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Educação de Jovens e Adultos A EJA e o Pensamento Freireano Desenvolvimento do material Alba Valéria 1ª Edição Copyright © 2022, Afya. Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, mecânico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Afya. Sumário A EJA e o Pensamento Freireano Para início de conversa… ................................................................................ 3 Objetivo ......................................................................................................... 4 1. Educação Popular X Educação de Jovens e Adultos ......................... 4 2. EJA e a Conscientização ............................................................................. 9 Referências ......................................................................................................... 12 Para início de conversa… Analisar a educação de jovens e adultos mostra-se desafiador, principalmente, pela dificuldade de construção de uma trajetória linear. Como você pôde perceber, a EJA foi sempre continuada ou descontinuada a partir de interesses e objetivos que o cenário político ia vislumbrando para a modalidade. Isso dificulta que assumamos uma perspectiva de análise focada apenas nas metodologias, mas a todo o momento é necessário que repassarmos o contexto político em que cada proposta está sedimentada e assim que faremos agora novamente. É importante perceber que a história da EJA no Brasil está diretamente ligada à história da educação como um todo. Os objetivos que se identificavam para a formação regular também de certa forma impactavam a EJA. Ocorre que em nossa sociedade a educação não era acessível a todos, mas apenas a certos grupos que podiam concentrar seus esforços em aprender nas condições em que o ensino era oferecido, entretanto uma maioria, muito cedo, abandonava esses espaços de aprendizagem pela necessidade de trabalhar pela sobrevivência é neste cenário que a EJA surge como oportunidade também de inclusão. As metodologias e o currículo oferecidos à EJA, no entanto, não tinham os mesmos objetivos que no ensino regular. Muitas vezes as propostas não contemplavam a realidade do educando o que estimulava a evasão. É nesta medida que o método Paulo Freire vem dar uma nova perspectiva para Educação de Jovens e Adultos. Convidamos você a estar conosco nesta reflexão. Educação de Jovens e Adultos 3 Objetivo Valorizar a influência de Paulo Freire no desenvolvimento da EJA no Brasil. 1. Educação Popular X Educação de Jovens e Adultos Inicialmente vamos esclarecer do que tratam os termos educação popular e educação de jovens e adultos, pois, muitas vezes, eles se confundem, mas é a relação histórica acerca desse tipo de educação. Freitas (2007) reforça que há de se indagar de qual EJA estamos tratando: aquela “forjada no mundo rural ou no mundo urbano, ou, então, a EJA construída dentro da dinâmica das redes campesinas ou das relações fabris e industriais típicas dos diferentes momentos do nosso ciclo econômico- social. Essas diferenças são determinantes para sabermos a identidade do modelo tratado. Apresentamos um trecho bastante esclarecedor para delimitar o espaço de ambos os termos. Historicamente, a Educação de Jovens e Adultos, no cenário brasileiro, surge da união e do compromisso estabelecido entre a alfabetização e a educação popular. Figura 1: Aula para jovens e adultos. Fonte: Dreamstime. Aquela concebida como um processo de grande extensão e profundidade, destinando-se a grandes contingentes populacionais, ao mesmo tempo em que contribui para que essas pessoas voltem a acreditar na possibilidade de mudança e melhoria de suas vidas ao poderem “ler o mundo e, ao lê-lo, transformá-lo” (FREIRE, 1976). Esta – a educação popular – era concebida como um instrumento de libertação das classes subalternas, exploradas e expulsas da mínima condição de sobrevivência digna e humana (MANFREDI, 1980; FREITAS, 1998). Educação de Jovens e Adultos 4 Podemos afirmar que Educação de Jovens e Adultos foi forjada a partir da necessidade de alfabetização de grandes contingentes populacionais e da educação popular, embora também pretenda atingir a esse imenso público de certa forma “à margem” da sociedade escolarizada, objetiva algo além da alfabetização. O foco da educação popular é a formação para a cidadania e os direitos do indivíduo. A educação popular contemplada em uma educação de jovens e adultos, toma para si a responsabilidade de ofertar ao indivíduo em idade adulta a matéria-prima para que possa intervir no mundo compreendendo as motivações, intencionalidades e seu próprio papel no mundo. Leia com atenção o trecho retirado abaixo do artigo Educação de Jovens e Adultos, educação popular e processos de conscientização: intersecções na vida cotidiana. ‘‘ Falar de educação popular, ao lado da alfabetização de adultos e Jovens, significa falar da relevante presença da dimensão popular no cenário político nacional. Isto foi particularmente forte e decisivo para o fortalecimento de vários movimentos populares e sociais que surgiram nas décadas de 60, 70 e 80, quando a participação popular se unia para o enfrentamento das adversidades e conflitos que a sociedade brasileira vivia marcadamente neste período. Em verdade, o que se vê, aqui nesta época em especial, é uma íntima relação entre três aspectos que levam a uma politização da consciência, a saber, entre: alfabetização-educação popular-participação e conscientização. Neste tripé, a ação e a prática populares desempenham um papel importante, ancoradas na assessoria de diferentes naturezas que os profissionais liberais e os intelectuais forneceram a estes movimentos. Esta ligação – ou seja, falar em alfabetização significava na época, também, falar em educação popular e conscientização – mantém-se ainda por alguns anos, nas décadas seguintes, quase permanecendo junta até o final do período do governo de exceção, quando então divisam-se outras possibilidades e anunciam-se outras definições epistemológicas para cada um destes campos e para os diversos movimentos populares e sociais até então. (FREITAS, 2007, p.48)’’ Dessa forma, falar em educação popular é falar em alfabetização, mas também em participação social, conscientização dos mecanismos sociais e sobre ter a consciência de compreender o mundo em totalidade para ser capaz de intervir nele, buscando alcançar uma sociedade mais justa e igualitária. Educação de Jovens e Adultos 5 Assim, pensar em educação popular é retomar o conceito sobre o que é erudito e o que é popular, é retomar questões do currículo, compreendendo que os saberes selecionados deixam vários outros saberes de fora desta seleção. Isso precisa ficar claro ao pensar em educação popular. Não se pode cair na armadilha de entender que os saberes populares são saberes “menor”. A escola, muitas vezes, exclui os conhecimentos populares de seus espaços, elegendo os saberes de uma cultura dominante em detrimento da cultura popular. Tal ação dá, ao espaço escolar, uma perspectiva muito excludente. Observe a seguinte situação: Um aluno que viveu toda vida em uma área rural, seus saberes estão ligados aos conhecimentos do manejo com a terra, o que lhe significa é o cultivo, a produção, a natureza. Ao chegar à escola e acessar o livro de português, verifica que toda a forma de interagir oralmente que desenvolveu ao longo de sua vida é “errada” e precisa ser substituída pelo falar erudito. Surge, então, o conflito. Afinal, até o momento em que entra na escola, esse aluno sempre se comunicou em perfeição com seus pares e houve comunicação, havendo entendimento. Por que agora tudo aquilo não serve para nada? Para além, disso, e sua habilidade em plantar, saber o melhor momento de cultivar, colher aguar, nada disso é válido? Poderíamos dar vários exemplos desses conflitos que o espaço da escola ea educação de adultos precisa compreender antes de desenvolver metodologias, mas voltemos por hora ao que propôs Paulo Freire para que fosse possível atingir esse aluno. Em primeiro lugar, é importante destacar que Paulo Freire não questionava a eficiência de outros métodos, na verdade, a questão para ele era exatamente essa ideia de se replicar processos como se o indivíduo fosse uma peça a ser produzida em uma esteira de fábrica na qual todos são peças que precisam sair exatamente igual da fábrica. A fábrica é a escola e os alunos as peças. Assim, Freire, questionava esse modelo padronizado de educação. Outra questão muito latente nas ideias deste educador diz respeito ao termo ensino e educação. Figura 2: O modelo de padronização da educação. Fonte: Dreamstime. Educação de Jovens e Adultos 6 O termo ensino nos direciona para o entendimento de que o outro nada sabe e você está ofertando a ele tudo que ele precisa saber, ou seja, o outro é um pote vazio que você deposita seus saberes. Daí, o termo educação bancária. Para Freire, “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (FREIRE, 1996, p.47). Assim como, ensinar também exige “respeito aos saberes do educando”. Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes. Por que não há lixões no coração dos bairros ricos e mesmo puramente remediados dos centros urbanos? Essa pergunta é considerada em si demagógica e reveladora da má fé de quem a faz. É pergunta de subversivo, dizem certos defensores da democracia. (FREIRE, 1996, p.30) Figura 3: A desigualdade que marca o Brasil. Fonte: Wikimedia. Essa percepção humana trazida por Freire para a educação de adultos tornou o seu método tão estudado e citado por quem concorda com sua visão, bem como por aqueles que desejam que as acomodações sociais permaneçam da forma que estão. Educação de Jovens e Adultos 7 Figura 4: Paulo Freire. Fonte: Wikimedia. Para Freire, o processo de ensinar é uma via de mão dupla na qual quem ensina, aprende, e quem aprende também ensina. O professor não pode em momento algum se esquecer disso, buscando sempre dialogar com os saberes de seu aluno. Freitas (2007, p.62) destaca que nas “Cartas aos Camaradas de São Tomé e Príncipe”, Freire aponta os caminhos que norteiam sua proposta. São elas: ▪ Deve-se ter uma atitude crítica diante de qualquer material, instrumento ou proposta de ação pedagógica, buscando uma compreensão da sua construção histórico-social. ▪ A própria decisão de participar de um processo de alfabetização (seja o educando, seja o educador) é já um ato político. Consequentemente, a própria educação e alfabetização também expressam uma intenção política. ▪ É necessário estar vigilante quanto à coerência entre a opção política assumida e a prática que é realizada no processo de alfabetização. Isto leva a ter de explicitar e responder à indagação: em favor de que e de quem se trabalha em Educação? ▪ A prática do educador deve ser crítica, consciente e oposta à prática dos educadores colonizadores ou reprodutivistas. ▪ É na prática que se aprende cada vez melhor como trabalhar, de acordo com cada realidade em questão. ▪ Toda educação e também a alfabetização, além de terem uma intenção política, são um ato de conhecimento. ▪ No processo de alfabetização, o necessário diálogo permanente entre educando e educador se dá através da prática e da reflexão, gerando um conhecimento mútuo em que há saberes distintos e relevantes. ▪ O trabalho do educador/animador/alfabetizador não termina quando finda seu trabalho diário; é importante que conviva com os alfabetizandos e com o povo. Observe que Freire concebe a educação como um ato de reflexão aos modelos vigentes de sociedade e os papéis socialmente aceitos. Assim, acreditamos que podemos concentrar o trabalho na perspectiva focada em dois pontos: a construção de um olhar crítico reflexivo do aluno e a necessidade do professor compreender que ensinar vai além de compartilhar conteúdos. Educação de Jovens e Adultos 8 2. EJA e a Conscientização Esse título diz respeito não somente à EJA, mas acreditamos ser um tema referente a toda a educação. Compreender que a educação para cidadania contempla dos pontos no que diz respeito ao que se ensina na escola. O que ensinar e para que ensinar? A primeira pergunta é uma questão que passa pelo campo do currículo, sendo fundamental para dar ao aluno o entendimento de que estar na escola não é um desperdício de tempo. Os conhecimentos ensinados ali fazem parte de um conjunto de saberes que serão capazes de auxiliá- lo ao longo de sua vida na tomada de decisão, na compreensão da realidade e também como base para o entendimento de outros conceitos. Assim, é preciso que as disciplinas não sejam simples apanhados de conhecimentos teóricos sem que sua relação com a vida seja expressada pelo professor. A segunda pergunta requer um entendimento do professor em relação à primeira pergunta. Ao ser ensinar, antes mesmo de selecionar qualquer metodologia é preciso que o professor saiba qual a sua intenção em ensinar aquele conteúdo. Como seu aluno ao se apropriar daquele conhecimento poderá aplicá-lo em sua vida? Ou, melhor. O que eu ensino é uma ferramenta de construção de autonomia e criticidade para que meu aluno, ao se deparar com sua realidade possa reconhecer-se munido de conhecimento capaz de superar suas dificuldades? Muitas vezes, o conhecimento adquirido é extremamente relevante, mas o aluno não consegue relacionar a teoria à prática. Figura 5: Alunos com dificuldade em relacionar conteúdo teórico com a prática. Fonte: Dreamstime. Educação de Jovens e Adultos 9 Pensemos na leitura de uma bula, por exemplo. Conhecemos pessoas que ao receberem a orientação de um médico para tomar certo medicamento não costuma ler a bula. Ou quando leem estão muito mais atentos à indicação de uso do remédio ou suas reações adversas do que os componentes da fórmula. Ocorre que é naquele tópico que quase ninguém lê que é possível verificar se há algum componente a que eu tenha alergia, por exemplo e que seu médico esqueceu de verificar. Quando dizemos que a educação deve preparar para a cidadania, dizemos em que a cidadania deve ser exercida em todas as suas dimensões e isso contempla seu dever de conhecer, participar de todos os aspectos de sua vida, incluindo ser protagonista na relação médico paciente também. Saber o que estamos ingerindo é o mínimo que podemos fazer. Entretanto, abrimos mão da participação nesses processos atribuindo ao outro todo a responsabilidade da ação. Isso em quase todas as esferas de nossa vida. Usamos o exemplo do remédio porque ele envolve conhecimentos relacionados a ciência que são, muitas vezes, questionados pelos alunos. Para que eu vou usar isso, professor? É uma pergunta que sempre ouvimos não é verdade? Por isso, a educação e os conteúdos disciplinares não podem ser entendidos como conhecimentos teóricos sem qualquer relação com a prática. Assim, chegamos a uma outra perspectiva da educação com base na metodologia freireana. Freire (1996) afirma que “Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo”. A intervenção que Freire se refere diz respeito ao papel do professor como agente de transformação. É papel do professor ajudar o aluno a compreender que tudo que se ensina é fruto de determinada seleção e que ao se escolher uma forma dominante, outra forma está sendo deixada de lado. Logo, a educação pode reforçar conceitos hegemônicos ou desconstruí-los. A desconstrução dessa hegemonia é o objetivo de uma educação progressista. Figura 6: Professora trocando experiências com alunos. Fonte: Dreamstime. Educação de Jovense Adultos 10 Assim, a conscientização está em compreender que aquilo que hoje temos como culturalmente aceito foi uma intervenção do homem no mundo e como toda convenção é possível ser mudada e redimensionada para outra “normalização”, ou outros papéis. Isso é de extrema relevância porque, muitas vezes, o aluno não reconhece os espaços como seus, ou pensa que a escola “não é um lugar para ele”. O que o fez pensar assim? Isso é fruto do pensamento dele ou é exatamente o que se quer que ele pense para que não mude “as regras do jogo?”É isso que Freire nos chama a questionar. Compreender que o conhecimento é poder nos leva a questionar o porquê de uma ponte estar em tal local e não em outro? Por que os jardins da cidade são em determinados bairros e não em outros? Que a educação sempre é apontada como salvação para a redução de desigualdades não é foco de investimento sério e adequado por todos os governos? A conscientização está justamente em compreender que a educação é um ato político no que diz respeito ao “desmascaramento” das intencionalidades por trás de cada leitura que fazemos, de cada ato representado e cada “benefício” estendido à população. A leitura de obra Pedagogia da Autonomia (1996) é literatura necessária a todo professor que atue em EJA. Nela é possível compreender que a educação pode libertar ou criar mais amarras. Neste estudo, conhecemos um pouco sobre a educação popular proposta por Freire. Seus objetivos emancipatórios, a construção de uma metodologia e o impacto desse pensamento em campos como o do currículo. Reconhecer que educar não é transferir conhecimento e que a educação tem seu papel na construção de uma autonomia era a intenção de Freire quando visava a uma educação que estimulava o pensamento crítico reflexivo do aluno e redimensionou o papel do professor como agente de transformação social. Essa visão subversiva do papel do professor, hoje tem sido colocada muito em xeque, apontada como uma formação ideológica, quando seu objetivo é exatamente de abrir os olhos do professor e do aluno de que o mundo é formado por ideologias. Ocorre que a minha posição ideológica não pode predominar em detrimento constante da outra e isso é o que tem ocorrido. A escola é o cenário que reflete muito claramente essa disputa. Ali, se vê conhecimentos de interesse de certas forças no nosso cenário socioeconômico serem todo o tempo legitimados em detrimentos de outros conhecimentos que também são relevantes mas não são de interesse de que sejam compartilhados com e por todos. É esse compartilhamento de saberes com todos que Freire propõe como caminho para a justiça social. Educação de Jovens e Adultos 11 Referências FREITAS, M. F. Q. Educação de jovens e adultos, educação popular e processos de conscientização: intersecções na vida cotidiana. Educar em Revista, n.29, p. 47-62, 2007. Disponível em http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602007000100005 Acesso em 13 set. 2019. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra, São Paulo, 1996. FREIRE, P. Quatro cartas aos animadores de círculos de cultura de São Tomé e Príncipe. In: BRANDÃO, C. R. (Org.) A questão política da Educação Popular. São Paulo: Brasiliense, 1980. Educação de Jovens e Adultos 12 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602007000100005 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602007000100005 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602007000100005 A EJA e o Pensamento Freireano Para início de conversa… Objetivo 1. Educação Popular X Educação de Jovens e Adultos 2. EJA e a Conscientização Referências