em situação de privação de liberdade. Essa política – pautada pela inclusão e qualidade social – prevê um processo de gestão e financiamento que assegure isonomia de condições da EJA em relação às demais etapas e modalidades da educação básica, a implantação do sistema integrado de monitoramento e avaliação, uma política específica de formação per- manente para o professor que atue nessa modalidade de ensino, maior alocação do percentual de recursos para estados e municípios e que esta modalidade de ensino seja ministrada por professores licenciados. (BRASIL, 2009, p. 10) Note que o texto destaca a importância de uma formação continuada para os docentes dessa modalidade de educação, viabilizando mecanismos para que isso se torne realidade. Embora esses mecanismos tenham sido debatidos nos anos subsequentes, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) não traz diretrizes sobre a Educação de Jovens e Adultos, destacando somente que a EJA deve proporcionar o desenvolvimento das mesmascompetências que o ensino regular. No entanto, como o documento tornou-se uma referência na educação nacional, a lacuna deixada em relação à EJA deixa em aberto os objetivos específicos desse tipo de educação e, consequentemente, as pers- pectivas oficiais do MEC sobre a formação de seus docentes. 10 11 Matéria – “Falta de diretrizes para EJA na Base Nacional Comum preocupa educadores”, disponível em: https://bit.ly/3fzZbZQ Contextualizando a Formação de Educadores de Jovens e Adultos: Identidade e Compromisso Partindo de um estado da arte realizado sobre a produção acadêmica em Educação de Jovens e Adultos no Brasil, foram identificados 198 trabalhos, entre teses e dis- sertações, no período de 1986-1996. Dentre eles, 23 estudos tratavam da formação de professores. A grande maioria desses estudos identifica a ausência de formação específica dos educadores, considerada um dos principais entraves das experiências educativas. Conforme Ribeiro (1999), entre os autores que atestam a ausência do tópico educação de adultos no processo de formação inicial dos professores estão Abrantes (1991), Christov (1992), Cruz (1994), Piconez (1995) e Guidelli (1996). A ausência do trabalho com o conteúdo de educação de jovens e adultos no pro- cesso de formação inicial tem sido um dos fatores que contribuem para uma prática nesta modalidade com representações infantilizadas do mundo adulto. Figura 2 Fonte: Getty Images A perspectiva assistencialista e infantilizadora da educação de jovens e adultos é um fator que prejudica a constituição do campo, limitando as condições de se ofertar aos educadores uma formação adequada, que considere as especificidades do público dessa modalidade educativa. Conforme Amparo (2012), é importante destacar que 11 UNIDADE A Formação do Educador e a Educação de Jovens e Adultos a infantilização pode ser considerada como a aplicação em sala de aula de práticas pedagógicas que não condizem com a realidade de alunos jovens e adultos, em ações que se assemelhariam, assim, à replicação de prática da Educação Infantil. A autora destaca ainda o fato de que os alunos que frequentam a EJA o fazem de maneira opcional, e não obrigatória, como acontece com crianças em idade escolar. Dessa maneira, atividades que têm caráter de monitoramento e cobrança – como lições de casa, com posterior verificação de realização – devem ser ponderadas antes da aplicação. As características dos alunos adultos também remetem ao fato de que muitos deles são pessoas adultas e idosas que foram privadas do ensino regular por necessidades variadas, mas quase sempre fundamentadas em situações de desvantagem social. Em relação ao educador, é preciso haver um acolhimento do aluno sob a ótica de seu perfil, considerando e valorizando a sua bagagem pessoal para o processo de aprendizagem. Como já vimos nas outras Unidades de estudo, a história da edu- cação também reforçou a concepção de Educação de Jovens e Adultos como uma ação de caráter voluntário, pela ausência de política educacional preocupada com a institucionalização da EJA. Ribeiro (1999) lembra que a EJA vem sendo marcada por um cunho de doação, favor, missão e movida pela solidariedade, tal como concebida na perspectiva liberal de ajuda aos mais pobres, de caridade para com os desfavorecidos. Esta perspectiva dificulta a elaboração de um estatuto próprio da EJA e de uma proposta teórico-metodológica adequada às especificidades desta modalidade, bem como a dificuldade da superação do paradigma de uma educação compensatória. No caso do educador, verifica-se a sua desprofissionalização, desvalorização e a per- manência de um trabalho voluntário e caritativo. Os professores de pessoas jovens e adultas, assim como a maioria dos seus alunos, são trabalhadores e sujeitos de direitos. Estão inseridos em uma dinâmica social, cultural e política ampla que se desenvolve em meio a lutas, tensões, engajamentos, práticas e movimentos sociais ao longo da história brasileira. O processo sócio-histórico de construção da identidade do professor, reconhecendo sua história de vida, a formação e prática docente que são elementos constituintes da sua identidade profis- sional ainda são pouco investigados, particularmente suas experiências e os saberes especializados dentro do contexto da educação de pessoas jovens e adultas trabalhadoras. (FARIA, 2012, p. 3) A conquista de um estatuto próprio e a constituição da EJA como campo peda- gógico depende de considerarmos três ideias-força: a primeira relativa ao reconhe- cimento dos jovens e adultos como membros da classe social popular; a segunda diz respeito às necessidades de aprendizagem características da idade adulta e da condição de trabalhadores; e a terceira aponta para a consideração das característi- cas cognitivas dos alunos jovens e adultos e das possibilidades de integrar os saberes adquiridos em suas experiências de vida e nos conteúdos escolares. 12 13 Para entender melhor as representações simbólicas e os aspectos sociais acerca do professor da EJA, leia o artigo “Representações sociais de professores da educação de jovens e adultos – EJA sobre sua formação docente e a afetividade no processo de ensino- -aprendizagem”, disponível em: https://bit.ly/3dannRc Quanto à ideia do reconhecimento dos jovens e adultos como membros de uma classe social popular, Ribeiro (1999) destaca que o diálogo é base para a atividade pedagógica. Portanto, os jovens e adultos são protagonistas no processo educativo, participando ativamente da definição de objetivos, negociando os conteúdos a serem ensinados e assumindo o controle dos seus processos de aprendizagem. Nesse sen- tido, os educadores estarão incentivando os alunos a assumirem a responsabilidade pelo seu próprio desenvolvimento pessoal e social. É uma forma de o educador supe- rar o enfoque assistencialista da profissão na medida em que considera os educandos jovens e adultos como sujeitos do processo educacional. A segunda ideia-força indica aos educadores ter como foco da sua ação pedagó- gica a relação teórico-prática, a combinação entre a formação geral e profissional e, ainda, o universalismo e a contextualização de forma a atender as necessidades de aprendizagem próprias da idade adulta e da condição de trabalhador. Essa abor- dagem deve proporcionar o avanço da capacidade crítica, criativa e autônoma do jovem e do adulto trabalhador. Segundo Ribeiro (1999), essa ideia sugere, também, o desenvolvimento de estudos que esclareçam quais as competências e saberes que são exigidos pelos contextos de trabalho e por outras dimensões da vida cotidiana. Para entender melhor a questão das dimensões da vida cotidiana no processo de aprendiza- gem, vale a pena ler um artigo feito como estudo de caso no município de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. O artigo “Políticas e práticas de EJA em Caxias do Sul: dimensões do concebido, do vivido e do percebido”. Disponível em: https://bit.ly/30RqWZV Como parte integrante do processo de conhecimento, a terceira ideia-força indica considerar as características cognitivas dos alunos jovens e adultos e as possibilidades de integrar os saberes adquiridos em sua experiência de vida e nos conteúdos escolares. E, nesse sentido, Ribeiro (1999, p. 194) entende que é preciso “o amadurecimento de uma psicologia dos adultos” que estude e considere o seu processo de construção de conhecimento, a especificidade dessas fases da vida, jovem e adulta, bem como os efei- tos provocados pela aprendizagem a esses jovens e adultos. Ribeiro (1999, p. 195) salienta que o educador, tendo esse instrumental teórico durante a formação, poderá “distinguir mais claramente no que é que, de fato, a escolarização pode fazer diferença para os jovens e adultos”. Destacamos, assim, a necessidade de que o docente se volte para o potencial transformador. O discurso do educador com os alunos da EJA: https://youtu.be/4FpzrfFwRrM 13 UNIDADE A Formação do Educador e a Educação de Jovense Adultos As Dimensões da Formação do Educador de Jovens e Adultos: Aspectos Políticos e Pedagógicos A educação de jovens e adultos, por ter sido tratada ao longo dos anos de forma secundária no debate educacional, deixou muitas lacunas, dentre elas, uma formação do professor que contemplasse seus diferentes aspectos e especificidades. Essa rele- gação manifesta-se até mesmo em elementos mais concretos, como a “improvisação no uso de instalações, a alocação de professores cedidos ou sem a fixação no esta- belecimento, fato traduzido muitas vezes em um atendimento deficitário”, segundo Ceratti (2007, p. 20). Vídeo “Os desafios da Educação de Jovens e Adultos”, da Secretaria de Estado de Educa- ção de MG. Disponível em: https://youtu.be/vOyWBZuMHBQ Pensando nessa especificidade e nos desafios já mencionados em Unidade anterior – como diversidade étnico-racial; gênero; cultura; educação inclusiva, etc. – é que a forma- ção deve ter um olhar mais abrangente sobre a educação, os educandos e o educador, entendendo que somente uma formação que assuma as dimensões política e pedagógica poderá proporcionar mudanças na atuação desse educador. Quando se considera a dimensão política, precisamos pensar sob a ótica de edu- cação nos moldes do que vivemos na unidade anterior, com a prática de Paulo Freire. Ou seja, considerar que um ensino politizado é aquele que se insere no contexto de seus alunos e contribui para o entendimento ampliado dessa realidade. Assim, pode- mos apontar para o compromisso ético com o ato de educar, para a atitude crítica no ato de ensinar, para a responsabilidade no ato de planejar, agir e pensar a EJA. Esse educador deve compreender que a sua prática envolve todos os níveis da educa- ção básica (Ensino Fundamental I e II e Ensino Médio), e como já mencionado, deverá estar comprometida com a qualidade de vida, formação para o trabalho, cidadania e democracia, visando um sujeito crítico e atuante. Nesse sentido, a dimensão política traz para o ato de ensinar a preocupação com a escolha de conteúdos que dizem respeito à realidade vivida pelos jovens e adultos que buscam a sua escolarização. Como bem nos esclarece Freire: Por isso também é que ensinar não pode ser um puro processo, como tanto tenho dito, de transferência de conhecimento do ensinante ao aprendiz. Transferência mecânica de que resulte a memorização maquinal que já critiquei. Ao estudo crítico corresponde um ensino igualmente crí- tico que demanda necessariamente uma forma crítica de compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura do mundo, leitura do contexto. (FREIRE, 2001, p. 264) 14 15 Percebemos, assim, os reflexos dessa necessidade de ensino mais abrangente na dimensão pedagógica da questão. O educador, no seu processo de formação inicial e continuada, precisa compreender que, para superarmos o ato mecânico de ensinar, para uma ação educativa reflexiva, crítica e consciente, ele deve saber ler o contexto e a sociedade do seu tempo e de outro tempo histórico, situada em espaços diversos. A sua atuação crítica, consciente e cidadã depende do seu compromisso político. Essa componente reflexiva do docente deve se manifestar em toda a sua prática. A responsabilidade no ato de planejar, agir e pensar a EJA, no atual contexto, assi- nala o seu envolvimento com o projeto pedagógico da escola, participando na sua elaboração, execução e avaliação. Entendemos, assim, que a EJA como modalidade da educação básica faz parte do Projeto Pedagógico da escola, não se constitui isola- damente, mas na relação com as outras modalidades de educação. Portanto, a forma- ção do educador deve contemplar também o planejamento como uma categoria da dimensão política de sua formação. “Compreendendo o que é ser um professor reflexivo ante a ação pedagógica”. Disponível em: https://bit.ly/3hAfLKZ Sobre a formação do educador e sua competência, citamos Rios (2001): A competência guarda o sentido de saber fazer bem o dever. Na verdade, ela se refere sempre a um fazer que requer um conjunto de saberes e im- plica um posicionamento diante daquilo que se apresenta como desejável e necessário. É importante considerar-se o saber, o fazer e o dever como elementos historicamente situados, construídos pelos sujeitos em sua práxis. (RIOS, 2001, p. 88) Com o intuito de ampliar a visão sobre o debate das dimensões presentes no pro- cesso de formação do educador e da sua atuação, recorremos, também, a Terezinha Rios (2001), que nos fala em dimensões da competência que é envolvida pela técnica (techne/poeoésis), estética (aesthesis), ética (ethos) e política (polis). Essa visão apresen- ta a ideia de que o ato de decidir se tornar professor é um processo complexo e contí- nuo que envolve questões internas e externas. Envolve motivações e repertorio, além da atitude e consciência política. Ser educador é, nesse sentido, escolher trilhar cami- nhos na busca em “aprender a ser”. Não basta dizer eu sou, mas, sim, como me torno, como me constituo educador? Pergunta que nos acompanha em toda nossa trajetória. Na busca por aprender a ser, a se constituir enquanto educador, temos as ques- tões motivadoras que geram nossas escolhas, mas também as questões de compe- tência que nos colocam desafios, como os apresentados por Terezinha Rios, como técnica, estética, ética e política. Desafios que nos colocam em pleno movimento de formação permanente. Sobre a dimensão estética colocada por Rios (2001, p. 97), informa-se que “a sensibilidade e a criatividade não se restringem ao espaço da arte. Criar é algo interligado a viver no mundo humano. A estética é, na verdade, uma dimensão da 15 UNIDADE A Formação do Educador e a Educação de Jovens e Adultos existência, do agir humano”. Isso significa, segundo a autora, que o trabalho docente também deve ser permeado por beleza que visa ao bem, ao fazer bem-feito, com técnica, sem perder a emoção. O tema da estética na educação é uma discussão que data desde o século XVIII. Entenda melhor sobre o assunto e seus principais pensadores no artigo “Estética e Educação”. Disponível em: https://bit.ly/2YNpGo3 Hoje, há uma inquietação em relação à qualidade de ensino em nossas escolas. Muitos discursos são feitos em função dessa realidade, entretanto, é fundamental a tomada de consciência de que a escola não é o único lugar de aprendizagem, pois na sociedade do conhecimento o espaço escolar é muito maior do que a escola. Essa consideração é ainda mais evidente quando se pensa no cenário atual da sociedade em que vivemos. Conforme Cruz: A sociedade da informação é uma realidade decorrente dos novos mer- cados, meios de comunicação e consumidores desta era que conseguiu transformar o mundo em uma grande sociedade globalizada e globalizante, na qual os bens primordiais são informação e conhecimento. (CRUZ, 2018) Tendo em mente o papel social de cada aluno e as características da sociedade em que está inserido, o educador deve ter essas preocupações em relação à apren- dizagem de seus alunos. Contudo, ele deve, em primeira instancia, pensar também quais os espaços de formação cultural e pedagógica que podem ir além das salas das universidades, no caso da formação inicial, e espaços escolares, no caso de professores atuantes, ampliando para a rua, praças, feiras e festas populares, casas de espetáculos, museus, espaços virtuais e presenciais que possibilitem o sentir a experiência estética. Quando Rios (2001) aborda a dimensão técnica, refere-se a uma prática profissional na qual há técnica e conhecimento do assunto, conhecimento didático, conhecimento do uso de recursos materiais, da mediação do conhecimento em diferentes faixas etárias, mas há também criação e sensibilidade nessa prática docente; portanto, poiési: Para que a práxis docente seja competente, não basta, então, o domí- nio de alguns conhecimentos e os recursos a algumas “técnicas” para socializá-los. É preciso que a técnica seja fertilizada pela determinação au- tônomae consciente dos objetivos e finalidades, pelo compromisso com as necessidades concretas do coletivo, e pela presença da sensibilidade, da criatividade. (2001, p. 96) O momento social que estamos vivendo mostra o quanto o professor precisa se preocupar com a sua competência profissional para lidar com o paradigma da nossa era. Nesta realidade social da educação, o conhecimento não se apresenta de forma fragmentada. Pelo contrário, está interligado e contextualizado, e não cabe mais educar por partes, precisamos ter uma visão ampliada do ensino. Nas palavras de Festas (2015): 16 17 A ideia da contextualização do conhecimento, do ensino e da aprendiza- gem ocupa grande relevância no atual panorama educativo. Traduzindo e respeitando uma tendência pedagógica dominante nas ciências da edu- cação, as orientações educativas, as organizações curriculares, as estraté- gias e metodologias de ensino e de aprendizagem, expressas e advogadas nos documentos normativo-legais e nos discursos dos meios pedagógicos e ligados à formação de professores, fazem apelo a esta ideia-chave da contextualização. Defende-se uma escola, um ensino e uma aprendiza- gem centrados em saberes contextualizados, alternativos aos conheci- mentos acadêmicos que se apresentavam como os principais objetivos da escola tradicional. A aprendizagem deverá passar a estruturar-se a partir do contexto social e cultural dos alunos e, ainda, das suas vivências pessoais e familiares. (FESTAS, 2015, p. 715) Trazendo a concepção de ensinar e aprender para a questão da formação do professor, chamamos atenção para a vivência de situações culturais que envolvem tanto o estudo de teorias como discussões em grupos de estudos sobre abordagens de práticas pedagógicas. Nesse sentido, Paulo Freire fala na “boniteza” que pode fazer parte da história de construção na formação do educador como em toda sua história no exercício em ser educador. O educador busca ser educador na contemporaneidade e desenvolver a competência da autonomia na busca do conhecimento. Ação que se desenvolve cada vez mais no perfil do “professor pesquisador” e não é possível na postura do professor “reprodutor”, aquele que apenas busca aulas já formuladas, não sendo autor do seu próprio trabalho. Conforme Freire (1996, p. 145) : [...] é esta percepção do homem e da mulher como seres “programa- dos, mas para aprender” e, portanto, para ensinar, para conhecer, para intervir, que me faz entender a prática educativa como um exercício constante em favor da produção e do desenvolvimento da autonomia de educadores e educandos. Ao projetar o resultado de uma vida de trabalho com beleza, com “boniteza”, utilizando as palavras de Freire (1996), o professor se constrói e se afirma enquanto sujeito. Portanto, a formação docente envolve tanto formação técnica como educa- ção estética, não apenas no campo de arte, como já abordamos nesta unidade, mas também ações que ao praticarem o fazer bem, o fazem de forma bela. O fato, porém, de que ensinar ensina o ensinante a ensinar um certo con- teúdo não deve significar, de modo algum, que o ensinante se aventure a ensinar sem competência para fazê-lo. Não o autoriza a ensinar o que não sabe. A responsabilidade ética, política e profissional do ensinante lhe co- loca o dever de se preparar, de se capacitar, de se formar antes mesmo de iniciar sua atividade docente. Esta atividade exige que sua preparação, sua capacitação, sua formação se tornem processos permanentes. Sua experiência docente, se bem percebida e bem vivida, vai deixando claro que ela requer uma formação permanente do ensinante. Formação que se funda na análise crítica de sua prática. (FREIRE, 2001, p. 259) 17 UNIDADE A Formação do Educador e a Educação de Jovens e Adultos A questão de nenhuma formação específica e a nossa incapacidade ou impos- sibilidade de estarmos prontos são os desafios colocados, bem como a escolha no processo de formação de uma fundamentação teórica que implique nas mudanças de olhar a prática, de conceber o ensino, de responsabilizar-se ética, política e pro- fissionalmente pelo educando, e de atuar crítica, rigorosa e politicamente nessa modalidade de ensino. Desafios Colocados ao Educador de EJA Diante do exposto, são diversos os desafios relacionados à atuação do educador. Dentre eles, destaca-se a necessidade de os educadores repensarem a organização do espaço-tempo escolar, do currículo, das disciplinas, das séries ou ano, abrindo diferentes possibilidades no processo de formação dos jovens e adultos. A organização do espaço-tempo na EJA merece um destaque especial. Para entender essa questão, é preciso recorrer à Lei de Diretrizes e Bases n. 9.394/96, que abre para as diferentes formas de organização do tempo escolar e do seu currí- culo conforme o que segue: Art. 23. A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, perío- dos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar. (BRASIL, 1996) Perceba, assim, que os próprios aspectos legais da EJA reconhecem a maneira como o aspecto político e social da educação de jovens e adultos deve prevalecer diante dos elementos formais da escola. Não se trata de um abandono dessas estru- turas, mas sim da consideração de que tais tempos e espaços podem ser reconfigu- rados da maneira que mais interessa para os alunos. Alunos da educação infantil precisam desenvolver as habilidades de controle e respeito de tempo – seguir uma rotina, entender pausas e intervalos – como parte de sua formação. O mesmo não é necessário para jovens e adultos, que já aprenderam esses conceitos ao longo da vida. Da mesma maneira, é importante lembrar também do aspecto não obrigatório da EJA; ou seja, medidas disciplinares devem ser repensadas sob a ótica de que os alunos ali presentes o fazem por vontade própria e que, portanto, não precisam ser observados com a mesma rigidez de quem frequenta a escola por obrigação. Nesse cenário, o contexto da EJA sinaliza para a possibilidade de superarmos uma abordagem tradicional de educação, criando programas, projetos de ações e períodos de estudos que considerem, respeitem e valorizem as especificidades da educação de jovens e adultos. É mais um desafio para a gestão da escola e dos edu- cadores que atuam nesta modalidade de ensino. 18 19 Como bem afirma Ribeiro (1999, p. 105) : Os professores de jovens e adultos devem estar aptos a repensar a orga- nização disciplinar e de séries, no sentido de abrir possibilidades para que os educandos realizem percursos formativos mais diversificados, mais apropriados às suas condições de vida. O rompimento com a abordagem tradicional de ensino implica um alto grau de competência pedagógica, que deve ser garantida na formação inicial e continuada do professor. Deve-se considerar na formação a profissionalização do educador de EJA e, portanto, o currículo da formação de professores dos diferentes cursos de licenciatura deve contemplar a educação de jovens e adultos, sua teoria e prática. Essa ruptura pode, inclusive, ser utilizada para captar o interesse dos alunos para aspectos que, inicialmente, não atraíam sua atenção. O modelo tradicional da escola é visto por muitos alunos como pedante e dogmática (PILAR, 2017), sendo que a sinalização de que a EJA pode ser feita de maneira diferente é positiva a seus olhos. A ideia de que a aprendizagem que acontece fora da escola é igualmente impor- tante a que é desenvolvida em sala de aula, nem sempre foi aceita. Muitos adultos e idosos vivenciaram ambientes e experiências em que seus conhecimentos de mundo podem ter sido menosprezados por não serem formais. Para eles, um ensino inovador, que incorpore e valorize o mundo social, pode ser o elemento que faltava para que a educação fosse novamente admirada. Romper comum ensino tradicional, ser crítico e criativo são exigências para um professor que saiba decidir, em cada situação do processo pedagógico, quais formas de agrupamento, sequenciação, meios didáticos e interações propiciarão o maior progresso possível aos alunos, considerando a diversidade que inevitavelmente carac- teriza o público da educação básica de jovens e adultos (RIBEIRO, 1999) . Dessa maneira, o professor da EJA tem, diante de si, o desafio de vivenciar uma prática reflexiva em todas as suas atividades docentes, considerando e incorporando a realidade de seus alunos ao cenário educacional que conduz em sala de aula. Ele irá, dessa maneira, verificar e colocar em prática as necessidades educacionais dos alunos que educa, estimulando o potencial transformador da aprendizagem na medida em que insere a educação e a politização nas múltiplas dimensões da vida de seus educandos. Em Síntese Concluímos que ainda há muitos desafios para que a Educação de Jovens e Adultos se constitua como campo pedagógico e uma política pública comprometida com mudanças substanciais no atendimento educacional da juventude e da pessoa adulta, considerando as especificidades relacionadas às expectativas e características próprias desses sujeitos. Além disso, precisamos de uma formação que contemple temas como diversidade, inclusão e trabalho, questões fundamentais para atuar na EJA no atual contexto. Sem dúvida, as formações inicial e continuada devem ter claro que o educador de jovens e adultos precisa ter rigor, ética, compromisso político e pedagógico no ato de ensinar. 19 UNIDADE A Formação do Educador e a Educação de Jovens e Adultos Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Vídeos Os Quatro Pilares da Educação – UNESCO https://youtu.be/5pzJbTAYfvE EJA: seus atores e Histórias https://youtu.be/W5IYLolNZ4M Leitura Boniteza de um sonho – Ensinar-e-aprender com sentido https://bit.ly/3ecegAt A educação reflexiva na pós-modernidade: uma revisão bibliográfica https://bit.ly/37ClR9j 20 21 Referências AMPARO, M. A. M. Infantilização do ensino na Educação de Jovens e Adultos: Uma análise no município de Presidente Prudente/SP. Boletim Gepep, São Paulo, v. 1, n. 1, p.49-62, dez. 2012. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei número 9394, 20 de dezembro de 1996. _______. MEC. SEA. Documento Referência da Conferência Nacional da Educação. Brasília: MEC/Secretaria Executiva Adjunta, 2009a. CERATTI, M. R. N. Políticas públicas para a Educação de Jovens e Adultos. Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), SEED/PR. 2007. Dispo- nível em: <http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/produco- es_pde/md_marcia_rodrigues_neves_ceratti.pdf >. CRUZ, J. M. de O. Processo de ensino-aprendizagem na sociedade da infor- mação. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid =S0101-73302008000400005 >. FARIA, E. M. S. A precarização e a (des)profissionalização docente na educa- ção de jovens e adultos trabalhadores. Disponível em: <http://www.estudosdotra- balho.org/texto/gt7/a_precarizacao.pdf >. FESTAS, M. I. F. A aprendizagem contextualizada: análise dos seus fundamentos e práticas pedagógicas. Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 41, n. 3, p. 713- 728, jul./set. 2015. FREIRE, P. Carta de Paulo Freire aos Professores. 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