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0 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO 1 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO Apresentação PORQUE E PARA QUE ESTUDAR PSICOLOGIA? Inicialmente devemos considerar que escolhemos um curso de licenciatura que prescinde de conhecimentos acerca do humano. Assim, o estudo da Psicologia é fundamental para todos que fazem opção pela carreira do magistério. Enquanto componente curricular contempla parte dos fundamentos da formação pedagógica possibilitadores da compreensão dos processos de desenvolvimento e aprendizagem do ser aprendente. Tal conhecimento contribui para o êxito no desenvolvimento do processo ensino e aprendizagem. E ainda, devemos reconhecer que conhecimentos oriundos da Psicologia contribuem para formação do professor, para o desenvolvimento de habilidades e competências, além de atitudes e valores vitais à prática docente bem sucedida. Visto que ela oferece elementos teóricos oportunizadores do desenvolvimento da capacidade do professor, investigar a própria atividade e a partir disso redimensionar seus saberes-fazeres. Por fim, vendo a construção do conhecimento como o maior objetivo da educação, entendemos que todas as ações devem estar comprometidas com a eficácia do processo ensino aprendizagem. 2 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO Sobre a Docente Evanilda Teles dos Santos Pedrosa Mestranda em Relações Étnicas e Contemporaneidade ODEERE/UESB. Licenciada em Pedagogia pela Faculdade de Ciências Educacionais (2011). Especialista em Psicopedagogia Institucional e Cínica pela FACE, Especialista em Políticas Públicas da Educação pela FAESB. Especialista em Neuropedagogia e Psicanálise pela FAC. Especialista em Educação de Jovens e Adultos pela FAESB. Atua como Psicopedagoga Clínica. Pesquisadora no Grupo de Estudos e Pesquisas Hermenêuticas sobre Família, Territórios, Identidades e Memória GEHFTIM/UESB. 3 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO SUMÁRIO O CONCEITO DE PSICOLOGIA .......................................................................................................4 O FUNCIONALISMO ..................................................................................................................5 O ESTRUTURALISMO ................................................................................................................5 O ASSOCIACIONISMO ...............................................................................................................5 FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA ESCOLAR ..................................................................................6 PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO: HOJE E AMANHÃ .............................................................................11 VYGOTSKY E O SOCIOINTERACIONISMO ....................................................................................39 4 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO O CONCEITO DE PSICOLOGIA A Psicologia é uma ciência que estuda o comportamento em sua totalidade. Inclui- -se dentre outros aspectos estudados por essa ciência os processos intelectuais/cognitivos e emocionais. Esse estudo se desenvolve em conformidade com um modelo científico estabelecido pela ciência moderna, implantada com a transição da filosofia natural da Antiguidade para o método científico atual. A Psicologia, a exemplo do que ocorreu com as demais ciências humanas, nasceu dos conhecimentos filosóficos que buscavam explicar os fenômenos do universo e a própria natureza humana. Dessa forma a ciência psicológica emerge de duas tradições: a filosofia e as ciências sociais. A psicologia não existia como disciplina científica, e apenas em uma época muito recente, final do século XIX, surgiu o conceito de ciência tal como hoje é de uso corrente. O primeiro indício da Psicologia como campo distinto de pesquisa foi a adoção do método científico como um recurso na tentativa de resolver problemas psicológicos. Nesse fazer em moldes científico diversas afirmações formais contribuíram para que a psicologia começasse a florescer e conquistar o status de ciência. Com isto surgem diferentes posturas de investigação científica, estas posturas são consideradas como abordagens — escolas ou correntes — da Psicologia. Ao abordarmos a construção histórico-filosófica do conhecimento psicológico é importante esclarecer que não conseguimos estabelecer relações exatas de correspondência entre as diversas teorias psicológicas existentes e os pressupostos filosóficos a elas subjacentes. Também é pertinente sinalizar que não há uma linearidade na história da Psicologia, visto que a diversidade teórica que se instalou neste campo do conhecimento, quase que simultaneamente, não permite falar de evolução de uma para outra teoria, mas de oscilações entre uma e outra teoria, em conformidade com a sua base epistemológica e com o contexto sociocultural do lugar de onde emergiram. 5 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO Na tentativa de consolidação científica dos conhecimentos acerca do comportamento humano em seus diversos aspectos, estudiosos desenvolveram formatos investigativos diferentes que deram origem as primeiras abordagens — escolas ou correntes — da Psicologia: o funcionalismo, o estruturalismo e o associacionismo. O FUNCIONALISMO Considerada a primeira sistematização da psicologia foi desenvolvida por William James no contexto da sociedade americana do século XIX - marcada pela exigência de pragmatismo para o desenvolvimento econômico – para essa abordagem a consciência era o centro das preocupações e se buscava compreender seu funcionamento na medida em que o homem a usa em suas atividades adaptativas ao meio. O ESTRUTURALISMO Essa escola foi iniciada por Wilhelm Wundt (1879), considerado o fundador da psicologia científica e dessa corrente denominada de estruturalista, que definia a psicologia como a ciência da consciência. Apesar de iniciada por Wundt, foi seu seguidor Titchener quem usou o termo Estruturalismo pela primeira vez, diferenciando-o do Funcionalismo. Para os seguidores desta corrente, as operações mentais resultam da organização de sensações elementares que se relacionam com a estrutura do sistema nervoso. Wundt é considerado o fundador da Psicologia como ciência também por ter criado o primeiro laboratório para realizar experimentos na área de psicofisiologia. O ASSOCIACIONISMO Teve como principal representante Edward L. Thorndike por ter sido o formulador da primeira teoria da aprendizagem na Psicologia. Ele formulou a Lei do Efeito que foi fundamental à Teoria Psicológica Comportamentalista. O termo associacionismo refere-se à concepção de que a aprendizagem ocorre por associação de ideias – das mais simples às mais complexas. 6 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO A grande importância de conhecermos as três abordagens acima reside no fato que elas foram precursoras das Teorias Psicológicas do Desenvolvimento e Aprendizagem que breve iremos estudá-las. FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA ESCOLAR Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. (Paulo Freire). A Psicologia Escolar tem como lócus de trabalho essencial a escola, apesar da obviedade dessa afirmação, entender a constituição desse espaço de atuação revela e nos convoca ao conhecimento do que fundamenta a práxis na instituição escolar e como o profissional de psicologia pode constantemente (re) pensar o seu papel. Além disso, a compreensão histórica dessa área da psicologia também é importante para a reflexão do fazer do psicólogo escolar. Portanto,antes de adentrarmos nos meandros desses elementos, é importante a compreensão sobre o que é a educação e seus fundamentos básicos, a escola enquanto instituição e a relação com a sociedade. A escola se apresenta como um espaço em que a educação formal vai se constituir por excelência, entretanto, essa última tem uma abrangência muito maior, porque apesar de ocorrer formalmente e majoritariamente na escola, não se restringe a esse ambiente. Acontece desde que chegamos ao mundo por meio da socialização primária com a família, passando pela socialização secundária nas demais instâncias sociais e prossegue por toda a vida, porque estamos constantemente nos relacionando e aprendendo. A educação, assim, é o processo de transmissão da cultura produzida historicamente e pela qual os homens se humanizam (ASBAHR; SANCHES, 2013). Para Giles (1987), a educação seria o meio de enculturação e a forma de conservação da cultura. Com isso, os indivíduos são introduzidos em determinada sociedade, buscando a assimilação da cultura correspondente de modo que se tornem membros dessa ordem social. A sociedade, por sua vez, 7 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO seria o conjunto de povos unidos por uma cultura comum, que é expressa pelo sistema de padrões de comportamentos, modos de pensar, agir, sentir, que se revelam por meio de valores, costumes, artefatos, conceitos, formas de se vestir etc. Ou seja, a cultura, educação e sociedade formam uma relação intrincada que vai permitir aos sujeitos ser e estar no mundo, percebendo-o, agindo e modificando o espaço e a si mesmos. De forma complementar, Maria Lúcia de Arruda Aranha nos mostra em seu livro Filosofia da Educação, de 1996 (cuja primeira edição data de 1989) como o conceito de cultura está entrelaçado ao de trabalho, educação, política/ideologia e sociedade. A cultura, conceito destacado pela autora, se relaciona com a socialização e, por consequência, a humanização. De acordo com Aranha (1996), cultura é toda produção humana que contribui para sua existência, dito de outro modo, diz respeito ao que os homens fazem para se relacionar entre si e com a natureza. Esse contato se dá pelo trabalho que consiste na ação transformadora e consciente da natureza e é justamente isso que faz com que o homem se humanize e se diferencie dos animais. Além disso, acontece de forma social – já que os homens se relacionam para produzir seus meios de subsistência e desenvolvem condutas que são mediadas a partir de símbolos utilizados para representar o mundo, como a linguagem – e dialética, quando ao mesmo tempo em que produzem cultura são influenciados por essa produção, que é assimilada através dos processos de socialização, sendo a educação um deles. Nesse contexto, a autora acrescenta que a educação, essencial para a socialização do homem e sua humanização, não é neutra, ao contrário, por estar inserida na sociedade reproduz igualmente sua divisão de classes e seus embates políticos. Assim, as diversas transformações que acontecem nos sistemas produtivos cada vez mais fazem uma distinção entre o trabalho intelectual e o manual, sendo esse último progressivamente transformado em um trabalho dito alienado, no qual o homem perde o controle sobre o que produz e sobre si mesmo, uma vez que a alienação se dissemina para as demais instâncias sociais, reforçada por discursos ideológicos que visam à manutenção da divisão de classes e prevalência de uma sobre a outra. 8 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO Essa distinção no campo do trabalho afeta diretamente o tipo de educação, público a que se destina, ensino requerido e disseminado nas instituições escolares. Nesse sentido, a educação e a escola podem cumprir uma função que reforça ideologias que aprofundam as desigualdades, mas também pode ser um espaço de embate contra-hegemônico e contribuir para transformação social. A charge a seguir nos dá uma dimensão de alguns propósitos que a educação pode ter e a quem pode servir. No primeiro caso, a educação se mostra como um mecanismo que amplifica as desigualdades sociais e no segundo como instrumento para a modificação da realidade. IMAGEM 11 Essa discussão sobre a função social da educação nos faz revisitar a história, mesmo que brevemente, para compreender como a escola se constitui enquanto instituição privilegiada para transmissão dos conhecimentos socialmente produzidos. De acordo com Pasqualotto (2006) a educação é um processo que nasce quase que ao mesmo tempo em que a própria humanidade, portanto, é influenciada pelo contexto histórico, econômico, político e social e, por isso mesmo, em cada época cumpre uma função ou funções a partir do modo como os homens produzem e reproduzem os meios de vida material, por meio do trabalho, e as relações sociais decorrentes. Nesse sentido, a educação não é neutra, se conforma a partir da organização social em que acontece e não podemos desvinculá-la da realidade e seu contexto. A escola, então, aparece como uma forma de operacionalizar, 1 FONTE: https://belverede.blogspot.com/2017/12/Conceitos-de-Meio-Ambiente-Sustentabilidade-Ecologia- na-educacao-da-criancada- https://belverede.blogspot.com/2017/12/Conceitos-de-Meio-Ambiente-Sustentabilidade-Ecologia-na-educacao-da-criancada- https://belverede.blogspot.com/2017/12/Conceitos-de-Meio-Ambiente-Sustentabilidade-Ecologia-na-educacao-da-criancada- 9 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO gerir e transmitir todo o conhecimento acumulado ao longo da história e se constitui como espaço físico e social de transmissão dos saberes. Entretanto, nem sempre a instituição escola, nos moldes que conhecemos, existiu. Fazendo uma breve análise, percebemos que no início da humanidade, nas comunidades primitivas, a educação acontecia no seio da família e da própria comunidade, sendo voltada para as necessidades de subsistência do grupo. Entretanto, com a sociedade dividida em classes, a educação deixa de ser espontânea e exclusiva da vida privada e torna-se dependente da configuração social, se diferenciando para aqueles que precisavam trabalhar para sobreviver (educação no trabalho ou voltada para ele) e a educação humanista para a classe dominante (nas escolas). Essa educação dualista vai ocorrer em boa parte da história (PASQUALOTTO, 2006), inclusive nos dia atuais. As escolas, então, aparecem como uma construção social e histórica a partir das necessidades de cada contexto, mas que, em geral, se destinam à transmissão da cultura. Agora, qual cultura é ensinada e para quem? De fato, é influenciada pela sociedade em que se insere e foi desenvolvida. Assim sendo, educação e sociedade não se desvinculam. E, apesar do surgimento da escola anteceder a sociedade capitalista, é somente nessa configuração social que adquire status de generalização servindo aos interesses do capital, principalmente, no que diz respeito à disseminação da ideologia dominante (SCAFF, 2013). Cabe acrescentar, como falamos anteriormente, que a escola, embora possa contribuir para reproduzir a ideologia dominante, também pode, contraditoriamente, ser um espaço democrático e de formação intelectual para compreensão da realidade. O trecho a seguir nos ajuda a fazer essa visualização: A escola pode ser considerada como uma instituição gerada pelas necessidades produzidas por sociedades que, por sua complexidade crescente, demandavam formação específica de seus membros. A escola adotou ao longo da história diversas formas, em função das necessidades a que teria que responder, tendo sido, em geral, destinada a uma parcela privilegiada da população, a quem caberia desempenhar funções específicas, articuladas aos interesses dominantes de uma dada sociedade. Essa realidade deve ser, no entanto, compreendidatambém a partir de suas contradições, sobretudo a concepção de escola como instância que se coloca hoje como uma das condições fundamentais para a 10 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO democratização e o estabelecimento da plena cidadania a todos, e que, embora não seja o único, é certamente um dos fatores necessários e contingentes para a construção de uma sociedade igualitária e justa. Sob essa perspectiva, a escola, tal como nós a concebemos, tem como finalidade promover a universalização do acesso aos bens culturais produzidos pela humanidade, criando condições para a aprendizagem e para o desenvolvimento de todos os membros da sociedade (ANTUNES, 2008, pp. 469-460). É a partir dessa conjuntura e fundamentos da educação, e da sua sistematização na escola, que o Psicólogo Escolar vai intervir. Como falamos da relação entre escola e sociedade, o mesmo ocorre para a psicologia. Não é possível desvincular do contexto social, político e econômico, pois assim como a educação, a construção histórica da profissão serviu a propósitos específicos. Dessa maneira, a educação não é neutra, tampouco a ciência. Nesse momento, nos interessa, então, definir e delimitar o campo da Psicologia Escolar e Educacional. De acordo com Martinez (2010), a relação da Psicologia com a Educação assume formas diversas, porque a educação acontece em diferentes espaços e níveis. Assim sendo, não se resume ao trabalho executado no âmbito escolar. Ao mesmo tempo, essa instituição assume lugar privilegiado na nossa sociedade atual se constituindo como um dos principais espaços em que os processos educativos intencionais e formais acontecem. Para a autora, o que se denomina Psicologia Escolar, comparando com outros ramos da Psicologia – e, por isso, pensando em termos de especificidade dessa área – depende de dois elementos: o primeiro seria o seu objetivo, o qual seja, caberia à Psicologia Escolar contribuir para otimizar os processos educativos que ocorrem na escola e compreender os diversos elementos que os atravessam; e, o segundo elemento seria o próprio espaço de atuação. Nesse sentido, a Psicologia Escolar não se define a partir de saberes próprios desse ramo, mas mediante a atuação do psicólogo na escola e a necessidade de utilização de múltiplos saberes dentro do escopo da ciência psicológica e considerando a complexidade e multideterminação do campo escolar. Assim sendo, dedicaremos a próxima unidade para explicitar o percurso histórico da constituição dessa área enquanto ramo da Psicologia e, a 11 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO partir desse resgate, compreender nas unidades subsequentes como efetivamente esse profissional pode contribuir para pensar e repensar os processos educativos escolares e a constituição da própria educação enquanto prática social, libertadora e crítica. PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO: HOJE E AMANHÃ José Fernando Bitencourt Lomônaco2 Em resposta à questão A Psicologia pode melhorar o ensino? diferentes opiniões foram manifestadas ao longo dos anos. Em 1899, William James, numa palestra aos professores – TalkstoTeachers – afirmava com convicção: "... O ensino, de fato é uma arte. A ciência da psicologia não pode prestar-lhe a menor ajuda no tocante às estratégias específicas da instrução. ―O que teria levado William James a negar de forma tão peremptória, a possibilidade da Psicologia contribuir para a melhoria do ensino? Talvez o conjunto de conhecimentos e o objeto de estudo da Psicologia no final do século passado não propiciasse mesmo condições de contribuir efetivamente para o ensino em sala de aula. Porém, em nossos dias, tal colaboração é possível e fecunda? Ainda que alguns autores pareçam duvidar desta possibilidade, fica-me a impressão de que a maior parte dos estudiosos admite atualmente que a aplicação de conhecimentos psicológicos para a compreensão dos processos de desenvolvimento e aprendizagem do aluno não é apenas possível, mas altamente desejável, para não dizer indispensável. Travers (1972), por exemplo, mostra-se bastante otimista quando analisa as possíveis contribuições da Psicologia à Educação. Referindo-se 2 Doutor em Educação pela USP, Mestre em História e Filosofia da Educação pela PUC/SP, Pedagogo, Filósofo, responsável pelo Libertad– Centrode Pesquisa, Formação e Assessoria Pedagógica. 12 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO especificamente à influência da Psicologia da Aprendizagem no ensino escolar, afirma: Desde há muito tempo, a Psicologia da Aprendizagem tem sido considerada como tendo a chave para melhorar a educação. A esperança era a de que, com o desenvolvimento de uma ciência da aprendizagem, as crianças seriam capazes de aprender mais em menos tempo. (...) Algumas das previsões mais otimistas a respeito do impacto de uma ciência da aprendizagem vieram dos psicólogos. Essas previsões prometiam que a nova ciência da aprendizagem produziria uma dramática revolução na educação, mas as mudanças resultantes na educação não tiveram de fato, este caráter. Elas foram lentas e contínuas, embora altamente significantes ao longo deste meio século. Todavia, nem o leigo, nem o cientista, precisam ficar desapontados pelo fato da emergente Psicologia da Aprendizagem não ter produzido uma revolução educacional, pois a lenta evolução da educação que ela produziu foi de grande importância (p. 3). Considera este autor, pois, que o caráter gradual das mudanças em educação, provocadas pelo impacto da Psicologia da Aprendizagem, é o que torna difícil a uma geração reconhecer as mudanças ocorridas. Como exemplo, lembra com propriedade as profundas mudanças ocorridas no mobiliário das modernas salas de aulas. Relata-nos que, em 1896, quando John Dewey fundou sua escola experimental na Universidade de Chicago, teve grande dificuldade em comprar cadeiras móveis para as salas de aulas. Hoje, a dificuldade seria exatamente a oposta, qual seja, a de encontrar aquelas tradicionais cadeiras fixadas no assoalho das salas de aulas. Tal mudança atesta o reconhecimento da importância da flexibilidade no planejamento da instrução, incompatível com arranjos físicos que prendem os alunos em suas carteiras. Outros aspectos são ainda lembrados por este autor. A criança que algumas décadas passadas não conseguia aprender era rotulada de preguiçosa, desmotivada, sem força de vontade, burra e outros adjetivos do gênero, buscando-se a causa do fracasso escolar inteiramente no aluno e absolvendo a instituição escolar de quaisquer responsabilidades pelo mau desempenho dos estudantes. 13 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO Hoje, certamente, psicólogos e educadores são muito mais críticos em relação ao papel da escola no tocante ao fracasso escolar. Também uma comparação entre o material escolar atualmente utilizado pelos alunos com o de décadas atrás revela enormes diferenças. Ao invés de livros-texto pobremente impressos, com poucas figuras, reduzidíssimo uso de cores e assuntos muito distantes do interesse dos alunos, o que vemos hoje são livros belamente impressos, repletos de figuras coloridas, nível de dificuldade de leitura controlado, assuntos mais próximos ao interesse dos alunos, com inclusão de jogos e exercícios que motivam a revisão do material estudado. Da mesma maneira, as disciplinas ou matérias que fazem parte do currículo foram selecionadas em função de sua presumível importância para a formação escolar do aluno, e não visando disciplinar a mente e desenvolver determinadas capacidades, tal como propugnava a influente Teoria da Disciplina Formal, vigente no início do século e tão bem refutada pelos trabalhos de Thorndike. Enfim, as escolas mudaram e muito desta mudança pode legitimamente ser atribuída aos trabalhos de uma legião de psicólogospreocupados com os processos de desenvolvimento e aprendizagem. A Psicologia e a Melhoria da Educação Mas, de que maneira a Psicologia exerceu sua influência sobre a prática escolar? Poder-se-ia pensar que o impacto da Psicologia na Educação decorreu de estudos feitos por psicólogos no ambiente escolar, procurando identificar as múltiplas variáveis das quais o comportamento de ensinar/aprender é função. Entretanto, como salienta Travers (1972), quando se faz um retrospecto histórico das contribuições da Psicologia para a Educação, verifica-se com certa surpresa, que muito pouca mudança pode ser atribuída ao trabalho direto de psicólogos nas escolas. Na verdade, os três psicólogos cujo trabalho produziu o maior impacto nas escolas, quais sejam Thorndike, Skinner e Piaget, não realizaram pesquisas em salas de aulas, preferindo desenvolver conhecimento no laboratório ou através da observação natural. O conhecimento desenvolvido por Thorndike levou à elaboração de livros-texto e dicionários escolares, à modificação de trabalhos literários de 14 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO modo a torná-los legíveis para as crianças e ao planejamento de procedimentos para o ensino de aritmética e álgebra. A partir do trabalho de Skinner, muitas aplicações foram derivadas: instrução programada, sistema personalizado de instrução, técnicas de modelagem de respostas adequadas, exclusão da punição no processo de ensino, sistema de vales, etc. Inegável também é a profunda influência das descobertas de Piaget em sala de aula: elaboração de programas para o ensino de ciências e matemática, a utilização dos jogos no contexto escolar e, atualmente (pelo menos em nosso meio), a avassaladora presença do construtivismo como teoria orientadora do processo de alfabetização. Pode-se contrastar tal sucesso com o relativo fracasso daqueles que, em tempos mais recentes, propõem um ataque frontal aos problemas de caráter psicológico pesquisando diretamente nas escolas e, frequentemente, conduzindo programas de pesquisas que envolvem altíssimo custo financeiro. A realidade parece ser a de um retorno muito mais modesto do que o proporcionado pelas descobertas oriundas dos laboratórios. Todavia, com demasiada frequência se espera dos cientistas de laboratório que forneçam uma série de receitas prontas para uso imediato em sala de aula. Este certamente não é o caso e revela um desconhecimento por parte do leigo a respeito da maneira pela qual as descobertas da ciência são aplicadas na vida diária. Lembra-nos Travers (1972) que no início, a física newtoniana não proporcionava aos engenheiros prescrições que estes profissionais pudessem aplicar direta e imediatamente na construção de pontes, mas forneceu um conhecimento que tomou a construção de pontes um procedimento mais efetivo e sistemático do que o que vinha sendo utilizado nos séculos anteriores. O construtor de pontes não mais precisava adivinhar onde as pressões mais fortes iriam ocorrer; isto poderia ser determinado aplicando os princípios da física. Ou seja, a física proporcionou aos engenheiros maneiras de pensar a respeito da construção de pontes e algumas técnicas gerais de solução de problemas. Proporcionou também, uma linguagem técnica que ele poderia usar para descrever precisamente o que acontece quando uma carga é aplicada à ponte. 15 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO O construtor poderia deixar de lado a linguagem imprecisa e confusa da vida diária e descrever precisamente as especificações do projeto. O que o autor quis mostrar com este exemplo é que a construção de pontes não passou por uma súbita revolução: as mudanças inicialmente foram sutis, sendo percebidas mais pelos especialistas do que pelo leigo. A analogia entre a física e a engenharia parece aplicar-se igualmente bem à relação entre a Psicologia e a Educação. O impacto das descobertas psicológicas oriundas dos laboratórios também foi lento e sutil, mas, ao longo dos anos, provocou substanciais mudanças nas práticas escolares. Analisar tal relação em nossos dias e hipotetizar o futuro dessa relação é o tema e o objetivo do presente trabalho. Psicologia e Educação: Hoje Nosso século testemunhou o aparecimento de três grandes conjuntos de teorias psicológicas que refletem a maneira pela qual os psicólogos veem o papel da escola no desenvolvimento psicológico das crianças. Um primeiro conjunto vê a escola como um local privilegiado para a aplicação de conhecimentos derivados de estudos e pesquisas realizados fora do âmbito escolar. Inserem-se neste grupo, a meu ver, as concepções behavioristas e piagetianas. De acordo com essas concepções, embora o desenvolvimento possa ocorrer fora da escola, pois o fundamental não é o local, mas os princípios e sua correta aplicação, a escola, face a sua organização que permite reunir muitas e diferentes crianças num mesmo espaço, possibilita avaliar a aplicação de princípios psicológicos a um grande número de sujeitos. Uma segunda maneira de encarar a relação entre a Psicologia e a Educação, acredita que a escola promove o desenvolvimento psicológico. Ou seja, o trabalho realizado dentro das salas de aulas no processo ensino- aprendizagem, favorece o desenvolvimento psicológico em vários aspectos sociais, afetivos e cognitivos. Um exemplo desse tipo de concepção é, a meu ver, a teoria sócio histórica de Vygotsky, que salienta a importância do ensino escolar para o desenvolvimento de conceitos científicos. 16 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO Finalmente, a terceira maneira de ver a relação Psicologia-Educação, defende que a escola não é um elemento decisivo para o desenvolvimento psicológico, podendo até mesmo atrapalhá-lo. Inserem-se claramente dentro desta concepção as críticas de Rogers que ele denomina de escola tradicional e algumas vertentes da psicanálise. Esta maneira de encarar a atuação da psicologia dentro das escolas, em nossos dias, refletiu-se no aparecimento de três grupos de teorias psicológicas aplicadas ao ensino, quais sejam: o behaviorismo, o cognitivismo e o humanismo. Vejamos, brevemente, algumas de suas características e implicações. A abordagem behaviorista, fiel a suas origens históricas, enfatiza grandemente o papel do ambiente no desenvolvimento dos organismos, limitando-se ao estudo dos comportamentos manifestos e mensuráveis, descartando à consideração de eventos internos que ocorrem na mente do indivíduo e atuariam como mediadores entre os estímulos e as respostas. Não há dúvida de que as implicações desta teoria para o ensino escolar foram muito grandes e diretas. Ela estimulou o aparecimento de uma tecnologia educacional que desenvolveu um conjunto variado de instrumentos para auxiliar o professor a resolver os múltiplos problemas de sala de aula. Como exemplos ilustrativos, temos a Instrução Programada e o Sistema Personalizado de Instrução, que buscaram dar ao professor instrumentos que garantissem a aprendizagem efetiva de informações por todos os alunos, respeitando-se as diferenças individuais refletidas no ritmo de aprendizagem de cada aluno. Propiciou também o desenvolvimento de variadas técnicas de controle do comportamento, tal como o Sistema de Vales, que visam dar ao professor recursos para enfrentar problemas comuns de sala de aula - a indisciplina, a falta de motivação dos alunos, a ausência de hábitos desejáveis de higiene, limpeza, pontualidade etc. Contrapondo-se a formulações extremamente vagas e imprecisas de objetivos educacionais características dos manuais escolares, esta tecnologia exige que o psicólogo e/ou professor explicitem claramente os objetivos a serem atingidos, os comportamentos a serem modificados e a maneira pela qual os resultados serão avaliados. 17 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO Em funçãoda grande influência e do prestígio que o comportamentalismo desfrutou na psicologia mundial e brasileira alguns anos passados, tais instrumentos difundiram-se rapidamente em nosso meio. Livros- texto sob forma de Instrução Programada e manuais para professores eram abundantes, cursos de difusão eram ministrados a professores, artigos em revistas especializadas e de divulgação relatavam a aplicação de técnicas comportamentais em sala de aula. Fazendo-se hoje um retrospecto, caberia perguntar o porquê do relativo esquecimento de recursos e procedimentos outrora tão prestigiados. A concepção cognitivista enfatiza os processos internos através dos quais o mundo exterior é representado dentro do organismo. Contrariamente à abordagem compol1amentalista, enfatiza a importância dos eventos organismos que intervém entre o estímulo e a resposta, pois, como salientam Spinillo e Roazzi (1989): [...] a resposta dada a determinada situação-estímulo... não depende apenas do estímulo apresentado, mas de processos mentais internos presentes na mente de um indivíduo em um momento determinado do seu desenvolvimento e em função de elaborações anteriores que tenham sido efetuadas (p.22). Em termos de implicações para a educação, poderemos dizer que a concepção cognitiva foi tão ou até mais fértil do que a comportamentalista. É inegável a esmagadora influência que as ideias de Piaget tiveram e ainda têm como teoria explicativa dos vários aspectos do desenvolvimento infantil. Algumas pesquisas têm demonstrado que os professores, quando indagados a respeito de suas predileções teóricas, apontam predominantemente a concepção piagetiana como a que eles consideram mais adequada para orientar sua ação pedagógica (embora na prática, suas ações não pareçam ser orientadas por ela). Duas outras concepções, advindas da psicologia norte-americana, influenciaram também, ainda que menos intensamente que a teoria piagetiana, a educação escolar. Refiro-me às ideias de Jerome Bruner e David Ausubel sobre o desenvolvimento cognitivo e a aprendizagem em sala de aula. Em 18 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO ambos os casos, é patente a preocupação em derivar do conhecimento psicológico princípios orientadores da ação do professor. Curiosamente, os princípios derivados não levaram esses autores a percorrer os mesmos caminhos e a fazer as mesmas recomendações. Se, de um lado, Bruner enfatiza a aprendizagem por descoberta, levando o aluno a indutivamente formular princípios e regras gerais, de outro lado, Ausubel defende a transmissão do conhecimento caminhando do geral para o particular, das definições para os exemplos, à moda de uma boa aula expositiva. Atualmente, esta abordagem vem se interessando grandemente pelos processos através dos quais a informação é transformada, armazenada, recuperada e aplicada. Parte substancial dos psicólogos cognitivos vem se dedicando desde a década de 50, a procurar entender os processos envolvidos no processamento da informação. Em função de tais estudos, têm sido postulados mecanismos responsáveis pela codificação, armazenamento e recuperação da informação. Os estudos são numerosos e sofisticados, porém, as conclusões de tais pesquisas, a meu ver, ainda não se concretizaram em princípios aplicáveis à escola. Finalmente, a orientação humanística preocupa-se fundamentalmente com os aspectos afetivos da aprendizagem. Embora afirmando uma preocupação com o ser humano como um todo, sem privilegiar o intelecto, na verdade a ênfase recai sobre aspectos não-cognitivos. O ser humano é visto como possuindo um potencial a ser desenvolvido, com uma natureza que tende naturalmente para a auto realização desde que possa desenvolver-se em ambiente não-punitivo e não restritivo. De maneira geral tais concepções, dentre as quais a aprendizagem centrada no aluno postulada por Rogers, é o exemplo mais conspícuo, vê a escola tradicional como um ambiente que impede a auto realização do aluno e o seu crescimento pessoal. Na verdade, a abordagem humanista não deu origem a qualquer teoria de aprendizagem. No máximo, e com alguma boa vontade, a concepção rogeriana poderia ser vista mais como uma teoria de personalidade do aluno que aprende, com ênfase especial à interação professor-aluno. 19 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO O que esse tipo de abordagem produziu foram propostas, geralmente rotuladas como utópicas e/ou revolucionárias, de uma total reformulação na instituição escolar subvertendo completamente os papéis de professores e alunos. Até onde chega meu conhecimento, não tenho notícias de escolas que tenham aplicado integralmente a proposta rogeriana, com exceção da conhecidíssima Summerhill que, na verdade, é anterior ao próprio Rogers. Como se pode depreender desta breve exposição, tais orientações tenderam naturalmente a concentrar sua atenção preferencial em um dos três aspectos que fazem palie da natureza humana: a ação, a cognição e a emoção. Nisto reside, a meu ver, suas qualidade e suas limitações. Qualidades na medida em que isto conduziu naturalmente a uma análise aprofundada de cada uma das facetas privilegiadas pelas concepções em voga - o comportamento ou desempenho pelo behaviorismo, a cognição pelo cognitivismo e os aspectos afetivos pelas abordagens humanistas. Limitação porque, embora sem negar frontalmente a importância dos outros dois fatores, na prática, concentraram sua preocupação em apenas um deles. O resultado, como não poderia deixar de ser, é um retrato imperfeito e incompleto do aluno que aprende. Necessárias se fazem abordagens mais abrangedoras que, de maneira integrada e equilibrada, levem em conta esses três grupos interpenetrantes de fatores envolvidos na aprendizagem escolar. No que toca especialmente à Psicologia Escolar, estes últimos anos testemunharam uma acesa discussão entre visões conflitantes do papel do psicólogo nas escolas. Esta discussão dividiu a comunidade entre aqueles que esperam do psicólogo uma atuação de caráter mais técnico nas escolas, geralmente de avaliador das capacidades dos alunos, e aqueles mais atentos aos seus determinantes sociais e institucionais. Como uma decorrência do trabalho daqueles que advogam uma atuação de caráter mais técnico, temos os controvertidos laudos psicológicos que tanta celeuma têm provocado entre psicólogos e educadores pelas consequências nefastas para a vida futura dos alunos. Correspondendo frequentemente aquilo que as escolas esperam dos psicólogos, muitos profissionais têm se esmerado no trabalho de avaliação intelectual através de uma variedade de testes, nem 20 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO sempre conscientes da imprecisão e da relatividade das medidas psicológicas, assim como do próprio conceito de inteligência. Ainda que o objetivo de tais esforços pareçam, pelo menos à primeira vista meritórios, qual seja, o de colocar alunos em classes especiais nas quais eles tenham melhores condições de aprendizagem, na vida real o que frequentemente ocorre é a estigmatização de alunos para todo o restante de sua vida escolar. Contrapondo-se a esta visão tecnicista, outra vertente da Psicologia Escolar defende de maneira enfática que o psicólogo só pode entender realmente a escola e o aluno se estiver atento à dinâmica da instituição. Neste sentido, seu trabalho é muito menos o de um aplicador de testes e muito mais o de alguém voltado ao trabalho com professores, procurando entender e explicitar as expectativas dos mesmos em relação a alunos de classes economicamente desfavorecidas, analisando a forma pela qual a instituição se apropria da informação que lhe é trazida, discutindo com o corpo docente as múltiplas formas de queixa escolar, procurando facilitar o trabalho em equipes multidisciplinares, enfim, atuando muito mais junto ao professordo que no trabalho de avaliação dos alunos. Essas duas formas de atuação e de concepção do papel do psicólogo escolar coexistem, às vezes em franco antagonismo. Conciliar ambas as orientações, reduzindo o antagonismo latente, é tarefa urgente nesta área de estudo e aplicação do conhecimento psicológico. São essas, no meu entender, algumas interfaces entre a Psicologia e a Educação que podem ser atualmente identificadas nas escolas. Mas, e o amanhã? Que tendências se delineiam presentemente e quais os seus reflexos sobre a Psicologia Escolar, Educacional e da Aprendizagem no início do próximo século? É o que será considerado, a seguir. Psicologia e Educação: Amanhã É um truísmo afirmar que, a partir do presente, é possível se vislumbrar o futuro. Ainda que possível, as previsões certamente diferirão entre diferentes estudiosos. E isto porque ela implica em diferentes pontos de partida, 21 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO representados pelo conhecimento e familiaridade do estudioso com sua área de interesse, além de envolver certa dose de subjetividade. Inicio, pois, essas conjecturas sobre os caminhos futuros da relação Psicologia-Educação a partir desta consideração, enfatizando o caráter idiossincrático dessas colocações, uma vez que elas resultam fundamentalmente de minhas experiências pessoais ao longo de muitos anos de docência universitária, trabalhos de campo e reflexões teóricas. Um primeiro aspecto que me chama a atenção é a renovação do interesse pela influência das primeiras experiências sobre o desenvolvimento do organismo e suas poderosas implicações para a futura aprendizagem. Desta promissora interface entre a Psicologia e a Biologia, ou mais especificamente com as Neurociências, resultaram descobertas importantíssimas a respeito da existência de períodos críticos para o desenvolvimento das capacidades humanas, ou seja, de períodos nos quais os organismos estão particularmente predispostos a beneficiarem-se da estimulação ambiental. Se o organismo não for adequadamente estimulado na época adequada, serão necessários esforços cada vez maiores para produzir alterações num caráter – se é que podem ser produzidas – sendo também cada vez mais alto o custo emocional acarretado. Tais períodos, curiosamente denominados de janelas de oportunidades, já foram identificados para diferentes capacidades. Assim, para a visão, o período crítico encerra-se definitivamente por volta dos dois anos, para música vai dos 03 aos 10 anos, para o desenvolvimento motor, do nascimento ao quarto ano de vida, para matemática e lógica do primeiro ao quarto ano de vida etc. Referi-me, no início do parágrafo anterior, ao renovado interesse por esse tópico. Empreguei intencionalmente esta palavra para salientar que o interesse não data de nossos dias, uma vez que podemos identificar esta preocupação no começo da década de 60. São exemplos deste interesse a análise de 1000 estudos longitudinais de crescimento, realizada por Bloom, relatada no livro Estabilidade e Mudança nas Características Humanas, publicado em 1964, assim como as observações do desenvolvimento de crianças criadas em orfanatos de Teerã, realizadas por Dennis. 22 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO O que diferencia, todavia, esses primeiros estudos dos atualmente realizados é a possibilidade trazida por recursos tecnológicos que permitem imagens muito precisas de cérebros de pessoas vivas executando atividades da vida diária. Graças a tais recursos, ampliou-se enormemente o conhecimento sobre o desenvolvimento cerebral e a importância dos estímulos ambientais em tal desenvolvimento, podendo-se afirmar presentemente com bastante segurança, que as primeiras experiências desempenham um papel fundamental na formação da circuitaria ou rede cerebral. Na verdade, sem tais estimulações, o cérebro simplesmente não se desenvolveria. Como decorrência direta de tais descobertas, avulta a importância do ensino pré- primário. A pré-escola assume assim um papel privilegiado como promotora do desenvolvimento infantil, não apenas nos seus aspectos sociais e afetivos, mas também e principalmente cognitivos. Prevejo que nas próximas décadas psicólogos e educadores se debruçarão sobre este período de vida e sobre este ciclo escolar de maneira muito mais intensa e com muito mais interesse do que até agora. Uma minha outra impressão é a de um avanço contínuo nas concepções cognitivas de desenvolvimento e aprendizagem e de um refluxo da abordagem comportamentalista, não obstante as várias e diferentes propostas de liberalização desta concepção teórica. Se pudermos avaliar o crescimento de uma área de estudos pelo número de revistas especializadas e pela quantidade de livros publicados a cada ano, o quadro que se apresenta é o de uma área pujante e em contínua expansão. No dizer de Eysenck e Keane (1994): Se for possível julgar a saúde de uma disciplina acadêmica pelo número de seus partidários, então a psicologia cognitiva, com toda certeza está vicejante. (...) O tamanho deste exército que marcha sob o estandarte da psicologia cognitiva pode ser atribuído, em grande parte, á abrangência cada vez maior com que o termo é utilizado. Praticamente todos aqueles que possuem interesse sobre percepção, aprendizado, memória, linguagem, formação de conceitos, resolução de problemas ou pensamento intitulam-se psicólogos cognitivos, apesar da grande diversidade de abordagens experimentais e teóricas encontradas nestas áreas (p.7). 23 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO Parte desta expansão acredito eu, deve-se ao desenvolvimento e apropriação pela Psicologia da teoria da informação, que vê o aprendiz como um ativo processador de informações. Como salienta Pfromm Netto (1987): A pesquisa e a teorização atuais em aprendizagem tendem a realçar cada vez mais os aspectos cognitivos desta, atribuindo importância central às características de aquisição de conhecimento e processamento de informação, em substituição à tônica comportamental dominante na literatura científica das décadas de trinta e quarenta (p. 13). Outro aspecto que, no meu entender, atesta o vigor do cognitivismo dentro da psicologia contemporânea é a inclusão da Psicologia Cognitiva como uma das mais importantes disciplinas integrantes da Ciência Cognitiva, esse esforço multidisciplinar que propõe-se investigar a cognição humana, em seus múltiplos aspectos, através das contribuições de diferentes áreas de conhecimento afins, tais como a Linguística, as Neurociências, a Filosofia, a Inteligência Artificial etc. Esta tendência de estudar um fenômeno não mais de forma isolada, mas aproveitando-se das contribuições de diferentes disciplinas deverá, acredito eu, aprofundar-se ainda mais no futuro próximo. Vimos anteriormente, quando falamos da importância das primeiras experiências para os organismos, a profunda implicação das descobertas dos neurocientistas para a compreensão do desenvolvimento de capacidades humanas e para a sugestão de atividades na pré-escola. Aprender a trabalhar em grupo, em equipes multidisciplinares, aproveitando-se de tudo aquilo que realmente interessa ao nosso trabalho e desconsiderando o que é por demais específico, é tarefa a que o psicólogo não pode mais furtar-se. Chama-me também a atenção, a transformação por que vem passando o conceito de inteligência em nossos dias. Refiro-me particularmente às ideias do psicólogo norte-americano Howard Gardner que, em 1983, publicou um influente livro denominado Estruturas da Mente: A Teoria das Inteligências Múltiplas, no qual defende a existência de vários e diferentes tipos de inteligência, quais sejam: linguística, musical, lógico-matemática, espacial, corporal-cinestésica e pessoal. Um dos grandes méritos desta postulação, a meu ver, é a de ampliar consideravelmenteas competências do ser humano, 24 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO enfatizando capacidades pouco consideradas e/ou valorizadas na vida diária em geral e na escola em particular. Ao postular a existência de inteligências outras que não as tradicionais inteligências verbais e lógico-matemática, o autor abre caminho para uma consideração mais abrangente do ser humano em geral e do aluno em particular. Mostrando ao psicólogo e ao professor que há muito mais talentos num aluno do que eles costumam admitir, esta concepção teórica pode contribuir para que o aluno seja visto de maneira mais favorável, uma vez que de maneira geral, cada um de nós apresenta uma ou mais dessas inteligências bem desenvolvidas. Reconhecer novas competências e valorizá-las, também pode ajudar no sentido de evitar ou minimizar a estigmatização de alunos com baixos escores nos teste tradicionais de inteligência, que avaliam predominantemente capacidades verbais e lógico-matemáticas – e nem sempre de maneira adequada, mormente para aqueles alunos provenientes de classes sociais economicamente desfavorecidas. Talvez o psicólogo escolar encontre nesta teoria uma maneira de ele próprio encarar de forma mais positiva o desempenho de crianças pobres, de transmitir esta mensagem aos professores, contribuindo, em última análise, para aumentar a autoestima dos alunos. Em suma, ao invés dos criticados laudos psicológicos, que salientam o que se pensa que o aluno não tem, o que se propõe é a consideração de um repertório maior e mais diversificado de capacidades, que retrate de maneira mais justa o aluno de nossas escolas em geral e das escolas da periferia em particular. Como anteriormente salientado, as diferentes abordagens aplicadas ao ensino escolar, desenvolvidas nestas últimas décadas, têm se concentrado predominantemente em um aspecto da natureza humana: a ação, a cognição e a emoção. Necessário se faz o desenvolvimento de concepções mais abrangentes, que retratem as maneiras pelas quais esses diferentes aspectos se interrelacionam no aluno que aprende. Não obstante, o generalizado reconhecimento da importância de cada um dos fatores de per se, não diviso no horizonte próximo nenhum esforço teórico mais sério no sentido de explicar o processo ensino-aprendizagem levando em conta o peso relativo de cada um dos fatores. A menos que tal 25 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO teoria seja desenvolvida, continuaremos a ver o aprendiz de maneira parcial e incompleta, ou como um organismo que apenas atua sobre o meio, ou como um ser que unicamente processa informações e as representa internamente sob a forma de conhecimento ou, finalmente, como alguém que somente aprende de maneira significativa se impelido pelas emoções. A complexidade do ser humano merece certamente uma teoria mais completa [...]. O Desenvolvimento Humano na Teoria de Piaget Márcia Regina Terra3 O estudo do desenvolvimento do ser humano constitui uma área do conhecimento da Psicologia cujas proposições nucleares concentram-se no esforço de compreender o homem em todos os seus aspectos, englobando fases desde o nascimento até o seu mais completo grau de maturidade e estabilidade. Tal esforço, conforme mostra a linha evolutiva da Psicologia tem culminado na elaboração de várias teorias que procuram reconstituir, a partir de diferentes metodologias e pontos de vistas, as condições de produção da representação do mundo e de suas vinculações com as visões de mundo e de homem dominantes em cada momento histórico da sociedade. Dentre essas teorias, a de Jean Piaget (1896-1980), que é a referência deste nosso trabalho, não foge à regra, na medida em que ela busca, como as demais, compreender o desenvolvimento do ser humano. No entanto, ela se destaca de outras pelo seu caráter inovador quando introduz uma 'terceira visão' representada pela linha interacionista que constitui uma tentativa de integrar as posições dicotômicas de duas tendências teóricas que permeiam a Psicologia em geral - o materialismo mecanicista e o idealismo - ambas 3 Doutora em Lingüística Aplicada/IEL 26 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO marcadas pelo antagonismo inconciliável de seus postulados que separam de forma estanque o físico e o psíquico. Um outro ponto importante a ser considerado, segundo estudiosos, é o de que o modelo piagetiano prima pelo rigor científico de sua produção, ampla e consistente ao longo de 70 anos, que trouxe contribuições práticas importantes, principalmente, ao campo da Educação - muito embora, curiosamente aliás, a intenção de Piaget não tenha propriamente incluído a ideia de formular uma teoria específica de aprendizagem (La Taille, 1992; Rappaport, 1981; Furtado et. al.,1999; Coll, 1992; etc.). O propósito do nosso estudo, portanto, é tecer algumas considerações referidas ao eixo principal em torno do qual giram as concepções do método psicogenético de Piaget, o qual, segundo Coll e Gillièron (1987:30), tem como objetivo "compreender como o sujeito se constitui enquanto sujeito cognitivo, elaborador de conhecimentos válidos", conforme procuraremos discutir na sequência deste trabalho. A visão interacionista de Piaget: a relação de interdependência entre o homem e o objeto do conhecimento Introduzindo uma terceira visão teórica representada pela linha interacionista, as ideias de Piaget contrapõem-se, conforme mencionamos mais acima, às visões de duas correntes antagônicas e inconciliáveis que permeiam a Psicologia em geral: o objetivismo e o subjetivismo. Ambas as correntes são derivadas de duas grandes vertentes da Filosofia (o idealismo e o materialismo mecanicista) que, por sua vez, são herdadas do dualismo radical de Descartes que propôs a separação estanque entre corpo e alma, id est, entre físico e psíquico. Assim sendo, a Psicologia objetivista, privilegia o dado externo, afirmando que todo conhecimento provém da experiência; e a Psicologia subjetivista, em contraste, calcada no substrato psíquico, entende que todo conhecimento é anterior à experiência, reconhecendo, portanto, a primazia do sujeito sobre o objeto (Freitas, 2000:63). Considerando insuficientes essas duas posições para explicar o processo evolutivo da filogenia humana, Piaget formula o conceito de 27 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO epigênese, argumentando que "o conhecimento não procede nem da experiência única dos objetos nem de uma programação inata pré-formada no sujeito, mas de construções sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas" (Piaget, 1976 apud Freitas 2000:64). Quer dizer, o processo evolutivo da filogenia humana tem uma origem biológica que é ativada pela ação e interação do organismo com o meio ambiente - físico e social - que o rodeia (Coll, 1992; La Taille, 1992, 2003; Freitas, 2000; etc.), significando entender com isso que as formas primitivas da mente, biologicamente constituídas, são reorganizadas pela psique socializada, ou seja, existe uma relação de interdependência entre o sujeito conhecedor e o objeto a conhecer. Esse processo, por sua vez, se efetua através de um mecanismo auto- regulatório que consiste no processo de equilibração progressiva do organismo com o meio em que o indivíduo está inserido, como procuraremos expor em seguida. O processo de equilibração: a marcha do organismo em busca do pensamento lógico Pode-se dizer que o "sujeito epistêmico" protagoniza o papel central do modelo piagetiano, pois a grande preocupação da teoria é desvendar os mecanismos processuais do pensamento do homem, desde o início da sua vida até a idade adulta. Nesse sentido, a compreensão dos mecanismos de constituição do conhecimento, na concepção de Piaget, equivale à compreensão dos mecanismosenvolvidos na formação do pensamento lógico, matemático. Como lembra La Taille (1992:17), "(...) a lógica representa para Piaget a forma final do equilíbrio das ações. Ela é 'um sistema de operações, isto é, de ações que se tornaram reversíveis e passíveis de serem compostas entre si'". Precipuamente, portanto, no método psicogenético, o 'status' da lógica matemática perfaz o enigma básico a ser desvendado. O maior problema, nesse sentido, concentra-se na busca de respostas pertinentes para uma questão fulcral: "Como os homens constroem o conhecimento?" (La Taille: vídeo). Imbricam-se nessa questão, naturalmente, outras indagações afins, quer sejam: como é que a lógica passa do nível elementar para o nível 28 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO superior? Como se dá o processo de elaboração das ideias? Como a elaboração do conhecimento influencia a adaptação à realidade? Etc. Procurando soluções para esse problema central, Piaget sustenta que a gênese do conhecimento está no próprio sujeito, ou seja, o pensamento lógico não é inato ou tampouco externo ao organismo, mas é fundamentalmente construído na interação homem-objeto. Quer dizer, o desenvolvimento da filogenia humana se dá através de um mecanismo auto regulatório que tem como base um 'kit' de condições biológicas (inatas portanto), que é ativado pela ação e interação do organismo com o meio ambiente - físico e social (Rappaport, op.cit.). Id est, tanto a experiência sensorial quanto o raciocínio são fundantes do processo de constituição da inteligência, ou do pensamento lógico do homem. Está implícito nessa ótica de Piaget que o homem é possuidor de uma estrutura biológica que o possibilita desenvolver o mental, no entanto, esse fato per se não assegura o desencadeamento de fatores que propiciarão o seu desenvolvimento, haja vista que este só acontecerá a partir da interação do sujeito com o objeto a conhecer. Por sua vez, a relação com o objeto, embora essencial, da mesma forma também não é uma condição suficiente ao desenvolvimento cognitivo humano, uma vez que para tanto é preciso, ainda, o exercício do raciocínio. Por assim dizer, a elaboração do pensamento lógico demanda um processo interno de reflexão. Tais aspectos deixam à mostra que, ao tentar descrever a origem da constituição do pensamento lógico, Piaget focaliza o processo interno dessa construção. Simplificando ao máximo, o desenvolvimento humano, no modelo piagetiano, é explicado segundo o pressuposto de que existe uma conjuntura de relações interdependentes entre o sujeito conhecedor e o objeto a conhecer. Esses fatores que são complementares envolvem mecanismos bastante complexos e intrincados que englobam o entrelaçamento de fatores que são complementares, tais como: o processo de maturação do organismo, a experiência com objetos, a vivência social e, sobretudo, a equilibração do organismo ao meio. O conceito de equilibração torna-se especialmente marcante na teoria de Piaget, pois ele representa o fundamento que explica todo o processo do 29 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO desenvolvimento humano. Trata-se de um fenômeno que tem, em sua essência, um caráter universal, já que é de igual ocorrência para todos os indivíduos da espécie humana, mas que pode sofrer variações em função de conteúdos culturais do meio em que o indivíduo está inserido. Nessa linha de raciocínio, o trabalho de Piaget leva em conta a atuação de 2 elementos básicos ao desenvolvimento humano: os fatores invariantes e os fatores variantes. (a) Os fatores invariantes: Piaget postula que, ao nascer, o indivíduo recebe como herança uma série de estruturas biológicas - sensoriais e neurológicas - que permanecem constantes ao longo da sua vida. São essas estruturas biológicas que irão predispor o surgimento de certas estruturas mentais. Em vista disso, na linha piagetiana, considera-se que o indivíduo carrega consigo duas marcas inatas que são a tendência natural à organização e à adaptação, significando entender, portanto, que, em última instância, o 'motor' do comportamento do homem é inerente ao ser. (b) Os fatores variantes: são representados pelo conceito de esquema que constitui a unidade básica de pensamento e ação estrutural do modelo piagetiano, sendo um elemento que se transforma no processo de interação com o meio, visando à adaptação do indivíduo ao real que o circunda. Com isso, a teoria psicogenética deixa à mostra que a inteligência não é herdada, mas sim que ela é construída no processo interativo entre o homem e o meio ambiente (físico e social) em que ele estiver inserido. Em síntese, pode-se dizer que, para Piaget, o equilíbrio é o norte que o organismo almeja, mas que paradoxalmente nunca alcança (La Taille, op.cit.), haja vista que no processo de interação podem ocorrer desajustes do meio ambiente que rompem com o estado de equilíbrio do organismo, eliciando esforços para que a adaptação se restabeleça. Essa busca do organismo por novas formas de adaptação envolvem dois mecanismos que apesar de distintos são indissociáveis e que se complementam: a assimilação e a acomodação. (a) A assimilação consiste na tentativa do indivíduo em solucionar uma determinada situação a partir da estrutura cognitiva que ele possui naquele momento específico da sua existência. Representa um processo contínuo na 30 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO medida em que o indivíduo está em constante atividade de interpretação da realidade que o rodeia e, consequentemente, tendo que se adaptar a ela. Como o processo de assimilação representa sempre uma tentativa de integração de aspectos experienciais aos esquemas previamente estruturados, ao entrar em contato com o objeto do conhecimento o indivíduo busca retirar dele as informações que lhe interessam deixando outras que não lhe são tão importantes (La Taille, vídeo), visando sempre a restabelecer a equilibração do organismo. (b) A acomodação, por sua vez, consiste na capacidade de modificação da estrutura mental antiga para dar conta de dominar um novo objeto do conhecimento. Quer dizer, a acomodação representa "o momento da ação do objeto sobre o sujeito" (Freitas, op.cit.:65) emergindo, portanto, como o elemento complementar das interações sujeito-objeto. Em síntese, toda experiência é assimilada a uma estrutura de ideias já existentes (esquemas) podendo provocar uma transformação nesses esquemas, ou seja, gerando um processo de acomodação. Como observa Rappaport (1981:56): os processos de assimilação e acomodação são complementares e acham-se presentes durante toda a vida do indivíduo e permitem um estado de adaptação intelectual (...) É muito difícil, se não impossível, imaginar uma situação em que possa ocorrer assimilação sem acomodação, pois dificilmente um objeto é igual a outro já conhecido, ou uma situação é exatamente igual a outra. Vê-se nessa ideia de "equilibração" de Piaget a marca da sua formação como Biólogo que o levou a traçar um paralelo entre a evolução biológica da espécie e as construções cognitivas. Tal processo pode ser representado pelo seguinte quadro: Desequilíbrio Adaptação Equilibração Ambiente Assimilação Acomodação Dessa perspectiva, o processo de equilibração pode ser definido como um mecanismo de organização de estruturas cognitivas em um sistema 31 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO coerente que visa a levar o indivíduo a construção de uma forma de adaptação à realidade. Haja vista que o "objeto nunca se deixa compreender totalmente" (La Taille, op.cit.), o conceito de equilibração sugere algo móvel e dinâmico, na medida em que a constituição do conhecimento coloca o indivíduo frente a conflitos cognitivos constantes que movimentam o organismo no sentido de resolvê-los. Em última instância,a concepção do desenvolvimento humano, na linha piagetiana, deixa ver que é no contato com o mundo que a matéria bruta do conhecimento é 'arrecadada', pois que é no processo de construções sucessivas resultantes da relação sujeito-objeto que o indivíduo vai formar o pensamento lógico. É bom considerar, ainda, que, na medida em que toda experiência leva em graus diferentes a um processo de assimilação e acomodação, trata-se de entender que o mundo das ideias, da cognição, é um mundo inferencial. Para avançar no desenvolvimento é preciso que o ambiente promova condições para transformações cognitivas, id est, é necessário que se estabeleça um conflito cognitivo que demande um esforço do indivíduo para superá-lo a fim de que o equilíbrio do organismo seja restabelecido, e assim sucessivamente. No entanto, esse processo de transformação vai depender sempre de como o indivíduo vai elaborar e assimilar as suas interações com o meio, isso porque a visada conquista da equilibração do organismo reflete as elaborações possibilitadas pelos níveis de desenvolvimento cognitivo que o organismo detém nos diversos estágios da sua vida. A esse respeito, para Piaget, os modos de relacionamento com a realidade são divididos em 4 períodos, como destacaremos na próxima seção deste trabalho. Os estágios do desenvolvimento humano Piaget considera 4 períodos no processo evolutivo da espécie humana que são caracterizados "por aquilo que o indivíduo consegue fazer melhor" no decorrer das diversas faixas etárias ao longo do seu processo de desenvolvimento (Furtado, op.cit.). São eles: I. 1º período: Sensório-motor (0 a 2 anos) II. 2º período: Pré-operatório (2 a 7 anos) III. 3º período: Operações concretas (7 a 11 ou 12 anos) 32 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO IV. 4º período: Operações formais (11 ou 12 anos em diante) Cada uma dessas fases é caracterizada por formas diferentes de organização mental que possibilitam as diferentes maneiras do indivíduo relacionar-se com a realidade que o rodeia (Coll e Gillièron, 1987). De uma forma geral, todos os indivíduos vivenciam essas 4 fases na mesma seqüência, porém o início e o término de cada uma delas pode sofrer variações em função das características da estrutura biológica de cada indivíduo e da riqueza (ou não) dos estímulos proporcionados pelo meio ambiente em que ele estiver inserido. Por isso mesmo é que "a divisão nessas faixas etárias é uma referência, e não uma norma rígida", conforme lembra Furtado (op.cit.). Abordaremos, a seguir, sem entrar em uma descrição detalhada, as principais características de cada um desses períodos. (a) Período Sensório-motor (0 a 2 anos): segundo La Taille (2003), Piaget usa a expressão "a passagem do caos ao cosmo" para traduzir o que o estudo sobre a construção do real descreve e explica. De acordo com a tese piagetiana, "a criança nasce em um universo para ela caótico, habitado por objetos evanescentes (que desapareceriam uma vez fora do campo da percepção), com tempo e espaço subjetivamente sentidos, e causalidade reduzida ao poder das ações, em uma forma de onipotência" (id ibid). No recém-nascido, portanto, as funções mentais limitam-se ao exercício dos aparelhos reflexos inatos. Assim sendo, o universo que circunda a criança é conquistado mediante a percepção e os movimentos (como a sucção, o movimento dos olhos, por exemplo). Progressivamente, a criança vai aperfeiçoando tais movimentos reflexos e adquirindo habilidades e chega ao final do período sensório-motor já se concebendo dentro de um cosmo "com objetos, tempo, espaço, causalidade objetivados e solidários, entre os quais situa a si mesma como um objeto específico, agente e paciente dos eventos que nele ocorrem" (id ibid). (b) Período pré-operatório (2 a 7 anos): para Piaget, o que marca a passagem do período sensório-motor para o pré-operatório é o aparecimento da função simbólica ou semiótica, ou seja, é a emergência da linguagem. Nessa concepção, a inteligência é anterior à emergência da linguagem e por isso mesmo "não se pode atribuir à linguagem a origem da lógica, que constitui 33 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO o núcleo do pensamento racional" (Coll e Gillièron, op.cit.). Na linha piagetiana, desse modo, a linguagem é considerada como uma condição necessária mas não suficiente ao desenvolvimento, pois existe um trabalho de reorganização da ação cognitiva que não é dado pela linguagem, conforme alerta La Taille (1992). Em uma palavra, isso implica entender que o desenvolvimento da linguagem depende do desenvolvimento da inteligência. Todavia, conforme demonstram as pesquisas psicogenéticas (La Taille, op.cit.; Furtado, op.cit., etc.), a emergência da linguagem acarreta modificações importantes em aspectos cognitivos, afetivos e sociais da criança, uma vez que ela possibilita as interações interindividuais e fornece, principalmente, a capacidade de trabalhar com representações para atribuir significados à realidade. Tanto é assim, que a aceleração do alcance do pensamento neste estágio do desenvolvimento, é atribuída, em grande parte, às possibilidades de contatos interindividuais fornecidos pela linguagem. Contudo, embora o alcance do pensamento apresente transformações importantes, ele caracteriza-se, ainda, pelo egocentrismo, uma vez que a criança não concebe uma realidade da qual não faça parte, devido à ausência de esquemas conceituais e da lógica. Para citar um exemplo pessoal relacionado à questão, lembro-me muito bem que me chamava à atenção o fato de, nessa faixa etária, o meu filho dizer coisas do tipo "o meu carro do meu pai", sugerindo, portanto, o egocentrismo característico desta fase do desenvolvimento. Assim, neste estágio, embora a criança apresente a capacidade de atuar de forma lógica e coerente (em função da aquisição de esquemas sensoriais-motores na fase anterior) ela apresentará, paradoxalmente, um entendimento da realidade desequilibrado (em função da ausência de esquemas conceituais), conforme salienta Rappaport (op.cit.). (c) Período das operações concretas (7 a 11, 12 anos): neste período o egocentrismo intelectual e social (incapacidade de se colocar no ponto de vista de outros) que caracteriza a fase anterior dá lugar à emergência da capacidade da criança de estabelecer relações e coordenar pontos de vista diferentes (próprios e de outrem ) e de integrá-los de modo lógico e coerente (Rappaport, op.cit.). Outro aspecto importante neste estágio refere-se ao aparecimento da capacidade da criança de interiorizar as ações, ou seja, ela 34 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO começa a realizar operações mentalmente e não mais apenas através de ações físicas típicas da inteligência sensório-motor (se lhe perguntarem, por exemplo, qual é a vareta maior, entre várias, ela será capaz de responder acertadamente comparando-as mediante a ação mental, ou seja, sem precisar medi-las usando a ação física). Contudo, embora a criança consiga raciocinar de forma coerente, tanto os esquemas conceituais como as ações executadas mentalmente se referem, nesta fase, a objetos ou situações passíveis de serem manipuladas ou imaginadas de forma concreta. Além disso, conforme pontua La Taille (1992:17) se no período pré-operatório a criança ainda não havia adquirido a capacidade de reversibilidade, i.e., "a capacidade de pensar simultaneamente o estado inicial e o estado final de alguma transformação efetuada sobre os objetos (por exemplo, a ausência de conservação da quantidade quando se transvaza o conteúdo de um copo A para outro B, de diâmetro menor)", tal reversibilidade será construída ao longo dos estágios operatório concreto e formal. (d) Período das operações formais (12 anos em diante): nesta fase a criança, ampliando as capacidadesconquistadas na fase anterior, já consegue raciocinar sobre hipóteses na medida em que ela é capaz de formar esquemas conceituais abstratos e através deles executar operações mentais dentro de princípios da lógica formal. Com isso, conforme aponta Rappaport (op.cit.:74) a criança adquire "capacidade de criticar os sistemas sociais e propor novos códigos de conduta: discute valores morais de seus pais e constrói os seus próprios (adquirindo, portanto, autonomia)". De acordo com a tese piagetiana, ao atingir esta fase, o indivíduo adquire a sua forma final de equilíbrio, ou seja, ele consegue alcançar o padrão intelectual que persistirá durante a idade adulta. Isso não quer dizer que ocorra uma estagnação das funções cognitivas, a partir do ápice adquirido na adolescência, como enfatiza Rappaport (op.cit.:63), "esta será a forma predominante de raciocínio utilizada pelo adulto. Seu desenvolvimento posterior consistirá numa ampliação de conhecimentos tanto em extensão como em profundidade, mas não na aquisição de novos modos de funcionamento mental". 35 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO Cabe-nos problematizar as considerações anteriores de Rappaport, a partir da seguinte reflexão: resultados de pesquisas* têm indicado que adultos "pouco-letrados/escolarizados" apresentam modo de funcionamento cognitivo "balizado pelas informações provenientes de dados perceptuais, do contexto concreto e da experiência pessoal" (Oliveira, 2001a:148). De acordo com os pressupostos da teoria de Piaget, tais adultos estariam, portanto, no estágio operatório-concreto, ou seja, não teriam alcançado, ainda, o estágio final do desenvolvimento que caracteriza o funcionamento do adulto (lógico-formal). Como é que tais adultos (operatório-concreto) poderiam, ainda, adquirir condições de ampliar e aprofundar conhecimentos (lógico-formal) se não lhes é reservada, de acordo com a respectiva teoria, a capacidade de desenvolver "novos modos de funcionamento mental"? - aliás, de acordo com a teoria, não dependeria do desenvolvimento da estrutura cognitiva a capacidade de desenvolver o pensamento descontextualizado? Bem, retomando a nossa discussão, vale ressaltar, ainda, que, para Piaget, existe um desenvolvimento da moral que ocorre por etapas, de acordo com os estágios do desenvolvimento humano. Para Piaget (1977 apud La Taille 1992:21), "toda moral consiste num sistema de regras e a essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por estas regras". Isso porque Piaget entende que nos jogos coletivos as relações interindividuais são regidas por normas que, apesar de herdadas culturalmente, podem ser modificadas consensualmente entre os jogadores, sendo que o dever de 'respeitá-las' implica a moral por envolver questões de justiça e honestidade. Assim sendo, Piaget argumenta que o desenvolvimento da moral abrange 3 fases: (a) anomia (crianças até 5 anos), em que a moral não se coloca, ou seja, as regras são seguidas, porém o indivíduo ainda não está mobilizado pelas relações bem x mal e sim pelo sentido de hábito, de dever; (b) heteronomia (crianças até 9, 10 anos de idade), em que a moral é = a autoridade, ou seja, as regras não correspondem a um acordo mútuo firmado entre os jogadores, mas sim como algo imposto pela tradição e, portanto, imutável; (c) autonomia, corresponde ao último estágio do desenvolvimento da moral, em que há a legitimação das regras e a criança pensa a moral pela http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/d00005.htm#_ftn2 36 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO reciprocidade, quer seja o respeito a regras é entendido como decorrente de acordos mútuos entre os jogadores, sendo que cada um deles consegue conceber a si próprio como possível 'legislador' em regime de cooperação entre todos os membros do grupo. Para Piaget, a própria moral pressupõe inteligência, haja vista que as relações entre moral x inteligência têm a mesma lógica atribuída às relações inteligência x linguagem. Quer dizer, a inteligência é uma condição necessária, porém não suficiente ao desenvolvimento da moral. Nesse sentido, a moralidade implica pensar o racional, em 3 dimensões: a) regras: que são formulações verbais concretas, explícitas (como os 10 Mandamentos, por exemplo); b) princípios: que representam o espírito das regras (amai-vos uns aos outros, por exemplo); c) valores: que dão respostas aos deveres e aos sentidos da vida, permitindo entender de onde são derivados os princípios das regras a serem seguidas. Assim sendo, as relações interindividuais que são regidas por regras envolvem, por sua vez, relações de coação - que corresponde à noção de dever; e de cooperação - que pressupõe a noção de articulação de operações de dois ou mais sujeitos, envolvendo não apenas a noção de 'dever' mas a de 'querer' fazer. Vemos, portanto, que uma das peculiaridades do modelo piagetiano consiste em que o papel das relações interindividuais no processo evolutivo do homem é focalizado sob a perspectiva da ética (La Taille, 1992). Isso implica entender que "o desenvolvimento cognitivo é condição necessária ao pleno exercício da cooperação, mas não condição suficiente, pois uma postura ética deverá completar o quadro" (idem p. 21). As consequências do modelo piagetiano para a ação pedagógica Como já foi mencionado na apresentação deste trabalho, a teoria psicogenética de Piaget não tinha como objetivo principal propor uma teoria de aprendizagem. A esse respeito, Coll (1992:172) faz a seguinte observação: "ao que se sabe, ele [Piaget] nunca participou diretamente nem coordenou uma pesquisa com objetivos pedagógicos". Não obstante esse fato, de forma contraditória aos interesses previstos, portanto, o modelo piagetiano, curiosamente, veio a se tornar uma das mais importantes diretrizes no campo 37 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO da aprendizagem escolar, por exemplo, nos USA, na Europa e no Brasil, inclusive. De acordo com Coll (op.cit.) as tentativas de aplicação da teoria genética no campo da aprendizagem são numerosas e variadas, no entanto os resultados práticos obtidos com tais aplicações não podem ser considerados tão frutíferos. Uma das razões da difícil penetração da teoria genética no âmbito da escola deve-se, principalmente, segundo o autor, "ao difícil entendimento do seu conteúdo conceitual como pelo método de análise formalizante que utiliza e pelo estilo às vezes 'hermético' que caracteriza as publicações de Piaget" (idem p. 174). Coll (op.cit.) ressalta, também, que a aplicação educacional da teoria genética tem como fatores complicadores, entre outros: a) as dificuldades de ordem técnica, metodológicas e teóricas no uso de provas operatórias como instrumento de diagnóstico psicopedagógico, exigindo um alto grau de especialização e de prudência profissional, a fim de se evitar os riscos de sérios erros; b) a predominância no "como" ensinar coloca o objetivo do "o quê" ensinar em segundo plano, contrapondo-se, dessa forma, ao caráter fundamental de transmissão do saber acumulado culturalmente que é uma função da instituição escolar, por ser esta de caráter preeminentemente político-metodológico e não técnico como tradicionalmente se procurou incutir nas ideias da sociedade; c) a parte social da escola fica prejudicada uma vez que o raciocínio por trás da argumentação de que a criança vai atingir o estágio operatório secundariza a noção do desenvolvimento do pensamento crítico; d) a ideia básica do construtivismo postulando que a atividade de organização e planificação da aquisição de conhecimentos estão à cargo do aluno acaba por não dar conta de explicar o caráter da intervenção por parte do professor; e) a ideia de que o indivíduo apropria os conteúdos em conformidade com o desenvolvimento das suasestruturas cognitivas estabelece o desafio da 38 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO descoberta do "grau ótimo de desequilíbrio", ou seja, o objeto a conhecer não deve estar nem além nem aquém da capacidade do aprendiz conhecedor. Por outro lado, como contribuições contundentes da teoria psicogenética podem ser citados, por exemplo: a) a possibilidade de estabelecer objetivos educacionais uma vez que a teoria fornece parâmetros importantes sobre o 'processo de pensamento da criança' relacionados aos estádios do desenvolvimento; b) em oposição às visões de teorias behavioristas que consideravam o erro como interferências negativas no processo de aprendizagem, dentro da concepção cognitivista da teoria psicogenética, os erros passam a ser entendidos como estratégias usadas pelo aluno na sua tentativa de aprendizagem de novos conhecimentos (PCN, 1998); c) uma outra contribuição importante do enfoque psicogenético foi lançar luz à questão dos diferentes estilos individuais de aprendizagem; (PCN, 1998); entre outros. Em resumo, conforme aponta Coll (1992), as relações entre teoria psicogenética x educação, apesar dos complicadores decorrentes da "dicotomia entre os aspectos estruturais e os aspectos funcionais da explicação genética" (idem, p. 192) e da tendência dos projetos privilegiarem, em grande parte, um reducionismo psicologizante em detrimento ao social (aliás, motivo de caloroso debate entre acadêmicos*), pode-se considerar que a teoria psicogenética trouxe contribuições importantes ao campo da aprendizagem escolar. Considerações finais A referência deste nosso estudo foi a teoria de Piaget cujas proposições nucleares dão conta de que a compreensão do desenvolvimento humano equivale à compreensão de como se dá o processo de constituição do pensamento lógico-formal, matemático. Tal processo, que é explicado segundo o pressuposto de que existe uma conjuntura de relações interdependentes entre o sujeito conhecedor e o objeto a conhecer, envolve mecanismos complexos e intrincados que englobam aspectos que se entrelaçam e se complementam, tais como: o processo de maturação do organismo, a http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/d00005.htm#_ftn3 39 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO experiência com objetos, a vivência social e, sobretudo, a equilibração do organismo ao meio. Em face às discussões apresentadas no decorrer do trabalho, cremos ser lícito concluir que as ideias de Piaget representam um salto qualitativo na compreensão do desenvolvimento humano, na medida em que é evidenciada uma tentativa de integração entre o sujeito e o mundo que o circunda. Paradoxalmente, contudo - no que pese a rejeição de Piaget pelo antagonismo das tendências objetivista e subjetivista - o papel do meio no funcionamento do indivíduo é relegado a um plano secundário, uma vez que permanece, ainda, a predominância do indivíduo em detrimento das influências que o meio exerce na construção do seu conhecimento. VYGOTSKY E O SOCIOINTERACIONISMO4 Lev S. V Vygotsky, contemporâneo de Piaget, tinha por embasamento teórico o sóciointeracionismo e o desenvolvimento cognitivo do indivíduo, sendo que principalmente na construção do pensamento tinha como ponto de partida a influência do meio social na edificação deste. Ao contrário de Piaget que concentrou seus estudos na psicogênese, ou seja, o conhecimento partindo do individual para o social, Vygotsky e seus colaboradores, Luria e Leontiev, centraram suas pesquisas em outro âmbito que se tratava justamente da sociogênese, onde a construção do conhecimento parte do social e do histórico para o individual. Antes de entrar especificamente na temática deste tópico (as críticas feitas por Vygotsky a Piaget) necessário se faz o esclarecimento do 4 SANTOS, A.P.dos. As críticas à Piaget e o sociointeracionismo. In: ______________. As Bases Teóricas do Construtivismo: Uma discussão acerca do confronto teoria e prática na abordagem da linha cognitivista. Jequié: UESB, 2003. 40 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO entendimento de Vygotsky e dos sócio-interacionistas serem considerados construtivistas. Isto se dá por terem eles centrado seus interesses na gênese dos processos psicológicos, de modo diferente da abordagem piagetiana, trabalhando a partir de outro enfoque na construção social do conhecimento, com a chamada sociogênese centrando simultaneamente sobre a história e sobre os mecanismos da aquisição ao longo do desenvolvimento (SOUZA e KRAMER, 1991, p.77). Vygotsky, assim como Piaget, não encontrava explicações às suas principais questões sobre a gênese dos processos psicológicos nas teorias epistemológicas até então existentes, a exemplo do racionalismo e do empirismo. Piaget vai defender a constituição de uma epistemologia genética ao passo que Vygotsky buscava uma psicologia histórica e principalmente fundada no materialismo histórico e dialético. Sobre a teoria de Piaget, Giusta (1985) vai de forma clara dizer que apesar de a referida teoria acentuar a unidade do sujeito com o mundo, ela não se preocupou em qualificar esse mundo como meio social concreto, sendo seus resultados isentos do compromisso com a luta de classes. E sendo Giusta (1985) de formação na linha piagetiana ela vai justificar que: Piaget esteve mesmo interessado em fornecer um quadro de referência para compreensão do sujeito epistêmico, entendido como possibilidade humana de conhecer, uma possibilidade que é, assim humano-genérica (p. 29) Neste aspecto tratado acima, percebe-se a ausência da totalidade psicológica em Piaget. E Vygotsky, neste ínterim vai fazer suas críticas ao entender que: Todas as funções psicointelectuais superiores se apoiam de dois modos no curso de desenvolvimento da criança: por um lado as atividades coletivas como atividades sociais, isto é, como funções intrapsíquicas; por outro, nas atividades individuais como propriedades do pensamento da criança, isto é, como funções intrapsíquicas (apud GIUSTA, 1985, p.30). Sobre esta questão aponta-se o conceito de atividade em Vygotsky. Partindo da Lógica Dialética, o referido teórico vincula ao estudo das funções humanas, a exemplo da consciência e da inteligência, o processo da atividade 41 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO que vai funcionar como mediadora das relações entre o homem e a natureza, onde as funções humanas antes de existirem no nível individual intrapsíquico existem num nível individual interpsíquico. A noção de construtivismo fica mais marcante em Vygotsky quando ele ressalta que o indivíduo reconstrói no processo de desenvolvimento o social à sua maneira. Pois, a partir da inserção desse mesmo indivíduo no mundo, ele reconstrói o social na medida em que age sobre esse mesmo mundo. Vygotsky apesar de só ter tido acesso aos dois primeiros trabalhos de Piaget criticou alguns enfoques cruciais na teoria piagetiana e os leu à luz de uma preocupação com os aspectos históricos e sócio-culturais que Piaget relegou ao segundo plano em função de diferentes abordagens assumidas. Dessa maneira, para falar das questões criticadas por Vygotsky em Piaget deve-se partir dos pontos que substanciam as respectivas teorias. Para isso, serão abordadas aqui questões como: a relação entre o pensamento e a linguagem; o egocentrismo infantil e o desenvolvimento e a aprendizagem. O primeiro ponto em questão é a abordagem que trata da relação entre pensamento e linguagem. Para entrar nessa discussão é necessário que se saiba que tipo de relação se estabelece neste contexto. Souza e Kramer (1991) lançam questões básicas que guiam na compreensão desta temática, tais como: pensamento e linguagem constituem uma unidade ou serão funções distintas? A linguagem desempenhaum papel ativo no pensamento? (p. 72). Para responder a este questionamento os autores trazem as duas concepções que buscam interpretar esta relação: a monista que afirma a unidade do pensamento e da linguagem, sem, contudo os identificar, e a dualista, que defende a tese da existência em separado destes dois aspectos do processo do conhecimento, buscando priorizar a influência de um sobre outro(p. 72). Entretanto, o texto de Souza e Kramer aponta para uma relação intrínseca entre pensamento e linguagem, embora muito discutida por teóricos de renome, tais como, Piaget e Chomsky, cada qual privilegiando o aspecto de seu interesse teórico, lingüístico e cognitivo, respectivamente .Piaget concebe o pensamento como estando estruturado a partir de mecanismos internos, priorizando as estruturas operatórias deste e secundarizando o papel na linguagem no desenvolvimento do pensamento. Ao contrário de Piaget, 42 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO Vygotsky concebe o pensamento em unidade com a linguagem e entende como resultado da relação histórico social, que engendra um movimento dialético entre os dois conceitos, denotando uma íntima interação. Ao analisar o tema sob a perspectiva vygotskyana, e os textos que analisam o assunto, observa-se a participação dessa relação no desenvolvimento do conhecimento pelo indivíduo, na medida em que perpassa o individuo e o social, se associam, dizimando as dicotomias até então existentes neste campo teórico. O segundo ponto em questão trata do egocentrismo da criança, que na visão piagetiana é de fundamental importância dentro de sua teoria. Piaget (1990) entende o egocentrismo como uma característica natural, sendo evolutiva, característica da própria criança. Mas, deve-se salientar que não é um traço de personalidade, mas sim designa o que ele próprio concebe como falta de diferenciação entre o próprio ponto de vista e aqueles dos outros, e não individualismo que precede a relação com outros (Piaget, 1990, p. 70). Piaget entende, ainda, que o pensamento egocêntrico constitui-se num elo genético entre o autismo (não no sentido patológico) e a lógica. O autismo como resume Vygotsky (1993) é visto como forma original e mais primitiva do pensamento: a lógica aparece relativamente mais tarde, e o pensamento egocêntrico é o elo genético entre ambos (p. 12). O egocentrismo então é um dos pilares da teoria piagetiana e a partir daí outros conceitos são desenvolvidos a exemplo da fala que Piaget caracteriza como fala egocêntrica e fala socializada. A primeira quando a criança fala dela mesma, sem a preocupação com o outro. A segunda, a criança estabelece um contato com o outro de modo efetivo. Vygotsky vai tecer críticas quanto a estes enfoques apresentados por Piaget, pois este vai partir do pensamento particular para o social, enquanto aquele vai ao contrário, partir do social para o individual. Ele por sua vez, vai definir a fala como comunicativa rejeitando a designação fala socializada, entendendo que toda fala é por si só socializada. Desse modo, o esquema de desenvolvimento apresentado por Vygotsky (1993) fica assim resumindo: primeiro fala social, depois egocêntrica e então 43 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO anterior, diverge da seqüência de Piaget – que parte do pensamento autístico não verbal à fala socializada e ao pensamento lógico (p.18). O terceiro e último aspecto aqui tratado é o do entendimento de desenvolvimento e aprendizagem. Vygotsky (1984) vai iniciar sua discussão abordando três principais correntes que tratam desta relação. A primeira vertente por ele tratada trata-se do cognitivismo- interacionista, onde Piaget entende que o desenvolvimento é um processo mais fundamental do que é a aprendizagem. Assim o desenvolvimento tem um caráter determinante sobre a aprendizagem, o que é contrário não se dá. A segunda vertente vai tratar da visão behaviorista, em que o desenvolvimento, apesar de ser algo maior enquanto processo se dá da mesma maneira que a aprendizagem. Então, são tomados por idênticos e tanto desenvolvimento quanto aprendizagem vão resultar da relação estímulo- resposta. A terceira e ultima vertente apresentada por Vygotsky trata da visão gestáltica, onde a aprendizagem influencia o desenvolvimento e o desenvolvimento influencia a aprendizagem num processo de interdependência. Esta vertente, de certa forma, como apresenta Vygotsky (apud SOUZA e KRAMER, 1991), tentam reconciliar as duas anteriores, evitando as suas deficiências. Embora este ecletismo resulte numa abordagem um tanto inconsistente, realiza certa síntese das duas concepções opostas (p. 78). Vygotsky sobre esta questão vai colocar que: Rejeita então cada uma dessas concepções: a primeira (da qual Piaget é um exemplo), porque ela considera que o desenvolvimento sempre se adianta ao aprendizado, fica excluída a noção de que também o aprendizado pode representar um papel relevante no desenvolvimento; a segunda, porque instrução e desenvolvimento são identificados e encarados como uma acumulação gradativa de reflexos condicionados; e a terceira (cujo exemplo dado é o de gestaltismo) porque, embora apresente aspectos novos, afirma que as capacidades mentais funcionam independentemente do material com o qual elas operam, e que o desenvolvimento de uma capacidade promove o desenvolvimento de outras (apud SOUZA e KRAMER, 1991, p.78). Este levantamento feito por Vygotsky é com o objetivo de chegar a traçar e descrever a sua própria concepção sobre a temática envolvendo a relação 44 FBJ DIGITAL | PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO entre desenvolvimento e aprendizagem chegando mesmo a identificar e conceituar a zona de desenvolvimento proximal. Para este autor, a zona de desenvolvimento proximal envolve dois níveis diferentes. O primeiro é o nível de desenvolvimento real definido por ele como nível de desenvolvimento mental das funções mentais da criança. Ou seja, a constituição das estruturas já construídas pela criança pela criança, a exemplo da linguagem, do raciocínio do pensamento etc. é, enfim, as conquistas já consolidadas na criança. O outro nível tomado por Vygotsky trata da zona de desenvolvimento potencial que é definido, não pelo que já está constituído, mas sim pelo que ela é potencialmente capaz de desenvolver com a ajuda dos outros. Então, o conceito da zona de desenvolvimento proximal para Vygotsky se refere à distância entre o que a criança é capaz de fazer só (nível real) num sentido retrospectivo e o que ela pode ainda vir a fazer (nível potencial) num sentido prospectivo. Neste aspecto, Vygotsky destaca como importante esta perspectiva para entender o desenvolvimento mental da criança. Ele parte da compreensão de que aquilo que é a zona de desenvolvimento proximal hoje se constituirá em zona de desenvolvimento real amanhã. E, acrescentando-se a isto, pode-se inferir que esta mesma perspectiva de entendimento da concepção da zona real pode ser concebida na visão de Piaget quando este recupera em Kant o conceito de a priori no sentido das estruturas e experiências anteriores que o sujeito traz para o momento em que se defronta com o objeto. REFERÊNCIAS ALENCAR, Eunice S. (org.) Novas Contribuições da Psicologia aos processos de Ensino e Aprendizagem. São Paulo: Cortez, 1992. ARIÈS, Philipe. 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