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Psicanálise e psicoterapia de orientação analítica Cláudio Laks Eizirik Simone Hauck Camila Piva da Costa Cappellari A psicanálise e a psicoterapia de orientação analítica (POA) têm suas raízes no trabalho realizado por Sigmund Freud, que, a partir da observação de pacientes psiquiátricos e da aplicação sistemática do método psicanalítico, fundou a psicanálise como ciência no início do século XX. Uma grande variedade de abordagens terapêuticas foi desenvolvida desde então para o tratamento de psicopatologias e perturbações de natureza emocional. No entanto, a POA se caracteriza por buscar ampliar a capacidade da mente e as possibilidades de escolha do indivíduo, além da melhora dos sintomas. Metanálises recentes evidenciam que diversos modelos de psicoterapia fundamentados na teoria psicanalítica são tão eficazes quanto outras psicoterapias tradicionalmente consideradas como “baseadas em evidências” no tratamento de uma série de transtornos mentais. Neste capítulo, apresentaremos a história da elaboração teórica e técnica da psicanálise e da POA a partir dos estudos de Freud, os desenvolvimentos posteriores de maior relevância e os aspectos que caracterizam o método psicanalítico. Serão também revisadas evidências disponíveis de sua eficácia. O método psicanalítico instituiu-se como ciência a partir da investigação empírica de Sigmund Freud sobre a vida mental de pacientes psiquiátricos e daqueles em sofrimento psíquico. Ao longo dos anos, a evolução dos conceitos teóricos descobertos por Freud e dos preceitos técnicos por ele propostos propiciou um extenso conhecimento sobre os processos mentais, com a aquisição de ferramentas importantes para alívio de sintomas, diminuição do sofrimento, melhora da qualidade das relações interpessoais, desenvolvimento da criatividade e aumento da capacidade de adaptação dos pacientes. Embora a extensa experiência clínica valide plenamente o método, estudos em psicanálise estão disponíveis, mas ainda são incipientes.1 Entretanto, o mesmo não é verdade em relação à POA, cuja e�cácia foi também comprovada por uma série de ensaios clínicos controlados.2-6 Atualmente, não faz sentido argumentar que os tratamentos de orientação psicanalítica não são baseados em evidência, pois vários estudos, inclusive ensaios clínicos, revisões sistemáticas e metanálises, demonstram que eles são tão e�cazes quanto as psicoterapias ditas “baseadas em evidência”, com alguns estudos apontando uma potencial vantagem das abordagens psicanalíticas no follow-up. O surgimento de alternativas terapêuticas comprovadamente e�cazes, entre elas a psicofarmacologia e os diversos tipos de psicoterapias, levanta a questão de qual tratamento funciona melhor para determinado paciente. Os objetivos de tratamento nas terapias psicanalíticas são mais abrangentes. Além da diminuição de sintomas, espera-se que o paciente desenvolva maior consciência de suas di�culdades interpessoais, sociais, pro�ssionais, intrapessoais, de personalidade, entre outras. Essa abrangência se deve à própria forma como a terapia é estruturada, focando os afetos e a expressão das emoções, a exploração de sentimentos e pensamentos, a identi�cação de padrões repetitivos, a discussão de experiências do passado, o entendimento das relações interpessoais e da relação com o terapeuta e o estudo de desejos e fantasias.3 O progresso nas terapias psicanalíticas envolve a reativação do processo de desenvolvimento normal. As experiências na relação terapêutica contribuem para revisões construtivas do self, que se expressa por meio de mudanças nas representações de si e dos outros a partir do aprimoramento de habilidades re�exivas. Os tratamentos bem- sucedidos propiciam maior liberdade interna, aumento da segurança na exploração de pensamentos e sentimentos complexos, otimização das capacidades adaptativas e maior habilidade em utilizar recursos internos.7 O entendimento do referencial teórico e dos objetivos da técnica é importante para que a indicação do tratamento leve em consideração tanto as metas do paciente quanto o investimento necessário para alcançar essas metas. A ORIGEM DA PSICANÁLISE Desde de sua origem, a partir de Freud, a psicanálise e os tratamentos fundamentados na teoria psicanalítica vêm sendo aplicados, gerando novos desenvolvimentos da teoria e da técnica. Já reconhecido por seu trabalho investigativo no campo da �siologia, Freud se interessou pelo método da hipnose, em 1882, por meio dos relatos do neurologista Breuer sobre sua paciente Ana O. Breuer relatou a Freud que a recordação de situações traumáticas ocorridas no passado, por meio do estado hipnótico, produzia alívio signi�cativo dos sintomas, o que denominou de abreação ou catarse. A existência de fatos que não podiam ser recordados pela simples vontade do indivíduo, mas que geravam sintomas e interferiam no comportamento, levou Freud a estabelecer, posteriormente, a existência do que denominou de inconsciente. Essa parte da vida mental, autônoma e em constante movimento, determinaria em grande medida as decisões do dia a dia. A partir desses conceitos, postulou outra noção fundamental da psicanálise: o princípio do determinismo psíquico. Em 1885, Freud foi ao encontro de Charcot, eminente neurologista da clínica Salpêtrière, em Paris, com a intenção de aprender o método da hipnose. No entanto, ao utilizá-la no tratamento de suas pacientes histéricas, Freud percebeu que era um mau hipnotizador, e a busca pela situação traumática que teria originado a neurose levou ao desenvolvimento de estratégias alternativas para ter acesso ao que estava fora da consciência. A livre associação de ideias passou a ser usada na tentativa de acessar as memórias reprimidas. No processo de buscar ferramentas que propiciassem o acesso ao inconsciente, Freud notou que as forças que se opunham à recordação (resistências) eram profundas e arraigadas, manifestando-se alheias à vontade do indivíduo. Além da livre associação, ele descobriu que os sonhos eram um caminho para o inconsciente. Aliás, em sua expressão, eram a estrada real, apresentando de forma mascarada desejos e fantasias reprimidos, especialmente de cunho sexual, sendo dirigidos ao genitor do sexo oposto. Da mesma forma que as situações traumáticas vividas de fato, desejos e fantasias eram mantidos fora da consciência por meio de poderosos mecanismos de defesa. Com a elaboração da teoria topográ�ca, Freud descreveu a divisão da mente em inconsciente, pré-consciente e consciente, assim como o jogo entre as forças opostas do inconsciente (desejos e impulsos) e a parte consciente do indivíduo. Nasce um preceito- chave da psicanálise: tornar consciente o inconsciente. A partir daí, o con�ito psíquico (inconsciente), representado simbolicamente pelos sintomas, passou a ser concebido como o embate entre as forças instintivas e as forças repressoras. Institui-se, então, a psicanálise como uma nova ciência, com referenciais teóricos e técnicos próprios, especí�cos e consistentes. Embora o “trauma real” tenha lugar indiscutível na origem da psicanálise, constituindo a primeira teoria elaborada por Freud, a teoria do trauma, que considerava situações traumáticas impostas pela realidade externa como causadoras diretas dos sintomas, ele cedeu lugar ao entendimento das fantasias e dos desejos do paciente na gênese da neurose, possibilitando desenvolvimentos importantes na teoria e na técnica psicanalítica. É necessário salientar, no entanto, que o próprio Freud passou a reconsiderar a importância do trauma real ao observar as “neuroses de guerra”. De fato, a recordação do trauma tem lugar de destaque na psicanálise atual, mas não apenas com uma função catártica, e sim como uma possibilidade de ressigni�car o passado. A�nal, não é possível esquecer-se de algo que não se consegue lembrar, mas que, mesmo “esquecido”, é fonte causadora de sintomas e sofrimento. Consciente da força da resistência como inimiga implacável da evolução do tratamento psicanalítico e, portanto, parte imprescindível dele, Freud passou autilizar a interpretação como instrumento para trazer à consciência do paciente desejos e fantasias até então “proibidos”. A explicitação da natureza e da �nalidade das resistências possibilita a transposição desse obstáculo no caminho da “conscientização”. A partir das di�culdades enfrentadas no famoso “caso Dora”, Freud reconhece a importância da transferência como resistência e como instrumento de trabalho, incluindo seu entendimento e sua “resolução” como fundamentais no tratamento analítico. Em 1914, Freud a�rmou, inclusive, que um tratamento analítico seria de�nido como aquele que considera o trabalho das resistências e da transferência como centrais no processo terapêutico. Mesmo com a �nalidade primária de repetir para não lembrar, a relação transferencial passou a ser concebida como mais uma forma de recordar o passado, uma vez que se tratava da repetição, na relação com o analista, dos sentimentos e das fantasias dirigidas a �guras importantes na história do paciente.8 Na busca da reedição do con�ito primário, nasceu o conceito de neutralidade, uma vez que a relação terapêutica deveria “re�etir, como um espelho”, o con�ito do paciente com suas �guras primárias, e não a relação com o analista como pessoa real. O setting (do qual fazem parte o divã, a frequência das sessões e a própria neutralidade) viria ao encontro desse objetivo ao propiciar aumento na intensidade da relação entre paciente e analista, ao mesmo tempo que “limparia” o campo analítico da in�uência da pessoa real do terapeuta. No entanto, com a evolução da teoria psicanalítica, principalmente a partir dos desenvolvimentos de Bion, o conceito de neutralidade sofreu algumas transformações. Surge a ideia de neutralidade possível, já que sempre haverá alguma in�uência da pessoa do terapeuta na con�guração desse campo.9 Em 1923, Freud elaborou a teoria estrutural, que introduziu as diferentes instâncias psíquicas: ego, id e superego. O id, inconsciente, depositário dos instintos, pulsões, desejos e fantasias; o ego, parte inconsciente e parte consciente, possuidor de funções como teste de realidade, controle dos impulsos, inteligência, mecanismos de defesa, entre outras; e o superego, que dita consciente e inconscientemente o que se deve fazer/corresponder e o que é expressamente vetado. Foram descritas as batalhas permanentes entre id e ego, paralelas a tentativas integradoras do ego em busca da sobrevivência psíquica e da adaptação ao mundo real, contando com a participação do superego de um ou de outro lado do con�ito. A interação permanente do mundo interno com a realidade externa é descrita com o ego sendo a “�gura mediadora” entre as demandas do id e a realidade. Outra contribuição importante de Freud foi a de�nição da clivagem como defesa inter e intrassistêmica, ou seja, não apenas entre as diferentes instâncias psíquicas, mas também dentro do próprio ego.8 EVOLUÇÃO DA TEORIA PSICANALÍTICA Muitos dos conceitos originais e recomendações técnicas permaneceram inalterados ao longo dos anos, mas inúmeras contribuições possibilitaram a evolução da psicanálise e a expansão de seu alcance e de sua indicação. Entre os autores que mais contribuíram nesse sentido estão Klein e Bion. Alguns conceitos fundamentais da psicanálise se mantêm desde que foram concebidos por Freud. Entre eles, estão o inconsciente, a livre associação, a resistência, a transferência, a contratransferência, a neutralidade e a interpretação como ferramenta de trabalho. Alguns dos principais desenvolvimentos vieram a partir de Melanie Klein, que inaugurou a escola das relações de objeto por meio da introdução do conceito de identi�cação projetiva, ampliado por Bion, que incluiu o entendimento de sua função de comunicação tanto no desenvolvimento normal quanto no processo terapêutico. Melanie Klein A partir da análise de crianças, Klein introduziu a ideia de que as relações do bebê com seus objetos (�guras externas e suas representações internas) existiriam desde o nascimento e constituiriam a base da vida mental. É, de fato, uma teoria em que não existe vida mental fora da relação com o outro. A mente é descrita como um palco povoado de personagens que se relacionam entre si e são coloridos e construídos a partir do jogo de projeção e introjeção que ocorre desde o início da vida. Quando nasce, o bebê interpreta a realidade externa a partir da projeção de seus impulsos amorosos e agressivos sobre as �guras importantes. Ou seja, o cuidador é percebido como possuidor de parte desses impulsos (que são originalmente do bebê), e a mistura dessa percepção com a reação “real” do objeto externo (cuidador) é internalizada como uma representação daquele- objeto no mundo interno. A partir disso, as percepções subsequentes são baseadas na projeção dessa representação sobre os objetos externos, modi�cadas por eles, reintrojetadas como novas representações e/ou como modi�cações da representação original, e assim sucessivamente. Os objetos do mundo interno, por projeção, dão signi�cado à realidade externa. As pulsões de vida e de morte (de amor e de agressão) estão misturadas e se ordenam em torno das relações de objeto, com as fantasias e angústias associadas a elas.10,11 Em outras palavras, poderíamos pensar o bebê como um sujeito dotado de imensa capacidade perceptiva que, inicialmente, conta apenas com seus sentimentos (amor e agressividade inatos) para “adivinhar” a realidade externa, as intenções e os comportamentos das outras pessoas. É inevitável que “espere” encontrar fora dele aquilo que pode perceber (sentir, experimentar) em si. Após isso, em um interjogo perceptivo dinâmico, o sujeito utiliza o que sente para “adivinhar” o que é sentido pelo outro. A “reação de fato” do outro se mistura com aquilo que ele imagina que seja a intenção desse outro e constitui o que o sujeito percebe como realidade. Essa percepção, então, é introjetada (gravada na memória) como um padrão possível de relacionamento. A introjeção (ou imagem interna daquela possibilidade de relação) contém as atitudes e os comportamentos percebidos, mas também os sentimentos experienciados e o “estado emocional” que resultou dessa vivência. Esse processo se repete ao longo da vida, resultando nas inúmeras relações objetais que compõem o mundo interno do indivíduo. Dessa forma, a transferência toma um sentido menos asséptico, já que o conteúdo projetado, em alguma medida, é sempre modi�cado pela reação do analista, que nunca está completamente livre das próprias projeções. No entanto, a análise pessoal do analista/terapeuta e a constante auto-observação buscam que ele entenda e signi�que o que está se passando nesse jogo de projeções. Com a evolução desses conceitos e o entendimento do mecanismo da identi�cação projetiva (descrito inicialmente por Klein, em 1946), a relação terapêutica passa a ser não apenas um meio de compreender a realidade psíquica do paciente, mas também um instrumento para modi�cá-la por meio da introjeção de relações de objeto mais salutares. Klein introduziu outro conceito de relevância considerável para a psicanálise: a noção de posição depressiva e esquizoparanoide. O funcionamento da mente de todos os indivíduos oscila entre esses dois estados. Na posição esquizoparanoide, preponderante nos primeiros três meses de vida, os objetos e o self (distorcidos e fantasiados) são percebidos como exclusivamente bons ou exclusivamente maus. Esse processo ocorre por meio de um mecanismo de defesa chamado cisão e tem a �nalidade de proteger os bons objetos (idealizados e continentes dos impulsos amorosos) e o self da agressividade (projetada) dos maus objetos (vividos como persecutórios). É uma manifestação da divisão entre “seio bom” e “seio mau”: representações da grati�cação e da frustração das necessidades do ego. Na posição depressiva, tanto os obje tos internos quanto os externos estão mais integrados (contendo seus aspectos bons e maus) e, portanto, mais próximos da realidade. A posição depressiva seria o resultado da percepção dessa integração, em oposição àidealização e à onipotência (quando a cisão diz respeito ao self).10 Wilfred Bion Bion, a partir dos desenvolvimentos de Klein, salientou a importância da “capacidade de pensar”, do conhecimento e da linguagem no processo analítico. O autor introduziu o conceito de elementos beta, que seriam angústias e sentimentos inominados (sem sentido), que não puderam ser simbolizados e traduzidos em linguagem. A capacidade de conter esses elementos beta e, posteriormente, decodi�cá-los em algo compreensível para o paciente (ou elementos alfa) é parte essencial do tratamento analítico. Para Bion, o simples aumento da capacidade de conter os elementos beta já é um ganho substancial que pode advir do tratamento. A capacidade de conter (ou a ausência dela) seria aprendida a partir das �guras primárias (cuidadores iniciais), conforme o bebê vai experimentando sensações desconhecidas e angustiantes desde seu nascimento e utilizando as reações dos cuidadores como modelo. O modo de lidar com essas angústias, mais do que sua simples signi�cação, de�ne a capacidade de conter. A continência é especialmente importante naquelas patologias em que o paciente atua de modo sistemático no lugar de pensar, ou seja, age impulsivamente para livrar-se da angústia, como no transtorno da personalidade borderline (TPB).12 Seres humanos são, desde o nascimento, particularmente atentos à reação do outro, em parte porque a espécie humana, mais ainda que as demais, necessita de “um outro” para sobreviver por um longo período. Manter o cuidador por perto é, literalmente, uma questão de vida ou morte, e o bebê interage de modo intenso com seus cuidadores em busca da sobrevivência. Se o afeto é um objetivo primário ou se é resultado do processo de garantir o apego não é uma questão essencial. O fato é que a experiência afetiva é fundamental para a estruturação da mente, levando ao sucesso ou ao fracasso psíquico. A partir dessa experiência, a percepção da realidade é construída, bem como a gama de reações afetivas e comportamentais às diversas situações interpessoais e emocionais. A forma como agir diante de um sentimento de angústia, desespero ou solidão é fundamentalmente resultado da vivência inicial compartilhada perante essas emoções.13 É importante destacar que, para Bion, o pensamento nasce na ausência. Ou seja, se houvesse uma fonte inesgotável de grati�cação contínua, não seria necessário pensar para solucionar a falta ou signi�car o desconforto resultante da frustração. Diante de um- paciente em grande sofrimento psíquico, a capacidade de suportar aquele sofrimento sem agir para expulsá-lo do campo analítico é sinônimo de continência e tem a importância vital de transmitir ao paciente a noção de que é possível suportar tal estado. Bion descreveu a existência de uma parte psicótica da personalidade em todos os indivíduos. É preciso distinguir esse conceito da psicose clínica, pois se refere a uma parte composta, por exemplo, por inveja excessiva, intolerância absoluta às frustrações, uso exagerado de identi�cação projetiva, hipertro�a da onipotência em lugar da capacidade de pensar e ódio às verdades (externas e internas). Além disso, acrescentou um novo entendimento ao conceito de identi�cação projetiva. Além da intenção de livrar-se do sofrimento ao colocá-lo dentro do outro, destacou a função de comunicar tais sentimentos em busca de ajuda e de um continente e�caz. A identi�cação projetiva passa a ter um papel central no entendimento do paciente e no manejo da situação terapêutica. Na sessão, estão em jogo estados muito primitivos, que ainda não tiveram acesso à possibilidade de serem pensados e que estão aguardando que o analista e o paciente, usando todos os meios disponíveis, saibam recolhê-los, não permaneçam submersos neles e possam narrá- los um ao outro.12 O campo analítico e os elementos não verbais Na sequência da evolução do entendimento do encontro analítico como uma atividade interpessoal, em que a mente do analista é parte ativa do processo na construção de uma realidade intrapsíquica mais salutar e de uma capacidade maior de apreender a realidade e ampliar a percepção, surgiu o conceito de campo analítico. Esse conceito foi introduzido pelo casal Baranger, em 1961. Pode-se dizer que pretende descrever como se dá o que Freud identi�cou como comunicação de inconsciente para inconsciente, ao considerar os componentes da relação transferencial como um todo. Segundo Ferro,14 nesse contexto – que tenta apreender a complexidade das relações humanas –, o objetivo do tratamento é integrar essas “áreas do tecido comunicativo do par” (diversos aspectos dos componentes do campo analítico que podem comunicar e ser traduzidos), para que possam, paciente e analista, alcançar uma visão comum sobre o que acontece na profundidade de seu funcionamento psíquico.11 A atenção a elementos não verbais do campo como fundamentais à ação terapêutica, paralelamente ao avanço da pesquisa em neurociências, recentemente aproximou essas áreas do conhecimento, oferecendo suporte a ambas dentro do contexto clínico e de pesquisa. Uma das formas de comunicação não verbal, o enactment, em que paciente e terapeuta passam a agir de forma inconsciente de acordo com aspectos do mundo interno do paciente, é um exemplo dessa aproximação. O entendimento teórico e clínico de tal manifestação interpessoal como via de expressão de estados dissociados do self do • • • • • • paciente encontra cada vez mais suporte tanto nos achados de pesquisa da neurociência como nos estudos de apego.15,16 CONCEITOS BÁSICOS A partir da revisão histórica dos desenvolvimentos da psicanálise desde Freud, pode-se perceber a teoria e a técnica psicanalítica como uma obra em permanente (re)construção.1 7 No entanto, os seguintes conceitos teóricos e preceitos técnicos mantêm-se constantes: Inconsciente. A base da psicanálise é a existência do inconsciente, ou seja, de forças alheias à vontade consciente do indivíduo que determinam as escolhas (e pensamentos conscientes) que compõem o dia a dia. Fazem parte do inconsciente as fantasias, os desejos e impulsos, as representações internalizadas de relações objetais e os mecanismos de defesa que protegem o indivíduo do contato indesejável com alguns aspectos da realidade externa e com o conteúdo do próprio inconsciente. Livre associação. Para o desenvolvimento do processo analítico, o paciente deve vir à sessão com a intenção de falar tudo o que vier a sua mente, mesmo que possa parecer vergonhoso ou sem sentido, possibilitando ao analista identi�car o conteúdo latente (inconsciente) por meio de seu discurso. Resistência. Refere-se a forças profundas e alheias à vontade existentes no indivíduo que impedem o contato com o conteúdo inconsciente. A interpretação das resistências é parte essencial do tratamento, possibilitando o acesso ao material reprimido. Transferência. É a reedição no tratamento das relações com objetos do passado ou, segundo alguns autores, a reencenação das relações entre os objetos do mundo interno e o self. Esses objetos, na realidade, são representações das relações originais e con�guram o mundo interno do paciente. Resultam em sua maneira de se relacionar com o mundo e, portanto, com o terapeuta. Contratransferência. É a contrapartida da transferência. Foi descrita por Heimann e Raker, em 1950, como a repercussão da transferência no mundo interno do analista. A contratransferência é considerada, hoje, um dos principais instrumentos de acesso ao funcionamento psíquico do paciente, por se tratar, em suma, de uma comunicação de inconsciente para inconsciente. O entendimento e o manejo desse instrumento requerem, no entanto, conhecimento pessoal e treinamento técnico para que os con�itos internos do terapeuta possam interferir minimamente e para que a dinâmica da transferência/contratransferência (campo analítico) possa ser compreendida ao longo do processo. Neutralidade. Para que seja possível o trabalho analítico, o analista deve evitar apresentar-se como uma pessoa real na vida do paciente.Por exemplo, não pode dar conselhos, emitir julgamentos, falar de sua vida pessoal, tomar partido no con�ito, punir • • ou grati�car o paciente, etc. Mesmo que a relação em si seja sabidamente terapêutica, para que expresse da melhor maneira a dinâmica psíquica do paciente, o analista precisa se oferecer como receptáculo dos con�itos: uma tela (que já não está em branco) em que o mundo interno do paciente vai sendo pintado gradativamente por ele e pelo analista. O objetivo é a “neutralidade possível”, que consiste em o analista manter certa distância em relação à transferência e à personalidade do paciente, à contratransferência, às pressões do meio externo, aos próprios valores e às teorias psicanalíticas, sem perder a naturalidade e a espontaneidade.9 Interpretação. É a ferramenta principal do analista. Seria possível dizer que a �nalidade básica da interpretação segue �el a um pressuposto presente desde os primórdios da psicanálise: tornar consciente o inconsciente. Pode-se entender como interpretação toda intervenção que tem por objetivo explicitar o funcionamento psíquico, seja evidenciando mecanismos defensivos, padrão de relações objetais ou o conteúdo latente (fantasias e desejos inconscientes), a partir do material trazido à sessão por meio da livre associação. A interpretação pode ser transferencial, a relação do paciente com o analista, ou extratransferencial, a relação com outras pessoas. Pode se referir tanto ao aqui e agora como ao passado. Uma interpretação pode também incluir o entendimento do aqui e agora e sua relação com o passado, na tentativa de reconstruir a história do desenvolvimento da personalidade. Um fator de crucial importância, quando se discute o que e em que momento interpretar, é a observação de que a interpretação do conteúdo associado à maior intensidade de afeto durante a sessão é mais efetiva. Esse ponto de “concentração de afeto” é o ponto de urgência e deve ser buscado ao longo de cada sessão. Aliança terapêutica. É a capacidade do paciente de estabelecer uma ligação de trabalho com o terapeuta, incluindo sua motivação em colaborar e sua capacidade de participar ativamente do processo. É dependente dos laços afetivos do paciente com o terapeuta, do acordo mútuo nas tarefas objetivas e do papel do terapeuta como um ouvinte empático. A partir da fundamentação teórica e da utilização da técnica, na prática, uma terapia analítica vai investigar a causa das queixas que trouxeram o paciente a tratamento, a partir de sua história de vida, seus sentimentos, suas fantasias e sua forma de se relacionar. O uso da transferência e da contratransferência e a compreensão da comunicação não verbal por meio do enactment, por exemplo, permitem o acesso a conteúdos da mente inconscientes e muito primitivos que determinam amplamente o funcionamento do indivíduo. Ao mesmo tempo, a utilização da relação terapêutica como ferramenta e a busca de sua compreensão profunda permitem elaborações e desenvolvimentos que não são possíveis em outros tipos de terapia. EXEMPLO CLÍNICO Um homem de meia-idade, pro�ssional bem-sucedido, é encaminhado por seu clínico a um psicanalista devido a uma série de sintomas psicossomáticos que resistem a diversas abordagens psicoterápicas e medicamentosas. Na avaliação, desde logo, �cam evidentes sintomas de ansiedade e depressão leve, bem como traços obsessivos de personalidade. Em sua história, relata uma sucessão de êxitos pro�ssionais, que contrastam com os fracassos repetidos em suas relações afetivas. Duas vezes casado e divorciado, com dois �lhos, é o mais moço de uma família de outro Estado, com pais e irmãos de origem humilde, aos quais se refere com muito desprezo. Nas sessões seguintes, �ca evidente uma estrutura narcisista e uma atitude de superioridade e desprezo que se estende a colegas, subalternos, ex-esposas e �lhos. Quase de imediato, o analista experimenta uma reação contratransferencial de incômodo, sente rechaço e pensa em não aceitar o paciente em análise, até que ele relata um sonho em que aparece uma criança pobre, que vive só em um apartamento de luxo, no andar mais alto, e que teme qualquer contato com os vizinhos. Guiado por essa comunicação simbólica, em que aparece um aspecto central do paciente, negado e projetado nos demais, o analista propõe iniciar o tratamento, com quatro sessões semanais. Para sua surpresa, o paciente aceita e não discute de início as condições do contrato, mas imediatamente desenvolve uma transferência grandiosa e superior, dando ao analista a sensação de que está tendo uma honrosa tarefa, a de atender essa pessoa tão superior a si. O paciente despreza o consultório, que acha humilde em comparação ao que possui, e critica as interpretações do analista, em especial os esboços de alguma abordagem da transferência. Forma-se um campo analítico, em que o baluarte consiste no estabelecimento de uma dupla sadomasoquista, pois o narcisismo do paciente se une às dúvidas do analista sobre sua capacidade de tratá-lo e às próprias vivências infantis de inferioridade. Ao longo dos meses e dos anos iniciais, observa-se uma evolução, que aparece nos sonhos abundantes, em que, de início, há situações de grandeza, depois de perseguição e, mais adiante, de muita tristeza e culpa. O paciente, passada a necessidade narcísica de atacar e desprezar, consegue, aos poucos, relaxar suas defesas e sua rigidez de caráter e permite ao analista penetrar em sua intimidade, antes tão guardada, e ambos conseguem progressivamente entrar em contato com a criança pobre cheia de medos e fantasias de abandono e solidão. Diferentemente de sua versão inicial sobre a suposta pobreza de sua família de origem, surgem indícios de uma troca afetiva rica entre os pais e os irmãos mais velhos e de um trauma infantil não elaborado, que consistiu no fato de o paciente ter precisado passar um longo período vivendo com os avós, pela doença de um dos pais. Desde então, prometeu, inconscientemente, vingar-se, e sua vida foi estruturada nesse sentido: não precisar de ninguém, superar a todos e triunfar. Em cada nova relação, observava-se a compulsão à repetição dessa situação traumática infantil. Inicialmente, na relação transferencial, em que o paciente consegue aceitar aos poucos a dependência do analista, enquanto este mantém a neutralidade possível, e depois nas relações com seus �lhos e com sua família, o paciente vai conseguindo reescrever sua história e a narrativa de sua vida. Conforme seus objetos internos vão sendo transformados, o que aparece nos sonhos e na transferência, o paciente tornou-se capaz de dar um novo rumo a sua vida e recuperar, como sugeria Freud, a capacidade de amar e de trabalhar de forma criativa. MECANISMOS DE DEFESA Por sua importância clínica, os mecanismos de defesa merecem atenção particular. Estudados mais detalhadamente por Anna Freud, constituem padrões de funcionamento mental e comportamental utilizados para lidar com a ansiedade e a angústia provocadas por eventos estressores externos ou internos. Têm a função de manter a homeostase do aparelho psíquico. A onipotência, por exemplo, seria uma forma de lidar com a vulnerabilidade humana e a fragilidade, utilizando um recurso de pensamento e comportamento que estabelece como (pseudo)verdade: “posso tudo, não preciso de ninguém”. A somatização é uma forma de desviar a “energia” do con�ito e da angústia para o corpo, na forma de dor. A idealização parte do pressuposto de que existe uma �gura (por vezes outro, por vezes o self) perfeita, detentora do saber e da verdade. A formação reativa, por exemplo, transforma sentimentos de raiva e inveja em seu oposto, e o indivíduo trata o objeto a quem esses sentimentos se dirigem com extrema benevolência e complacência. Existe uma série de mecanismos de defesa,18 e cada indivíduo utiliza um vasto repertório. No entanto, alguns mecanismos são mais maduros e favorecem a adaptação (p. ex., humor, sublimação, altruísmo, supressão, antecipação), outros são neuróticos (p. ex., intelectualização, deslocamento, repressão,formação reativa), e outros são imaturos, trazendo considerável prejuízo (p. ex., cisão, negação, identi�cação projetiva, atuação, dissociação). A frequência com que se usa cada um deles vai determinar o grau de adaptação e qualidade das relações interpessoais. O nível de consciência aumenta em direção à maturidade, sendo os fenômenos relacionados às defesas imaturas amplamente inconscientes. Como os demais aspectos da personalidade, a preferência por determinada combinação de defesas tende a ser fortemente baseada nos modelos vivenciados na infância. Uma pessoa que teve cuidadores incapazes de conter seus sentimentos quando bebê, que foi submetida a situações de extrema ansiedade, agressividade e/ou negligência na infância, tende a utilizar predominantemente defesas imaturas para expulsar sentimentos intoleráveis, como cisão, dissociação, identi�cação projetiva e atuação, por não ter desenvolvido a capacidade de lidar com esses sentimentos dentro de si (transformar elementos beta em alfa, segundo Bion). O desenvolvimento de recursos mais so�sticados e maduros na mente depende amplamente do aprendizado por meio do modelo do cuidador. “Uma mente se desenvolve a partir de outra mente”: a capacidade de identi�car os sentimentos autênticos do bebê, validá-los como pertencentes ao bebê e lidar com eles é o que permite um desenvolvimento saudável da mente por meio da experiência- compartilhada. A tarefa do analista ou terapeuta psicodinâmico é, em grande parte, semelhante à das �guras da primeira infância: auxiliar o paciente a identi�car, nominar e elaborar sentimentos intoleráveis e/ou inconscientes, bem como diferenciar o eu do outro. INDICAÇÕES Determinar critérios de indicação e contraindicação para os tratamentos psicanalíticos é um ponto técnico crucial para a obtenção de sucesso terapêutico e a elevação de seus índices de efetividade. Análise versus psicoterapia de orientação analítica Embora utilizem ferramentas semelhantes, alguns procedimentos técnicos e o objetivo do tratamento constituem as maiores diferenças entre análise e psicoterapia. Didaticamente,- pode-se dizer que a análise se propõe, por meio de suas características, como frequência, uso do divã, maior cuidado com a neutralidade e foco preponderante na relação transferencial, a alcançar uma intensidade de relação terapêutica (neurose de transferência) que permita a modi�cação do con�ito primário, ou seja, a modi�cação dos padrões de relações introjetados na primeira infância. Entretanto, a psicoterapia buscaria o entendimento desses padrões e melhor aproveitamento dos recursos do paciente, paralelamente ao aumento da capacidade re�exiva, sem necessariamente modi�car o con�ito primário. Um paciente que apresenta as relações atuais e a percepção da realidade amplamente pautadas (e distorcidas) pela con�itiva primária tem indicação de análise, desde que tenha, por exemplo, alguma capacidade de tolerar frustração e de ter controle sobre seus impulsos. Se o con�ito atual guarda algum grau de autonomia, é possível tratá-lo por meio da psicoterapia. Por autonomia, entende-se a possibilidade de modi�car o funcionamento atual, por meio do entendimento sobre si mesmo e pela utilização de defesas mais maduras, sem a modi�cação de�nitiva do con�ito primário (i.e., dos modelos básicos de relação de objeto e os sentimentos, desejos e fantasias correlacionados). Certamente, a con�itiva primária é foco de atenção na psicoterapia, mas na tentativa de compreendê-la dentro do contexto do desenvolvimento da personalidade do paciente. O objetivo é instrumentalizar melhor o indivíduo pela ampliação do entendimento sobre seu funcionamento, resultando no uso de defesas mais maduras e no aprimoramento do padrão de relações objetais. EXEMPLO CLÍNICO Paciente do sexo feminino, 38 anos, divorciada, pro�ssional bem-sucedida com nível superior completo, refere ter levado a vida “com facilidade” até dois meses atrás, quando o �lho adolescente a procurou contando que estava pensando em suicídio. A paciente �cou perplexa com a situação, mas logo procurou ajuda, entendendo que não tinha condições de lidar com aquele “fato”, sendo encaminhada para psicoterapia. Nas sessões de avaliação, �ca claro que o objetivo da paciente no momento está relacionado à compreensão da di�culdade em lidar com a situação do �lho. A paciente recebeu a indicação de psicoterapia duas vezes por semana. Relatou sua infância sem situações traumáticas mais importantes, descrevendo a mãe como uma �gura austera da “alta sociedade” que tinha “tudo sob controle”. Relata que a mãe exigia que os �lhos fossem perfeitos, os quais eram apresentados como seu orgulho quando faziam as coisas “como tinha que ser”. A paciente conta que, embora seus irmãos tenham experienciado “maus momentos” com a mãe, ela nunca teve esse problema, pois era uma “�lha exemplar”. O pai viajava muito devido ao emprego, sendo descrito como frio e exigente, “embora extremamente bem-sucedido”. A paciente foi excelente aluna na faculdade, logo encontrando uma colocação no mercado de trabalho e acumulando promoções até o cargo atual em uma posição de destaque. Descreve vida social ativa e diversas amizades, ainda que, ao longo da terapia, tenha �cado claro que, na verdade, ela não conseguia aprofundar esses relacionamentos. O término do casamento também teria sido em decorrência de uma di�culdade de “se conectar mais profundamente, além de um nível de exigência exagerado”. Inicialmente, a paciente não conseguia entender “o que tinha feito errado com o �lho”, ruminando esse questionamento de forma persistente. Chega com um quadro depressivo de leve a moderado e, apesar das descrições de funcionamento obsessivo e “autossu�ciente” com necessidade expressa de “não depender de ninguém”, desperta contratransferência de pena, tristeza e vontade de ajudar, pois a impressão de que existia uma criança desesperada por ser vista e reconhecida era bastante evidente. A ausência de um reconhecimento mais afetivo e continente pelos pais e a necessidade desesperada de “corresponder às expectativas” como forma de “ser amada” logo puderam ser compreendidas e correlacionadas com a di�culdade da paciente de compreender e mostrar empatia com o momento de vida de seu �lho. As defesas obsessivas e narcisistas puderam ser compreendidas dentro do funcionamento e da história de vida da paciente, a qual atingiu um nível de conhecimento sobre si mesma e funcionamento que pareceu satisfatório depois de um ano e meio de psicoterapia. A paciente, embora ainda carregasse certo receio de desagradar e ser “abandonada”, conseguiu atingir um nível de relação mais próximo com amigos e colegas e se aproximar de seu �lho de forma a apoiá-lo ao longo do �nal de sua adolescência. Paciente e terapeuta avaliaram que, segundo as expectativas da paciente, os objetivos do tratamento haviam sido atingidos, e a paciente teve alta. Patologias específicas Quanto à indicação da terapia analítica para tratamento de psicopatologias especí�cas,- deve-se tomar o cuidado de não generalizar a indicação, à revelia dos aspectos individuais. A experiência clínica comprova que pacientes com transtornos da personalidade obsessiva, evitativa, histérica e narcisista, bem como pacientes com algumas formas de perversão, obtêm notáveis benefícios com tratamento analítico. Algumas patologias, no entanto, tradicionalmente têm sido associadas a desfechos pouco favoráveis, como é o caso do transtorno da personalidade antissocial. Outras, dependendo da gravidade (p. ex., depressão e transtornos de ansiedade, como pânico, ansiedade generalidade e fobia social), podem ser tratadas com psicoterapia ou análise, por haver evidências de igual efetividade da psicoterapia e da psicofarmacologia. Em diversas outras situações, o benefício do tratamento combinado (fármaco mais psicoterapia) tem sido consistentemente apontado.1- 6 Patologias graves da personalidade, como o TPB, têm sido efetivamente tratadas por meio de intervenções psicanalíticas modi�cadas, como aquelas propostaspor Kernberg,19 em que alguns parâmetros, como rígidos “contratos antissuicídio”, são utilizados para tentar suprir graves de�ciências do ego, e por Fonagy, com o uso de técnicas voltadas ao desenvolvimento da capacidade de mentalização do paciente.20 Por �m, vale salientar que, além dos sintomas, o foco da psicoterapia é o indivíduo. Muitas pessoas sem um diagnóstico formal de transtorno psiquiátrico, mas com aspectos disfuncionais em sua vida diária, podem bene�ciar-se enormemente do método. Em suma, o diagnóstico clínico é uma das variáveis a ser considerada, mas não a única, tampouco a mais importante, necessariamente. Condições do paciente Tempo e dinheiro são determinantes de�nitivos para a escolha da terapêutica: a melhor indicação não se sobrepõe à realidade, e paciente e analista (ou psicoterapeuta) devem trabalhar com os recursos disponíveis. A motivação do paciente para esse tipo de terapia também é um fator central. Qualquer tratamento analítico impõe uma premissa contrária à busca atual de soluções “mágicas e velozes”. O mais provável é que haja aumento inicial do sofrimento do paciente, no momento em que ele reconhece sua parte no con�ito. A motivação inicial para o tratamento analítico tem relação direta com a probabilidade de sucesso, apresentando associação com o grau de sofrimento, a capacidade de pensar psicologicamente e a curiosidade psíquica. Além disso, é necessária capacidade de abstração e simbolização, que possibilite que o paciente pense sobre as motivações inconscientes dos próprios pensamentos, sentimentos e condutas. Nesse sentido, além da viabilidade real de realizar o tratamento (disponibilidade de tempo e de recursos), fatores relacionados à personalidade do paciente, como qualidade das relações objetais, grau de adaptação, tolerância à frustração, controle dos impulsos, etc., são muito importantes.21 A aliança terapêutica, que depende, entre outros, dos fatores citados anteriormente, tem sido associada ao desfecho de forma consistente, em particular se medida no início do tratamento.22 Com a evolução da teoria psicanalítica, e considerando as evidências disponíveis que apontam a relação terapêutica como central ao processo de mudança, deve-se avaliar, nos casos que não evoluem da maneira esperada segundo as indicações, aspectos relacionados àquela dupla terapêutica em particular, tendo em mente que alguns pacientes se adaptam melhor a determinados terapeutas e que as duplas modi�cam sua interação ao longo do tempo.23 PSICANÁLISE E PSICOTERAPIA DE ORIENTAÇÃO ANALÍTICA: EVIDÊNCIAS DE EFICÁCIA Atualmente, evidências demonstram de forma consistente a e�cácia e a efetividade da POA com tamanhos de efeito similares aos das psicoterapias ditas “baseadas em evidência”,1-6 enquanto estudos que utilizam neuroimagem e outras medidas de desfecho demonstram consistentemente o efeito da POA na arquitetura cerebral.16 Em relação à psicanálise, desde a década de 1990, contribuições importantes têm sido feitas por meio de estudos de seguimento e ensaios clínicos.1 Entre os principais estudos realizados, as pesquisas publicadas por Rudolf24 e Rudolf e colaboradores,25 no chamado “estudo de Berlim III A e B”, evidenciaram e�cácia da psicanálise e da terapia psicanalítica em reduzir sintomas psíquicos, corporais e traços narcísicos, além de melhorar os relacionamentos interpessoais e o teste de realidade. Publicado em 1996, o estudo prospectivo de Heidelberg, que avaliou 208 pacientes em diferentes modalidades de tratamento analítico, evidenciou melhora da sintomatologia, dos objetivos individuais terapêuticos, da avaliação psicológica e da satis fação com o tratamento.26 Leuzinger-- Bohleber e colaboradores, ao avaliarem 401 pacientes quanto às mudanças psíquicas, à diminuição do número de faltas ao trabalho por doença e à mobilidade social, 6,5 anos após o término da análise ou da psicoterapia, encontraram 70 a 80% de mudanças psíquicas boas e estáveis nos dois grupos.27 Outro estudo que objetivou investigar resultados em psicanálise e terapia psicanalítica, segundo os moldes de um estudo naturalístico, foi o Stockholm Outcome Psychotherapy Project (STOPP), que incluiu 756 pacientes alocados para terapia psicanalítica, psicanálise ou lista de espera de uma ou de outra. Entre os resultados obtidos ao longo de três anos de acompanhamento de 331 pacientes em diversas fases de psicoterapia de longa duração (1 a 2 sessões por semana) e de 74 em psicanálise (4 a 5 sessões por semana), destaca-se a associação da redução dos sintomas (medida pela Escala de Avaliação de Sintomas [SCL-90]) com a frequência e a duração do tratamento, tendo os pacientes em psicanálise obtido os melhores resultados. Os pacientes em psicanálise continuaram melhorando após a alta do tratamento.28 No mesmo sentido, ao acompanhar 36 pacientes de análise, Leichsenring2 detectou uma mudança signi�cativa em uma série de parâmetros, como sintomas, problemas interpessoais, qualidade de vida, bem-estar e problemas especí�cos de�nidos pelos pacientes, com tamanhos de efeito importantes (1,28 a 2,48). Um ano após o término da análise, os parâmetros permaneceram estáveis ou melhoraram.29 Já no caso da POA ou da terapia psicodinâmica, metanálises que reuniram resultados de estudos randomizados realizados nas últimas décadas comprovam de forma consistente a e�cácia delas. Além disso, quando os pacientes são agrupados estritamente por categorias nosológicas, a e�cácia das diferentes psicoterapias é alta.2,3,6,18,29-32 Outro foco importante de interesse é a identi�cação de quais são os fatores do processo psicoterápico que se associam com a efetividade do tratamento. Estudos atuais abordam as características do paciente, do terapeuta, mas predominantemente do vínculo entre a dupla, como fatores associados ao desfecho de tratamento.33 Em uma metanálise que examinou a relação entre abandono de psicoterapia e aliança terapêutica, Sharf, Primavera e Diener34 relataram uma relação moderadamente forte entre esses dois aspectos. Além da evolução da metodologia de pesquisa de resultados e processo, um campo que merece especial atenção é a interação entre psicanálise e neurociência. Já vislumbrada por Freud no início do século passado, tem evoluído de forma consistente na última década, mesmo que sistematicamente pautada por grande controvérsia.15,16 QUESTÕES EM ABERTO E PERSPECTIVAS FUTURAS Neste momento, uma das questões mais inquietantes é o questionamento do papel da psicanálise no mundo atual. As modi�cações culturais, muitas delas resultado da evolução tecnológica, das questões políticas e da massi�cação da informação, geraram um ambiente cultural em que os preceitos psicanalíticos parecem andar, muitas vezes, na contramão. Ao revisar a questão da interação entre psicanálise e cultura, Eizirik35 levanta algumas hipóteses sobre o contexto atual que apontam áreas de possível con�ito com a psicanálise. A evolução galopante dos meios de comunicação propiciou uma disseminação global da informação. Embora inegavelmente haja um aumento aparente das possibilidades de aquisição intelectual, pode-se pensar o ser humano de hoje como soterrado por essa informação, facilmente tolhido do espaço de criação individual. O apogeu da imagem e da propaganda difunde uma resolução rápida de qualquer frustração, bem como uma imagem do que seria o ser humano ideal. Imagem essa, predominantemente pautada justamente em “imagem”, ou seja, no que aparentamos ser. A noção de ser confunde-se facilmente com o que parecemos ser, havendo uma tendência a massi�car preferências, soluções e pensamentos. O a�uxo incessante de imagens afasta o ser humano da necessidade de lidar com o ausente. Paralelamente, em um primeiro momento, as relações humanas se reorganizaram muitas vezes pautadas por vínculos mais �uídos e super�ciais, o que resultou em sentimentos de vazio e insatisfação. O afrouxamento das amarras de scripts de vida de�nidos de modo rígido e o acesso imediato à informação com certeza têm suas vantagens, mas deixaram, pelo menosinicialmente, um espaço ainda não ocupado por valores consistentes. Ante tantas opções e possibilidades, em que os papéis não são mais rígidos ou aparentemente determinados e a vida não possui script, talvez a psicanálise seja um dos melhores instrumentos para a busca de um novo valor emergente: a autenticidade, valor a ser construído no sentido da busca do eu verdadeiro dentro do coletivo. O desenvolvimento das metodologias de pesquisa, no sentido de esclarecer fatores associados ao processo de crescimento e efetividade das intervenções psicanalíticas, a interação da psicanálise com a neurociência e a aplicação do referencial psicanalítico em cenários sociais favorecem cada vez mais a ampliação das possibilidades de uso da psicanálise, propiciando um instrumento efetivo, mas ainda pouco explorado em uma série de contextos. CONSIDERAÇÕES FINAIS A psicanálise busca, no paciente, a expansão da consciência, a liberdade e a capacidade de pensar, a possibilidade de conter as divergências, as ambivalências e a angústia que resulta delas. O encontro analítico não pressupõe o “tudo saber”. Ao contrário, pressupõe o encontro da subjetividade e da “realidade desmentida”, despidas de “preconceitos”, em direção ao aumento da capacidade de relacionamento e da aproximação com o outro. Almeja-se, assim, ampliar o espaço da criatividade, e, dessa forma, tanto como método de tratamento quanto como instrumento para pensar a cultura, a psicanálise se mostra como ferramenta essencial. Além disso, ao levar os construtos psicanalíticos para fora do consultório, pode-se ampliar o entendimento das relações humanas e dos fenômenos de grupo. O uso do referencial psicanalítico, por exemplo, para o entendimento do funcionamento das 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. equipes de saúde e da relação médico-paciente é um campo de potencial interesse, que oferece inúmeras possibilidades de aumento do bem-estar dos indivíduos e de adesão aos tratamentos propostos. REFERÊNCIAS De Maat S, de Jonghe F, de Kraker R, Leichsenring F, Abbass A, Luyten P, et al. �e current state of the empirical evidence for psychoanalysis: a meta-analytic aproach. Harv Rev Psychiatry. 2013;21(3):107-37. Leichsenring F. Are psychodynamic and psychoanalytic therapies e�ective? A review of empirical data. Int J Psychoanal. 2005;86(3):841-68. Shedler J. �e e�cacy of psychodynamic psychotherapy. Am Psychol. 2010;65(2):98-109. Connolly Gibbons MB, Gallop R, �ompson D, Luther D, Crits-Christoph K, Jacobs J, et al. 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