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2 Sobre o autor: Amanda Heiderich Marchon é Professora Adjunta de Linguística da Universidade Federal do Espírito Santo e professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Linguística da mesma universidade. Sua formação inclui Mestrado e Doutorado em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e estágio de pós-doutoramento em Estudos da Linguagem na Universidade Federal Fluminense. É líder do Grupo ELUs – Estudos da Língua em Uso (UFES) e pesquisadora do CIAD-Rio – Centro Interdisciplinar de Análise do Discurso (UFRJ). Desenvolve pesquisas, principalmente, com os seguintes temas: funcionalismo; macrorrelação de causalidade; argumentação; multimodalidade; ensino. 3 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................... 4 APRESENTAÇÃO .............................................................................................. 5 MÓDULO 1 ......................................................................................................... 7 MÓDULO 2 ........................................................................................................ 27 MÓDULO 3 ........................................................................................................ 49 BIBLIOTECA: MATERIAIS COMPLEMENTARES ........................................... 68 REFERÊNCIAS .................................................................................................. 71 4 INTRODUÇÃO Considerando que a comunicação é fundamental para organizar a vida em sociedade, este curso tem como objetivo geral promover a reflexão sobre o desenvolvimento da comunicação em diferentes materialidades – sonora, escrita, imagética e digital. Mais especificamente, busca-se em consonância com a BNCC, desenvolver propostas pedagógicas sobre diferentes linguagens que viabilizam a comunicação ética e eficiente dentro e fora do espaço escolar. Para tanto, o curso está organizado em três módulos, que focalizam (i) a cooperação dos interlocutores no processo comunicativo; (ii) a multimodalidade na construção da comunicação inclusiva; (iii) o tecnodiscurso e a ciberviolência nas redes sociais. Por meio da leitura do material didático, do acesso aos textos complementares e aos materiais audiovisuais sugeridos, bem como dos desenvolvimentos das tarefas propostas, espera-se que o(a) professor(a) potencialize sua prática pedagógica e explore diferentes linguagens e materialidades, nas atividades desenvolvidas com os estudantes. Sendo assim, o presente curso foi dividido da seguinte maneira: Módulo 1: O estabelecimento de um acordo entre os interlocutores • Processo de interação mediado por textos; • Mais que transmissão de informação; • Contrato de comunicação e prática dialógica. Módulo 2: A construção de sentidos na simbiose palavra-imagem • O conceito de multimodalidade; • A relação palavra-imagem; • A multimodalidade e a comunicação inclusiva. Módulo 3: A comunicação mediada pela máquina • A evolução do conceito de letramento; • A comunicação na era da tecnologia digital; • A ciberviolência nas redes sociais. 5 APRESENTAÇÃO Olá, professor(a)! Seja muito bem-vindo(a) ao curso Comunicação e(m) diferentes materialidades! Ao longo desta formação, estaremos imersos em experiências que nos permitirão compreender como a comunicação se manifesta em múltiplos modos, utilizando diferentes recursos materiais para expressar significados e construir conexões. Essa ideia abrange uma variedade de canais e plataformas que podem ser utilizados para a interação, indo além das tradicionais interações verbais por meio de textos orais ou escritos. Buscando contemplar a Competência Geral 4 da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), que versa exatamente sobre a multiplicidade de linguagens para o estabelecimento da comunicação, o objetivo geral, deste curso, é promover a reflexão sobre o desenvolvimento da comunicação em diferentes materialidades – sonora, escrita, imagética, digital –, capacitando os participantes a desenvolverem práticas pedagógicas que contemplem a comunicação como um processo mais amplo do que apenas a transmissão de informações. Decorrentes desse objetivo geral, delineiam- se os seguintes objetivos específicos: ▪ Discutir o conceito de comunicação; ▪ Analisar o conceito de contrato de comunicação e sua influência nas práticas dialógicas; ▪ Compreender o que é multimodalidade e como ela é aplicada na comunicação; ▪ Entender como a multimodalidade pode contribuir para práticas comunicativas inclusivas na escola; ▪ Analisar o papel da tecnologia digital no processo de comunicação; ▪ Explorar estratégias para prevenir e lidar com a ciberviolência nas redes sociais. 6 A fim de que esses objetivos sejam alcançados, dividimos este curso em três módulos. No primeiro módulo – O estabelecimento de um acordo entre os interlocutores –, procuramos ampliar o conceito de comunicação como mera transmissão de informação e focalizamos as relações dialógicas que constroem o processo comunicativo. No segundo módulo – A construção de sentidos na simbiose palavra-imagem –, buscamos apresentar o conceito de multimodalidade e relacioná- lo a práticas comunicativas inclusivas na escola. Por fim, o último módulo – A comunicação mediada pela máquina – o letramento digital e contempla a problemática das interações nas redes sociais. Para fins organizacionais e didáticos, cada módulo apresenta três seções, e cada seção traz uma proposta de atividade pensada para que você, professor(a), possa aplicar os conteúdos deste curso em sua prática docente. Acreditamos que algumas propostas precisarão de adaptações, uma vez que cada disciplina possui demandas curriculares específicas, porém esperamos que as reflexões desenvolvidas ao longo deste curso possam ser refletidas na sala de aula, uma vez que a comunicação desempenha um papel central no desenvolvimento global dos(as) alunos(as), contribuindo não apenas para suas habilidades linguísticas, mas também para a formação de cidadãos críticos, ativos e participativos em uma sociedade dinâmica e diversificada. 7 1. Comunicação: processo de interação mediado por textos Desde cedo, aprendemos que o homem, por meio da linguagem, se comunica com seus semelhantes para nomear o mundo e expor suas ideias. A linguagem humana, desse modo, permite não só perceber os elementos da realidade, mas também possibilita a interrelação com o outro e com a coletividade. Nessa direção, a noção de transmissão de informações está na base das definições que os dicionários, de forma geral, apresentam para o verbete comunicação – do latim, communicatĭo,ōnis, no sentido de ação de partilhar, de dividir: Neste módulo, porém, discutiremos que, para além, da transmissão de informações, as ações de linguagem que realizamos diariamente são sempre permeadas por intencionalidade, o que implica na participação ativa tanto do emissor da mensagem quanto do receptor. Embasados em conceitos da Linguística Textual e da Teoria Semiolinguística do Discurso, assumimos aqui que toda comunicação humana ocorre comunicação (substantivo feminino) ato ou efeito de comunicar-se 1 ação de transmitir uma mensagem e, eventualmente, receber outra mensagem como resposta (a comunicaçãoentre uma base terrestre e um míssill; a ciência tenta manter comunicação com os golfinhos). (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa) 8 por meio de textos que são construídos pela colaboração estabelecida entre os interlocutores (emissor e receptor) em uma situação de interação específica situada social e historicamente. Como parece não haver texto sem discurso e muito menos discurso sem texto, consideramos, aqui, o texto como discurso. Essa consideração, portanto, pressupõe que o texto seja resultado de uma operação estratégica de comunicação, produzida por um emissor e interpretada como tal por um interlocutor. Nesse contexto, não podemos deixar de sublinhar que uma longa tradição escolar – um tanto equivocada –, em diferentes épocas e em diferentes disciplinas, analisou textos sem considerar o processo de comunicação a eles relacionados. Com certeza, em sua trajetória na escola, você já ouviu, de algum professor, a pergunta “Qual é o tema do texto?”. No entanto, mais do que responder o que o texto diz, devemos refletir sobre o quando, onde e como o texto foi proferido, além de buscarmos observar os papéis do emissor e do receptor, bem como o objetivo da troca comunicativa. De acordo com o linguista russo Roman Jakobson (1992), para que a comunicação seja estabelecida, torna-se necessário o funcionamento simultâneo de seis elementos: emissor, receptor, mensagem, contexto/referente, código e canal. Segundo o autor, o emissor envia uma mensagem ao receptor. Para ser eficaz, a mensagem requer um contexto a que se refira; um código total ou parcialmente comum ao remetente e ao destinatário, como o código linguístico; e, finalmente, um canal físico entre o remetente e o destinatário, que capacite ambos a entrarem e a permanecerem em comunicação, como o sinal de internet, no caso de uma comunicação por videochamada. De acordo com esse modelo, a mensagem é o elo entre o emissor e receptor. A seguir, apresentamos esquematicamente esse circuito: 9 Figura 1: Esquema de comunicação de Jakobson Fonte: Baseado em Jakobson (1992, p. 123) O quadro a seguir apresenta uma compilação dos conceitos propostos por Jakobson (1992): Tabela 1: Elementos da comunicação Fonte: Elaboração da autora, 2024. Embora esse esquema, ainda hoje, esteja presente em livros didáticos e em aulas de ELEMENTO DA COMUNICAÇÃO O QUE É? Mensagem É a informação transmitida. Emissor É aquele que envia a mensagem (pode ser uma única pessoa ou um grupo de pessoas). Receptor É aquele a quem a mensagem é endereçada (um indivíduo ou um grupo), também conhecido como destinatário. Canal É o meio pelo qual a mensagem é transmitida. Código É o conjunto de sinais convencionados socialmente para a construção e transmissão de mensagens. Contexto É a situação a que a mensagem se refere (contexto). 10 Língua Portuguesa, para a Linguística Textual e para a Teoria Semiolinguística do Discurso, porém, o ato comunicativo não se restringe à transmissão de informação apenas, pois segundo Orlandi (2009, p. 21), no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição dos sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de informação. Nessa perspectiva, a linguagem passa a ser o lugar de interação e, consequentemente, a mensagem perde o status de ser o elo entre emissor e receptor. De acordo com essa noção, os sujeitos, por participarem ativamente no contexto em que estão inseridos, são atores nas situações comunicativas em que buscam influenciar um ao outro. A comunicação, portanto, decorre da indissociável relação entre os interlocutores, para que se possa depreender das palavras e de outros sistemas de signos seus sentidos concretos. A COMUNICAÇÃO EM RECORTES Para conhecer um pouco mais sobre o processo comunicativo, sugerimos que você assista ao vídeo A comunicação em recortes, foi produzido para o curso de Especialização em Coordenação Pedagógica da Universidade Federal de Santa Catarina, na Sala Práticas e Espaços de Comunicação, pela profa. Daniela Karine Ramos com o apoio do Lantec – Laboratório de Novas Tecnolgias. Acesse por meio do QR Code ao lado, ou por meio do link: https://www.youtube.com/watch?v=_C3AmzKpJbQ https://www.youtube.com/watch?v=_C3AmzKpJbQ 11 De acordo com Benveniste (2006, p. 90), cada ato de interação pela linguagem é “um ato que serve o propósito direto de unir o ouvinte ao locutor por algum laço de sentimento, social ou de outro tipo”. Nessa função, explica o autor, a linguagem é manifestada como um modo de ação, ou seja, agimos por meio da linguagem. E, por linguagem, não consideramos apenas a linguagem verbal, constituída por palavras, mas também a linguagem imagética, a visual-motora (como na Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS), a musical, entre outras. Você, certamente, já ouviu falar ou já deve ter lido que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) incentiva que os(as) professores(as) trabalhem com as múltiplas semioses ou multimodalidade, não é mesmo? Cada tipo de linguagem citado anteriormente pode ser entendido como uma semiose ou uma modalidade, tema sobre o qual versa a Competência Geral 4 da BNCC: Considerando que, hoje, vivemos em um momento histórico em que diversas vozes precisam ser ouvidas, veiculando pontos de vista diversos sobre os cenários sociais que construímos dia após dia, o conceito de comunicação como mera transmissão de informações não reflete os fatos da realidade efetivamente. Nessa sociedade da qual somos membros, a todo instante, explicitamos nossas opiniões, opiniões essas que podem ser acolhidas, debatidas e confrontadas por meio de uma interação social – ato que confere dinamicidade às relações humanas. Por serem dinâmicas, as relações mediadas pela comunicação também não acionam apenas o código verbal, ou seja, a linguagem constituída por palavras. Na busca pelo COMPETÊNCIA GERAL 4 – COMUNICAÇÃO Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo. (Base Nacional Comum Curricular, 2018, p.9) 12 engajamento do outro, o emissor – a partir de agora, enunciador, nos termos das teorias em se ancora este curso –, a depender da situação social específica em que se encontra, mobiliza códigos imagéticos, matemáticos, artísticos, sonoros, visuais- motores. Em um mesmo ato de comunicação, é comum inclusive, que os interlocutores se valham de mais de sistema de linguagem – aprofundaremos a questão da relação múltiplas modalidade no módulo 2 deste curso. Na trilha dessa discussão, analisemos a charge de Quino, artista argentino criador da famosa Mafalda, em que a personagem nos conduz à reflexão de que, apesar de vivermos em uma sociedade livre, nossas opiniões e ideologias, nem sempre, podem ser expressas, sob pena de sermos repreendidos: Figura 2: Mafalda Fonte: Educação Cotidiana, 2016. Como vemos, a charge veicula a denúncia acerca da falsa liberdade de expressão que permeia a sociedade pela mobilização de dois códigos, o imagético e o verbal, ou seja, recursos não verbais (a imagem do policial e o ato de a menina apontar para o bastão de borracha) são associados a recursos verbais(a fala de Mafalda). 13 Ressaltamos que a expressão “borracha de apagar”, geralmente remetida ao contexto escolar, passa a significar a ação de repressão promovida pelo estado para calar a população que, eventualmente, pode vir a manifestar opiniões e disseminar ideologias contrárias ao que a máquina estatal defende. O contraste das cores preta e branca das vestimentas, bem como da altura dos personagens também refletem o contraste dos lugares sociais que Mafalda e o policial ocupam. Esses sentidos, entretanto, não são construídos apenas pelo chargista, mas pelo encontro de saberes do chargista e do leitor, isto é, os interlocutores partilham conhecimentos – não necessariamente explícitos – que são acionados na troca comunicativa. No tópico seguinte, aprofundaremos a reflexão sobre a comunicação não ser apenas a transmissão de informações entre os interlocutores e retomaremos a contribuição de Benveniste (2006), de que a linguagem se manifesta como um modo de ação. DESDOBRAMENTO 1: UM POUCO MAIS SOBRE MAFALDA Acesse o site https://www.youtube.com/watch?v=- pv8eKpdZUw ou use o QR Code ao lado para conhecer mais sobre Mafalda, menina que não é somente uma personagem de quadrinhos, mas a materialização da rejeição do mundo como ele se apresenta. Aproveite a navegação pela web e leia outras histórias de Mafalda. Que tal trabalhar com uma dessas histórias em suas aulas? As histórias de Mafalda, em geral, são curtas e abordam temáticas variadas, como relações sociais, valores humanos, questões ambientais etc. https://www.youtube.com/watch?v=-pv8eKpdZUw https://www.youtube.com/watch?v=-pv8eKpdZUw 14 2. Comunicação: mais que transmissão de informações Koch (2007, p. 29) afirma que o indivíduo, ao interagir por meio da linguagem, o faz visando estabelecer relações, causar efeitos, desencadear determinados comportamentos. Em última instância, o ser humano quer quase sempre agir sobre o outro, tenta convencê-lo ou tenta persuadi-lo. Como exemplo dessa ação mobilizada pela linguagem, podemos refletir sobre a campanha publicitária que o Governo do Estado do Espírito Santo desenvolveu com a finalidade de convencer os motoristas a não dirigirem depois da ingestão de bebida alcoólica. Para agir sobre essas pessoas, o Governo promoveu uma campanha publicitária impactante com outdoors associados a carros acidentados, como podemos observar a seguir: Figura 3: Outdoor Fonte: SEMOBI, 2015. Essa comunicação, que conta não só com os recursos verbo-visuais do outdoor, mas também com um carro real em estado de perda total, não visa apenas a informar que a combinação de álcool e direção pode causar acidentes, mas busca, sobretudo, 15 convencer os motoristas a não dirigirem após a ingestão de bebida alcoólica. Em outras palavras, esse ato de linguagem não se restringe à informação, mas tem a finalidade de diminuir o número de acidentes de trânsito, ao mexer com a emoção dos receptores, já que a atmosfera que se cria com a associação dos elementos verbais e imagéticos, com a associação do outdoor com o carro acidentado é atmosfera de dor e morte. Essa campanha exemplifica, portanto, que por meio da comunicação, é possível agir sobre o outro. Na trilha de que o ato de comunicar envolve mais que a transmissão de informação e de que a comunicação é uma atividade de manipulação em que um sujeito faz o outro crer no que se diz (Greimas; Courtés, 1979), pensemos na notícia a seguir, publicada no portal da Prefeitura de Cuiabá: Figura 4: Campanha de prevenção à saúde da mulher Fonte: Prefeitura de Cuiabá, 2023. Essa notícia sobre a campanha de prevenção contra câncer de mama e colo de útero, mais do que informar sobre o evento Fortalecendo Laços pela Saúde da Mulher, serve à promoção das ações desenvolvidas pela Secretaria de Municipal da Mulher 16 no cuidado à saúde feminina. Dessa forma, o ato comunicativo em análise apresenta a função social de noticiar o evento com o objetivo de promover a adesão da população e, consequentemente, contribuir para a redução de casos de câncer em mulheres. Esse é outro exemplo que demonstra que atos comunicativos podem desencadear ações no interlocutor. Toda interação comunicativa apresenta, de forma mais ou de forma menos explícita, uma dimensão argumentativa, uma espécie de manobra discursiva do emissor para captar o interlocutor. Você seria capaz de identificar a intencionalidade do autor da tira de Garfield a seguir? O que ele busca fazer com que o leitor faça? Observe bem a estruturação do texto, a associação de recursos verbais e não verbais: Figura 5: Garfield Fonte: Blog Educação e Tecnologia, 2014. Para iniciarmos a discussão, vale destacar que a preguiça é característica marcante de Garfield, o que, muitas vezes, representa um impedimento para que ele execute determinadas tarefas. A sequência de perguntas que Harold faz a seu animal de estimação vão, gradativamente, deixando o gato irritado – atitude perceptível pela comparação do olhar do bichano no primeiro e no último quadrinho. O discurso veiculado por essa tira é o de que os programas televisivos da atualidade não levam os telespectadores a reflexões críticas sobre a realidade, fato que motiva Garfield a sentar-se diante da TV, exatamente para não se dar ao trabalho de pensar. 17 DESDOBRAMENTO 2: PROMOÇÃO DO BEM-ESTAR SOCIAL As campanhas publicitárias governamentais, em geral, têm por objetivo mobilizar a população para que ela tome alguma medida relacionada à promoção do bem-estar físico e social. Nesse sentido, você pode solicitar aos seus alunos que eles pesquisem por campanhas publicitárias governamentais cuja finalidade ultrapasse a troca de informações, mas vise a fazer o interlocutor a agir em favor do bem-estar individual e/ou coletivo. Os temas podem versar sobre preservação do meio ambiente, promoção de saúde público etc. Figura 6: Estudantes pesquisando na internet Fonte: Canva, 2024. Uma segunda etapa da atividade pode ser a apresentação dos textos selecionadas, bem como a discussão sobre a importância do objetivo almejado por cada publicidade. O material pesquisado ainda pode ser exposto nos corredores e pátios da escola, a fim de mobilizar a ação de outras pessoas. 18 Outra etapa possível para a atividade é propor que os alunos produzam campanhas publicitárias sobre questões relacionadas ao seu universo mais próximo, como cidade ou mesmo a escola. O meio de divulgação pode ser as redes sociais. 3. Contrato de comunicação e prática dialógica A esta altura, você pode estar pensando que nem todo ato comunicativo tem o efeito de mobilizar, efetivamente, o outro. Dito de outra forma, nem sempre, nas comunicações que estabelecemos – ou que, pelo menos, tentamos estabelecer –, atingimos nossos objetivos. Na própria sala de aula, não são poucas as vezes em que buscamos interagir com os estudantes, mas, por razões variadas, não temos sucesso, não é mesmo? O insucesso em uma interação comunicativa pode ser decorrente da falta de conhecimento do significado de algumas palavras (domínio do código linguístico), por problemas relacionados ao meio de propagação do discurso (no caso da interação pela modalidade oral, barulhos; no caso da interação pela modalidade escrita, a inelegibilidade do texto). Há, ainda, casos em que a adesão e a ação do interlocutor não são alcançadas, pelo fato de emissor e receptor não terem concepções coincidentes da realidade. Vocêacredita, por exemplo, que um torcedor apaixonado pela seleção de futebol do Brasil conseguiria fazer um torcedor da seleção da Argentina deixar de torcer pelo time para torcer pelo time brasileiro? Pouco provável, não é mesmo, já que as concepções da realidade desses torcedores são distintas, além disso, essa diferença é reforçada culturalmente pela rivalidade tradicional entre as seleções desses dois países. Entretanto, a não coincidência em relação às concepções de realidade não pode suplantar a ética e respeito. 19 Figura 7: Rivalidade Brasil e Argentina Fonte: LEME, 2017. Bakhtin (2006), filósofo da linguagem, concebe a comunicação como um processo interativo, muito mais amplo do que a mera transmissão de informações. Nessa perspectiva, o autor contesta o pressuposto de que a comunicação está centrada no enunciador e introduz o conceito de dialogia: atividade do diálogo entre o eu e o outro em um território específico socialmente organizado em interação linguística. O sujeito, ao falar ou escrever, deixa em seu texto marcas profundas de sua sociedade, seu núcleo familiar, suas experiências, além de pressuposições sobre o que o interlocutor gostaria ou não de ouvir ou ler, tendo em vista também seu contexto social. Além do conceito de dialogia, Bakhtin (2006) ainda apresenta o conceito de alteridade: o enunciador necessita do outro para constituir seu mundo e para se constituir a si mesmo no ato de comunicação, ou seja, o enunciador só existe como tal porque existe outro sujeito com ele em interação. Assim, são indissociáveis os conceitos de dialogia e de alteridade: 20 Toda palavra serve de expressão de um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.(Bakhtin, 2006, p. 117. Grifos nossos.) Nessa perspectiva, os interlocutores precisam estabelecer uma relação de cooperação, uma espécie de contrato que rege o ato comunicativo em que os sujeitos estão envolvidos. Charaudeau (2008) elabora essa noção e propõe o conceito de contrato de comunicação, pressupondo que os indivíduos sejam capazes de entrar em acordo a propósito das representações de linguagem. Dito de outra forma, o enunciador espera do interlocutor uma competência de reconhecimento linguístico e um respeito às regras de convivência social semelhantes aos seus. No texto a seguir, por exemplo, podemos dizer que não há equivalência de conhecimento linguístico entre os personagens, mas há acordo em relação ao comportamento social: Figura 8: Hagar Fonte: GRAN Questões, 2011. O efeito de humor, finalidade do texto, decorre exatamente da falta de entendimento de Hagar sobre o significado da palavra proprietário. Apesar desse pequeno descompasso, podemos dizer que a comunicação entre os personagens 21 é estabelecida: as regras sociais são seguidas (observemos a polidez das falas) e há uma atitude cooperativa de Hagar (ele continua o diálogo na tentativa de ajudar o homem de trajes azuis). O termo proprietário, no contexto apresentado, sugere certa formalidade por parte do personagem que o emprega (evidenciado até pelos trajes que ele usa) – possivelmente, por ser uma palavra que faz parte do seu cotidiano, ele supôs que ela também estivesse presente no vocabulário do interlocutor. Sobre isso, Maingueneau (2008, p. 20) explica que: Todo ato de enunciação é fundamentalmente assimétrico: a pessoa que interpreta o enunciado reconstrói seu sentido a partir de indicações presentes no enunciado produzido, mas nada garante que o que ela reconstrói coincida com as representações do enunciador. Compreender um enunciado não é somente referir-se a uma gramática e a um dicionário, é mobilizar saberes muito diversos, fazer hipóteses, raciocinar, construindo um contexto que não é um dado preestabelecido e estável. A própria ideia de enunciado que possua um sentido fixo fora de contexto torna-se insustentável. (Grifos nossos). DESDOBRAMENTO 3: COMUNICAÇÃO MALSUCEDIDA O perfil na rede social TikTok de @jaovitormello disponibiliza pequenos vídeos em que o influencer brinca com a problemática acerca da incompreensão no processo comunicativo. Assista ao vídeo “você sua💧😭”, em que os personagens compreendem o termo “sua” de forma não coincidente, exatamente o que gera o efeito de humor. O link de acesso é o seguinte: https://www.tiktok.com/@joaovitormello/video/7164129623381396742?lang=pt-BR. Ou use o QR code ao lado para acessar. 22 E o que você acha de apresentar alguns desses vídeos aos estudantes, como motivação para a discussão sobre os problemas decorrentes da ineficácia da comunicação? Possivelmente, os alunos devem ter vivido ou ter conhecimento de situações em que o diálogo entre os interlocutores não obteve êxito. Você pode dividir a turma em grupo e solicitar que cada grupo relate ou crie um cenário em que a comunicação entre os interlocutores não teve êxito. Estimule os estudantes a pensarem em formas para a resolução dos conflitos gerados e a encenarem as cenas narradas. Segundo o recorte teórico da Teoria Semiolinguística do Discurso, o ato de linguagem é uma encenação em que os participantes interagem condicionados por um contrato de comunicação que impõe a obediência a dois princípios básicos: direito à palavra – que um parceiro deve conceder ao outro para que se processe o jogo comunicativo – e exigência de um saber comum partilhado que pode ser de ordem linguística, experiencial ou interdiscursiva presente na troca linguageira. A fim de ilustrarmos um pouco mais o conceito de contrato e comunicação, para a tirinha de Armandinho, apresentada a seguir, propomos duas análises. Figura 9: Armandinho Fonte: Tumblr, 2023. Pensando no ambiente escolar, a situação de comunicação exige certa formalidade do enunciador – nesse caso, Armandinho, por meio de seu discurso, 23 expressa a imagem do aluno –, uma vez que o contrato de comunicação estabelecido entre o menino, seus colegas de turma e o(a) professor(a) (presenças subentendidas pela imagem da lousa, pela postura e pelo discurso de Armandinho) refere-se à apresentação de um trabalho acadêmico. Nessa situação específica, inicialmente, Armandinho tem o direito à palavra para expor seu tema de pesquisa. Talvez, ao final de sua explicação, seus interlocutores possam fazer perguntas e possam tecer considerações sobre o tema discutido. No que concerne ao saber compartilhado, todos os sujeitos envolvidos na comunicação devem ter conhecimento sobre as regras que regulam uma apresentação oral de trabalho acadêmico, como a necessidade de silêncio e atenção durante a exposição da pesquisa, além de todos estarem cientes de que as drogas causam malefícios. Ressaltamos, porém, que o fato de o menino tratar o poder como uma substância química pode surpreender seus colegas e seu(sua) professor(a), resultando, talvez, numa quebra do contrato de comunicação estabelecida entre os personagens da tira. No entanto, é exatamente sobre essa questão de que o poder tem características destrutivas que se constrói a crítica do criador dos quadrinhos. Visto por esse prisma, você acha que o contrato de comunicação entre autor e leitor foi burlado? O contrato é mantido porque, na situação específica de interação comunicativa por meio de tiras, a quebra de expectativaque leva à reflexão sobre algum tema social ou mesmo ao humor é prevista. Em outras palavras, falar sobre os malefícios do poder não causa estranheza ao leitor da tira, como pode causar no ambiente escolar em que outro tema foi proposto para pesquisa. Até aqui, procuramos discutir, fundamentalmente, duas questões: I. Comunicação é mais que transmissão de informações; II. Todo ato de comunicação é regido por determinadas regras sociais 24 que devem ser compartilhadas pelos interlocutores. Nesse sentido, segundo Paulo Freire, na obra Pedagogia da Autonomia, podemos ampliar a discussão e dizer que a comunicação dialógica deve estar na base do processo ensino-aprendizagem: “ensinar não é transmitir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (Freire, 2003, p. 47). Nesse tipo de interação social, mediada pelo diálogo colaborativo entre professor-aluno e aluno-aluno, os sujeitos envolvidos têm a oportunidade de expressarem seus pensamentos, ouvirem as perspectivas dos outros e responderem de maneira construtiva, construindo juntos o conhecimento. Educação Dialógica está relacionada ao uso do diálogo como meio essencial para o processo ensino-aprendizagem. Essa abordagem educacional é fortemente influenciada pelos ideais de Paulo Freire, filósofo brasileiro, que propôs um modelo de educação ancorado nos seguintes pilares: conscientização e participação ativa dos estudantes, bem como interação entre educadores e aprendizes. Esse modelo de ensino-aprendizagem é chamado educação dialógica, foi abordado não só por Paulo Freire, mas por pensadores como Lev Vygotsky, Jerome Bruner, Gordon Wells, Jürgen Habermas. Entre seus princípios estão: Tabela 2: Princípios da Educação Dialógica 1. O diálogo igualitário, que ocorre quando o argumento se sobressai em relação a quem o profere. Para que haja diálogo é preciso que os sujeitos se encontrem em situação de igualdade, para que nenhuma hierarquia se sobreponha ao desejo e à necessidade de promover diálogos; 25 2. A inteligência cultural, que diz respeito à capacidade, de todos os seres humanos, de agir e refletir diante a saberes de variadas origens, seja ele cunhado nos ambientes de ensino ou no dia a dia. 3. A transformação, que coloca a educação como promotora das mudanças dos sujeitos, não o educador. É ela que vai ser objeto da interação entre as pessoas; 4. Com a criação de sentido, o processo de aprendizagem precisa estar diretamente conectado com a vida, as expectativas, e os usos que serão feitos pelos sujeitos envolvidos. 5. A solidariedade é que garante que o espírito comunitário será parte do processo educativo que, por ser relacional, é construído a partir do empenho e das relações estabelecidas intra e extra instituição de ensino. 6. Em sua dimensão instrumental a educação dialógica permite que os sujeitos envolvidos possam operacionalizar conceitos para se integrarem à sociedade. 7. Na igualdade de diferenças, ninguém precisa ser igual, pois as dessemelhanças enriquecem o processo de aprendizado. Mas, para isso, é preciso garantir que todos estejam munidos das ferramentas necessárias, que promovam equidade. Fonte: Blog Saraiva Educação, 2021. A ideia do conhecimento como algo vivo, mutável e passível de ser construído a partir de processos coletivos nos obriga a repensar o modelo de educação baseado na concepção de que comunicação é mera transmissão de informação e, por conseguinte, educação é mera transmissão de conhecimento, em que o(a) professor(a) seria o único detentor(a) do saber e o(a) aluno(a) seria o receptáculo, para o qual o conhecimento seria transferido. A educação dialógica requer que sejam desenvolvidas práticas associadas à empatia, à escuta ativa e à expressão de diferentes pontos de vista. 26 Chegamos ao final do Módulo 1. Agora, coloque em prática o que aprendeu acessando a sessão de Atividades por meio do QR Code ao lado. Bons estudos! 27 1. O conceito de multimodalidade No percurso evolutivo da espécie humana, parece possível compreender que o homem, ao fazer uso da língua para comunicação, também tornou possível empregá- la como uma forma de resolução de conflitos, nomeadamente quando ele passou a viver em sociedades organizadas e mais complexas. O entendimento de que os sujeitos são seres sociais faz emergir a noção de texto como discurso, como discutimos no módulo anterior. Também discutimos que o processo de comunicação não é unilateral, mas uma atividade colaborativa na qual todas as partes envolvidas contribuem para a construção do significado, bem como refletimos sobre a intencionalidade de ser parte constitutiva do discurso. Tudo isso significa que o ato de comunicar não é mera transmissão de informações e não se restringe a emprego exclusivo de palavras. A comunicação humana é, por natureza, multimodal, multifacetada, multissemiótica, haja vista que, ao nos comunicarmos oralmente, fornecemos outros dados significativos ao conteúdo verbal por meio de gestos, posturas corporais, expressões faciais e elementos relacionados ao ritmo e ao tom da nossa fala. Podemos ainda instaurar um ato de linguagem por meio de desenhos e letras, cores e formas, recursos tipográficos e texturas, notas musicais e volume sonoro. Essa possibilidade 28 de construir o discurso por meio da orquestração de diferentes modalidades ou semioses correlacionadas e integradas é objeto de reflexão de diversas pesquisas das ciências da linguagem e das ciências sociais. A aceitação de que os limites de um texto (aqui, visto como discurso, como já esclarecemos) não estão circunscritos ao verbal nos leva ao conceito de multimodalidade: o sentido é constituído por meio da relação entre diferentes tipos de linguagem, ou seja, diferentes recursos semióticos. A abordagem multimodal, proposta por Kress e van Leeuwen (2006), reconhece a interconexão e a complementaridade de diferentes modos de expressão – verbal (escrita, oral ou visual- motora, como Libras), corporal, visual, sonora –, resultando em uma compreensão mais rica e holística do significado. Na Gramática do Design Visual (GDV), Kress e van Leeuwen (2006) explicam que o senso comum que entendia a linguagem verbal como o principal meio de representação e comunicação não faz mais sentido. Focando-se nos diferentes recursos semióticos de comunicação e nas práticas comunicativas em que tais recursos são empregados, os autores assumem que a multimodalidade está presente em “qualquer texto em que os sentidos são realizados por meio de mais de um código semiótico” (Kress; van Leeuwen, 2006, p. 177). Dessa forma, “a partir do momento em que uma cultura tomou a decisão de incluir um determinado material em seus processos comunicativos, esse material se tornou parte dos recursos culturais e semióticos dessa cultura, estando disponíveis para uso na formação de signos” (Ibidem, p. 111). O que Kress e van Leeuwen (2006) propõem como ‘gramática’ é a organização interna dos elementos constituintes de um texto, e não um conjunto de regras. Nessa obra, são apresentados os modos de investigar e descrever a maneira como elementos de um plano imagético se relacionam entre si, bem como as complexas relações que podem existir entre as imagens e seus espectadores. Assim, os elementos de diferentes semioses que compõem o texto não são vistos como partes29 desconectadas, pelo contrário, o sentido é construído com a soma das partes. Mais do que isso, os sentidos emergem justamente da relação construída entre as diferentes modalidades ou semioses, tornando o texto um todo integrado. TEXTOS MULTIMODAIS Neste vídeo, divulgado pelo canal Caminhos da Linguagem, o professor Prosa Júnior fala um pouco sobre os a relação entre múltiplas semioses e leitura. Acesse por meio do QR Code ao lado, ou por meio do link: https://www.youtube.com/watch?v=6p-Y9sFH1dI Um exemplo representativo de gênero midiático que mobiliza a multimodalidade é a charge. O chargista, por meio de imagens e palavras, comenta o cotidiano e registra parte da história da vida política, econômica e social do país, pretendendo “alertar, denunciar, coibir, e levar à reflexão” (Agostinho, 1993, p. 229). Observamos essas características na charge de Laerte, a seguir, publicada em junho de 2020, na semana em que o governo do estado de São Paulo, à época da primeira onda de contaminação pela Covid-19, antecipa a flexibilização das regras de distanciamento social, autorizando a reabertura dos shoppings: https://www.youtube.com/watch?v=6p-Y9sFH1dI 30 Figura 10: Charge Shoppings Fonte: Folha de S. Paulo, 2020. De acordo com Charaudeau (2008, p. 24), “a finalidade do ato de linguagem (tanto para o sujeito enunciador quanto para o sujeito interpretante) não deve ser buscada apenas em sua configuração verbal, mas, no jogo que um dado sujeito vai estabelecer entre esta e seu sentido implícito”. Isso posto, entendemos que a finalidade da charge de Laerte pode ser interpretada como uma tentativa de denunciar e criticar ações tanto dos governantes quanto da população que lotou os shoppings paulistas nos primeiros meses da pandemia, em 2020. Esse entendimento é viabilizado pela conjugação dos elementos verbal, imagético e numérico. Mais especificamente, o plano imagético de organização dos elementos sugere que havia uma tendência de crescimento do número de mortes pela Covid-19 no Brasil devido ao aumento de circulação de pessoas. A ascensão dos indivíduos nas escadas rolantes que se cruzam na imagem se coaduna aos números apresentados à direita da charge, que representam as quantificações em gráficos, tais como os apresentados 31 pelos veículos de informação. Estes, somados ao contexto histórico pandêmico, permite que o leitor da charge possa reconhecer o possível projeto argumentativo que se realiza por meio da multimodalidade: a abertura dos shoppings foi uma atitude que demonstrou falta de empatia e expressou a falta de cuidado por parte da população, dentre outras possibilidades interpretativas que dependem do próprio universo de crença desse leitor. Afinal, na charge, a marca de 40 mil vidas perdidas está na base do gráfico; o movimento apenas de subida das escadas rolantes repletas de pessoas acena para a inevitável tendência de ascensão dessa taxa. Em síntese, a argumentatividade não apenas se inscreve no uso da língua, mas também no modo como esse uso se configura em práticas comunicativas que requerem a mobilização de diferentes modalidades (Elias, 2016). A esse respeito, Kress (2003) defende que “o mundo falado é diferente do mundo mostrado”, apontando a predominância das imagens em relação à escrita no mundo contemporâneo. Partindo dessa perspectiva, ele explica: Os dois modos – escrita e imagem – são governados por lógicas distintas e têm claramente propiciações diferentes. A organização da escrita – ainda baseada na ótica da fala – é governada pela lógica do tempo e pela lógica da sequenciação de seus elementos no tempo, em arranjos temporalmente regidos. A organização da imagem, ao contrário, é governada pela lógica do espaço e pela lógica da simultaneidade de seus elementos visuais retratados em arranjos organizados espacialmente. (Kress, 2003, p. 1-2) Na abordagem do autor, a qual adotamos neste curso, apenas a modalidade verbal da linguagem não é suficiente para compreensão e produção de mensagens construídas de maneira multimodal, como charge que acabamos de analisar. DESDOBRAMENTO 4: CRIAÇÃO DE JOGOS 32 A Wordwall é uma plataforma educacional online que oferece ferramentas para criar, descobrir e compartilhar atividades interativas para salas de aula. Ela é projetada para professores que desejam envolver os alunos de maneira dinâmica, usando jogos e exercícios interativos para apoiar o aprendizado, especialmente por meio do uso de recursos imagéticos. Acesse o Wordwall por meio do QR Code ao lado ou por meio do link: https://wordwall.net/pt Figura 11: Wordwall Fonte: Wordwall, 2024. Os professores podem criar uma variedade de atividades educacionais interativas, como quebra-cabeças, jogos de palavras, quizzes, cartões de memória, entre outros. A plataforma é versátil e pode ser usada em diversas disciplinas e permite que os professores explorarem uma biblioteca de atividades pré-criadas por outros educadores, economizando tempo na preparação de materiais. https://wordwall.net/pt 33 A Wordwall oferece tanto planos gratuitos quanto planos pagos, dependendo das necessidades e dos recursos desejados pelo usuário. 2. A relação palavra-imagem A Gramática do Design Visual, proposta por Gunther Kress e Theo van Leeuwen, como apresentamos na seção anterior, é uma abordagem teórica que visa a analisar e compreender como as imagens e outros elementos visuais comunicam significados. Os autores propõem três categorias de descrição e análise: domínio da representação, domínio da interação e domínio da composição. Domínio da Representação: Refere-se à forma como os elementos representam ou retratam objetos, pessoas, conceitos ou eventos do mundo real. Esse domínio relaciona-se à criação de uma representação que seja compreensível para o público- alvo e que transmita uma mensagem ou narrativa clara. Domínio da Interação: Refere-se à relação entre Participante Representado (PR) – personagens, objetos, animais, símbolos ou qualquer outro elemento visual que tenha um papel identificável na imagem – e Participante Interativo (PI) – o leitor do texto multimodal –, por meio: • do contato visual entre PR e PI; • do plano da imagem fechado (proximidade entre PR e PI) ou aberto (distanciamento entre PR e PI); • da perspectiva, que pode ser de envolvimento (imagem frontal) ou de poder (imagem oblíqua); • da modalidade, que remete à realidade percebida na imagem (real ou irreal). Domínio da Composição: Refere-se à organização dos elementos no texto multimodal, de acordo com: o valor da informação, valor esse que pode ser verificado 34 pela disposição dos elementos na imagem, que pode representar informações dadas ou novas, centrais ou periféricas; a saliência, que se refere à ênfase dada aos elementos da imagem uns em relação aos outros. Para ilustrar a aplicação dessas categorias de descrição, analisemos brevemente o ato comunicativo instanciado pelo meme a seguir, veiculado pelo perfil da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, na rede social Facebook: Figura 12: Meme Paulo Freire Fonte: Facebook, 2016. No que se refere ao domínio da representação, o participante representado é o filósofo brasileiro Paulo Freire. Essa representação está vinculada ao plano da realidade, uma vez que o meme traz a própria foto do educador. Quanto ao domínio da interação, observamos que o olhar de Paulo Freire (PR) se dirige ao interlocutor,ou seja, ao leitor do meme (PI), com quem ele estabelece uma relação simétrica e próxima – a simetria é revelada pela horizontalidade do olhar do PR, colocado na 35 mesma direção do PI, não configurando, portanto, relação de poder entre eles; o fechamento da imagem (close) sugere aproximação entre PR e PI. No que tange ao domínio da composição, é perceptível a diferença de tamanho das letras que representam as falas de Paulo Freire e do interlocutor com quem ele dialoga no plano interno do meme, indicando que a declaração do pedagogo é a informação mais importante. Diferentemente do meme, na charge a seguir, o plano de interação revela outras relações entre os participantes representados e o participante interativo: Figura 13: Charge Papai Noel Fonte: Blog Carlos – Professor de Geografia, 2017. Nesse ato comunicativo, não há contato direto entre os participantes representados (pessoas em situação de rua e Papai Noel, nesse caso) e o participante interativo (o leitor), uma vez que vetores dos olhares dos personagens não são direcionados para o leitor – perceba que as pessoas à esquerda olham para o Papai Noel, e o Papai 36 Noel olha para as pessoas e vice-versa, como representam as setas amarelas a seguir: Figura 14: Charge Papai Noel 2 Fonte: Blog Carlos – Professor de Geografia, 2017. Outra diferença em relação ao meme anteriormente discutido refere-se à relação assimétrica estabelecida entre os personagens, já que os vetores do olhar das pessoas em situação de rua são orientados para cima, ao passo que o vetor do olhar do Papai Noel, para baixo, o que reforça a ideia de inferioridade e invisibilidade dos primeiros. Essa diferença social também se faz notar no plano da composição, uma vez que as vestimentas vermelhas do personagem à direita o colocam em destaque (saliência), enquanto a cor de representação dos demais personagens confunde-se com a cor do cenário. 37 Todas essas possibilidades de compreensão do meme e da charge que acabamos de apresentar estão relacionadas a questões linguísticas, cognitivas e sociais. Cavalcante e Custódio Filho (2010, p. 9) destaca que: A produção de linguagem verbal e não verbal constitui atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos que se realiza, evidentemente, com base nos elementos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas que requer não apenas a mobilização de um vasto conjunto de saberes (enciclopédicos), mas a sua reconstrução e a dos próprios sujeitos – no momento da interação verbal. Observando, agora, a relação que se estabelece entre palavras e imagens, é possível verificar que há textos em que a compreensão da mensagem só é alcançada se o interlocutor conjugar os elementos verbais e não verbais, que se associam numa relação de complementaridade: a palavra agrega sentidos que faltam à imagem e vice-versa (Silva; Marchon, 2021). Essa é uma característica de atos comunicativos que se instauram por meio de charges, memes, histórias em quadrinhos, propagandas, etc. Imagine se faltasse alguma imagem ou o balão de fala na charge que acabamos de discutir. Seria possível atribuirmos sentido a ela? Por outro lado, há textos em que os materiais verbal e imagético são equivalentes em termos de informatividade, de modo que o conteúdo seja reforçado, reiterado entre uma semiose e outra. Em outras palavras, observamos que parte do material imagético repete alguma informação veiculada pelo material verbal e vice-versa, a fim de destacá-la, como ilustra o exemplo a seguir: 38 Figura 15: Tempestades de poeira Fonte: O Globo, 2021. Esse texto veiculado pelo jornal O Globo apresenta, como material verbal, o enunciado Vídeos: Novas tempestades de poeira atingem ao menos quatro estados brasileiros; como material imagético, uma fotografia de uma imensa nuvem de poeira marrom avermelhada se aproximando de um bairro. A imagem mostra que árvores e prédio parecem pequenos diante da nuvem que se aproxima. Essa imagem consiste, na verdade, em um print de um dos vídeos mencionados na manchete, trabalhando justamente para reiterar o material verbal e reforçar a dimensão da tempestade anunciada. Essa relação leva o leitor a compreender a fotografia como uma prova do que afirma a manchete, já que parte do enunciado verbal é focalizado pela imagem. Evidentemente, a falta da imagem prejudicaria a compreensão acerca da dimensão da tempestade de poeira, todavia, não inviabilizaria a leitura, ao contrário do que acontece com a charge, por exemplo. Compreendemos, entretanto que, na medida em que o material imagético não apenas ilustra o conteúdo verbal, mas veicula junto 39 a ele um todo coeso e coerente com forte teor argumentativo, é possível averiguar a existência de um fenômeno linguístico-discursivo que Silva e Marchon (2021), inspirados em Barthes (1990) e Santaella (2012), nomearam argumentação multimodal, vale lembrar: o emprego estratégico de diferentes semioses com finalidade argumentativa. Na notícia a seguir, a dimensão da queda no número de escolas públicas que desenvolvem atividades para combater o racismo é reforçada pelos elementos do gráfico que segue a manchete: Figura 16: Notícia racismo em escolas públicas Fonte: G1, 2023. A presença do gráfico, nesta notícia, mais que informar o percentual de escolas com projetos contra o racismo, focaliza uma parte importante da manchete: pior índice em 40 10 anos. Nesse sentido, a fim de impactar o leitor, não bastaria ao jornalista expressar esse dado apenas na modalidade verbal, por meio da manchete. A linha vermelha em queda, nesse caso, além de conferir credibilidade à notícia, também funciona como elemento numérico e imagético que, associado à manchete, confere uma dimensão argumentativa ao discurso. Outra forma de comunicação eficaz que emprega elementos de modalidades distintas é o infográfico. Um infográfico é uma representação visual de informações, dados ou conhecimentos complexos que utiliza elementos de múltiplas semioses, como gráficos, imagens, ícones e texto verbal, para comunicar de maneira clara e eficaz. O objetivo principal de um infográfico é simplificar a apresentação de informações, tornando-as mais compreensíveis e acessíveis. É importante destacar que a leitura do infográfico não obedece a uma ordem, como da esquerda para a direita ou de cima para baixo. O leitor, em geral, inicia a leitura pelos elementos visuais que mais lhe chamam a atenção. O infográfico a seguir apresenta dados sobre a violência contra a população negra no Brasil, duas décadas depois da promulgação da Lei 10.639, conhecida como Lei Antirracista. Essa legislação tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos escolares e instituiu o dia 20 de novembro como Dia da Consciência Negra: 41 Figura 17: Infográfico violência contra a população negra no Brasil Fonte: Porvir, 2023. A análise crítica desse infográfico revela uma série de informações preocupantes sobre a disparidade racial em diferentes contextos, incluindo intervenção militar, feminicídio, violência física e saúde emocional. Nesse sentido, podemos inferir que, mais queinformar essas estatísticas, o autor do infográfico chama a atenção para a importância de abordar questões sistêmicas, promover a igualdade racial e desenvolver políticas que considerem a interseccionalidade das experiências das pessoas negras. 42 DESDOBRAMENTO 5: CONSTRUÇÃO DE INFOGRÁFICOS O que você acha de mobilizar os alunos para construírem um infográfico? Escolha um tema relevante relacionado à disciplina que você leciona e pergunte aos estudantes o que eles sabem sobre esse tema. Para sistematizar a discussão, você pode anotar, na lousa, os tópicos levantados na discussão. Na sequência, seria interessante que você apresentasse outras informações que não foram contempladas na fala dos alunos, além de solicitar que eles, em pequenos grupos, busquem por novas informações em outras fontes. Feitos os levantamentos de dados e informações, é hora selecionar quais informações serão apresentadas e como essas informações serão organizadas no plano composicional do infográfico. Auxilie os estudantes nessas escolhas. Ao final, cada grupo pode apresentar sua produção e, uma vez mais, discutir o tema proposto, contemplando pontos ainda não tratados. 3. A multimodalidade e a comunicação inclusiva A comunicação inclusiva desempenha um papel crucial no ambiente educacional, moldando não apenas a forma como interagimos por meio da linguagem, mas também influenciando profundamente a experiência de aprendizado de cada aluno(a). Em um mundo diversificado, em que as pessoas apresentam necessidades diversas, a adoção de práticas comunicativas inclusivas é mais do que uma escolha consciente, é uma necessidade imperativa, prevista, inclusive em documentos oficiais que regem a educação no Brasil: 43 A inclusão escolar tem início na educação infantil, onde se desenvolvem as bases necessárias para a construção do conhecimento e seu desenvolvimento global. Nessa etapa, o lúdico, o acesso às formas diferenciadas de comunicação, a riqueza de estímulos nos aspectos físicos, emocionais, cognitivos, psicomotores e sociais e a convivência com as diferenças favorecem as relações interpessoais, o respeito e a valorização da criança (BRASIL, 2008, p. 17). Neste módulo, estamos vendo que várias são as formas de linguagem, com a verbal, a musical, a imagética, a numérica. Nesse viés, cumpre destacarmos a linguagem visual-motora ou visual-gestual que usa sinais e expressões faciais para a comunicação: a Língua Brasileira de Sinais (Libras). A Libras, reconhecida oficialmente, no Brasil, pela Lei Federal nº 10.436/2002 e pelo Decreto Federal nº 5.626/2005, é utilizada pela comunidade surda como principal forma de interação. Você já teve ou tem algum aluno(a) surdo(a)? Trabalhar com alunos(as) surdos(as) sem ter o conhecimento de Libras pode ser desafiador, mas é possível adotar estratégias inclusivas e eficazes para facilitar a comunicação e o aprendizado. Dentre essas estratégias, está a linguagem gestual e corporal, além da utilização de recursos visuais, como imagens, gráficos e vídeos, para apoiar o entendimento. O planejamento de atividades que valorizem as habilidades visuais e táteis, bem como a sensibilização dentro da sala de aula, incentivando os(as) colegas a compreenderem e respeitarem as necessidades do(a) aluno(a) surdo(a), podem criar situações de comunicação mais adequadas ao acesso à educação. Nessa direção, Barbosa (2008, p. 57) destaca que “para ver o outro, estar com o outro, compreender o outro, é preciso construir pontes, escutar com o corpo inteiro, estabelecer diálogos, expandir o nosso ser na relação. E esta é uma tarefa pessoal e coletiva.”. 44 Figura 18: Alfabeto em Libras Fonte: Blog Oficina de Libras, 2014. Por viverem em um contexto em que as pessoas se comunicam por línguas vocais, as crianças surdas, muitas vezes, não são contempladas pelos processos educacionais, tanto dentro do âmbito escolar quanto fora dele. Em decorrência disso, esses estudantes apresentam dificuldades para a construção de conhecimentos mínimos, fato que fundamenta a defesa para a implantação da educação bilingue (em Libras e Português) a fim de possibilitar uma educação que respeite as especificidades dessas pessoas, afinal, o acesso à educação é postulado como direito dos cidadãos e dever do Estado1. 1 Por limitação de espaço e por não ser o objetivo deste curso, não aprofundaremos a questão relacionada à implantação do ensino bilíngue para alunos surdos. Para mais informações, consultar a seção de bibliografia complementar, em que sugerimos algumas obras. 45 DESAFIO DA INCLUSÃO DE PESSOAS SURDAS NA EDUCAÇÃO Quais os desafios que as pessoas surdas encontram nas escolas e universidades? O professor João Gabriel, do Canal Brasil Escola, entrevistou a professora Lívia Martins Gomes, especialista no assunto, sobre as principais questões que envolvem a população surda no Brasil. Acesse por meio do QR Code ao lado, ou por meio do link: https://www.youtube.com/watch?v=_FJ55JQu28k O estabelecimento da interação por meio de múltiplas modalidades também se faz imperativo no processo ensino-aprendizado de alunos com Transtorno do Espectro Autista (TEA), por exemplo. Evidentemente, cada estudante é único, o que exige que as práticas pedagógicas sejam adaptadas de acordo com as necessidades individuais, porém, apresentamos aqui algumas estratégias gerais que podem ser úteis, a primeira delas diz respeito à simplificação das mensagens: seja objetivo e claro. Utilizar recursos visuais, como cartões com imagens ou símbolos, além de apoiar a linguagem verbal com gestos para auxiliar na comunicação são estratégias relativamente simples que tanto o(a) professor(a) quanto os(as) colegas de sala de aula podem desenvolver para acolherem o(a) aluno(a) autista. Trabalhar com materiais táteis para reforçar conceitos e introduzir sistemas de comunicação alternativa, como quadros de comunicação ou calendários visuais para organizar as tarefas e rotinas do estudante autista, também são estratégias que podem maximizar o desenvolvimento do(a) aluno(a) com TEA. https://www.youtube.com/watch?v=_FJ55JQu28k 46 Para pessoas surdas e pessoas autistas, a comunicação visual é imperativa. Para pessoas cegas ou com baixa visão, faz-se necessário o emprego da modalidade sonora e da modalidade tátil para garantir uma experiência educacional inclusiva e eficaz. Dessa forma, ao se comunicar verbalmente com alunos(as) com esse tipo de deficiência, seja claro e específico, fornecendo informações detalhadas. Use descrições verbais para explicar gráficos, diagramas e outros materiais visuais. Se possível, introduza tecnologias assistivas, como softwares de leitura de tela e impressoras Braille, para ajudar os(as) alunos(as) cegos(as) a acessarem informações e participarem das atividades escolares com independência. Reforçamos que a abordagem mais eficaz, tanto no que se refere ao estabelecimento de comunicação tanto com o(a) aluno(a) surdo(a), quanto com o(a) aluno(a) autista, envolve uma combinação de estratégias personalizadas, uma compreensão profunda das necessidades individuais e a colaboração contínua com profissionais especializados. Figura 19: Leitura em Braille O Braille é um sistema de leitura e escrita tátil desenvolvido para pessoas cegas ou com baixa visão. Foi criado por Louis Braille, um jovem cego francês, no século XIX. O sistema consiste em caracteres formados por combinações específicas de pontos em relevo, organizadosem células táteis. Fonte: Canva, 2024. 47 DESDOBRAMENTO 6: CONSTRUÇÃO DO SENTIDO POR MEIO DOS SONS A multimodalidade não está apenas na relação palavra-imagem, mas também no ritmo e no tom que imprimimos em nossa fala. Quando fazemos um pedido ou damos uma ordem, por exemplo, o modo como articulamos as palavras pode refletir maior ou menos polidez. Na música, além da letra da canção, a melodia também comunica mensagens. Você conhece o autor e compositor Arnaldo Antunes? No álbum O silêncio, ele apresenta dois arranjos musicais para uma mesma letra. Você pode apresentar esses áudios aos seus alunos e discutir com eles se as duas versões da canção Desce comunicam a mesma mensagem. Mais especificamente, leve-os a pensar se, apesar de a letra ser a mesma, a diferença de sons dos instrumentos musicais, o ritmo das melodias e até o tom da voz do cantor provocam alterações na construção de sentido. Acesse as duas versões por meio dos QR Codes ou por meio dos links: Desce (Versão 1): https://www.youtube.com/watch?v=oJYlR68oPhs https://www.youtube.com/watch?v=oJYlR68oPhs 48 Desce (Versão 2): https://www.youtube.com/watch?v=PfqUrQmS2cI Não deixe refletir conjuntamente sobre a importância de empregarmos o tom adequado nas diferentes situações de comunicação de que participamos no nosso dia a dia. Este tipo de atividades pode representar uma oportunidade para que estudantes com problemas de visão protagonizem a discussão, bem como uma alternativa de trabalhar com os estudantes autistas. Chegamos ao final do Módulo 2. Agora, coloque em prática o que aprendeu acessando a sessão de Atividades por meio do QR Code ao lado. Bons estudos! https://www.youtube.com/watch?v=PfqUrQmS2cI 49 1. A evolução do conceito de letramento Como estudamos nos módulos anteriores, sob a perspectiva de que a comunicação é mediada por textos (aqui, vistos como discursos), discutimos que “no trato com os textos – escritos, impressos ou digitais –, não temos mais apenas signos escritos. Todas as modalidades de linguagem ou semioses os invadem e com eles se mesclam sem a menor cerimônia.” (Rojo; Moura, 2019, p. 11). Empregamos o adjetivo multissemiótico para qualificar os textos e, em decorrência disso, ressignificamos o conceito de letramentos. Empregado pela primeira vez no Brasil em 1986, o termo letramento buscava abarcar os usos e práticas sociais da linguagem que se relacionam com a escrita, diferindo, portanto, do conceito de alfabetização, que, simplificadamente, aqui, definimos como processo relacionado às habilidades de reconhecer e compreender letras, decodificar palavras. Mais do que apenas a capacidade de decifrar signos linguísticos, o letramento envolve a compreensão e a habilidade de usar efetivamente a linguagem escrita em diferentes contextos sociais, culturais e acadêmicos. Considerada a multiplicidade de contextos, pouco tardou e letramento passou a letramentos, no plural, para denotar a diversidade de práticas e habilidades relacionadas à leitura e escrita em situações sociais diversas: Tanto Street (1985) quanto Kleiman (1995) definem as práticas letradas como os modos culturais de utilizar a linguagem escrita com que as 50 pessoas lidam em suas vidas cotidianas, sejam elas alfabetizadas ou não, com os mais diferentes níveis ou graus de (an)alfabetismo... Tem-se de reconhecer que elas são variáveis em diferentes comunidades e culturas. (Rojo; Moura, 2019, p. 17). Em 1996, os pesquisadores do Grupo Nova Londres (New London Group) ressaltaram que, devido às mídias digitais, os textos – agora deslocados para as telas – já não eram mais essencialmente escritos, mas constituídos por uma diversidade de linguagens, denominada multimodalidade (conforme discutimos no módulo anterior), pelo grupo. A multimodalidade, por sua vez, não impactava apenas os textos, mas também a diversidade cultural e linguística, já que a comunicação humana é instanciada por meio de textos. Nesse sentido, a explosão multiplicativa de letramentos levava ao conceito de multiletramentos, ou seja, letramentos em múltiplas culturas e em múltiplas linguagens (imagens estáticas e em movimento, música, dança e gesto, linguagem verbal oral e escrita etc.). De acordo com Rojo e Moura (2018, p. 25), dez anos depois de cunhado o termo "multiletramentos", proposto pelo Grupo de Nova Londres, outros pesquisadores, considerando as interações sociais mediadas pela tecnologia, voltaram a sentir a necessidade de adjetivar os letramentos, desta vez, como "novos letramentos". As novas tecnologias digitais da informação e comunicação mudaram a natureza dos letramentos, o que levou os estudiosos a observarem que, embora fosse perceptível a multiplicação de novos aplicativos e de novos dispositivos digitais de comunicação, isso não configurava, por si só, novos letramentos. Para eles, os novos letramentos são definidos pelo surgimento de uma nova mentalidade, o que significa dizer que “os novos letramentos maximizam relações, diálogos, redes e dispersões, são o espaço da livre informação e inauguram uma cultura da hibridização” (Ibdem, p. 26). Nessa perspectiva outros gestos de leitura e de escrita são convocados, como rolagem de tela, cliques em ícones para ativar hiperlinks e abrir outras páginas da internet etc. Conforme as novas tecnologias possibilitaram artefatos para construir novas relações com a realidade do mundo cotidiano, fomos nos deslocando das narrativas orais para a literatura escrita, 51 do desenho e pintura para a fotografia, [o] filme e [o] vídeo e da interação com textos fixos para novos modos de participação em sistemas materiais que tornam os textos dinamicamente responsivos à nossa leitura. (Lemke, working graft. s.d. apud Rojo; Moura, 2019, p. 40). Figura 20: Novas tecnologias Fonte: Canva, 2024. Para Lemke (1998 [2010] p. 456 apud Rojo; Moura, 2019, p. 40), “hoje nossas tecnologias estão nos movendo de uma era da ‘escrita’ para a da autoria ‘multimidiática’, em que documentos e imagens de notações verbais e textos escritos propriamente ditos são meros componentes de objetos mais amplos de construção de significados”. Nesse contexto, em que a comunicação é mediada pela máquina, emerge o conceito de letramentos digitais: capacidade de uma pessoa compreender, usar e comunicar-se eficazmente por meio de tecnologias digitais, como computadores e dispositivos móveis conectados à internet. Não se trata, apenas, 52 de saber usar ferramentas digitais, mas também de desenvolver habilidades críticas para avaliar, analisar e criar conteúdo digital de maneira consciente e ética. Segundo Louise Merzeu (2009, apud Paveau, 2021, p. 27), a influência do digital não se limita apenas a uma nova codificação de conteúdos ou à introdução de um novo canal de circulação. Trata-se, na verdade, de uma transformação do ambiente que impacta as estruturas e as relações. Paveau(2021) destaca que essa transformação, conhecida como revolução digital, refere-se à ascensão do digital e foi liderada por gigantes da web, como Google, Apple e Facebook. Cientistas da computação passaram a ter um papel dominante, exercendo controle sobre o tratamento da linguagem por meio de abordagens baseadas em volume, variedade e velocidade (Paveau, 2021, p. 28). Nesse universoem que a interação é potencializada e a liberdade de publicação de conteúdos impera, era de se esperar que informações falsas circulassem. Mais especificamente, o termo fake news passou a designar qualquer publicação que veicule informação que não seja verdadeira, no sentido de comprovação, seja ela total ou parcialmente criada, alterada, manipulada ou desvinculada de seu contexto original. Entre os anos de 2020 e 2021, em meio à pandemia da Covid-19, por exemplo, foi frequente a veiculação de informações sobre formas de prevenir ou combater a doença que dizimou a população mundial. Algumas dessas informações infundadas cientificamente precisaram ser contestadas pelas agências de checagem da informação (organizações dedicadas a verificar a veracidade de informações e declarações apresentadas ao público) a fim de que a pandemia não se espalhasse ainda mais, como a que divulgava que gargarejos com sal e vinagre impediam a infecção por coronavírus, chegada pela Agência Aos Fatos: 53 Postagem Original: Figura 21: Fake News coronavírus Fonte: Canva, 2024. Checagem da Informação: Figura 22: Checagem da informação coronavírus Fonte: Aos Fatos, 2020. De acordo com Franco (inédito), o conteúdo falso apresenta um texto acompanhado de uma imagem que retrata um busto humano com símbolos indicando infecção pelo vírus na região da garganta. A agência de verificação Aos Fatos relatou que essa mesma postagem foi disseminada em outros países, em diversas línguas. No Facebook, as publicações contendo informações incorretas em português receberam quase 70 mil compartilhamentos até 16 de março de 2020. Texto da postagem: O coronavírus antes de atingir os pulmões, permanece na garganta por quatro dias e, nesse período, a pessoa começa a tossir e sentir dores na garganta. Se essa pessoa beber muita água e faz gargarejo com água morna, sal ou vinagre, isso eliminará o vírus. Divulgue estas informações, pois você pode salvar alguém se essa pessoa souber disso. 54 Como se vê, a comunicação mediada pela máquina acelera o compartilhamento e a disseminação de informações são compartilhadas por meio de plataformas online. Essa realidade exige uma abordagem crítica e responsável por parte dos usuários, que precisam promover uma cultura digital que valoriza a precisão, a transparência e o discernimento, viabilizando uma navegação mais segura e crítica pela web. DESDOBRAMENTO 7: FATO OU FAKE? Certamente, você já se deparou com uma postagem, uma mensagem ou uma notícia veiculando informações que não eram verdadeiras, fossem elas parcial ou totalmente falsas, não é mesmo? Essas informações falsas, batizadas de fake news, ao espalharem informações incorretas, podem levar a decisões erradas por parte dos indivíduos, organizações ou até mesmo governos. Isso pode afetar áreas como saúde pública, política, economia etc. A atitude de checar uma informação recebida antes de compartilhá-la faz parte do que chamamos de letramentos digitais. Uma das formas de verificar a veracidade da informação é consultar as agências de checagem, como Comprova, Agência Lupa, Fato ou Fake e Aos Fatos. A fim de tornar mais íntima a relação entre o estudante e as agências de checagem, solicite que ele faça uma pesquisa sobre alguma fake news checada. Ao visitar o site das agências, é interessante que o aluno observe as estratégias empregadas por essas entidades para arbitrar sobre a falsidade ou não da informação, como verificação de fontes; confronto de declarações de autoridades e de influenciadores digitais; verificação da autenticidade de fotografias, vídeos, áudios, gráficos e outras mídias; correção de erros cometidos pelas empresas de mídia. 55 2. A comunicação na era da tecnologia digital Em decorrência do advento das tecnologias digitais de comunicação, presenciamos o desenvolvimento acelerado das plataformas online que permitem que indivíduos e grupos compartilhem informações, ideias, interesses, atividades e se conectem uns com os outros. Essas plataformas facilitam a criação e a manutenção de redes de contatos pessoais e profissionais, permitindo que as pessoas se comuniquem, interajam e compartilhem conteúdo de maneira virtual. Atualmente, as redes sociais mais acessadas são: Tabela 3: Redes sociais • Facebook: Plataforma que permite que os usuários se conectem com amigos, familiares e colegas, compartilhem conteúdo na modalidade verbal escrita ou imagética e participem de grupos com interesses semelhantes. • Instagram: Rede social focada em compartilhamento de fotos e vídeos, em que os usuários podem seguir outros e interagir por meio de curtidas e comentários. • X (anteriormente chamado Twitter): Plataforma que permite que os usuários compartilhem mensagens curtas chamadas, com até duzentos e oitenta caractere, seguindo outros usuários e participando de conversas por meio de hashtags (#). O uso de hashtags transforma a palavra ou frase que o símbolo acompanha em um link clicável, permitindo que os usuários cliquem na hashtag para explorar outros conteúdos relacionados. • TikTok: Plataforma de mídia social que permite aos usuários criarem, compartilharem e acessarem vídeos curtos. • LinkedIn: Rede social profissional projetada para conectar profissionais, permitindo que eles compartilhem informações sobre suas carreiras, habilidades e experiências. 56 • WhatsApp: Aplicativo de mensagens instantâneas que permite que os usuários enviem mensagens de texto, voz, fotos e vídeos, bem como realizem chamadas de voz e vídeo. Fonte: Elaboração da autora. As redes sociais desempenham um papel significativo na comunicação contemporânea, fornecendo uma maneira rápida e acessível para as pessoas se conectarem globalmente. No entanto, também levantam questões relacionadas à privacidade, segurança online e impactos psicossociais, que exigem uma abordagem consciente e responsável por parte dos usuários. Você faz uso de alguma rede social? Já refletiu sobre como é sua prática discursiva nesses ambientes digitais? Devellotte (2006 apud Seara; Cabral, 2017, p. 313) conceitua as redes sociais como um "espaço de exposição discursiva", em que os usuários desempenham papéis duplos, atuando como produtores e interlocutores dos discursos aos quais estão expostos. Essa perspectiva alinha-se com a noção de escrileitor (o usuário interage por meio da leitura e da escrita), destacada por Paveau (2021). Nesse contexto digital, as informações e os conteúdos são criados de maneira híbrida, envolvendo tanto a ação humana quanto a intervenção das máquinas. Esse discurso que nasce e se propaga em ambiente digital é denominado tecnodiscurso. De acordo com Paveau (2021), o prefixo "tecno" não apenas procura alterar o sentido do radical da palavra discurso, mas representa uma escolha teórica que redefine o conhecimento sistemático e estruturado tradicional das ciências da linguagem. Ao falar em tecnodiscurso, tecnopalavra, tecnosigno, tecnogênero do discurso, estamos afirmando que os discursos digitais nativos não se limitam apenas à linguagem humana; as determinações técnicas co- constroem as formas tecnolinguísticas. Nessa perspectiva, a comunicação medida pela máquina faz emergir alguns questionamentos: Como as tecnologias influenciam a produção e a recepção de discursos? Como os discursos moldam e são moldados pelas tecnologias? A autora alerta que o tecnodiscurso é constituído, 57 indissociavelmente,