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<p>SUBRE 06 PARA UMA HISTÓRIA (SOCIAL) DA ARTE BRASILEIRA FRANCISCO ALAMBERT ESTE LIVRO APRESENTA AO PÚBLICO EM GERAL A 22 ARTE PRÉ-HISTÓRICA DO BRASIL: RTE DA TÉCNICA AO OBJETO ANNE-MARIE PESSIS E GABRIELA MARTIN 96 SEUS ANTECEDENTES EUROPEUS MYRIAM ANDRADE RIBEIRO DE OLIVEIRA ARTE PRODUZIDA EM TERRAS BRASILEIRAS DESDE ANTES DE SEU DESCOBRIMENTO ATÉ 0 FINAL DA 62 OLHAR ESTRANGEIRO E A REPRESENTAÇÃO DO BRASIL VALERIA PICCOLI DÉCADA DE 1960. CADA ESCRITO POR UM MANEIRISMO, BARROCO E ROCOCÓ NA ARTE RELIGIOSA RELATA UM DETERMINADO PERÍODO DA HISTÓRIA DA ARTE NO BRASIL ACREDITANDO QUE NO CAMPO ARTÍSTICO É POS- SÍVEL RECONHECER A IDENTIDADE DE UMA SOBRE A ARTE BRASILEIRA BUSCA APROXIMAR OS RE LEITORES DA FORMAÇÃO DA EXPRESSÃO ARTÍSTICA NO BRASIL ATÉ SEU AMADURECIMENTO E CONVIDA A UMA REFLEXÃO SOBRE A IMPORTÂNCIA DO PATRI- CULTURAL DO PAÍS E SUA DIFUSÃO. RTI SOBRE SOBRE A ARTE BRASILEIRA DA PRÉ-HISTÓRIA AOS ANOS 1960 E BRASILEIRA FABIANA WERNECK BARCINSKI (ORG.) 136 ARTE E ACADEMIA ENTRE POLÍTICA NATUREZA (1816 A 1857) ELAINE 174 A ARTE NO BRASIL ENTRE SEGUNDO REINADO E A BELLE ÉPOQUE LUCIANO 232 MODERNISMO NO BRASIL: CAMPO DE DISPUTAS ANA PAULA SIMIONI DIAS E MIGLIACCIO ARTIRE ARTE 264 CONCRETISMO GLÁUCIA KRUSE VILLAS BOAS 294 OS ANOS 1960: DESCOBRIR 0 CORPO PAULA BRAGA 324 ARTE POPULAR RICARDO GOMES LIMA BRASIL SOBRE 9 WMF Martins Fontes Edições Seso São Paulo OBRE wmfmartinsfontes SILEIRA:</p><p>A Editora WMF Martins Fontes empenhou-se em loc todos os detentores de direitos autorais, ou eventuai herdeiros, das obras aqui reproduzidas. Mas, em alg VIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO não conseguiu Mesmo assim, d Regional no Estado de São Paulo reproduzir essas obras, dispondo-se a acertar os direi seus herdeiros sejam encontrados. sidente do Conselho Regional m Szajman etor Regional Copyright 2015, Editora Martins Fontes Ltda. ilo Santos de Miranda São Paulo, para a presente edição 2015 selho Editorial i Giannini Coordenação editorial FABIANA WERNECK BARCINSKI Naimayer Padula Produção de imagens FATIMA ASSUMPÇÃO Massaro Galina Design gráfico LUCIANA FACCHINI gio José Battistelli Designers assistentes KARINE TRESSLER E JULIA CONTR ções Sesc São Paulo Acompanhamento editorial HELENA GUIMARAES ente Marcos Lepiscopo Preparação MALU FAVRET ente adjunta Isabel M. M. Alexandre Revisões gráficas LETICIA BRAUN E ANA MARIA DE M. ordenação editorial Clívia Ramiro, Cristianne Lameirinha Tratamento de imagens BUREAU PAULO dução editorial João Cotrim, Rafael Fernandes Cação Produção gráfica GERALDO ALVES gráfica Katia Verissimo e acabamento EDITORA BERNARDI LT ordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel ições Sesc São Paulo Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) a Cantagalo, 74 -13°/14° andar (Câmara Brasileira do Brasil) P: 03319-000 São Paulo - SP Brasil 1.: 55 11 2227-6500 Sobre a arte brasileira: da Pré-história aos anos 1960 / Fabiana Werneck Barcinski (org.) scsp.org.br São Paulo: Editora Martins Fontes: Edições SESC São Paulo, 2014. ISBN 978-85-7827-824-3 (WMF Martins Fontes) ISBN 978-85-7995-090-2 (Edições SESC São Paulo) 1. Arte brasileira 2. Arte moderna 3. Artistas Brasil 4. Ensaios brasileiros I. Barcinski, Fabiana Werneck. 14-01591 CDD-709.8 para sistemático: 1. Arte brasileira: História e 709.8 Todos os direitos desta edição reservados à Editora Martins Fontes Ltda. Rua Prof. Laerte Ramos de Carvalho, 133 01325-030 São Paulo SP Brasil Tel. (11) 3293-8150 Fax (11) 3101-1042 e-mail: info@wmfmartinsfontes.com.br http://www.wmfmartinsfontes.com.br</p><p>06 PARA UMA HISTÓRIA (SOCIAL) DA ARTE BRASILEIRA FRANCISCO ALAMBERT 22 ARTE PRÉ-HISTÓRICA DO BRASIL: DA TÉCNICA AO OBJETO ANNE-MARIE PESSIS E GABRIELA MARTIN 62 0 OLHAR ESTRANGEIRO E A REPRESENTAÇÃO DO BRASIL VALERIA PICCOLI 96 MANEIRISMO, BARROCO E NA ARTE RELIGIOSA E SEUS ANTECEDENTES EUROPEUS MYRIAM ANDRADE RIBEIRO DE OLIVEIRA 136 ARTE E ACADEMIA ENTRE POLÍTICA E NATUREZA (1816 A 1857) ELAINE DIAS 174 A ARTE NO BRASIL ENTRE 0 SEGUNDO REINADO EA BELLE ÉPOQUE LUCIANO MIGLIACCIO 232 MODERNISMO NO BRASIL: CAMPO DE DISPUTAS ANA PAULA CAVALCANTI SIMIONI 264 CONCRETISMO GLÁUCIA KRUSE VILLAS BOAS 294 os ANOS 1960: DESCOBRIR 0 CORPO PAULA BRAGA 324 ARTE POPULAR RICARDO GOMES LIMA 346 BIBLIOGRAFIA</p><p>UMA "Falar sobre a filosofia no Brasil é tarefa particularmente embaraçosa. Poderíamos definir esta dificuldade em ter- mos aristotélicos: como saber que é uma coisa, se não ÓRIA sabemos ao certo se ela BENTO PRADO JR "A coexistência do antigo e do novo é um fato geral, e IAL) sempre sugestivo de todas as sociedades capitalistas e de muitas outras Entretanto, para os países colonizados e depois subdesenvolvidos, ela é central e tem força de Isso porque esses países fo- RTE ram incorporados ao mercado mundial ao mercado moderno na qualidade de econômica e socialmente atrasados, de fornecedores de matéria-prima e trabalho A sua ligação ao novo se faz através, estrutural- SILEIRA mente através de seu atraso social, que se reproduz em vez de se extinguir. Na composição mas fun- cional dos dois termos, está figurado um des- tino nacional que dura desde ROBERTO SCHWARZ MENTO DE DA AULO ONDE E E E. COLABORA EM DIVERSOS BRASIL E NO EXTERIOR A maior dificuldade de escrever uma história S BIENAIS DE da arte no Brasil é justamente determinar que U ERA DOS CURADORES sujeito (Brasil) é esse que define objeto (arte). CERIA COM POLYANA Um objeto que reconhecemos, pelo qual temos JABUTI NA CATEGORIA 1 Benta Prado problema apreço e com o qual guardamos DO GRUPO DE da filosofia no In Alguns ensaios Mas, ao mesmo tempo, temos dificuldade em DE SISTEMAS determinar como e de que maneira um (o sujei- 2 Roberto Schwarz "Cultura e pai de to Brasil) e o outro (o objeto arte) estão de fato família e outros</p><p>o século sobretudo desde o Modernismo, colocou essa ques- tão no núcleo de suas preocupações. A reflexão sobre a legitimida- muito difícil que nossa produção cultural seja entendida como par- de e a pertinência de falar em uma arte "brasileira" com caracte- te do mundo moderno (entenda-se, capitalista também rísticas com espaço definido e reconhecido na história para nós ser ou não ser parte do mundo moderno ou "ocidental" é da arte mundial desde a antropofagia oswaldiana, passando pe- sempre um problema. De um lado, sabemos que somos parte desse las ousadas incorporações e superações da arte abstrata feitas pe- mundo; de outro, sabemos que não o somos, exatamente. A diferença los movimentos concreto e neoconcreto, até a presença crescente brasileira nos persegue. Para Helio Oiticica, Mondrian era tão im- da arte contemporânea brasileira no sistema mundial das artes portante quanto qualquer abstracionista europeu. Por outro lado, e é central. No final do século XX, essa questão parecia ter sido supe- como consequência Oiticica também valorizava aspectos da cultu- rada: nossa arte teria alcançado "maturidade", projeção e reconhe- ra popular urbana (em especial o samba e a sociabilidade dos pobres cimento internacional. descendentes de escravos das favelas cariocas) que tanto Mondrian Porém, vejamos. No início do século XXI, um enorme compên- quanto qualquer abstracionista europeu jamais conheceram. Em dio foi lançado para proclamar, depois de todas as discussões que certo momento quis fazer dessa união impensável entre a o mundo inteiro promoveu, ao longo do século sobre a com- arte de vanguarda europeia e a cultura popular brasileira a base de plexidade do sistema mundial da arte moderna, o que foi a arte uma forma estética e de uma intervenção política no mundo que lhe do século que passava (e, por conseguinte, o que seria a arte do 5 Roberto Schwarz analisou renderia uma força fabulosa e encontra-se na origem de seu reco- longamente a complexa no mapa mundial contemporâneo da arte do século século que iniciava). A publicação Art Since 1900 foi organizada por "recepção" de Machado de cinco dos mais importantes pensadores contemporâneos da Assis no na qual o Mas, como essa operação estética parece praticamente incompreen- reconhecimento do grande para os organizadores deste livro, seu lugar acabou sendo um intelectuais radicalmente cosmopolitas. Neste livro, apenas dois determinava artistas brasileiros, de amplo alcance e relevância mundiais, são apagamento do escritor não lugar. Sua imensa originalidade, além da qualidade específica com todas as de seu trabalho, rendeu-lhe consagração, interna e externa, mas citados: Helio Oiticica e Lygia Clark. Até aí nada há a estranhar perdas e ganhos advindos não exatamente compreensão ou nem De fato trata-se de artistas excepcionais, que em dessa situação. em In: R. Lygia Clark, escrevendo à sombra do Golpe Militar de que grande medida incorporam boa parte daquilo que de mais avançado Martinha versus Lucrécia violentou de modo brutal sua geração, pensava o papel do artista e radical produzimos em nossa aventura moderna. Entretanto, o 6 Lygia Clark "Nós somos brasileiro como o de um propositor de uma ação transformadora lugar reservado a esses artistas no esquema "mundial" da arte do os 1964 Christopher Dunn no âmbito social: "Somos os propositores; somos o molde: a vocês século é intitulado Non-Western world. "Nós somos os propositores: cabe o sopro, no interior desse molde: o sentido da nossa Justamente quando acreditávamos que éramos sujeitos de uma vanguarda e contracultura no 3 Para a nova edição, juntou- Brasil, In: Somos os propositores: nossa proposição é o diálogo. Sós, não exis- conquista histórica a de ser parte ativa da arte do mundo este -se o professor David Joselit estamos a vosso dispor. Somos os propositores: enterramos nos responde com uma ambiguidade Não somos parte do aos autores originais: Foster, Em seu Krauss, Bois e Buchloch Cf. geral da Nova a obra de arte como tal e solicitamos a vocês para que o pensamento mundo "ocidental". Mas também não somos parte do mundo dos Alain-Bois et al. Art Since escrito logo depois, em viva pela ação. Somos os propositores: não lhes propomos nem o outros, do mundo "oriental" (seja lá o que isso signifique). Do pon- 1900 Hélio Oiticica vai mais "O fenômeno da vanguarda no passado nem o futuro, mas o to de vista desses especialistas, que é aceito como o ponto de vista 4 "A esquizofrenia é cegueira Brasil não é mais hoje questão Roberto Schwarz nota como essa situação determina nosso mesmo aqueles de nós que podem ser vistos como para o mas é também de um grupo provindo de uma modo específico de pensar: "o intelectual latino-americano vive a transparência (lucidez) do elite isolada, mas uma questão os melhores, somos um não lugar, um entrelugar ou simplesmente inconsciente". Bento Prado cultural ampla, de grande um engajamento peculiar, diferente do europeu. Ele está sempre uma ideia fora do lugar. Jr. "Sobre a filosofia do senso tendendo às soluções contribuindo para a construção da cultura nacional, ainda incom- Alguns Carlos Essas confusões e deslocamentos, esquizofrênicos até, dizem literatura, Tropicália: uma revolução pleta. o país novo, ainda em formação, é um pano de fundo es- muito "mundo", tanto quanto dizem muito também de Se cultura p. 229 pecial, com regras próprias. Assim, estamos sempre explicando</p><p>Brasil, salvando o Brasil, procurando uma brecha para 'ele' saia do brasileira, e no qual pontificariam Helio Oiticica e Lygia No sistema mundial das ideias modernas, nosso lugar e nossa justamente aqueles que conseguiram ser parte da arte tarefa constituem sempre um problema em que a arte, e sua com- mesmo não sendo parte da arte inclusive sua história, é um ponto relevante. Nossa "cultura" ou nossa "arte" (mesmo se quisermos sepa- Em um dos mais importantes pensadores da arte mo- rar uma da outra) é um mistério para o mundo, tanto quanto o é derna, Mário Pedrosa, apresentou esse dilema de modo bastante para ao mesmo tempo, lutar por ela (ou contra preciso, ao defender a recepção da arte abstrata geométrica brasi- ela) é uma "proposição" a que jamais conseguimos Por leira o concretismo perante a desconfiança que essa manifes- isso, estabelecer uma história da arte no Brasil é tarefa complexa tou em um renomado crítico de arte norte-americano, Alfred Barr e destinada à incompletude, que nos provoca indagações como: Jr. Para o norte-americano, a representação concretista brasileira o que é a arte brasileira autêntica? desde quando "nossa" presente na IV Bienal Internacional de São Paulo era mero "esfor- arte? o que há nela de cópia e de original diante da arte mundial "o intrigara até a irritação o fato de jovens da- de que queremos ser parte? Responder a essas e a outras questões demanda pesquisa constante e fundamentada, mas também um qui e da Argentina se terem entregado a experiências chamadas concretistas. Irrita-o ainda a influência que Max Bill, por exem- exercício dialético difícil entre nossa especificidade e diferenças históricas no panorama mundial plo, chegou a exercer por nossas paragens". Nossa pintura estaria Assim, considero que toda a história da arte brasileira deve ser na contramão do "gosto eclético hoje dominante em Paris ou em também uma história social do Brasil, ou, dito de forma mais exa- Nova York". E por isso, ao não encontrar nada que "afagasse seus ta, uma história social da arte (e da cultura) o eminente crítico norte-americano "desviou-se, como todo estrangeiro importante faz ao chegar às nossas plagas, na procura de tabas de índios e de revoada de papagaios". Obcecados por seu desejo de os estrangeiros "não gostam de per- mitir nossos artistas uma pesquisa, uma linguagem moderna e Esse é "campo" que nos cabe Para isso, um guia não ao gosto do momento nos grandes centros é o sociólogo francês Pierre Bourdieu. Para ele, o campo, compreen- Na sequência, Pedrosa aponta as Para ele, os europeus dido como o lugar em que se organiza socialmente a atividade artis- e os norte-americanos desejam o "têm horror, como tica, é um espaço onde as posições precedem os agentes e cuja homens cansados de cultura e de experiências estéticas, a tudo mica de funcionamento é a luta pela dominação simbólica em seu que lembre estrutura, ordem, disciplina, tensões, otimismo, be- interior. No caso da arte, a disputa se dá em torno do monopólio da leza plástica, em suma". Os artistas brasileiros estavam em ou- legitimidade Bourdieu entende que o campo é um espaço tra sintonia e engajados na busca pela autonomia, "sentimento orientado pelo jogo de poder. Nesse jogo, explica, "a relação entre de independência que se vai generalizando entre os melhores de 7 Fernando Haddad as posições e as tomadas de posição não tem nada de uma relação Desorganizando consenso: nove nossos artistas [...]. Uma espécie de embrião de escola, cujas ca- entrevistas com intelectuais à de determinação mecânica. Entre umas e outras se interpõe, de al- racterísticas fundamentais é cedo para tentar definir e cuja desig- p. guma maneira, o espaço dos possíveis, ou seja, o espaço das toma- 8 Mário "Pintura nação ainda, portanto, é difícil de Salvo engano, essa "es- brasileira e gosto das de posição realmente efetuadas tal como ele aparece quando é cola" que nosso grande crítico antecipava seria o Neoconcretismo, O. Arantes (org.) Política das percebido através das categorias de percepção constitutivas de certo acadêmicos e modernos, 10 Cf. Ronaldo exatamente o movimento que, para certos historiadores da arte, 280 Neoconcretismo: vertice e ruptura habitus, isto é, como um espaço orientado e prenhe das tomadas de representaria a "maioridade" ou seja, a emancipação da arte 9 Idem, p. 281. do projeto construtivo posição que se anunciam como potencialidades objetivas, coisas</p><p>'a a lançar, revistas a criar, adversários a com- bater, tomadas de posição estabelecidas maior, mais grosso, mas não menos que dê conta de Para um historiador como T. J. Clark, a História Social da Arte é ter-relacionar e estabelecer um campo de atuações mútuas entre as uma disciplina capaz de mobilizar uma série de questionamentos linguagens específicas e aquilo que aparentemente está fora de modo concentrado. Para tanto, em primeiro lugar devemos ser Numa linguagem sociológica, afeita à terminologia tanto de capazes de reunir fatos (levantar dados gerais acerca da atuação, da Raymond Williams quanto de Bourdieu, Sérgio Miceli explica esse situação econômica, da condição social dos agentes, da estrutura caminho metodológico para o estudo da História Social da Arte: de produção hegemônica da arte e da sociedade em geral etc.); em objeto da História Social da Arte é exame das condições peculiares segundo lugar, saber fazer perguntas. Clark propõe que utilizemos, dessa interação entre artista e o contexto, ou melhor, o desvelar de para esse fim, a relação entre obra cristalização do particular e como um conteúdo de experiência se transmuta em forma, como ideologia, entendida como um frágil conjunto de crenças, imagens, um dado acontecimento se congela numa imagem, de que maneira valores e técnicas de representação pelas quais as classes sociais em certa estrutura de sentimentos se condensa numa representação conflito tentam naturalizar suas histórias particulares. Assim, o num emaranhado de tensões que se convertem em valências de uma linguagem trabalho que une materiais oriundos da formalização artística ou 11 Pierre As regras da 265 "Estrutura de sentimento" é um conceito criado e operado por da formalização teórica a partir deles (a ação crítica) e pressupostos 12 "As condições Raymond Williams ao longo de sua Tal conceito nos instru- ideológicos seria um modo de testar os fundamentos sempre frá- da criação Sônia mentalizaria a trabalhar com a história da cultura de maneira mais geis da Salzstein Modernismos pp 331-9 pertinente: que o sociólogo cultural ou o historiador cultural es- As grandes análises da História Social da Arte concentram-se, 13 Segundo a periodização tudam são as práticas sociais e as relações culturais que produzem entretanto, nas produções do século XIX e início do o grande de- de o Realismo correspondeu à primeira fase não 'uma ou 'uma mas, coisa muito mais safio, no estudo da cultura e da arte é exatamente comercial e monopolista do significativa, aqueles modos de ser e aquelas obras dinâmicas e retomar questões gerais diante de ideias e de obras que parecem concretas em cujo interior não há apenas continuidades e deter- não responder mais a um sentido ideológico dominante: parecem à segunda o Pós-Modernismo é a lógica minações constantes, mas também tensões, resoluções inseridas em um regime no qual a ideologia contemporânea deu cultural do capitalismo tardio, e irresoluções, inovações e mudanças reais."16 forma à sua própria fragmentação. o nome dessa forma, segundo que tem a peculiaridade de se tornar eminentemente o conceito, tal como definido pelo historiador britânico, não é a definição marxista de Fredric Jameson, é en- Ele não define a meramente uma variante da noção idealista de do tempo" tendido como uma lógica cultural dominante na época em que o nova fase capitalista pela ou mesmo de Se para Goethe (ou Hegel) o "Zeitgeist" mas pela cultura. capitalismo multinacional desdobrou-se em forma única e progres- Para desde o final dos anos definia-se por um conjunto de opiniões que predominavam em um sivamente com o período determinando o pensamento geral, para Wil- Não há uma resposta única para essa problemática teórica no a a crise da sociedade do trabalho e a liams a "estrutura de sentimento" nasce das inter-relações entre campo da História Social da Arte. Do ponto de vista metodológi- ascensão da sociedade do práticas sociais e hábitos mentais herdados que se relacionam, por co, o historiador norte-americano Carl Shorske definiu o trabalho o capital colonizou 14 Schorske sua vez, com as formas de produção e de organização todas as partes do mundo, do historiador da arte e da cultura como próximo ao de um tecelão inclusive aquelas que ele havia In: Viena mica, resultando no sentido que damos à experiência do "grosseiro". Os especialistas nas linguagens específicas e em suas "tolerado e explorado de modo 15 Sérgio "Por uma Por isso, a análise da estrutura de sentimento trata de "descrever tributário". chegava-se história social da In: histórias particulares (os historiadores da arte, da música, da li- ao momento da "colonização A pintura da vida a presença de elementos comuns em várias obras de arte do mes- teratura etc.) são capazes de criar um tecido fino, concentrado nas do Inconsciente e da Paris na arte de Manet e de seus mo período histórico que não podem ser descritos apenas formal- especificidades de seus objetos. Aos historiadores "sociais" da cul- seguidores, 16 16 Williams Cultura e mente, ou parafraseados como afirmativas sobre o mundo: a es- a lógica cultural do capitalismo tura ou das formas artísticas cabe inserir essa trama em um tecido tardio, 61 29 trutura de sentimento é a articulação de uma resposta a mudanças</p><p>determinadas na organização social. Por essa via, dá conta do as- pecto formante da obra de arte. o artista pode até perceber como das cidades brasileiras remonta à época da chegada do colonizador, única a experiência para a qual encontra uma forma, mas a somos uma extensão da história de Portugal e de suas cidades, tan- ria da cultura demonstra que se trata de uma resposta social a mu- to quanto somos parte de seu processo de expansão pelo mundo. A danças objetivas [...] trata-se de fato de uma forma comum de ver, origem das cidades no Brasil (tanto quanto a origem das "ideias") já que é comunicável e inteligível para outros membros da mesma confunde-se com a história do próprio colonizador e sua empresa colonial, que é parte de nossa história como brasileiros na verdade, é sua forma Em resumo, trata-se de renovar uma questão tanto teórica quanto prática. É preciso colocar as produções artísticas na história, Do ponto de vista da cultura quer dizer, os a sociabili- tanto quanto é preciso colocar a história no objeto em sua dade, a produção e reprodução de ideias, as imagens, as obras etc. e forma. Seguindo uma ideia de Theodor W. Adorno, devemos inter- da urbanidade (a vida social civil marcada pela cidadania e pelas pelar as obras de arte como "historiografia inconsciente" (de uma relações urbanas modernas), essas questões são muito importantes. São mesmo decisivas, porque desde que a máquina colonizadora época, de um "lugar", de uma "cultura"), ou seja, analisar sempre portuguesa instalou-se nestas terras, elas sempre estiveram pre- sua consistência e sua inconsistência formal diante de seu tempo sentes em nosso debate e de suas condições de produção, circulação ou exposição, pois a Essas questões vinham desde o período colonial, mas só se tor- experiência histórica está presente nas obras, porém não de modo naram decisivas quando as condições (ou as necessidades) históri- que seus conteúdos estejam expostos diretamente na superfície do cas da "independência" ou da "emancipação" foram sendo de fato objeto, mas sobretudo em seu entranhamento configuradas a partir do início do século Também no terreno da Isso significa espantar da crítica histórica da arte a retórica tec- cultura e da vida urbana, a transferência da Corte portuguesa para nicista, que recusa o jogo da cultura. Ao mesmo tempo, é preciso o Brasil, em 1808, foi um marco decisivo. A arte e a cultura pro- distanciar-se do historicismo regulador, do fetiche dos fatos e das duzidas ao longo do século XIX foram amplamente marcadas pelas personalidades, da teleologia das escolas artísticas e de seus "gê- mudanças trazidas pela necessidade da Corte de adequar nossa vida nios". É preciso entender a arte não como mero mas cultural a seus padrões de exigência. sim como uma forma que conforma uma cultura. A virada cultural da elite, a grande mudança, a partir de 1816, com a chegada da Missão Francesa ao Brasil, acentuando a importância da cultura europeia nos primeiros anos do século XIX. III A Missão Francesa veio com o intuito de "civilizar" a cultura bra- sileira e isso significou também ignorar toda a tradição barroca A história da arte brasileira sempre pareceu uma dificuldade ou um antecedente, o que só será retomado como parte da nossa forma- projeto incompleto. Afinal, o que significa ção histórica com o Modernismo do início do século Com ela "artes" ou "cultura" no Brasil? A pergunta é pertinente porque, chegam pintores como Jean-Baptiste Debret (1768-1848) e Nicolas qualquer que seja a resposta, ela terá muitas consequências. Se as 19 Ver o debate sobre o lugar Antoine Taunay (1755-1830) e arquitetos como Grandjean de Mon- cidades no Brasil confundem-se com nossa história tanto quanto das ideias no Brasil a partir da tigny (1776-1850). forma peculiar da colonização com a história de nossa "cultura" (com todos os seus significados e de seus choques culturais (ou o século XIX foi marcado pela preocupação em transformar o então qual o lugar das populações indígenas que aqui 17 Maria E. Para ler esquisitices particulares) no rico Brasil em uma nação independente, porém a partir de pressupostos Raymond debate iniciado por Roberto viviam muito antes de os colonizadores portugueses chegarem 18 Theodor Teoria "As ideias fora do considerados importantes pelas elites europeias Daí com suas cidades e com suas artes? Por outro lado, se a história 217 In Ao vencedor as saíram os grandes arquitetos, escritores, pintores, dramaturgos e</p><p>intelectuais, que passaram a incorporar a realidade brasileira como objeto e assunto principal das suas obras e estudos, mesmo que, em as artes nativas anteriores à chegada dos colonizadores para, em muitos outros aspectos, estivessem ainda presos aos padrões da cul- seguida, "tratar do período dito Primeiro, teriam vindo as tura europeia (que aqui tinha de se moldar aos interesses do impé- de pela mão dos colonos, depois as belas-artes, a arte e a arquitetura, com os jesuitas. As informações, em geral rio escravista). A fundação da Academia Imperial de Belas Artes foi a primei- bastante vagas, fazem supor que o conferencista nem sempre era ra tentativa de estabelecer uma didática da arte acadêmica culta, portador de um conhecimento direto e sistemático do objeto de seu de "bom gosto" e zelosa da tradição burguesa no país. o exercício Nem poderia ser. Como parte do projeto civilizador do Império, de sua mitologia sobre o a história da estético e político da Academia vinculava a produção artística aos ensejos do império e aos ideais de história do Instituto Histórico arte, como o resto, era pensada de um ponto de vista que tinha no Rio de Janeiro imperial seu lugar central. Por sobre essa visão do e Geográfico Brasileiro, fortalecendo uma cultura acadêmica que enfatizava a história nacional, produzindo versões que eram fruto surge a busca de um cânone, ou de uma sequência evoluti- va, que configure a constituição da nação e de sua arte. Como de- tanto de uma tradição clássica europeia quanto de ideologias forja- finiu perfeitamente Antonio Candido, ao abordar a proliferação de das nos gabinetes do instituto. biografias de nacionais produzidas pelo Instituto Histórico Foi nesse contexto que surgiu Manuel de Araújo Porto-Alegre imperial, tratava-se de "um espírito plutarquiano que conduzia ao (1806-79), normalmente visto como "pai fundador" do estudo das embelezamento do cujo objetivo era "estabelecer um pas- artes "brasileiras". Aluno predileto de com quem viajou à 21 Guilherme Simões Gomes sado ilustre; dar cartas de nobreza à nossa vida mental, [...] uma França, ele é um marco da noção romântica de busca da brasili- Jr. Palavra Barroco espécie de ritual patriótico de ressurreição, fortalecido pela teoria dade, de um ponto de vista "europeu", mas também é algo mais e pensamento sobre artes e vigente a respeito do que apenas Intelectual múltiplo e eclético, foi pintor (des- letras no Brasil, Mais adiante, o autor resume bem o Porto-Alegre esboçou algo que seria reiterado no futuro como de quando se tornou aluno da Academia e de Debret), desenhista, papel de Porto-Alegre:"um elo uma necessidade para uma história social da arte e da cultura bra- escreveu poesia e dramas épicos, aventurou-se pelo naturalismo, importante no projeto cultural que, desde os tempos joaninos, Uma possibilidade que será vista como dificuldade, quase pelo memorialismo, foi diplomata, polemista, críti- visa colocar Brasil no circuito uma impossibilidade: "a história de uma nação está inteira na his- administrador da academia etc. Ao voltar de sua estadia na das artes do Ocidente a partir de uma nova Por tória dos seus vestuários, porque deles se colhe o contato que hou- França, Porto Alegre fundou a revista marco do Romantis- um lado, atua no sentido do vera com os povos de que importara os tecidos, e de quem imitara mo no Brasil, cujo subtítulo era Revista Brasiliense de Ciências, Letras e resgate da história das artes da o trajo; assim como de seu estado de volubilidade pela rapidez de época colonial e da preservação Artes. o periódico durou apenas dois números, mas literalmente daquilo que fora legado do mudanças de modas Olhe-se de sangue-frio para todas fez escola. Segundo o crítico e historiador Mário Barata, a atuação não ocultando as modas que houveram em França nestes últimos sessenta anos, inclusive certa curiosidade por de Porto-Alegre na Academia "impulsionava a pesquisa e procura- expressões de caráter mais compare-se com a sua história, e que ela vai de acordo com va incentivar o exemplo brasileiro, a arte nacional, em prejuízo da como, por exemplo, todas estas mudanças de constituições políticas e de dinastias [...] caso da musicalidade brasileira, simples cópia da Antiguidade. Renovou as pensões de viagem, a assunto que havia abordado em com uma precisão de fidelidade que 20 Mário Barata "As artes biblioteca e a pinacoteca nos seus três anos e meio de administra- plásticas de 1808 a In: artigo para a em o "sangue-frio" ao qual se refere o crítico romântico era exata- História geral da civilização ção fecunda e mente a capacidade de ver a totalidade da produção social da cul- Brasil 22 Antonio Formação da É de Porto-Alegre o texto que se convencionou chamar de inau- p. 414 Sobre e literatura tura (seja a da arte culta, seja a da moda ligeira) como uma tarefa, gural da história da arte brasileira: État des Beaux-Arts au Brésil, pu- sua época, Leticia 23 Araújo como um projeto de construção de um autorreconhecimento na- Brasil nas letras de um ideias sobre as Belas- blicado na França em 1834 mesmo ano em que Debret publica sua -Artes e a indústria no Império cional. Poucas décadas depois, outro importante crítico, Gonzaga Manuel de Araújo Porto-Alegre Voyage et historique au Brésil. Em seu breve ensaio, ele resume (1806-1879) do Duque, via a batalha sobre ter uma arte e uma história</p><p>dela, por outro ângulo, não menos pessimista e certamente mais nacionalista. Segundo esse a vida cultural brasileira era so- o denominador comum de todas as atividades relacionadas con bretudo uma glosa, uma de expressões estrangeiras, lusas cinema "entre Mas "mediocridade", para o grande ou francesas. Ferrenho antiacadêmico, advogou a causa de um rea- de nosso cinema, tinha um sentido bem preciso: ela significava lismo nacional que viu concretizado, por exemplo, na célebre pin- "resultado direto de uma conjuntura" que ele chamou de tura de Pedro Américo, batalha do Avai (1877, ver p. 188), na qual" uma situação na subdesenvolvimento não é um artista abandonou as cediças da composição acadêmica e compôs o etapa, um estágio, mas um A ideia que segue é a explica sujeito como melhor entendeu, para transmitir mais diretamente ção do drama hamletiano do intelectual ou do artista periféric a impressão a escapar assim dos "austeros princípios da e nos interessa bastante: "Não somos nem europeus nem amer arte, que tanto preocupam os críticos canos do Norte, mas, destituídos de cultura original, nada nos Um século depois de Porto-Alegre, um dos nossos primeiros estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos S e mais consequentes críticos modernos de arte, Lourival Gomes desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser Machado (os outros foram Sérgio Milliet e Mário Pedrosa) alerta- filme brasileiro participa do mecanismo e o altera através de noss va sobre a persistência da dificuldade em entendermos de modo incompetência criativa em copiar."28 amplo nossa produção artística: primeiro historiador da arte Ainda que o resumo possa ser forçado e pouco sutil, a ideia qu brasileira, sistemático e com visão geral do desenvolvimento nos interessa retirar daqui é que, em nossas paragens, o process criativo só se torna consciente de suas forças, pode desencadea cultural, erudito e capaz de interpretação, este ainda não o ti- suas forças, a partir do momento em que toma pé, em que interna Monografias soberbas aparecem por vezes e, em muitas liza essas ambiguidades, essa "dialética 1) a oportunidades, uma monografia por exemplo, sobre o de como sinal; 2) o estado de subdesenvolvimento como base: e 3) vale pelo estudo de uma época. Não basta, Fica- incompetência criativa em copiar como ponto de partida. Quant rão provisoriamente faltando aqueles estudos em que, mais que mais criativos em nossa incapacidade de copiar, menos mediocre o grande artista ou período caracterizado, constituam as ligações, somos, mais nos afastamos e podemos aprender, e até mesmo fo as passagens intermediárias, as transições, o interesse central do malizar, nossa base subdesenvolvida. Em resumo, a situação d historiador. E. infelizmente, só é história verdadeira a que mos- precariedade ou de marginalidade que se manifesta como situ tra como a cultura transita se transformando, como os padrões ção de subdesenvolvimento permite ou mesmo demanda ao arti adquirem uma medida de evolução, de ta brasileiro acolher o conflito de que participa, internalizando A lucidez de Machado é cortante: mesmo depois de nossa radical e apontando outros caminhos, como faz o autor e bem-sucedida aventura modernista, o conhecimento do "trânsito" imaginado por Paulo Emílio, ao reconhecer e criar a partir de su de nossa cultura de forças e seus "padrões" incapacidade mimética. (sua "estrutura de na linguagem de Raymond Wil- E o que fizeram nossos melhores artistas, senão exercitar liams) ou das medidas de sua "evolução" e (ou sua 24 Luis Gonzaga Duque brilho essa "incapacidade criativa" de imitar, chegando mesm A arte D. "formação", segundo Antonio Candido) ainda havia se 25 Penso que aqui o autor se a ponto de superá-la, internalizando-a, formalizando-a e, assir Como explicar essa situação, em que a dificuldade tanto da refere sobretudo ao estudo 27 Paulo Emílio Salles alterando o mecanismo de que falava Paulo Emílio? Creio que pioneiro de Mário de "Uma situação In: arte quanto de sua história é uma constante, quase uma forma escrito em 1928: Crítica de cinema no Suplemento pode afirmar que essa incapacidade criativa de copiar e sua de "identidade"? o crítico de cinema Paulo Emilio Salles Gomes, Aspectos das artes plásticas no 2. da formalizadora e original estão na base e operacionalizam, 28 Paulo Emílio Salles usando um termo dúbio e aparentemente jocoso, disse certa vez 26 Lourival G. Retrato trajetória no mãos de um historiador atento, um trabalho consequente sob que a mediocridade, "marca cruel do subdesenvolvimento". era da arte moderna do Brasil, subdesenvolvimento, nossa história e sobre nossa formação E esse trabalho</p><p>poderia ter por base uma reflexão histórica sobre os impasses e as soluções que conformam a cultura brasileira, muito mais do que apenas uma descrição dos momentos decisivos de nossa vida vi- sual, estabelecendo uma linha de formação que vai além da mera questão da identidade um campo comum de impulso criativo que só aqui em nossa situação particular, colonial ou periférica poderia acontecer. o século XXI começou sem que a história da arte brasileira fosse estabelecida. Ainda assim, o novo século já nasceu assistindo ao grande sucesso e interesse pela arte brasileira em todo o mundo, mesmo que o mundo pouco consiga entender o que é essa arte. Por isso, ainda era preciso que uma lamentação correta de uma de nos- sas mais importantes críticas e historiadoras da arte, Aracy Amaral, fosse feita: "A intencionalidade e a consciência da função históri- ca da arte são, indubitavelmente, os principais fatores da relação que se estabelece entre os fatos artísticos de um mesmo período, entre os períodos sucessivos, entre a atividade artística em geral e as demais atividades do mesmo sistema cultural. Essa inserção na- tural da arte na história das sociedades é ignorada no Brasil, onde assistimos estarrecidos a um processo de desculturação galopante [...]. A relação da arte com a sociedade não se coloca no estágio em que vivemos, pois não parece que haja preocupações com a arte do passado, o que seria fundamental para assentar, criar e divulgar nossa Resistir a essa "desculturação" é preciso. Escrever a história da arte no Brasil, da dificuldade da arte no Brasil, também. Uma coisa não pode ser separada da outra. 29 Aracy Amaral "Bienais e artistas no In: Textos do Trópico de artigos e p. 240</p><p>ANNE-MARIE PESSIS DOUTORA EM LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS (ARQUEOLOGIA PRÉ- A ARTE COMO PELA UNIVERSIDADE conceito de arte é um fenômeno histórico. Para os ARQUEOLOGIA / SAMBAQUI / ZOOLITO / ARTE RUPESTRE PARIS X NANTERRE. DOCENTE NO / GRAVURA / ETNIA / TRADIÇÃO / TEMBETÁ / URNA ARTE povos de tradição oral, na Pré-História, ele não exis- PROGRAMA DE POS-GRADUAÇÃO EM tia. A ideia de manufatura do objeto artístico é uma FUNERÁRIA / TAPAJÓ / PARQUE NACIONAL DE SETE ARQUEOLOGIA DA UNIVERSIDADE concepção burguesa que não caberia em uma socie- CIDADES / / GRAFISMO / MONTE ALEGRE FEDERAL DE dade para a qual o essencial é a sobrevivência COORDENADORA GERAL DO INSTITUTO saber e tempo eram os elementos básicos da ma- PRÉ-HISTÓRICA NACIONAL DE nufatura funcional. Assim, entre as sociedades pré- PALEONTOLOGIA E AMBIENTE DO -históricas, objeto criado pela mão humana tinha SEMIÁRIDO finalidade prática e imediata, fosse ela material ou PESQUISADORA DA FUNDAÇÃO MUSEU imaterial, e era parte das estratégias de DO HOMEM AMERICANO - FUMDHAM E cia dos grupos humanos, por mais que, sob nossa DA FUNDAÇÃO BOLSISTA ótica atual, possa ser indistinguível o imediatismo PO I-A DO DO BRASIL: dessas estratégias. É sob esse aspecto que analisamos as manifesta- GABRIELA MARTIN ções da Pré-História no Brasil que podemos consi- DOUTORA EM ANTIGA PELA derar artísticas resultantes de uma manufatura, UNIVERSIDADE DE VALÊNCIA E uma ars, no sentido mais abrangente do vocábulo EM TEORIA E DA TÉCNICA latino: habilidade, ofício ou profissão, que pretende EM ARQUEOLOGIA PELA UNIVERSIDADE resultados conceito de ars permite-nos DE BARCELONA (ESPANHA) DOCENTE trabalhar com acuidade, ao considerar a arte pré- DA NO PROGRAMA DE EM uma manufatura cuja evolução segue os ARQUEOLOGIA DA UFPE. PESQUISADORA passos do cognitivo ao lúdico e, por fim, ao social. DO INSTITUTO NACIONAL DE Entende-se que não existe objeto meramente ludes PALEONTOLOGIA E homini, pois a atividade lúdica tem a função de exer- AO OBJETO AMBIENTE DO SEMIÁRIDO cício da motricidade, que precede a realização da DA FUNDAÇÃO manufatura com finalidade funcional. MUSEU DO HOMEM AMERICANO A arte, como teknè, significa o domínio técnico FUMDHAM E DA FUNDAÇÃO que permite a realização de uma manufatura na EDITORA HONORÁRIA DA REVISTA qual são atingidos diferentes graus de refinamen- BOLSISTA to. Esse refinamento é quantificável, na medida em PO I-A DO que se atinjam os objetivos propostos, e se traduz</p><p>em um equilíbrio entre todas as etapas da rea- vida espiritual. Eventualmente, esses objetos lização do objeto. Manifesta-se na escolha da entram na categoria de objetos artísticos sob cultos, Hoje, trata-se mais de uma forma de o descobrimento do fogo e dos recursos para matéria-prima, no processo de manufatura e a nossa ótica, quando o refinamento das téc- entendimento inter pares do que uma definição conservá-lo permitiu a conquista de terras de no acabamento final, aplicado ao fim que se nicas empregadas produz para nós um efeito do fenômeno humano das representações ru- clima frio e a possibilidade de afastar perigos pretende alcançar. Toda manufatura apresen- estético que ultrapassa sua finalidade funcio- pestres pré-históricas em âmbito e medos da noite, aumentando a capacidade ta uma dimensão estética visível, que se mani- nal deles. "Registro rupestre" substitui, na pesquisa humana de abstração, quando surgem a pala- festa na qualidade da sua realização material e Nas sociedades indígenas do Brasil, a inova- arqueológica, a expressão "arte pre- vra e a arte. o homem passou por um estágio mostra com clareza a importância do detalhe ção técnica foi historicamente mal compreen- tendendo liberar da conotação puramente esté- técnico anterior ao surgimento da arte, no qual e da qualidade do produto vinculado a uma es- dida. Foi estabelecido, assim, o preconceito tica algo que constitui uma das primeiras ma- a palavra foi um antecedente da imagem, esta- tética da técnica. Na arte, como dimensão da da sociedade brasileira, herdado da conquista nifestações artísticas do homem, ao menos em belecendo-se assim um preâmbulo de símbolos técnica, manifesta-se a universalidade de um europeia, que considerava a sociedade indí- grandes áreas geográficas em que a arte móvel vocais que precederiam os símbolos A perfil profundamente A procura da em pedra e osso não aparece anteriormente às gena deficiente cultural. Entretanto, foram concepção materialista, que considera a ori- qualidade técnica da obra de arte, entendida gravuras e pinturas realizadas sobre a suas descobertas e invenções técnicas que lhe gem da arte a partir da técnica, já fora formula- como a relação de equilíbrio entre os compo- A arte pré-histórica do Velho Mundo coin- permitiram suprir suas necessidades específi- da no século XIX, em oposição à teoria idealista, nentes da cadeia operacional, existe desde a cide com o Paleolítico Superior e, na América, cas, determinadas principalmente pelas im- para a qual a tendência artística do ser huma- Pré-História aos dias atuais. A especificidade com datas paralelas, corresponde à arte de ca- posições ambientais. Foram soluções técnicas no não depende das limitações da matéria e dos cultural manifesta-se na técnica e torna-se o difusionismo e o egocen- inteligentes, que viabilizaram uma qualidade A capacidade de contar também trismo europeus, no momento de discutir as universal na busca pela perfeição da dimensão de vida equilibrada com o ambiente e com os levou o homem a fazer riscos nas rochas numa origens da arte estão descarta- artística da obra final, inserida em seu contex- valores privilegiados em cada uma das comuni- fase pré-estética. Contar, lógica explicação dos, pois a arte rupestre nasce quase simulta- to cronológico e ambiental. Afirmativas triunfalistas da existência para tantos grafismos semelhantes no mundo neamente em diversos lugares da Terra. Nasce Os vestígios arqueológicos são produto da de culturas superiores e denegatórias "do dife- Contas, seja dos animais caçados, de no Paleolítico Superior, tomado esse período atividade cotidiana das sociedades pretéritas. rente" arquitetaram falsas teorias quando foi inimigos abatidos, de dias e noites passados. em dimensão cronológica, mais do que cultu- Cada objeto arqueológico constitui, de certa Enfim, uma atividade utilitária inserida nas conveniente aos novos donos do poder. ral, ou seja, em torno de 30 mil-25 mil anos forma, um produto tecnológico, e é através origens da Na longa noite da arte, a lasca nele, as primeiras manifestações esté- dele que podemos conhecer o desenvolvimento de pedra e o galho da árvore, ou a própria mão ticas estão representadas por pequenos objetos das sociedades pré-históricas. A evolução dos nua foram instrumentos lúdicos de atividade 0 REGISTRO RUPESTRE NAS ORIGENS DA ARTE de osso ou de pedra, ou aparecem estampadas manual a satisfazer a natural tendência huma- objetos arqueológicos, dentro de sequências "Arte rupestre" é termo consagrado desde o sé- nas paredes rochosas, com o uso de tintas ve- cronológicas, leva-nos ao estabelecimento na para o grafismo. culo depois das primeiras descobertas das getais ou minerais, nos cinco o da periodização, que tem como fim precípuo A validade ou não do termo "arte", aplicado cavernas paleolíticas pintadas na Espanha e na surgimento da arte pré-histórica como um flo- aos registros rupestres pré-históricos, é tema determinar as diversas fases da evolução cro- França. Isso não significa que não se conhece- rescer simultâneo em várias partes do mundo sempre discutido, mas, na medida em que notecnológica das o objeto arqueo- ram muito antes gravuras e pinturas pré-his- relaciona-se com os processos da evolução e do toda manifestação plástica compõe o mundo lógico, seja ele um instrumento, artefato, tóricas realizadas nas rochas, mas a erudição aumento da capacidade cognitiva do gênero das ideias estéticas, elas também fazem parte fragmento ou registro gráfico do que se tem de tempos passados não as considerou ações Homo, que lhe permitiram o desenvolvimento da história da arte. A discussão do valor como chamado cultura material, é um documen- humanas relevantes para que fossem integra- dos processos de abstração. Considerando que "arte" dos registros rupestres tem sido objeto to sobre os grupos humanos pré-históricos, das às ideias estéticas da humanidade. Não o Homo sapiens tem perto de 200 mil anos e que de polêmica entre arqueólogos e historiadores sobre a sua organização social e os seus cos- se discute o significado do termo "arte rupes- a arte pré-histórica começou há 30 mil anos, da arte, pela simples razão de que tanto uns tumes, mitos, rituais, lutas, alimentação e tre", usado em praticamente todos os idiomas podemos aceitar que seja "uma arte moderna". como outros procuram respostas diferentes às</p><p>mudanças culturais que acontecem na socieda- essas obras Como sistema de comu- de. Essa evolução natural da cultura manifes- nicação, os registros rupestres não apresentam ta-se na evolução do registro necessariamente um significado completo e rupestre de cada Explicar as origens, a podem fazer parte de conjuntos associados a evolução e a dispersão das diferentes manifes- formas verbais e gestuais que, naturalmente, tações rupestres pré-históricas é a meta das di- se perderam no tempo. Consideramos a arte ru- visões e classificações estabelecidas como ins- pestre a representação gráfica de uma lingua- trumental de gem e de um pensamento que se relacionam e As pinturas e gravuras rupestres se modificam de acordo com as condições ma- ricas são a expressão de dois aspectos únicos do teriais da sua existência. fenômeno humano: a capacidade de desenvol- A tradição oral foi o principal instrumen- ver técnicas de controle da matéria-prima para to de difusão da cultura, mas a fragilidade produzir objetos de funcionalidade polivalente da memória humana originou a percepção e a potencialidade de utilizar esse produto para de que a transmissão oral não era suficiente representar materialmente o seu simbolismo para a preservação da tradição o ho- e a sua imaginação. A natural tendência hu- mem precisou fixar graficamente suas ideias, mana para o grafismo é o veículo de registro do seus mitos e seus Uma única palavra sistema de comunicação gráfica. pode resumir a função dos registros rupestres pré-históricos em termos globais: tratar-se-ia MARCAS DE MÃOS da sobrevivência do grupo autor, indicando DESENHADAS ARTE RUPESTRE NO BRASIL marcadores de presença, de relações de poder LAJEDO DA falar da arte deste ou daquele grupo que vive- Podemos afirmar que o registro rupestre é a e de comunicação. RN ram em determinado período, em determinada FOTO ANDRE PESSOA primeira manifestação estética da No processo de identificação das figuras área e em determinadas condições de sobrevi- ria Além do evidente interesse ar- rupestres, é possível distinguir os grafismos vência, configurando-se, assim, a "história" queológico e etnológico das pinturas e gravuras reconhecíveis, unidades gráficas que apresen- de um grupo humano nos seus diferentes as- rupestres como indicadoras de grupos étnicos, tam suficientes traços essenciais de identifi- mensagens que as pinturas e gravuras rupes- pectos ecológicos, entre os quais se incluem os na ótica da História da Arte elas representam o cação, permitindo o reconhecimento imedia- tres o arqueólogo, porém, não espirituais e os começo da arte to de uma representação do mundo poderá ignorar os registros rupestres na sua di- o homem relaciona-se com os objetos e fe- Pinturas e gravuras rupestres são vestígios e os grafismos não reconhecíveis, formados mensão estética, considerando-se a habilidade nômenos que o Para compreender e arqueológicos que constituem sistemas visuais por conjuntos de traços que não permitem manual e o poder de abstração que levaram o apreender o mundo real ou imaginário, utiliza de comunicação social, formados por elemen- nenhum reconhecimento do mundo homem a usar recursos técnicos e operativos recursos como a linguagem, o gesto e a repre- tos gráficos que fazem parte dos padrões de vel. Consideramos que a forma classificatória nas representações gráficas sentação gráfica dessa linguagem e desse gesto, apresentação próprios das comunidades pré- mais segura seja estudar as técnicas do traçado Conhecer o contexto arqueológico que por- a qual também depende dos recursos materiais A análise desses registros visuais identificando perfis Esses perfis com- ventura acompanhe as manifestações rupes- de que dispõe. A representação é uma interpre- ajuda a identificar os padrões gráficos utiliza- pletam-se com o estudo dos pigmentos e da tres é a forma de identificar os grupos étnicos tação que o indivíduo faz do real, e tanto uma dos por seus autores e, em consequência, di- preparação das tintas, dos implementos líticos às quais pertencem. Somente assim pode-se como outra modificam-se e evoluem com as ferenciar os grupos culturais responsáveis por usados para gravar, no caso das gravuras, e de</p><p>quantos elementos técnicos seja possível reco- Arasoagipe, gravuras que considerou e des- por natureza, riscava caprichosamente sua nhecer, a partir do pressuposto de que a técnica creveu como "uma cruz, caveiras de defunto e arte Entre os cientistas e eruditos de é mais conservadora e demora mais a mudar do desenhos de rosas e como se lê nos séculos passados, temos a destacar, porém, a que o desenho em si mesmo, no qual entra o Diálogos das grandezas do Anos depois, em acurada opinião emitida por Spix e Martius em lado subjetivo da mão 1641, Elias Herckman, sob as ordens do gover- relação a algumas pinturas rupestres encontra- As preferências observadas na escolha do no da Holanda, chegou à Capitania da Paraíba das na Serra do Anastácio, em Minas Gerais: suporte e na utilização e no aproveitamento do e relatou ter visto inscrições em E o "Sobre uma grande rocha de granito, saliente, espaço pictural, assim como as soluções técni- padre João de Sotto Mayor registrou, em perto do seguimento da Serra do Anastácio, cas para representar a profundidade, também a existência de gravuras na A partir encontrei várias inscrições primitivas e singu- PINTURA RUPESTRE são dados que podem contribuir com propostas desde fins do século XVIII, com o lares, sem dúvida, provenientes dos antigos FOTOS PESSOA de conteúdo A tendência atual, rio do padre Francisco Corrêa Telles de Menezes indígenas, moradores dessa região. Constam entre os arqueólogos, é não interpretar as re- na sua Lamentação as pinturas e gra- de linhas retas e curvas, pontos e es- presentações rupestres, mas proceder a análi- vuras parietais pré-históricas do Brasil foram trelas e parecem, pela sua disposição em filas, ses mais técnicas do que interpretativas, uti- visitadas, copiadas, comentadas e, algumas ter possuído realmente significado para os lizando critérios técnicos que permitem saber vezes, publicadas. Houve também numerosas dios; são, porém, agora, difíceis de decifrar. como os grafismos foram realizados, quais os tentativas de análises, fantasiosas na maioria Foram desenhados com tinta pro- recursos materiais empregados e, principal- das vezes, desprovidas de lógica e fundamento vavelmente argila vermelha misturada com mente, quais grafismos podem ser considera- Entre elas, a obra monumental do urucu e óleo, e pelo aspecto pareciam datar de dos representativos de um horizonte cultural amazonense Bernardo Azevedo da Silva Ramos, muito tempo. De nenhum modo poderia ten- Inscrições e tradições da America pré-histórica, especial- tar explicá-las. Mas não se trata de simples Os estudos realizados nas últimas décadas mente do chega ao paroxismo da fantasia. rabiscos grosseiros irrefletidos, de mão inex- identificaram as várias "províncias" rupestres o autor não somente viu inscrições gregas e fe- periente, mas acha-se justificada a opinião de brasileiras, das quais pela sua nícias nas gravuras indígenas, como também que neles está representado algum pensamen- unidade e concentração de sítios, a Região as leu e traduziu segundo sua ingênua e mag- to, que o autor procurou significar."s Nordeste, a Amazônia, os cerrados goianos e a nífica imaginação. Paralelamente, outros eru- Desses primeiros relatos sobre a bacia do alto São Francisco, em Minas Gerais, ditos de um período que poderíamos chamar ria brasileira, que misturam achados reais com embora, com menor localizem-se pré-científico pecaram pelo extremo oposto, fantasias sobre civilizações perdidas, alguns também em praticamente todo o Áreas desprezando o inegável valor arqueológico e es- chegaram aos nossos dias na esteira das cren- tão amplas apresentam, por sua vez, grande tético da arte rupestre brasileira, que conside- dices dos primeiros descobridores e desbravado- diversidade estilística e cronológica. raram simples ludus homini, entretenimento de res, muito em especial dos missionários, que Desde o começo da colonização, existem selvagens sem ter o que fazer, como a definiu o precisavam de uma explicação bíblica e pós- notícias sobre a existência de pinturas e gra- francês Louis Brunet, que trabalhara a serviço -diluvial para que se justificasse a existência vuras indígenas no Brasil. o ano de 1598 re- de D. Pedro nosso erudito imperador tão de- de homens na América. Assim, a arte rupestre gistra a mais antiga referência documental sejoso de pesquisar a arqueologia Da foi terreno fértil para toda classe de interpreta- de uma gravura rupestre no Brasil, quando o mesma opinião era Alfredo de Carvalho, autor ções, pois as enigmáticas pinturas e gravuras da Paraíba, Feliciano Coelho de da Pré-História sul-americana, publicada em 1910, espalhadas pela imensidão dos sertões ou na Carvalho, encontrou, junto a um rio chamado para quem "o índio, preguiçoso e indolente profundidade das florestas convidavam a toda 1 Brandônio Fernandez Diálogos das 4 Alfredo de Pré-História sul-americana comentada por Tristão de Alencar Araripe na Revista do grandezas do Brasil Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.) 5 Johann Spix Carl Viagem pelo Brasil 1817-1820 2 Francisco Corrêa Telles de Lamentação brasili- Edição comemorativa do centenário do falecimento do 3 Bernardo Azevedo da Silva Ramos Inscrições e tradições V. .74 (Manuscrito original existente no Instituto ilustre sábio e grande amigo do Brasil, Von Martius da América especialmente do Brasil Histórico e Brasileiro do Rio de Obra</p><p>sorte de fantasias. A magia propiciatória da símbolos femininos ou masculinos, animais caça, o culto à fertilidade e a iniciação sexual fantásticos ou o movimento das eram os temas favoritos nas interpretações do res, cobras, macacos e jacarés nem sempre são registro figurativo. o estudo do simbolismo é representados figurativamente no grafismo ru- um grande desafio, na medida em que depa- pestre. Uma linha ondulada pode representar ramos com a dificuldade de definir o não visí- uma serpente para determinado grupo, mas vel. A procura do "oculto" que está por trás do não significa que também o seja para a tribo registro gráfico não figurativo é terreno fértil vizinha e muito menos para um indígena de para interpretações ilógicas e, não poucas ve- mil anos Em virtude disso, chamamos zes, abrigo da ignorância. A preocupação em a atenção para o extremo cuidado que se deve GRAFISMO RUPESTRE conhecer e "decifrar" o que queriam dizer pro- ter na hora de interpretar certos desenhos que DA TOCA 00 COSMOS duziu enorme quantidade de bibliografia, des- poderíamos denominar "universais", encon- CENTRAL BA FOTO CLAUS MEYER/TYBA de trabalhos sérios a fantasias as mais desvai- trados em regiões muito afastadas entre si. A As interpretações foram especialmente "universalidade" de desenhos semelhantes, ou férteis nos casos em que os registros eram ri- até iguais, em várias partes do mundo, muitas cos em grafismos não figurativos, com ou sem vezes levou a difusionismos exagerados e com- representações figurativas a eles parações Interpretações de cosmogonias e linguagens Convencionamos chamar de "grafismos pu- codificadas, precursoras dos verdadeiros hieró- ros" as unidades gráficas não reconhecíveis no glifos, são leituras corriqueiras nos grafismos mundo as quais podem ser desenhos de cunho complexos ou formas mais simples, que, nas Muitas dessas interpretações poderiam origens do desenho, poderíamos chamar de aproximar-se da mas o problema primárias e que se repetem em todo o está sempre no seu valor Até que Pretender encontrar algum significado lógico ponto elas são válidas para a identificação cul- em grafismos semelhantes, porém separados tural dos grupos étnicos que foram seus auto- por cronologias desconhecidas e pertencentes a res? A comparação etnográfica pode nos servir grupos étnicos também desconhecidos, resulta de exemplo: se observarmos as numerosas in- em uma tarefa inútil, ao contrário de terpretações que cada grupo indígena contem- qualquer outra manifestação da arte univer- porâneo atribui aos seus próprios desenhos, sal falta o contexto documental que muitas vezes iguais ou semelhantes entre as situe a obra no seu tempo. Isso não significa diversas tribos, mas com significados total- que a coleta e o estudo minucioso dessas repre- mente diversos, veremos como é perigoso gene- sentações gráficas sejam inúteis, pois a iden- ralizar os significados. Desenhos tão comuns e a conotação da tendência repetitiva nos registros rupestres, como espirais, círcu- das formas, de sua técnica de elaboração, sua los, figuras radiadas e linhas paralelas ondu- presença ou ausência nas diferentes regiões ladas, podem significar, dependendo da tribo, são elementos indicadores que auxiliam na</p><p>identificação dos horizontes rupestres em cada universo estético. A atemporalidade do regis- área arqueológica do Brasil. tro rupestre é outro fator negativo na interpre- registro gráfico. Muitas e muitas vezes, as pin- os arqueólogos tentam apreender e subdividir, A tendência natural, diante de um painel tação e no relacionamento com as outras va- turas, e ainda mais as gravuras, em especial no para fins tanto didáticos quanto rupestre, é procurar um significado imediato, riáveis do registro arqueológico. A dificuldade Brasil, são a única variável visível que marca a No estudo da arte rupestre, como no dos ou seja, procurar "ler" o que está ali escrito ou de estabelecer sequências cronológicas leva, presença humana e identifica sítios outros períodos da História da Arte, além dos o que se pretendeu contar. Por isso é que os muitas vezes, a tratar a arte rupestre de deter- gicos. Muitos deles foram pintados ou gravados estilos generalizados, analisa-se cada artis- painéis de grafismos puros ou abstratos são minada área sem se levar em conta que, em sem que as condições de permanência no local, ta e cada obra em separado dentro das linhas tão decepcionantes aos olhos leigos. Há uma sítios vizinhos ou até em um mesmo abrigo, ou a escolha seletiva das rochas ao longo dos mestras Sabe-se que, dentro de inclinação a segregar as cenas imediatamente pode haver grafismos com separações crono- cursos de água, permitam obter vestígios de uma mesma tradição, cada abrigo, cada pa- cultura material factíveis de relacionamento identificáveis, as que nos contam uma his- lógicas de milhares de Com frequência redão pintado e cada painel foram realizados encontra-se nos painéis rupestres o aproveita- seguro com as representações tória, as mais de acordo com nosso por autores As variedades assinala mento de imagens anteriores, utilizadas para Temática e técnica são os dois pilares sobre das numa mesma tradição seriam o lado mais os quais se apoiam as classificações e divisões uma nova composição. subjetivo da obra. Da mesma forma que não dos registros rupestres brasileiros, e são defi- GRAFISMOS RUPESTRES São conhecidas as dificuldades de relacionar há duas obras de arte iguais, a não ser que se nidas com o nome de tradições. A classifica- a arte rupestre com a cultura material identi- trate de cópia, não há dois painéis rupestres SÍTIO ARQUEOLOGICO ção em "tradições" e outras divisões é a forma VALE MG ficadora dos grupos étnicos responsáveis pelo repetidos, pois o que se repete são as ideias e os operacional que os arqueólogos empregam FOTO CLAUS MEYER/TYBA comportamentos, plasmados graficamente de para separar e identificar as formas de apre- modo subjetivo. Vemos assim que as respostas sentação gráfica utilizadas pelos diversos às análises do registro rupestre podem ser bem grupos das quais raramente conhe- diferentes, mas sempre são complementares, a cemos o Essa realidade distingue a depender se as indagações são estilísticas, téc- arte pré-histórica das restantes manifestações nicas ou arqueológicas. estéticas do homem. Pode-se afirmar que há unanimidade entre os pesquisadores em reco- nhecer como elementos-chave identificatórios 0 INDIGENA BRASILEIRO de uma tradição rupestre a temática e como Entender quem foram os indígenas no Brasil esta vem a ser representada, identificando-se antes da colonização europeia nos ajuda a com- nela conjuntos emblemáticos que represen- preender as suas manifestações estéticas e a sua tam uma ação não reconhecível, que se repete finalidade. o indígena dessa fase, no seu nível em numerosos Concede-se também ao cultural mais nunca ultrapassou o conceito de tradição, sem discrepâncias, gran- estágio pré-urbano. Não trabalhou a pedra, o de abrangência geográfica. Divisões posterio- tijolo ou o adobe para a construção de moradias, res fixaram as subtradições como obra de um não conheceu os metais, a roda nem o torno do grupo vinculado a uma tradição e adaptado a Sua organização social não estava dividi- um meio geográfico e ecológico diferente, o da em classes, mesmo que, dentro da categoria que implica a presença de novos da tribo, tenham sido assinaladas hierarquias No meio dessas divisões, encontramos um guerreiras ou religiosas. Sempre andou nu ou mundo gráfico extremamente complexo, que seminu, adaptado ao clima cálido do Brasil</p><p>tropical. o grande interesse da Pré-História vezes, inocentes criaturas ávidas por serem brasileira consiste em se observar a capacidade cristianizadas outras vezes, seres nus, selva- trazia um arco e seis ou sete e na praia de adaptação do homem a uma natureza par- gens e a depender do interesse andavam muitos com seus arcos e Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma ticularmente adversa e constatar que, nesse político do momento. A arqueologia pré-his- que lhes cobrisse suas Nas mãos meio hostil, ele foi capaz de criar e desenvolver que nas últimas décadas tem avançado CHEFE DOS INDIOS traziam arcos com suas Vinham todos uma arte impar, como são as pinturas rupes- consideravelmente no país, vem acumulando XIX rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez FOTO MARC tres situadas nos domínios do semiárido ou as dados sobre a presença humana nas terras do sinal que pousassem os E eles os pou- ACERVO extraordinárias cerâmicas das culturas Brasil desde o fim do o conheci- BIBLIOTECA NACIONAL saram. [...] BRASIL nicas da floresta tropical. mento relativo às vias de chegada e expansão A feição deles é serem pardos, maneira de A visão reducionista fez dos indígenas ame- dos grupos humanos arcaicos no continente avermelhados, de bons rostos e bons narizes, ricanos seres homogêneos sob o ponto de vista sul-americano apresenta ainda numerosas Andam nus, sem cobertura al- cultural, linguístico e racial, e todos receberam cunas, embora os caminhos do mar sejam, por guma. Nem estimam de cobrir ou de mostrar a denominação genérica de o denomina- enquanto, a alternativa mais suas vergonhas, e nisso têm tanta inocência dor comum foi sempre o índios eram A farta documentação sobre as populações como mostrar o selvagens e a sua estrutura social devia ser mo- indígenas do Brasil com a Carta de Pero Além do rio, andavam muitos deles dan- dificada e adaptada às normas sociopolíticas da Vaz de Caminha dando conta ao rei de Portu- cando e folgando, uns diante os outros, sem se nova ordem, seja de forma pacífica ou violenta. gal da descoberta do Brasil, mas a utópica "ilha tomarem pelas E faziam-no bem, [...] A sua forma de vida atraiu interesse como um Brasil" já circulava pela cartografia imaginária levou consigo um gaiteiro nosso com sua gai- objeto de curiosidade, mas sem nenhum respei- renascentista muito antes da chegada da frota ta. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os to por sua história. A história é a dos povos civi- de Cabral. Batizada nos primórdios do desco- pelas e eles folgavam e riam e andavam lizados; a dos indígenas é etnografia ou, como brimento europeu como "Terra da Vera a com ele muito bem ao som da gaita. [...] observou o americanista José Alcina nova pérola da Coroa portuguesa já havia milê- Andam bem curados e muito limpos [...] história da América é a história dos nios tinha sido descoberta e povoada por outros Andavam todos tão dispostos, tão bem-fei- portugueses e ingleses na América e o indígena homens, de outras terras e outras tos e galantes com suas tinturas, que pareciam apenas fez parte da paisagem, sem constituir No primeiro documento oficial da história bem. Acarretavam dessa lenha, quanta podiam, a história do continente antes da chegada dos do Brasil, o cronista da expedição de Cabral com mui boa vontade, e levavam-na aos A realidade, porém, era diferente, fez um ameno retrato dos indígenas avistados, Andavam já mais mansos e seguros entre pois a heterogeneidade do elemento indígena num relato quase bucólico do que infelizmente do que nós estávamos entre eles. [...] compreendia, nos tempos da conquista e da seria o prelúdio da tragédia anunciada que, para Assim, Senhor, a inocência desta gente é colonização, um mundo com grande densidade os povos indígenas, foi a colonização: "Dali avis- tal, que a de Adão não seria maior, quanto a de línguas. Seus respectivos grupos étnicos, tamos homens que andavam pela praia, obra de vergonha. [...] que apresentavam variadas categorias socio- sete ou oito, segundo disseram os navios peque- Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto culturais, desde bandos de caçadores nômades nos, por chegarem primeiro. [...] Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sex- a estados teocráticos, já tinham colonizado o E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em primeiro dia de maio de Pero continente havia milênios, chegados por vias um daqueles navios pequenos [...] tomou dois Vaz de Caminha." múltiplas e em levas Os povos que daqueles homens da terra, mancebos e de bons o povoamento pré-histórico da América do a conquista europeia descrevia eram, algumas corpos, que estavam numa almadia. Um deles Sul foi múltiplo, no tempo e no e os 6 José Alcina Franch Las Americas 7 Pero Vaz de Caminha Carta completa de Pero Vaz de Caminha Disponível out 2013</p><p>primeiros homens que atingiram o atual ter- verticais de grande beleza. As chapadas, co- ritório brasileiro fizeram-no através dos cor- como Serra da Capivara, marcam o redores andinos e seguindo os cursos dos rios limite do Parque Nacional, que ocupa uma su- que nascem na cordilheira. Outros grupos hu- perfície de 130 mil hectares na bacia sedimen- manos povoaram o litoral desde a área circum- tar sem que tampouco se possa descartar o clima semiárido da região não foi sempre a chegada de navegadores asiáticos pela via do como é na atualidade. Há cerca de 9 mil anos, Pacífico e também do Atlântico, aproveitando começou o processo de diminuição das chuvas, as correntes favoráveis que podem levar das iniciando-se a gradativa transformação da re- costas da África até o Nordeste gião, que já tivera clima tropical mu- dança que, em âmbito mundial, aconteceu na transição do Pleistoceno ao Holoceno. Existem A ARTE RUPESTRE DO NORDESTE DO BRASIL ainda hoje vestígios daquela vegetação tropi- A arte rupestre dos sertões nor- cal úmida nas profundezas dos cânions, perto destinos representa, sem dúvida, o lado mais de pontos de água perene, conhecidos como original e singular do mundo das po- olhos-d'água. As condições climáticas tropi- pulações indígenas do Nordeste do Brasil, que cais úmidas que precederam o clima semiárido foram capazes de criar e desenvolver uma arte atual permitiram o desenvolvimento de uma expressiva, como são as pinturas rupestres si- vegetação perenifólia que garantiu os recursos tuadas nos domínios do Não se co- alimentares para uma fauna de grande porte, PARQUE NACIONAL em toda a América, uma área majoritariamente herbívora, e que coexistiu SERRA DA CAPIVARA gica com a densidade de registros rupestres do com os grupos humanos que habitaram a re- FOTO ANDRE PESSOA áreas do semiárido nordestino, como Seridó, Parque Nacional da serra da Capivara, situado gião desde o Pleistoceno final. no Rio Grande do Norte, e a Chapada Diaman- no onde se acumula, por quilômetro o Parque Nacional da Serra da Capivara tina, na Bahia, regiões com marcada presença quadrado, uma das maiores concentrações de é um santuário cultural de épocas de sítios rupestres. pinturas rupestres do ricas, onde a maior parte dos sítios arqueo- reste seja suficiente para constatar a diversi- Nos 717 sítios com pinturas registrados na A singularidade e a riqueza dos sítios ar- lógicos tem as paredes rochosas cobertas de dade das obras realizadas, região do Parque Nacional encontra-se grande queológicos desse Parque Nacional lhe vale- pinturas rupestres, vestígios que restaram Os grupos étnicos autores dessas pinturas variedade de temas, com figuras antropomor- ram a inscrição na lista do Patrimônio Cultu- de práticas rituais repetidas ao longo de mi- viveram fora dos abrigos, em aldeias situa- fas e zoomorfas reconhecíveis, realizando ações ral da Humanidade (Unesco) em 1991. Situado Os conjuntos de pinturas que ainda se das em lugares planos no alto das chapadas e compondo diferentes Enfeites e atribu- no chamado Polígono das Secas, onde a caa- conservam são apenas repetimos, ou perto de fontes de água, rios sazonais ou tos acompanham a figura humana, sugerindo tinga se une ao cerrado e as irregularidades das representações milenares que, lamenta- reservatórios naturais, fato que se repete em diversas hierarquias e diferentes As fi- climáticas do Nordeste se fazem mais severas, velmente, vão desaparecendo com o tempo. outras regiões do Nordeste. o Parque Nacional guras são de tamanho desde 5 centí- o encontro das chapadas forma uma cadeia Sucederam-se numerosos gestos criativos rea- da Serra da Capivara é considerado o epicen- metros até mais de 1 metro, quase sempre em contínua de serras que, ao se encontrarem lizados por diferentes mãos durante gerações. tro de difusão de um horizonte cultural que se A luta, a a dança e o sexo são com a depressão periférica do médio São Fran- Verificamos que a maior parte do corpus pinta- iniciou há aproximadamente 12 mil anos BP8 habilmente representados com grande riqueza cisco, formam uma imensa linha de do vem desaparecendo, embora o que ainda espalhou-se em épocas posteriores por outras de interpretações, utilizando-se uma técnica 8 BP (before ou AP (antes do Termo "Antes do refere-se ao ano de 1950. quando qui- internacionalmente aceito e que em grande parte tem mico Frank Libby obteve a primeira datação de carbono AC (antes de Cristo) e DC (depois de Cristo) ou na Universidade de Chicago AD (Annus Domini) quando se trata de datações</p><p>paralelas de duas ou três cores. A finura do traço humanas que protegem ou seguram uma crian- das pinturas do Parque Nacional exigiu o aper- ça ou figura humana de menor tamanho e que feiçoamento de técnicas que permitissem uma parecem representar um ato de entrega. o gesto realização bastante Assim também e o rito perderam-se na longa noite da Pré-His- foi necessário conseguir pigmentos com con- mas nas rochas dos abrigos rupestres do sistência que evitasse escorrimentos na hora no Rio Grande do Norte, do sertão do de pintar. A descoberta, no Sítio do Meio, de Piauí e nas serras da Chapada Diamantina, na uma placa de arenito com restos de ocre e uma Bahia, ficou, como numa "fotografia", o gesto depressão central significa a utilização de uma do que poderia ser uma imposição de mãos de primitiva "paleta" de pintor. dois adultos sobre uma criança. Gesto de pro- Cenas formadas por grafismos que teção ou ritual de é inegável que o mos de emblemáticos são como representações desse horizonte rupestre que denominamos Tra- dição Nordeste. Duas figuras humanas de cos- PINTURAS RUPESTRES tas uma para a outra, separadas por um grafis- SÍTIO DO BOQUEIRÃO DA PEDRA mo na forma de tridígito, compõem uma dessas PARQUE NACIONAL DA PI figuras emblemáticas, assim como duas figuras FOTO ELISABETH MEDEIROS CACADA DA ONCA TOCA DA PARQUE NACIONAL inclusive em lugares distantes entre si, identi- SERRA DA ficam um horizonte cultural comum. FOTO ANNE-MARIE PESSIS Em toda a pintura rupestre do Brasil predo- mina a cor vermelha e suas numerosas tonali- dades, mas é comum encontrarmos outras cores, de traço leve e seguro. A presença de animais como a branca, a amarela, a preta e a Vale e figuras humanas é equilibrada. Essa rela- ressaltar que a utilização das cores não se reduz ção muda, dependendo das divisões regionais, à presença de uma só cor isolada. A policromia como na região do Seridó, onde é maior o nú- é visível nos grafismos, pois podemos encontrar mero de antropomorfos; pelo contrário, na área cores diversas num mesmo grafismo. Ensaios de central e na Chapada Diamantina, na "nuanças" surgem nas penas das aves e nos coca- registra-se maior ocorrência de Po- res das figuras humanas por exemplo, tucanos rém, a característica mais importante não é com bicos vermelhos e penas amarelas; emas apenas a representação do cotidiano, e sim gra- com três tonalidades de ocre nas um veado fismos representando cenas cerimoniais, cujo de branca destacando-se no meio de figuras significado nos escapa e que, precisamente humanas pintadas com tinta vermelha; grafis- por isso, quando repetidos em vários abrigos, mos puros de cuidadoso desenho formam linhas 9 Carlos Etchevarne Escrito na forma e movi- mento nos grafismos rupestres da Bahia</p><p>singelo, porém expressivo desenho represen- ta uma proteção ritual. As chamadas cenas da árvore também podem ser consideradas emble- mas dessa tradição. Nelas, figuras humanas dançam em torno de uma árvore, enquanto outras, mascaradas, agitam ramos no meio da dança. São composições que se repetem em abri- gos separados por grandes ARARA LAGARTOS o mundo que aparece nas pinturas rupes- SÍTIO ARQUEOLOGICO tres é a vida cotidiana da Pré-História, às ve- REVOADA DE ARARAS POUSADA DAS ARARAS LAJEDO DE SOLEDADE GO zes trágica e violenta, com figuras possuídas RN FOTOS ARY BASSOUS de grande agitação e outras que apresentam FOTO PESSOA um mundo lúdico e brincalhão, documenta- do pelo movimento da dança e pela agilidade das figuras A dinâmica do movi- mento corporal é particularmente complexa e, para expressá-la com maior vivacidade, foram utilizados recursos tais como alongamento da silhueta e movimentos sinuosos do corpo. Dá- -se também exagerada à estilização da figura humana, na procura de representar o movimento. o sexo está representado com uma simplici- dade que, aparentemente, nada tem de ritual. Uma figura masculina, por exemplo, deitada no chão, sobre um leito de folhas descansa a cabeça sobre o braço esquerdo e parece mastur- outra, de membro descomunal, sim- plesmente segura-o com ambas as mãos e exi- be-o. Menos casais copulam no meio de uma dança, misturando-se a dançarinos que trazem ramos e folhas nas mãos. Existem também grafismos que parecem cenas sexuais violentas, presentes em sítios do Parque Nacio- nal da Serra da Capivara e no Pinturas rupestres de técnica menos cuidado- sa do que as citadas, com figuras antropomorfas</p><p>de tamanho maior, que raramente formam ce- Manifestações gráficas nas quais predomi- nas, espalham-se também por grandes áreas nam os grafismos puros, às vezes policromos As gravuras rupestres, assim como as pintu- ras, cumprem a função de marcadores mnemo- do incluindo quase todos os estados que lembram carimbos, são atribuídas à Tradi- nordestinos, com maior concentração em sítios ção São cujas representações mais técnicos, como registros As condições de complexas situam-se na região de Januária e realização, que demandam esforço maior do que localizados nos pés da serra, nas várzeas e nos para as pinturas, porém, sugerem a existência PEDRA LAVRADA DO INGÁ brejos da região agreste de Pernambuco e da as mais simples, em Montalvânia, ambas em Minas Trata-se de formas peculiares de de outros objetivos além da finalidade de regis- SÍTIO PEDRA Paraíba. Grafismos puros, simples ou muito PB tro. É prática que se pode integrar em uma úni- grafismos muito elaborados e, às vezes, muito FOTO ROGÉRIO REIS/TYBA elaborados, acompanham os grafismos de ação, ca unidade de ação, que seria o registro social e sejam eles antropomorfos ou zoomorfos. Gra- complexos que, originários do alto vale do São cumprimento dos requisitos de um fismo emblemático de uma tradição rupestre Francisco e seus afluentes, espalharam-se até As pinturas aparecem principalmente nas designada como Agreste é a figura de um antro- o vale médio sanfranciscano, numa profusão paredes dos abrigos sob Já as gravuras pomorfo, às vezes de grande tamanho, que pode de e abrigos sob rocha com pouca ou são mais frequentes sobre afloramentos ou atingir mais de 1 metro de altura, estático e em nenhuma ocupação presentes rio blocos isolados e também sobre a rocha da base geral isolado, assemelhando-se a uma figura abaixo até Sobradinho, na Considerados dos abrigos. Grande parte das gravuras rupes- totêmica. Também são identificáveis os grafis- marcadores em sítios de passagem de diversos tres no Brasil está localizada em rochas ao lon- mos que representam quelônios e lagartos. Ou- grupos que teriam migrado ao longo do go dos cursos de água, não somente nos atuais, tra figura que, dependendo das regiões, é mais apresentam caracterizadores gráficos que en- mas também em antigos cursos do paleoam- ou menos comum, e também pode ser conside- laçam com a citada Tradição Agreste. biente hoje inexistentes, sugerindo tratar-se rada emblemática, é a de um pássaro de longas de prática muito antiga. penas e asas abertas, cujo antropomorfismo Encontram-se gravuras rupestres indíge- sugere a representação de um homem-passaro, DAS GRAVURAS RUPESTRES nas espalhadas por todo o Brasil, da Amazônia assinalado desde Minas Gerais até o Rio Grande As gravuras são o resultado de incisões volun- ao Rio Grande do Sul. No Nordeste, são do Norte. As marcas de mãos em positivo distri- tárias sobre um suporte, com a utilização de inhecidas pelo nome de itaquatiaras "pedras buídas em vários lugares dos painéis, sobretudo instrumentos escolhidos na natureza ou feitos em língua tupi. Por estarem quase na parte superior deles, também são uma carac- para essa finalidade, com grau de dureza maior sempre nos cursos de água e, muitas vezes, terística marcante dessa tradição. Dependendo do que o do suporte Na Pré-História, em contato com ela, é difícil relacioná-las a das regiões, essas marcas foram realizadas por as gravuras foram realizadas sobre osso ou ro- algum grupo humano, sobretudo pela impos- mãos previamente pintadas com um desenho, cha, naturalmente também sobre madeira, sibilidade, na maioria dos casos, de estabele- e não apenas manchadas de tinta, assumindo, embora, pela fragilidade dessa matéria-prima, cer associações com restos de cultura material. assim, o aspecto de um carimbo em forma de poucos restos tenham chegado até Em Pela mesma razão, também é difícil fixar cro- A presença de marcas de mãos não é em épocas posteriores, com a invenção da cerâmi- nologias para essa variedade de arte rupestre, si indicativa de determinada tradição, pois es- ca, muitas peças de barro cozido foram grava- embora existam quando as gravuras sas marcas aparecem em abrigos e cavernas de das com incisões e desenhos variados. Como encontram-se em abrigos nos quais houve ocu- todas as partes do Mas a forma como gravuras rupestres, conhece-se uma infinidade pação humana passível de ser datada e relacio- essas mãos foram representadas e o seu posi- de desenhos sobre rocha realizados com o uso nada com os desenhos gravados. cionamento nos painéis rupestres podem servir de técnicas diferentes, seja por raspagem, pi- Fica bastante evidente que a maioria das como mais um fator coteamento ou incisões profundas nela. gravuras indígenas do Brasil está relacionada 10 Andre Prous Arqueologia</p><p>DETALHE DA PEDRA LAVRADA 00 destruiu grande parte do pedregal para a fabri- PEDRA LAVRADA cação de lajes de pavimentação. A demolição foi FOTO REIS/TYBA suspensa em 1953 pela intervenção do Serviço do Patrimônio Histórico da Segundo cons- ta, as inscrições ocupavam, antes da destruição, com o culto das águas e que nos sertões uma área de aproximadamente metros tinos, de estiagens, as fontes de água quadrados. Na atualidade, além do grande pai- eram consideradas lugares sagrados, mas seu nel, existem alguns grafismos isolados nas pro- significado ou culto ao qual as gravuras esta- ximidades, muito gastos, tanto pela ação das vam destinadas nos são Ao mes- águas como pelas pisadas dos visitantes. mo tempo, os grafismos representados oscilam A beleza e a complexidade da itaquatiara de desde simples riscos ou marcas que Ingá parecem exigir do arqueólogo respostas evocam contagens, até elaborados e complexos que dificilmente ele poderia dar com as infor- desenhos que ocupam grandes painéis na mações fornecidas, até hoje, pela arqueologia. cha, com marcada tendência ao horror o caso dessa gravura é ainda mais complexo, A Pedra Lavrada de Ingá, na é sem pois, em muitos aspectos, é caso único, que dúvida a mais famosa gravura rupestre do Bra- dificulta ainda mais a sua filiação Exis- sil. Nenhum sítio pré-histórico com gravuras tem semelhanças com outros grafismos encon- rupestres atraiu tantas pessoas dispostas a trados na região do Seridó e nos Cariris Velhos, opinar e decifrar seu significado, cujo impacto mas, como conjunto gráfico homogêneo na visual impressiona os leigos e desafia a arqueo- técnica, na organização e no aproveitamento logia. Nenhuma inscrição rupestre brasileira do espaço gráfico, na indubitável mensagem atraiu tanto interesse de eruditos e pseudocien- que o painel gravado transmite, a itaquatiara tistas como a itaquatiara de Ingá. Situada no de Ingá é Por essa razão, as meio do riacho Ingá do Bacamarte, numa série ções que a Pedra Lavrada de Ingá tem sofrido vão de blocos de gnaisse que estrangulam rio, um desde as explicações e "traduções" mais desvai- enorme bloco de 24 metros de largura e 3 metros radas nas quais não faltam fenícios e outros de altura divide rio em dois lado nor- visitantes transatlânticos ou transpacíficos te do bloco está totalmente coberto de grafismos, até explicações lógicas, porém impossíveis de com altura de até 2.5 Os desenhos demonstrar A verdade é que ram realizados seguindo uma linha contínua e os grafismos de Ingá não oferecem nenhuma esculpida na rocha, de 3 explicação fácil e lógica, e é até possível que a de largura e 6 a 7 milímetros de sua finalidade seja precisamente essa e que, ao A parte superior do painel está enquadrada por longo dos os autores dessas gravuras, uma linha de círculos gravados de 5 manifestação do mundo indígena de conjunto de blocos gravados era numa tradição rupestre que se espalha por todo bem maior, até que proprietário das terras Nordeste, estejam conseguindo seu propósito.</p><p>A ARTE RUPESTRE NA AMAZÔNIA manifestações rupestres elaborados por missio- A riqueza rupestre da Amazônia coloca em evi- nários, eruditos e viajantes. Têm-se recopilado dência dois fatos fundamentais da arqueologia os registros rupestres amazônicos em vários re- brasileira. o primeiro é a existência de uma arte pertórios, principalmente no Pará, tanto no que rupestre que era desconhecida até poucas déca- se refere à documentação existente desde séculos das atrás e que é representativa de um mundo passados como ao seu levantamento e registro. estético de significativa originalidade e precur- Da similitude de certos motivos rupestres sora de uma estética amazônica que se consa- com outros das cerâmicas arqueológicas po- graria posteriormente nas cerâmicas plásticas. dem-se inferir cronologias relativas, tal como A segunda constatação é a dimensão da varie- pode ser visto na cerâmica Aristé do ou dade e da diversidade da arte rupestre no Brasil. no amplo horizonte estilístico conhecido como É interessante o comentário do já citado pa- cerâmica da tradição policroma, que se esten- dre Sotto Mayor, seguramente o segundo mais de desde as bordas andinas orientais até a Ilha antigo do Brasil, sobre a presença de registros de com cronologia entre 600 e 1300 rupestres na o religioso faz uma De modo mais pontual, semelhanças entre cer- descrição grotesca de uma gravura no rio tas decorações da cerâmica as pinturas afluente do rio Pará, do que séculos depois seria de Monte Alegre e as gravuras de Prainha re- classificado pelos pesquisadores como Tradição forçam as possíveis relações entre a cerâmica Amazônia: "Achei no penêdo lavrado ao ferro, e cerimonial e a arte rupestre amazônica no n'elle algumas caras, tão feias e disformes que No sítio Pedra Pintada, em Roraima, fo- se poderia attribuir ao o que entendi ram coletados materiais corantes e uma placa GRAVURAS RUPESTRES assim pelo feitio dos lavores como pela figura com pinturas desprendida da parede do abrigo. ESTILO "CARETAS" incremento da gravura sobre as pinturas, em- MONTE PA de um crocodilo, que por outra face do penêdo Obtiveram-se datações de 3 mil e 4 mil anos bora esta não seja uma afirmativa totalmente FOTOS EDITHE PEREIRA estava Na Amazônia, existe também BP. Como data mais antiga para a arte rupes- ACERVO FOTOGRÁFICO segura, na medida em que a conservação da MUSEU PARAENSE a enorme dificuldade de situar a arte rupestre tre amazônica temos de considerar as escava- pintura rupestre no ambiente altamente úmi- EMILIO GOELDI no tempo, que se torna ainda maior na hora de ções arqueológicas realizadas em Monte Ale- do da região é problemática. São essas as repre- tentar estabelecer relações entre os tempos e os gre, Pará, num abrigo sob rocha com pinturas, sentações mais significativas da arte rupestre espaços nas distâncias continentais da grande que facultou uma cronologia de 11 mil anos BP amazônica. A chamada Tradição é representação de uma figura humana menor. bacia, "de ese casi mar no dizer do para a ocupação mais antiga do sítio, onde em particular representativa de um padrão es- gravada dentro do abdômen de outra de maior poeta castelhano Tirso de Molina o foram achados restos de ocre utilizados para tilístico do noroeste do Essa tradição de Não há representação de cenas, e as mito das amazonas, o desconhecido das flores- São dados que situam a prática rupes- gravuras apresenta predomínio de figuras an- figuras de animais aparecem em menor pro- tas e as enigmáticas e complexas gravuras ru- tre em um espectro muito antigo e continuado tropomorfas, nas quais se representa a figura porção, com pouco ou nenhum Os pestres foram, como não poderia deixar de até se chegar às sociedades complexas forma- completa ou apenas a cabeça com os traços ana- grafismos puros, quando apresentam terreno propício para imaginário tivas que se assentaram no médio e no baixo tômicos bem marcados, como os olhos, a boca e formas simétricas e repetidas. fico de tempos pretéritos. os dentes, em alguns Ornamentos corpo- No município de Prainha, a 60 quilôme- como em outras regiões do Em relação às técnicas representativas da rais, como cocares e adornos faciais, também tros de Monte Alegre (PA), aparecem, sobre Brasil, notícias e repertórios da presença de arte rupestre distingue-se um estão A gravidez é sugerida pela rochedos centenas de rostos de 11 João de Sotto Mayor "Diário da jornada que 12 Tirso de Amazonas en las 124 13 Edithe Pereira Arte rupestre Pará João de Souto Mayor fez ao Pacaja em Revista do Instituto e Geográfico</p><p>VASO DE CARETA AC FOTO MAURÍCIO DE PAIVA ESTATUETA ANTROPOMORFA DE DA CULTURA TAPAJO PA ACERVO MAE-USP rupestre do Brasil, pois, com o aumento das URNA FUNERÁRIA ANTROPOMOREA AP pesquisas e dos pesquisadores, horizontes cul- ACERVO IEPA turais ainda não definidos por completo foram FOTOS MAURÍCIO DE PAIVA assinalados praticamente por todo o país. É o caso de Mato Grosso do Sul, Tocantins e Santa Catarina, entre outros. A ARTE DA OLARIA: DA ARGILA VASO Johann Winckelmann, na sua clássica obra História da arte da Antiguidade, escrita em 1763, afirma que as artes que dependem do desenho pelo utilitário para depois passar ao supérfluo, comentário que também é válido para uma reflexão sobre as origens da arte pré- antropomorfos conhecidos como Gra- -histórica em especial, para explicar a evolu- vados na rocha, alguns apresentam sulcos re- ção da De estritamente utilitária nas cheados com tinta vermelha ou amarela, fazen- origens, usada para armazenar água, grãos e do assim ressaltar o Essa tradição de cozinhar alimentos, a cerâmica passou, com caretas gravadas estende-se também por outras o tempo, a desempenhar funções funerárias e áreas da Amazônia e parece relacionar-se com cerimoniais, adquirindo grande complexidade as populações plástica, com decorações pintadas ou modela- Entre os rios Xingu e Araguaia/Tocantins, das de apurada técnica, entre as quais não fal- no sul do Pará, outro horizonte rupestre apre- taram formas antropomorfas e senta formas diversas do anterior. Com predo- A termo utilizado para designar mínio de grafismos puros e raras representações os objetos feitos com argila cozida, aparece de figuras humanas, há, porém, marcada pre- tardiamente no processo da evolução huma- sença de zoomorfos, entre os quais se destacam na em comparação com outras técnicas, como as aves, as tartarugas, as arraias e os a lítica e o trançado de fibras Está Devemos ressaltar que as descrições ante- comprovada a utilização da argila moldada riores são apenas uma amostra do universo desde o início das manifestações rupestres</p><p>do Paleolítico Superior europeu. Na gruta Tuc tais como cinza, areia, cacos moídos, espongia- tanto espécies próprias como as maneiras de D'Audoubert, na França, à qual se tem acesso rios (cauixi) ou raízes com a finalidade ocupantes que ali habitaram na longa cultivá-las. É possível mesmo que já se conhe- apenas por barco, existe uma dupla de bisões de atingir o ponto de plasticidade desejado ria da Mas, no passado, de diver- cessem algumas formas de cultivos incipientes modelados em argila, datados entre 15000 e para viabilizar sua queima. Esses aditivos po- sas etnias e outros tantos tempos, surgiu nas na América do Sul a partir do sétimo milênio dem não ser necessários quando as impurezas terras baixas da América do Sul um padrão ge- 10000 anos AP. antes do presente. Espécies cultivadas de milho o aparecimento da cerâmica como técnica naturais incorporadas à argila proporcionam ral de adaptação humana à natureza tropical surgem no quarto milênio e, em regiões do se- a ela suficiente plasticidade. Pode-se decorar que foi denominado cultura de floresta tropi- de produção de objetos utilitários ou cerimo- miárido brasileiro, nas quais domina o cerrado com incisões feitas sobre a argila ainda úmida e cal. Essa cultura, de certa forma, foi tida como niais acontece quando a organização social das e a caatinga, a agricultura pode ter começado populações transforma seus ciclos de desloca- com diferentes tipos de apliques nos vasilhames marginal e julgada mais pelos fatos exclu- no terceiro milênio, com pequenas de mento territorial de nômade a ou mais elaborados. A superfície também pode ser dentes do que pelos logros alcançados, quan- subsistência. a sedentário. A importância da cerâmica como pintada antes ou depois do processo de queima. do comparada com as altas culturas andinas, Quando os antigos bandos de caçadores co- indicadora da existência de sítios arqueológi- o secado do objeto de argila deve acontecer de embora apresente adaptações que possam ser letores, descobriram como cultivar modo gradativo, para evitar rachaduras no mo- consideradas modelares para as terras baixas cos decorre da facilidade com que ela é detecta- os vegetais que já conheciam na forma silves- da e da sua conservação, mesmo nas condições mento da queima. Nessa etapa, atingem-se to- da América tre, puderam passar a planejar seu futuro ime- mais adversas ou quando se encontra extrema- nalidades diferentes, em virtude da composição Quando a primeira expedição espanhola, diato e melhorar suas possibilidades de sobre- da argila, do tipo de decoração aplicada e da ges- iniciada em 1541 e capitaneada por Francisco mente fragmentada. vivência. Houve aumento maior tão que se faz do oxigênio e do carbono duran- de Orellana, percorreu o rio Amazonas desde o A cerâmica foi inventada na de longevidade e menor mortalidade infantil. maneira independente do Velho Mundo, a par- te o processo de queima. A combinação desses Peru até a desembocadura, o cronista da expe- Iniciou-se também um longo processo de se- tir da mesma técnica simples e lógica de mode- recursos, assim como a forma, o tamanho e o dição, frei Gaspar de Carvajal, escreveu sobre dentarização, fixando o homem à terra. Esse a épica viagem na sua Relación del descubrimiento lar pequenos recipientes côncavos ou forrar com tratamento da superfície dos objetos modelados, processo é válido em âmbito mundial, embora del famoso rio grande que desde su nacimiento hasta argila cestas trançadas que, ao secar, deixavam varia segundo as diferentes etnias. Essas especi- os seus tempos e modos sejam diferentes, va- el mar el Capitan Orellana em unión de 56 uma marca do trançado no Cerâmicas ficidades fazem da cerâmica um caracterizador riando segundo os continentes e as regiões con- o documento foi publicado pela pri- pré-históricas coletadas em sítios da desembo- importante na reconstituição arqueológica e na Na América do Sul, há comprovação meira vez somente no século XIX como Descu- cadura do sistema fluvial amazônico, que po- identificação de sociedades agrícolas. científica de que o conhecimento da agricultu- brimento del rio de las Amazonas, e nele se descreve dem chegar ao quarto milênio BP, indicam que ra pré-histórica remonta ao terceiro milênio a presença de grandes aldeias indígenas, se- se deva aceitar o início da cerâmica na Pré-His- antes de Cristo e de que, em tempos ainda mais dentárias e autossuficientes, comandadas por tória do Brasil como uma invenção autóctone e A ARTE DOS AGRICULTORES remotos, na região andina, já se plantavam pe- chefes ou "senhores" e protegidas por bravos independente no continente sul-americano. CERAMISTAS DA AMAZÔNIA quenas de cabaças e guerreiros. o milho e a mandioca cultivados A técnica dominante na manufatura da A agricultura nas Américas também é muito Entre os primeiros assentamentos humanos nessas aldeias aplacaram muitas vezes a fome cerâmica, entre os indígenas brasileiros, é o antiga. Desenvolveu-se a partir de cultivos e a ocupação pelos e portugueses, dos companheiros de Orellana, que, segundo acordelado, em que a modelagem se faz pela locais e com o emprego de métodos próprios, com a paulatina destruição ou modificação das a Relación de Carvajal, chegaram a comer couro superposição de rolos de argila dispostos em e não importados do Velho Mundo, como se populações numerosos e diferen- cozido de correias e outros implementos para anéis separados ou em espiral. A argila em geral pretendia no passado. Deve ter surgido de tes grupos étnicos ocuparam a Nas não morrer de inanição. o lugar onde estavam é recolhida nas margens dos córregos ou rios e, um lento processo de observação e de práticas palavras de Darcy Ribeiro, a Amazônia fora situadas essas aldeias, pueblos, segundo o rela- de acordo com suas características, submetida milenares independentes. É o que indica a julgada "entre paraíso terrestre e inferno ver- to, é impossível de determinar, mas elas não a um processo de depuração e de mistura com variedade das plantas americanas cultivadas, dependendo dos momentos históricos da são um fato extraordinário, porque muito an- outros componentes, designados antiplásticos, completamente diversas das do Velho Mundo, sua ocupação e das intenções dos numerosos tes do século XVI já existiram grandes aldeias 14 Darcy Os indios e a a integração das populações indigenas no Brasil</p><p>de mandioca. Não foram sociedades indígenas no baixo Amazonas, formadas por A Tradição Policroma da cerâmica da bacia sociedades complexas, em regime de chefias muito pelo contrário, evoluíram e também Amazônica estende-se desde o Equador, Peru ou cacicados, datadas a partir do século V DC. podem ter sido conquistadas ou dizimadas por e a Colômbia até a desembocadura do Ama- Surge também, a partir da Relación de Car- outros grupos que tomaram suas terras culti- zonas e a ilha de no Pará, indicando Não eram sociedades estancadas na sua vajal, o mito da existência de mulheres guer- contatos étnicos e culturais entre as numero- reiras as amazonas e na seara desse mito, cultura, mas em contínua evolução. Algumas sas tribos indígenas que povoaram a imensa que transfere as filhas gregas de Pentesileia chegaram até a época do contato europeu. região. É caracterizada por exuberante decora- para a bacia surgiu um "mito As técnicas decorativas extremamente ela- ção, complexidade de formas e padrões, grande moderno", defendido por alguns arqueólogos, boradas que esses grupos aplicaram nas ce- variedade de técnicas e A pintura ver- sobre o relevante papel que as mulheres, de- râmicas cerimoniais mostram o seu grau de melha e/ou preta sobre engobo branco é a mais tentoras de poderosos matriarcados, teriam organização. Suas cerâmicas cerimoniais e frequente, embora também seja significativa a ESTATUETA MARAJOARA desfrutado em algumas sociedades funerárias são policromas e profusamente de- presença de incisões sobre superfícies pintadas ILHA DE MARAJO nicas. Esse mito alimentou-se da profusão coradas com relevos e apliques antropomorfos com engobo vermelho e/ou Os sítios MUSEU PARAENSE e zoomorfos de grande complexidade. Cons- EMÍLIO PA de elementos femininos representados nas arqueológicos onde essa cerâmica se encontra FOTO ROMULO FIALDINI cerâmicas amazônicas, embora, e com mais truíram grandes aterros onde erguer as aldeias, são aldeias extensas, indicadoras de grande fundamento, a arqueóloga brasileira Cris- tanto para proteger-se das enchentes como concentração populacional, com enterramen- tiana Barreto comente que, com o aumento para defender-se, e neles também enterravam tos em urnas e locais cerimoniais onde foram das sociedades complexas, o papel da mulher os mortos. Seu estágio cultural pode situar-se encontradas evidências de práticas religiosas perdeu cada vez mais Aliás, esse no mesmo patamar do chamado período for- ou sociais. o uso de urnas antropomorfas para fato tem sido reconhecido entre as sociedades mativo das altas culturas andinas. a inumação tem sido comprovado desde o alto do Velho Mundo, nas quais o sedentarismo, Para sistematizar as culturas ceramistas Amazonas até a a agricultura e a paulatina hierarquização amazônicas no tempo e no espaço, tentando A cerâmica da ilha de conhecida dos grupos da Idade do Bronze rebaixaram o também fixar as suas origens e os contatos cul- como marajoara, representa o ponto mais papel da mulher nas sociedades guerreiras e turais, foram estabelecidas tradições a partir oriental da dispersão da grande Tradição Poli- religiosamente impositivas. A existência de principalmente das pesquisas realizadas por croma e, pela sua variedade, riqueza de formas santuários dedicados a divindades femini- Betty Meggers e Clifford Evans na Amazônia, e motivos decorativos, é uma das mais conhe- nas e a repetição de elementos femininos nas entre as décadas de 1940 e 1960. Essas tradi- cidas e A incidência de sítios da ce- cerâmicas cerimoniais não significam uma ções ceramistas definem-se como complexos râmica marajoara estende-se por uma área cir- valorização do cotidiano das mulheres, nem cerâmicos separados pelas diferenças plásticas, cular de aproximadamente 100 quilômetros em melhorias para a condição feminina. representando períodos cronológicos e cultu- torno do lago Arari. A cronologia dessa cerâmi- Durante mil anos da Era (aproxima- Foram determinadas cinco grandes tra- ca compreende os séculos V a VII da Era damente entre 400 e 1400), formaram-se so- dições ceramistas na Amazônia, relacionadas Os povos marajoara eram cultivadores de ciedades complexas chefias ou cacicados na a grupos de agricultores de floresta tropical e floresta tropical. Construíram suas aldeias e bacia amazônica. Marajoara, caracterizadas pela decoração gravada, pinta- seus cemitérios sobre aterros, conhecidos com e Aristé, no baixo Amazonas, e Guarita, no da ou plástica dos vasilhames, além da grande o nome de tesos, para proteger-se das enchen- médio, são algumas dessas culturas de flores- variedade de tamanhos e formas. tes. Enterravam seus mortos em urnas profu- ta tropical cultivadoras de raízes, em especial samente decoradas com pintura policromada e 15 Cristiana "Simbolismo sexual na antiga Ama- da</p><p>e florestas, afloram formações rochosas com ca- masculinas e femininas sentadas sobre um ban- vernas e lapas que foram utilizadas como cemi- com as mãos apoiadas nos joelhos. Elas fo- térios indígenas. Parte das grutas já era conheci- ram utilizadas para enterramentos secundários, da desde o século quando pesquisadores do que acontecem em duas etapas: na primeira, o Museu Paraense estudaram a o tamanho corpo é enterrado até o desaparecimento das par- e a densidade populacional das aldeias são tes brandas, em seguida os ossos limpos são de- VASO CERIMONIAL nhecidos, embora se possa afirmar que perten- positados nas A tampa da urna represen- DE ciam a grupos agricultores de floresta o CULTURA TAPAJO ta a cabeça do morto com o rosto bem definido e PA estágio sociocultural dos povos é identi- contornado por um rolete de o corpo FOTO MAURÍCIO DE PAIVA ficado apenas pelos seus costumes A é formado por um cilindro ao qual se aplicam URNA FUNERÁRIA descoberta, em 1995, de sete cemitérios situados pernas e braços feitos com tubos Pintadas ANTOPOMORFA em pequenas cavernas ampliou o conhecimento nas cores branca, preta, vermelha e amarela, su- sobre essa cultura, considerada, em termos cro- MUSEU PARAENSE gerem pintura Nas urnas em forma de EMÍLIO PA nológicos, concomitante ao contato animal, o rosto é representado com traços huma- FOTO ROMULO FIALDINI o achado de uma necrópole fornece dados ri- nos, o que poderia significar a idealização de um quíssimos para o conhecimento das sociedades animal representativo de um pretéritas, e por isso, em arqueologia, conhece- A cerâmica cerimonial de atri- mos melhor a vida através da Enterrar os buída aos grupos que habitaram na apliques modelados, representando formas hu- mortos é parte importante do comportamento região da desembocadura do rio no manas, entre as quais se destacam elementos social do gênero o estudo dos processos Amazonas, representa um fenômeno cultural femininos. As urnas funerárias são de tama- de enterramento, nas diversas culturas antigas, singular. A riqueza e a complexidade das peças nhos variados, desde 30 centímetros de altura apresenta assim uma dupla vertente material e cerimoniais a transformam num caso até as que ultrapassam 1 metro. A riqueza dos enterramentos pode in- Destacam-se os vasos de nos quais Conhecidas desde o século XIX, as primeiras dicar hierarquias e estruturas sociais complexas. figuras femininas fazem a função de colunas coletas devem-se a Ferreira Penna que, em 1871, Entre os indígenas brasileiros o culto aos mortos que sustentam a parte superior deles, e os de realizou pesquisas na ilha de e e aos espíritos deles era, sem dúvida, parte im- gargalo, com representações e apliques zoo- "Começamos a ter conhecimento pormenorizado portante da sua religiosidade, que se manifesta morfos e antropomorfos, vasilhames fechados da existência em de uma antiga cerâmica em todos os atos da vida social das distintas na- na forma de animais, desde insetos a felinos, caracterizada por uma soberba decoração ções do As diferenças culturais existentes mas que não são representações naturalistas; trica e pela perfeição dos adornos, gravados ou entre os índios estão presentes também na gran- lembram figuras fantásticas ou pintados, que a de variedade de rituais fúnebres registrados. A partir do estudo das cerâmicas de San- A cultura maracá desenvolveu-se durante os Mesmo sem termos maiores conhecimentos tarém tem sido possível traçar a evolução dos séculos XVI e XVII, no na região do rio de sobre a vida doméstica e a estrutura social dos grupos humanos que as fabricaram, de agri- mesmo nome, afluente da margem esquerda do povos a riqueza da sua cerâmica fune- cultores de floresta tropical, nos períodos mais Na época das chuvas, o Igarapé do rária nos revela formas rituais complexas. Uma antigos, até os cacicados hierarquizados, esta- Lago, um dos afluentes do rio transborda de suas principais características são urnas belecidos em grandes aldeias, durante a época e transforma-se em lago. Nessa área de igarapés funerárias que representam figuras humanas da conquista. 16 Ferreira sobre os cerâmios do Arquivo do Museu Nacional do Rio de 1877</p><p>DA ROCHA OBJETO OU RITUALÍSTICO de cuidada técnica, incorporados ao imaginário A necessidade de caçar e defender-se obrigou das diferentes etnias indígenas. A variedade de o homem a armar suas mãos, desprovidas de machados polidos fabricados de numerosas ro- garras, para sobreviver. Desde o alvorecer da chas indica uma prática milenar da técnica do ZOOLITO MUSEU PAULISTA todas as espécies do gênero Homo polimento no Brasil. Citamos como exemplo o DA UNIVERSIDADE armaram suas mãos com seixos e fragmentos machado de granodiorito coletado no Sítio do DE SÃO PAULO de rochas, lascados casual ou propositadamen- Meio, no Parque Nacional Serra da Capivara, FOTO ROMULO FIALDINI para, com o gume resultante, poderem cor- datado de 9200 anos BP, achado que se reveste MACHADO SEMILUNAR de singular importância porque, além da an- FOTO ROBERTA GUIMARÃES raspar, perfurar, talhar, quebrar, esmagar ou moer. Essa foi a finalidade primigênia da tiguidade da data, é pequeno o número de im- plementos de pedra polida datados com alguma como sapos, peixes, tartarugas e serpentes, os utilização das rochas como matéria-prima na Foi, porém, 0 sapiens, ou segurança, apesar da grande quantidade de ar- são adornos e pingentes encontra- seja, a nossa única espécie sobrevivente, que tefatos, em especial machados, que se acumula dos principalmente na baixa Uma logrou aperfeiçoar as técnicas líticas até o ex- nos museus e nas coleções particulares. das suas formas mais comuns é a de e sapos, tremo de transformá-las nos mais variados Pela sua beleza e pela singularidade da for- animais relacionados à magia amazonense, em objetos representativos dos seus mitos e do seu ma, os machados polidos semilunares, tam- geral feitos em rochas de cor como jadeíta bém chamados de âncora, estão presentes em e amazonita, e também em nefrita e mundo No Brasil, a evolução das indústrias líticas se- quase todas as coleções arqueológicas. Quase Esses objetos são conhecidos desde a época guiu os mesmos caminhos que no Velho Mundo, sempre, porém, formam parte de acervos de do descobrimento e tornaram-se muito procura- desde os primitivos machados unifaciais, obti- origem desconhecida nessas Pela evi- dos pelas virtudes terapêuticas a eles atribuídas: dos de seixos rolados, até as pontas de flecha e de dente falta de funcionalidade, sabemos que os os teriam o poder de trazer sorte e lança finamente trabalhadas a partir de rochas machados de âncora são objetos votivos, o que curar doenças. Como a sua verdadeira função com alto grau de dureza, como o sílex, a calce- é demonstrado pela existência desses objetos não está esclarecida, restando apenas a evidên- dônia e o cristal de rocha. Não podemos deixar fabricados com cerâmica. No Museu do Estado cia de que se trata de um pequeno adorno-amu- de registrar também a habilidade do homem de Pernambuco, há um exemplar de cerâmica leto finamente trabalhado, foram criadas em pré-histórico brasileiro de conseguir instrumen- pertencente aos Apinajé, com encabamento e torno dos numerosas lendas, tanto tos úteis a partir de matéria-prima inadequada, adornos de fibras e penas, o que nos permite indígenas como produto da imaginação dos pri- como são o arenito e o granito, em regiões onde identificar seu uso como símbolo de status ou meiros conquistadores entre elas a que falta ou escasseia o sílex e a o avan- hierarquia. Cronologicamente, sua utilização os relaciona à existência das míticas amazonas tecnológico pode ser observado não somente chega aos tempos históricos, como demonstra que habitavam a região. Também entre as po- pela análise dos instrumentos mais complexos também uma famosa machadinha dos pulações indígenas são vistos como talismãs ou e bem utilizando as melhores maté- devolvida aos seus donos depois de décadas de amuletos. Na Relación de Carvajal fala-se das ama- rias-primas, mas também a partir das adapta- exibição como "peça de zonas como "habitantes do país das pedras ver- ções e da inventiva humana, capaz de conseguir o refinamento das técnicas de polimento seguramente referindo-se aos muiraqui- artefatos das rochas menos apropriadas. permitiu a produção de pequenas peças reali- que recolhiam do fundo do rio e entregavam Depois de conhecer a técnica do polimento, zadas sobre rochas e utilizadas como enfeites e aos seus maridos eventuais, quando pretendiam foram fabricados objetos votivos e cerimoniais amuletos. Com formas que reproduzem animais, ter 17 Gaspar de Descubrimiento del de las Ama- Relación del descubrimiento del famoso Rio Grande que desde su nacimiento hasta el mar el Capitan Orella- na en unión de 56 Publicação fac-similar realizada por ocasião do Quinto Centenário do Descobrimento da 1992</p><p>a alcançar até 30 metros de altura no litoral de humanas e objetos com formas Realizados quase sempre com materiais pere- registra pela primeira vez o olhar dos portu- São Paulo e de Santa Catarina, muitos já des- As técnicas empregadas foram o polimento e o como osso, madeira e penas, os adornos gueses nos corpos pintados dos indígenas nus: que os indígenas pré-históricos do Brasil usa- truídos pelo uso das conchas na fabricação de picoteamento, ou ambos, combinados, sobre "Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos cal e aterro de construções. A presença de sam- uma única peça. Em todas elas, aparece uma ram perderam-se, em sua maioria. Restaram, e costas e pelos quadris, coxas e pernas até baquis ou de grandes concheiros no cavidade pouco profunda na parte ventral do porém, os objetos de adorno feitos em pedra ou baixo, mas os vazios com a barriga e estôma- cerâmica e, pela comparação com os enfeites Baiano está documentada desde o século XVI, animal representado. A falta de uma utilida- go eram de sua própria cor. E a tintura era tão das tribos ainda existentes, podemos conhecer através de notícias fornecidas pelo padre Fer- de prática para essas esculturas sugere que te- vermelha que a água lha não comia nem des- seu uso. Esse é o caso dos que na não Cardim e por Gabriel Soares de Souza, que nham sido utilizadas para fazia. Antes, quando saía da água, era mais gua tupi significa "pedra do introduzidos citam a existência dessas jazidas exploradas vermelho, Ali vereis galantes, pintados de num furo artificial realizado no beiço inferior, e para a fabricação de cal e que teriam sido usa- preto e vermelho, e quartejados, assim pelos os botoques, colocados nos lóbulos das orelhas das em construções da cidade de o ARTE NA PELE: A PINTURA CORPORAL corpos como pelas pernas, que, certo, assim e nas narinas. pré-históricos de rocha e que indica que o uso dos sambaquis para a ob- o tratamento e o adorno do corpo entre os in- pareciam bem. Também andavam entre eles de cerâmica, assim como desenhos antropo- tenção de cal é tão antigo como a colonização e dígenas brasileiros foram, desde os mais anti- quatro ou cinco mulheres, novas, que assim morfos nos vasilhames, apresentam tembetás e pode dar ideia da enorme destruição que esses gos tempos, tão ricos e variados quanto nume- nuas, não pareciam mal. Entre elas andava botoques nos lábios, nas narinas e nas orelhas, sítios pré-históricos sofreram. rosas são as nações indígenas. Como escreveu uma, com uma coxa, do joelho até o quadril e o que demonstra a antiguidade desses adornos Os objetos coletados nos sambaquis foram Darcy Ribeiro: "algumas conformações que os a toda tingida daquela tintura preta; entre as populações nativas do Brasil. Na carta produzidos com matérias-primas existentes no índios imprimem a seus corpos para lhes dar e todo o resto da sua cor natural." Mas é pela de Caminha há referência a eles: "traziam o litoral, principalmente conchas, ossos e dentes beleza contrastam tanto com a nossa imagem pintura rupestre que sabemos tratar-se de arte lábio de baixo furado e metido nele um osso de animais marinhos. Foram usados também do humano que provocam espanto. Ao menos milenar. Pinturas figurativas datadas de até branco do comprimento de uma mão travessa materiais perecíveis, como fibras vegetais e um espanto igual ao que nós provocamos neles, 10 mil anos apresentam figuras humanas com e da grossura de um fuso de algodão, agudo na madeiras, que só se preservam em situações ex- com os corpos envoltos em trapos e nossas du- ornamentos associáveis a rituais e símbolos de ponta como um furador. Metem-nos pela parte cepcionais, o que não seria o caso dos ambientes ras patas Dos adornos e atributos hierarquia. Cocares e máscaras que ocultam de dentro do lábio, e a parte que fica entre o úmidos da costa. Com esses materiais, foram hierárquicos com que o indígena pré-histórico os traços antropomorfos aparecem integrados lábio e os dentes é feita à roque de xadrez, ali confeccionados colares, pulseiras e pingentes. enfeitou seu corpo e o seu entorno restaram a danças grupais ou enfeitando indivíduos es- encaixado de maneira a não prejudicar o falar, Utilizaram-se também rochas exógenas que não apenas vestígios coletados nas escavações ar- Figuras humanas que parecem chefiar o comer e o o estranho costume cho- existem nas áreas como a esteatita. queológicas. Conhecemos o uso desses enfeites, um grupo apresentam o corpo pintado repre- cou os portugueses, que mencionam o uso dos As esculturas zoomorfas conhecidas como pois continuaram sendo usados pelos remanes- sentativo da sua hierarquia. Grupos que se tembetás na maioria das crônicas. zoólitos merecem especial atenção. São figu- centes indígenas modernos, embora o seu enfrentam na luta exibem pintura corporal e Diferentes formas de tratamento das ro- ras, possivelmente ídolos, de elaboração extre- nificado ancestral tenha se modificado com o atributos diferenciadores de cada etnia. chas, na elaboração de enfeites e ídolos, estão mamente cuidadosa, esculpidas sobre rocha passar do tempo. o ritual da pintura corporal indígena segue presentes nos sambaquis, jazidas arqueológi- ou ossos de cetáceo, que exigiram alto inves- o índio brasileiro veste seu corpo nu com padrões rígidos a partir das tintas utilizadas. cas formadas principalmente pela acumulação timento em tempo e esforço na sua execução. pintura corporal e enfeita a cabeça com penas. Jenipapo, urucum ou pigmentos minerais não de conchas de moluscos bivalves que serviam Realizadas com diferentes tipos de rochas, Essa prática está fartamente registrada pelos são aplicados caprichosamente; pelo contrá- de alimento a populações pré-históricas esta- como basalto, diabásio e diorito, representam estudos etnográficos e de antropologia esté- rio, obedecem a rituais próprios de cada belecidas nas áreas ricas em molus- animais de formas estilizadas, de alta quali- tica, além do relato de cronistas e viajantes Desenhos pontilhados, listados ou triângulos e peixes. Esses estabelecimentos existiram dade estética, como peixes, aves, répteis, ma- que escreveram sobre os costumes indígenas. têm um significado específico, assim como se da Amazônia ao Rio Grande do Sul e chegaram marinhos e terrestres, além de formas Uma vez mais, é na Carta de Caminha que se diferenciam também nos gêneros. o preto, o 18 Pero Vaz de Caminha Tratado descritivo do Brasil em 1587 Organizada e revisada 20 Andrade "Em busca dos frutos do os 19 Fernão Cardim Tratado da terra e gente do Co- pelo historiador brasileiro Adolfo de Dispo- pescadores-coletores do litoral centro-sul do Dos- mentários de Capistrano de Abreu, Rodolfo Garcia e Batis- nível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/ Antes de Cabral Arqueologia 270-327 ta Caetano de Almeida Nogueira. Gabriel Soares de 2013 21 Darcy Op.</p><p>INDIOS PANKARARU informações que têm contribuído para mos- DANCANDO 0 TACARATU. PE trar a complexidade cultural, a abrangência FOTO ANNE-MARIE PESSIS espacial e a importância do elemento na milenar na formação do povo o mútuo entendimento entre as vermelho e o branco são as cores utilizadas pe- des indígenas e o colonizador foi muito los Xerente na ornamentação corporal clânica cil, para não dizer impossível, na medida em e são também as cores básicas nas pinturas que se enfrentava uma sociedade centralizada, rupestres Poderíamos citar um com forte hierarquia religiosa e acumuladora sem-fim de exemplos ilustrativos do significa- de riquezas e excedentes, diante de outra sem do da pintura corporal entre as etnias indíge- classes nem minimalista, pul- nas, fartamente documentados na literatura verizada em agrupações tribais de poucos indi- existente, mas, dentro da finalidade deste tex- víduos, se comparada ao mundo renascentista to, o que queremos corroborar é a ancestralida- que as conquistava. de e a antiguidade da pintura corporal indígena, o Brasil tem uma responsabilidade espe- que remete aos tempos pré-históricos. Outro cial para com a preservação e respeito com a elemento que confirma o uso de pigmentos arte indígena, sobretudo a arte rupestre. Não para usos múltiplos na Pré-História é a utiliza- se trata apenas de constituir importante fonte ção de tinta vermelha para pintar os ossos nos para a pesquisa arqueológica e uma base para enterramentos secundários, depois de o corpo o estudo das ideias estéticas dos povos ágrafos, do morto ter sido desprovido das partes bran- além do seu inegável apelo É o único das, costume que remonta ao quarto milênio BP. registro que, em múltiplas ocasiões, restou da presença das etnias indígenas dizimadas e eli- minadas nos primeiros séculos da colonização, A MODO DE as quais deixaram marcas profundas, tanto Os povos indígenas tiveram importância fun- físicas como espirituais, na cultura do povo damental na conquista e na colonização do território No entanto, na medida Muitas das rotas seguidas pelos diversos em que iam sendo destruídos ou incorpora- povos indígenas no seu vagar pelo continente dos à sociedade colonial, essa importância foi sul-americano ainda estão por ser sendo esquecida e apagada da Como Caberá aos arqueólogos do futuro preencher as se tratava de povos sem o domínio da escrita, grandes lacunas que as escondem, mas pode- as informações que possuímos a seu respeito -se afirmar que foi a partir de levas múltiplas provêm dos colonizadores, quase sempre com e da capacidade de adaptação do ser humano um olhar eurocêntrico. Nesse sentido, a Ar- aos desafios dos diferentes ambientes que se queologia, por meio do resgate dos elementos fincaram as raízes indígenas do que milênios da sua cultura material e imaterial, fornece depois seria o Brasil atual.</p><p>0 0 BRASIL HOLANDÊS Como parte integrante do mundo colonial portu- guês, Brasil era peça de um complexo sistema que articulava territórios na China, India, Indonésia e CARLOS JULIÃO / JOSÉ JOAQUIM em vários pontos da além da Se OLHAR FREIRE / EXPERDIÇÃO MILITAR / as trocas culturais e influências artísticas mútuas entre as colônias lusas, que certamente existiram, 0 BRASIL NA ROTA DOS VIAJANTES / MISSÃO ainda estão por merecer estudos mais aprofunda- dos, é fato que não foi interesse da Coroa portu- guesa a divulgação de notícias, fosse em forma de ESTRANGEIRO VALERIA PICCOLI textos ou de imagens, das terras e dos povos sob DOUTORA PELA FACULDADE DE sua soberania. As informações eram tratadas como ARQUITETURA DA UNIVERSIDADE DE segredo de Estado e tinham alcance restrito, circu- SÃO PAULO. DESDE DEDICA-SE A lando preferencialmente como manuscritos, na PESQUISAS SOBRE ARTE BRASILEIRA MAXIMILIAN VON WIED-NEUWIED / JOAQUIM JOSÉ forma de relatos ou peças cartográficas. Essa polí- EA NOS SÉCULOS XIX E XX. CURADORA tica se traduz numa notável escassez de imagens, DE MIRANDA / CARL FRIEDERICH PHILIPP VON ASSISTENTE DO NÚCLEO HISTÓRICO que se manteve dominante nos dois primeiros sé- MARTIUS / FRANÇOIS-AUGUSTE BIARD / ANTONIO DA XXIV BIENAL DE SÃO PAULO culos da colonização do Brasil, notadamente no FERRIGNO / FAUNA E FLORA BRASILEIRAS EM BEM COMO DA COLEÇÃO que diz respeito à representação de suas riquezas BRASILIANA / FUNDAÇÃO ESTUDAR. A extração do pau-brasil a madeira tin- REPRESENTAÇÃO NAS QUAIS DESENVOLVEU ATIVIDADES tureira a que o país deve o seu nome e que foi a pri- DE PESQUISA PARA IDENTIFICAÇÃO DE meira matéria-prima com potencial de comercia- OBRAS E ELABORAÇÃO DAS EXPOSIÇÕES lização identificada pelos portugueses na América DO ATUALMENTE TRABALHA é a única atividade mercantil que surge com fre- NO NÚCLEO DE PESQUISA EM CRÍTICA E quência na cartografia manuscrita de autoria lusa DA ARTE DA PINACOTECA DO no século XVI. Enquanto o desenho do litoral ga- DO BRASIL ESTADO DE SÃO PAULO. FOI CURADORA nha contornos mais e mais precisos nesses mapas, DE DIVERSAS COMO à medida que o conhecimento sobre ele se aperfei- TERRA BRASILIS (BRUXELAS çoa, misterioso interior do país a chamada Terra FACCHINETTI (RIO DE 2004) Incognita aparece representado neles em pequenas E ARTE NO BRASIL: UMA NA vinhetas à maneira de iluminuras, nas quais nati- PINACOTECA DE SÃO PAULO (2011). vos realizam atividades cotidianas, como a caça e</p><p>a guerra, perfeitamente harmonizados com o Nassau-Siegen (1604-79), ou Maurício de Nas- pelo cartógrafo alemão Georg Marcgraf (Liebs- hipoteticamente um lugar de destaque no pro- mundo natural ao seu redor. Papagaios gigan- sau, no breve período do governo holandês em tadt, 1610-São Paulo de Luanda, 1644), também jeto decorativo do Palácio de Dessas, tes e outros animais fantásticos surgem nos parte do Nordeste brasileiro. Ainda que não te- membro da comitiva do Totalmente apenas sete são hoje identificáveis, e quatro mapas como de seres fabulosos da nham tido nenhuma repercussão direta na for- destruída a reconquista da cidade pelos formam o acervo do Museu do Louvre, em Pa- mitologia clássica, enquanto as imagens des- mação de uma cultura artística no país, essas portugueses, a Recife de Nassau ainda perma- as demais estão no Rijksmuseum, ses homens nus sans foi, sans roi, sans loi (sem fé, obras constituem um conjunto excepcional não nece na imaginação local como uma espécie de dam, no Instituto Ricardo Brennand, Recife, sem rei, sem lei) corroboram as mistificações apenas do ponto de vista de uma iconografia do testemunho de uma era de ouro perdida. ou integram a Coleção Patricia Phelps de Cis- em torno da ideia do "bom selvagem". Brasil, como também da América colonial. Apesar dos muitos esforços das pesquisas neros, Nova Do outro lado da moeda, a prática do cani- As circunstâncias históricas da vinda de sobre o Brasil holandês em épocas recentes, os A aura criada em torno desse conjunto de balismo, um dos primeiros hábitos locais a Nassau e sua comitiva ao Brasil estão relacio- motivos que levaram Nassau a constituir uma pinturas justifica-se na medida em que carac- ser notado pelos europeus, também encontra nadas com a criação, em 1621, da Companhia comitiva de sábios e artistas e a escolher espe- terizam o momento inaugural na representa- espaço nessas primeiras representações carto- Holandesa das Indias Ocidentais (West-Indis- cificamente Post e Eckhout como seus pintores ção da paisagem americana em pintura. Nes- gráficas. Contudo, ganha de fato força no ima- che Compagnie, a WIC), organização de capi- ainda permanecem por Dados sobre sas primeiras obras de Post, prevalece o tom de europeu por meio da capacidade mul- tal privado destinada a controlar, com apoio a formação desses artistas na Holanda são até uma paisagem topográfica, em que importa a tiplicadora da gravura, sem dúvida, e desde estatal, as rotas de comércio do Atlântico. In- o momento desconhecidos, assim como qual- exatidão do registro dos pontos estratégicos do sempre, o meio mais eficaz de difusão de ima- teressados no lucrativo negócio do açúcar, os quer pintura de sua autoria que seja anterior à domínio holandês sobre o território, de que é gens do Brasil. Têm papel crucial nesse pro- holandeses as investidas sobre o viagem ao Brasil. A falta de informações sobre exemplo o Forte Frederik Hendrik, de 1640. A essa cesso as ilustrações do livro pioneiro de Hans território brasileiro tomando Recife e Olinda algum contrato firmado entre Nassau e seus precisão se os esquemas compo- Staden (c. 1580), o aventureiro alemão dos portugueses em 1630. Seis anos depois, a artistas, que certamente existiu, faz supor, a sitivos que caracterizam o gênero da pintura capturado pelos em Bertioga e presença holandesa já se estendia pela área en- partir da produção brasileira de Post, que ele de paisagem holandesa do século XVII. o pri- testemunha ocular de um ritual antropofá- tre o rio São Francisco e o atual estado do tenha sido contratado para executar vistas meiro plano introduzido em diagonal, à con- gico, mais tarde reinterpretadas com grande o conde Maurício de Nassau, experiente mili- topográficas e paisagens, enquanto Eckhout traluz, marcado pela presença de uma árvore requinte pelo editor flamengo Theodor de Bry tar, foi então nomeado governador, capitão e seria responsável por documentar aspectos da a acentuar a verticalidade, é solução frequente (1528-98) em sua Americae Tertia Pars, de almirante do Brasil holandês. história natural espécies de botânica, zoolo- nessas obras. Também o são os caminhos e rios o tema reaparece também nas obras dos cro- No período em que foi governador (1637-44), gia e etnografia do país. De toda forma, é fato que cruzam a paisagem, conduzindo o olhar e nistas Thevet (c. 1502-92) e Jean de Léry Nassau transformou Recife numa cidade ca- que Post e Eckhout não tinham ainda uma car- acentuando a impressão de profundidade e ex- (c. 1611), publicadas, respectivamente, pital, à maneira das cortes principescas euro- reira consolidada no competitivo mercado ar- tensão da vista. A iluminação uniforme e certo em 1558 e 1578, ambos religiosos envolvidos no peias. Incentivou uma urbanização mais racio- tístico do século XVII sendo, ademais, despojamento no colorido dessas telas sugerem empreendimento de criação de uma colônia nal da cidade, bem como a constituição de um jovens o bastante para enfrentar a aventura de uma abordagem mais direta do motivo, embo- francesa no Rio de Janeiro. ambiente de tolerância religiosa. Construiu os uma viagem ao Novo Mundo, o que parece ter ra não se deva perder de vista que se trata, an- Diante da escassez de notícias e imagens palácios da Boa Vista (ou Schoonzit) e de Fribur- sido aspecto importante na decisão do conde. tes de tudo, de uma composição. que marcam o século do descobrimento, não é go este cercado de extensos jardins As atividades a que se dedicaram os in- É de supor que a permanência de Post no de estranhar a importância histórica e artística de plantas nativas e espécies estrangeiras acli- tegrantes da comitiva nassoviana nos sete Recife tenha dado origem a uma série de ano- que se atribui às pinturas executadas pelos ho- matadas, além de possuir um jardim zoológico anos em que viveram em Pernambuco tam- tações e desenhos tomados da observação di- landeses Frans Post (Haarlem, 1612-80) e Albert com animais exóticos. Uma das torres do Fri- bém são alvo de especulações. No caso espe- reta da paisagem do apenas Eckhout (Groningen, 1606-66), os artistas burgo abrigava um observatório astronômico cífico de Post, estima-se que tenha executado um álbum com desenhos de sua autoria hoje que acompanharam o conde Johan Maurits van completo, utilizado, segundo a historiografia, por volta de dezoito pinturas, que ocupariam no acervo do British Museum, em Londres é 1 A publicação pode ser acessada em: https://archive.org/ nome do artista (Albert Eckhout A Dutch Artist in Brazil, 3 Pedro e Bia Corrêa do Frans Post Obra details/americaetertiapaoostad do neste texto será utilizada a grafia já esta- completa. 2 Embora Quentin Buvelot aponte versões diversas para belecida pela</p><p>conhecido. Trata-se de uma coletânea que reú- mais caracteristicamente o con- ne 32 desenhos datados de muitos dos traste entre a paisagem luminosa, com seu ho- quais guardam correspondência com algumas rizonte azulado ao fundo, e o primeiro plano pinturas da fase brasileira, bem como com as escurecido intensifica-se e passa a ser povoa- gravuras do livro Rerum per octennium in Brasilia, do por exemplares agigantados da fauna e da obra encomendada por Nassau ao historiador flora Serpentes, tatus, e poeta Caspar van Baerle (1584-1648), ou Bar- abacaxis, palmeiras convivem numa espécie laeus, como é Publicado em 1647 em de microcosmo, como bem notou Teixeira Lei- Amsterdam, o livro cujo título se pode traduzir te4, estabelecendo um interessante paralelo como História dos feitos recentemente praticados duran- com os gabinetes de curiosidades principescos. te oito anos no Brasil é uma descrição e celebra- A presença estrangeira no território se faz re- ção do período da administração nassoviana presentar por edificações religiosas e engenhos na colônia, aparentemente motivado pelas que pontuam a paisagem, por vezes marcados desconfianças dos diretores da WIC diante dos por sinais da passagem do tempo, em conso- prejuízos acumulados no Brasil. A publicação nância com o gosto pelas ruínas na pintura é ilustrada com 56 gravuras em água-forte que europeia Personagens negros vestidos compreendem mapas e plantas de fortificações, de branco cruzam a vista caminhando ou dan- paisagens e cenas de combates navais, muitas cando, como reminiscências de paisagens pas- das quais portando a assinatura de Post. Não se Post parece querer condensar nessas descarta a possibilidade de que Post, sendo au- pinturas muitas memórias de sua experiência tor dos desenhos preparatórios, tenha também brasileira, construindo assim, necessariamen- participado da execução dessas gravuras. De te, paisagens de fantasia. Já foi assinalado por toda forma, as ilustrações inseridas no livro de diversos autores o quanto essas paisagens de Barlaeus permaneceriam por mais de um sécu- fantasia são as que de fato fundam na imagi- lo como as únicas imagens de terras brasileiras nação europeia uma imagem do tomadas a partir da observação a ter livre circu- Um conjunto de 21 pinturas que atualmen- lação nos meios eruditos europeus. Foram su- te integram a coleção do Nationalmuseet em cessivamente retomadas e retrabalhadas para Copenhague, Dinamarca, atesta o lugar não ilustração de muitas outras publicações até o menos pioneiro ocupado por Albert Eckhout final do século XVIII. nesse mesmo processo. o conjunto compreen- Em 1646, de volta à sua cidade natal, Post de doze naturezas-mortas, oito retratos etno- estabelece-se em próprio e torna-se gráficos e uma cena de dança indígena. membro da guilda de pintores local. A evoca- sabida a importância dos Países Baixos ção do Brasil será o único tema de suas obras na constituição de uma cultura visual anco- nos mais de trinta anos de atividade artística rada no saber científico advindo da observa- que se seguiram. Suas pinturas feitas na Eu- ção direta dos fenômenos da Sendo ropa, apesar da temática brasileira, são ainda Eckhout, assim como Post, artista oriundo 4 Roberto Teixeira "Os pintores de Nassau" In: 5 Svetlana A arte de a arte holandesa no Walter Zanini (org.) História geral da arte no Brasil, século 347-55</p><p>desse contexto cultural, não espanta que seus retratos etnográficos tenham sido, durante muito tempo, admirados mais pela correção etnográfica do que pelo seu valor De fato, as vestimentas, os objetos e os utensílios são representados com extremo cuidado, en- contrando exata correspondência em peças que pertenceram à coleção etnográfica de Nassau, algumas conservadas hoje no mesmo museu de Copenhague. Contudo, a análise da compo- sição dessas pinturas revela também uma in- tenção narrativa bastante Nenhum elemento é meramente decorativo, atuando, ao contrário, como atributo que serve a escla- recer as atividades em que estão envolvidos os personagens e, sobretudo, qual o seu papel na complexa hierarquia social do Brasil Assim, o selvagem casal Tapuia se oporia ao quase civilizado casal Tupi, enquanto o Mu- lato e a Mameluca indicariam possibilidades de entrecruzamento entre as A Africana, re- presentada em solo brasileiro (como sinalizam a carnaubeira e o mamoeiro), seria a escrava originária de Angola, naquele contexto, o maior porto fornecedor de cativos para o Novo ALBERT ECKHOUT o Africano estaria no litoral da África (como in- HOMEM 1641-43 dica a tamareira ao seu lado), sendo natural da SOBRE TELA região em que a WIC negociava marfim e Assim, no conjunto de retratos etnográfi- 1641 de o casal de negros sinalizaria as OLEO SOBRE TELA relações econômicas mantidas entre a colônia holandesa no Brasil e a África ocidental. COPENHAGUE</p><p>a farinha, a indicar também o modo como o Brasil. Exemplo disso é o lote contendo dezes- Nationalmuseet, em Copenhague. Os dois re- Muito se tem especulado sobre o caráter seis telas de Eckhout, móveis de marfim enta- decorativo dessas pinturas e qual teria sido alimento é consumido. tratos do conde se perderam. sua destinação original. argumenta Especulações à parte, sabe-se que Eckhout lhados com temas brasileiros, além de cerca Um ano antes de sua morte, em 1678, Nas- esteve envolvido ao menos em mais um proje- de setecentos estudos de história natural, lote sau enviou ao mais poderoso soberano euro- que o conjunto teria sido executado ainda no to decorativo que teve a fauna brasileira como que foi oferecido em 1652 a Friedrich Wilhelm peu, XIV, da França um lote Brasil para integrar o sofisticado projeto de- corativo de um dos salões do Palácio Friburgo. tema. Após seu retorno à Holanda, o pintor foi (1620-88), príncipe eleitor de Brandemburgo. contendo 42 quadros. Estima-se que pouco Segundo sua os quadros estariam contratado para trabalhar na corte da As telas de Eckhout, hoje desaparecidas, po- mais de trinta seriam de autoria de Frans e por dez anos (1653-63) foi pintor dos dem ter sido usadas por Maximiliaan van der dos quais restam atualmente oito no acervo dispostos em paredes paralelas, homens de eleitores de Dresden. Nesse período, estava sen- Gucht (1603-89), tecelão de Delft, para executar do Museu do Oito quadros de grandes um lado, mulheres de outro. As armas empu- do finalizada a reforma do pavilhão de caça dos uma série de tapeçarias com temas brasileiros dimensões são citados em inventários poste- nhadas por todos os personagens masculinos em 1668, de que só se tem notícias por docu- serviriam para demonstrar o apoio bélico ofe- o Castelo de Hoflössnitz, cujo salão riores como sendo obra de Eckhout. o estágio recido ao governo de Nassau. Os cestos carre- de jantar ganhou um forro com exótica deco- mentação de época. Os estudos, por sua vez, atual das pesquisas sobre o artista permite afir- ração de pinturas de pássaros do Novo foram organizados em volumes temáticos e mar, com razoável segurança, que esses foram gados por todas as figuras femininas seriam oferendas feitas ao conde tanto de produtos Oitenta painéis compõem essa decoração, em passaram à biblioteca do posterior- os quadros usados como modelos para a série que figuram aves pousadas sobre troncos de ár- mente incorporada ao patrimônio da Staatsbi- de tapeçarias conhecida como Anciennes Indes, naturais quanto de utensílios por elas confec- vores ou no chão, tendo ao fundo uma paisagem bliothek Preussischer Kulturbesitz, em Berlim, ou Antigas Indias, tecidas entre 1687 e 1730 pela cionados. Arranjadas dessa forma, as pintu- ras serviriam simbolicamente para reforçar tipicamente europeia. Sabe-se que o contrato onde ainda hoje se encontram cinco desenhos manufatura francesa dos Devido o papel de Nassau como elemento garantidor firmado entre a corte e Eckhout obri- de indígenas de Eckhout. o restante dos dese- ao progressivo desgaste desses originais dos gava o artista a levar a Dresden seus desenhos nhos foi dado por perdido após a Segunda Guer- quais ainda hoje se conservam fragmentos no da civilidade e da ordem na por meio feitos na o que justifica a atribuição ra, e somente foram redescobertos no final da Mobilier National, em Paris o artista Fran- da articulação de alianças com povos diversos, década de 1970, na coleção da Biblioteka Jagiel- çois Desportes (1661-1743) foi encarregado de obtendo dos súditos, por sua vez, a produtivi- das peças ao artista, ainda que não sejam assi- nadas ou datadas. A diferença qualitativa que se lonska, em Cracóvia. Correspondem aos volu- reelaborar as composições de Eckhout, refazen- dade da terra e a riqueza. observa entre as pinturas de Dresden e as obras mes conhecidos como Libri Picturati, ou Theatrum do os cartões para que fosse tecida uma nova As naturezas-mortas funcionariam como o arremate desse projeto decorativo, ocupan- de Eckhout na Dinamarca explica-se provavel- Rerum Naturalium Brasiliae. série, chamada de Nouvelles Indes, ou Novas Indias, mente por intervenções e repinturas feitas em Em 1654, exatamente quando a WIC oficial- fabricada pela Gobelins entre 1740 e 1800. do hipoteticamente uma posição acima dos vários períodos e sucessivas reformas no mente restituiu os territórios conquistados no Vale ressaltar que essas tapeçarias por vezes Os arranjos decorativos propostos por Eckhout nessas pinturas reúnem frutos e Como acertadamente assinala Brienen, as Brasil aos portugueses, Nassau enviou a seu são equivocadamente consideradas figurações vegetais, sementes, raízes e inflorescências coleções reunidas por Nassau no Brasil que primo Frederik III (1609-70), rei da Dinamar- do Brasil. É certo que se baseiam em registros incluíam pinturas e desenhos, objetos etnográ- um conjunto de 26 obras: nove pinturas visuais feitos por Eckhout a partir da natureza dispostos sobre parapeitos recortados contra um fundo de céu Não são apenas espé- ficos, herbários e outras curiosidades consti- etnográficas e doze naturezas-mortas execu- brasileira. Entretanto, estes se mesclam a ele- tuíram um importante capital cultural, que foi tadas por Eckhout, dois retratos seus, possi- mentos extravagantes de procedência africana cies brasileiras, mas também oriundas das In- utilizado pelo conde em troca de favores, títu- velmente também feitos por Eckhout, além ou oriental nos livres jogos compositivos pró- dias e da Africa, aqui aclimatadas. A multipli- cidade de formas e cores fala da fertilidade da los, terras e prestígio social. As coleções ofere- de três representações de africanos cuja au- prios das artes Concorrem para a toria tem sido equivocadamente atribuída ao construção de uma imagem de prodigalidade e terra, sugere cheiros e texturas. Em alguns ca- cidas como presentes, ao mesmo tempo que as frutas aparecem seccionadas, revelando dispersaram o conjunto original (cuja exten- artista. Todas essas obras passaram a compor exuberância de uma natureza ou me- são hoje apenas se pode imaginar), colocaram a Kunstkammer, ou Câmara de do rei lhor, como bem notou Bus- sua aparência interior. Em Mandioca, o artista acrescenta à representação um recipiente com em circulação uma diversidade de imagens do que deu origem à coleção do cam o deslumbramento do observador, para 7 Sempre se admitiu que as Antigas Indias ti- telas do século XVII que haviam sofrido intervenções an- 6 Rebecca Parker Albert Eckhout visões do paraiso vessem sido elaboradas a partir de desenhos de teriores de repintura e As evidências, portanto, Obra sem ter sido encontrada, entretanto, qualquer informa- apontam para a grande probabilidade de que Eckhout ção convincente para explicar como os artistas da Ma- seja autor das composições que deram origem a essas nufatura Gobelins teriam tido acesso ao material produ- (Brienen, p. 306). zido no o recente restauro das pinturas 8 Ana Maria o Brasil dos do Mobilier National revelou que se trata, de fato, de</p><p>GEORG MAPA DO BRASIL SOB DOMÍNIO 1647 BURIL E AQUARELA SOBRE PAPEL 117 X CM FUNDAÇÃO ESTUDAR FOTO SERGIO GUERINI naturalista coletaria também animais e plantas, que seriam levados para os jardins do Friburgo e lá desenhados por Eckhout, dando origem aos estudos do Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae. Sua morte precoce na costa da África, contudo, im- pediu que os resultados de sua extensa pesquisa científica fossem devidamente divulgados. Nos manuscritos originais de Marcgraf foi usada uma linguagem codificada, decifrada na Holanda por Johannes de Laet (1581-1649), um dos diretores da WIC e também De Laet dedicou-se a ordenar as informações cole- tadas por Marcgraf, às quais acrescentou suas o que contribui a preciosidade dos materiais próprias notas, e supervisionar a execução das utilizados em sua confecção: fios de ouro mais de quinhentas xilogravuras utilizadas e prata. Muitos dos motivos das composições para ilustrar a Historia naturalis Brasiliae, publica- para as tapeçarias Gobelins seriam retomados da em Amsterdam em 1648. o livro tornou-se a pelo pintor Johann Wenzel Bergl (1718-89) nos principal referência sobre a natureza brasilei- afrescos realizados por volta de 1763 para a de- circulando amplamente pelos meios cien- coração interior do Gartenpavillon nos jardins tíficos e artísticos da época. Foi utilizado por da abadia de Melk, na Lineu (1707-78) na elaboração do seu Systema Na- Georg Marcgraf viria se reunir no Brasil a turae de 1758, assim como para a composição do outros cartógrafos no Escritório painel de Jan van Kessel (1626-79), obra do Recife, organizado para o mapeamento das de 1666 que compõe o conjunto de alegorias de- conquistas holandesas no Seus es- dicadas aos quatro continentes. critos descrevem viagens de levantamento car- Mas a contribuição mais notável de Marc- tográfico pela costa do Brasil e incursões pelo graf para os estudos do Brasil viria a público interior, bem como observações de eclipses e em 1647, em Amsterdam, pela editora Blaeu, outras efemérides astronômicas, a partir das a mesma que havia publicado o livro de Bar- quais chegaria a determinar com precisão lon- laeus: trata-se do mapa Brasilia qua parte paret gitudes e distâncias, questão científica crucial Belgis (Parte do Brasil sob domínio holandês). o levan- naquele No curso dessas viagens, o tamento cartográfico executado com exatidão 9 De Laet era autor de importante obra sobre as Américas ofte van [Novo Mundo ou descrição publicada em em intitulada Nieuwe Wereldt das Indias</p><p>por em 1643, traz detalhadas infor- originais de Eckhout, Post e Marcgraf. Embora HISTORIA obra de um amador sem grande destreza para o mações sobre os caminhos fluviais e viários que desenho, são particularmente interessantes as et Beneficio propiciavam a ocupação do interior do país, so- bre a vegetação e o relevo, a rede urbana e de ilustrações em que ele registra costumes locais, tantum et Animalia como transporte de nativos em redes, o mer- et mores propriedades rurais, fortalezas para defesa da costa, bem como as tribos indígenas aliadas cado de escravos do Recife ou o edifício que ser- viu de residência a Nassau antes da construção e inimigas dos holandeses. Ao ser transposto para a gravura, o mapa foi acrescido de vinhe- dos seus palácios. Depois do período brasileiro, tas atribuídas a Frans Post, além de guirlandas Wagener seguiria carreira a serviço da Compa- e cartuchos, assim como de um extenso texto nhia das Orientais, tendo se tornado go- em latim que relata as conquistas de Nassau. vernador no Cabo da Boa Esperança. Constitui-se, como lembra em Trajetória semelhante teve Caspar Schmal- uma espécie de "relatório/cadastro das poten- kalden (Friedrichsroda, 1616-Gotha, 1673), outro cialidades econômicas e militares" da ocupação soldado alemão da WIC que residiu entre 1642 e holandesa do Nordeste brasileiro. As vinhetas, 1645 em Pernambuco e participou da expedição longe de serem apenas elementos decorativos, enviada por Nassau ao Chile. Treinado como como tradicionalmente se supõe, colaboram e na Universidade de Gro- para a intenção descritiva do mapa, veiculan- ningen, Schmalkalden também passaria pos- do informações preciosas sobre o sistema de fa- teriormente a servir na Companhia das Índias GEORGE MARCGRAF bricação do açúcar e a belicosidade dos Orientais e viveu na até 1663. É de sua au- WILLEM PISO HISTORIA NATURALIS Relatos avulsos de soldados, pequenos fun- toria um manuscrito ilustrado que reúne infor- cionários e outros personagens que não faziam mações sobre as colônias holandesas nas COLEÇÃO parte diretamente do círculo cortesão de Nas- Ocidentais (Brasil e Chile) e Orientais (Cabo da sau integram também o notável conjunto ico- Boa Esperança, Java, Malaca), além de relatos CULTURAL nográfico que tem origem no período de sua ad- de viagens pela China, Formosa e Esse FOTOS HORST MERKEL ministração no Brasil. Entre eles, vale destacar manuscrito, conservado na Landesbibliothek o álbum conhecido como Thierbuch, de autoria de Gotha, por muito tempo foi considerado um do soldado alemão Zacharias Wagener (Dres- Pesquisas recentes apontam, contudo, a den, 1614-Amsterdam, 1668), hoje conservado existência de outros dois manuscritos atribuí- no Kupferstich-Kabinett de Dresden. Wagener, dos ao mesmo autor na biblioteca da Universi- que parece ter tido algum treinamento no dese- dade de Alemanha, e na Kongelige nho quando trabalhou para a famosa empresa Bibliotek, na A comparação entre Blaeu de editores e cartógrafos, chegou ao Brasil eles permite esclarecer que se trata de uma nar- antes de Nassau e permaneceu em Pernambuco rativa composta a partir da experiência da via- até 1641. Seu manuscrito réune 110 ilustrações gem, acrescida de informações veiculadas nas que abrangem espécies da zoologia, figuras hu- publicações patrocinadas pelo próprio Nassau, manas, paisagens e mapas, muitas copiadas de como o Rerum per e a Historia Naturalis 10 Beatriz Siqueira Bueno As obras seiscentistas da Cole- 11 Mariana De Olinda a Holanda ção Brasiliana / Fundação Estudar Roberto Bertani (coord.) Coleção Brasiliana/Fundação</p><p>JOAQUIM DE MIRANDA possível que o manuscrito tenha sido A) A EXPEDIÇÃO organizado para duque Ernst de Saxe-Gotha TENENTE-CORONEL AFONSO (1601-75). para quem Schmalkalden BOTELHO DE E SOUZA AOS DO TIBAGI trabalhou quando retornou à Ainda CENA 9. GUACHE SOBRE que as ilustrações dos manuscritos sejam obra 42.5 X 55 CM COLEÇÃO PARTICULAR de um desenhista de ainda menos recursos que FOTO ROMULO FIALDINI Wagener, valem para atestar interesse e a di- vulgação que os estudos promovidos por Nassau no Brasil alcançaram nos meios eruditos euro- artístico manter-se atrelada à produção das ma- peus seus nufaturas, e ele foi sistematizado primeiramen- te nas academias militares. A necessidade de REGISTROS PORTUGUESES manutenção de um vasto império ultramarino Exceção feita ao manuscrito Historia dos animaes foi, certamente, o fator determinante para e arvores do Maranhão, cuja autoria se admite ser Instituições como a Academia Real da Marinha do franciscano Frei Cristóvão de Lisboa (Lisboa, e a Academia Real de Fortificação, Artilharia e 1582-1652). não é conhecido nenhum outro Desenho eram destinadas a formar um contin- conjunto contendo representações visuais da gente profissional apto a atuar nas conquistas natureza do Brasil que tenha sido executado em áreas tão abrangentes quanto o levantamen- por um português em data anterior ao século to cartográfico e a delimitação de fronteiras, a justamente em meados do Setecentos, construção civil e o desenho urbano, bem como momento de notável esforço de racionalização o incremento de processos produtivos e a explo- administrativa do império luso, que se cons- ração de recursos naturais. De fato, a expectati- titui um vultoso corpo de representações dos va em torno da atuação dos militares era de que domínios portugueses no mundo, em que os fossem capazes de viabilizar a ocupação e defesa métodos produtivos e extrativos, bem como a dos territórios submetidos à Coroa portuguesa, História Natural, têm papel de grande relevân- encontrando soluções e propondo intervenções cia. o desenho se presta, então, à elaboração a partir das características e variáveis apresen- de uma visão verdadeiramente "imperial", sen- tadas pelo próprio e não apenas tendo em do utilizado para dar a conhecer, conta preceitos Esses profissionais fazer ver aos gestores metropolitanos o proces- pragmáticos assumiram no ultramar português so de efetiva ocupação das terras e controle dos o papel destinado em outros contextos aos ar- recursos das conquistas. quitetos oriundos das Vale assinalar que a inexistência de escolas A noção de entre os portugue- de arte nos moldes das academias europeias ses, está, portanto, imbuída de forte caráter em Portugal a Academia de Belas Artes de instrumental e o aprendizado militar confe- Lisboa data de 1836 fez a transmissão do saber re características peculiares a essa produção. 12 É certo que há diversos manuscritos e mesmo impres- ou o das grandezas do Brasil, de Ambrósio SOS compostos por autores portugueses que contêm Fernandes Brandão (1618) Privilegia-se no descrições da flora e da fauna Basta lembrar o estudo das imagens e das publicações Tratado descritivo do de Gabriel Soares de Sousa</p><p>o treinamento do desenho, feito com base em proposta por Julião de figuras humanas recor- manuais, e não a partir da observação do na- tadas. As "figurinhas" aparecem identificadas tural, pode explicar certa tendência à geome- com legendas escritas pelo próprio artista pró- trização das formas, comum aos desenhistas ximo às imagens, como "Carruagem ou cadei- portugueses desse o que resulta numa rinha em que andao as senhoras na cidade do Salvador" ou "Traje das pretas minas da Bahia representação menos "naturalista" ou menos consideradas aqui todas as ressalvas quitandeiras". Julião inicia assim a prática do registro dos tipos sociais no Brasil algumas dé- que ambos os termos requerem. cadas antes do surgimento das famosas cenas Obra singular nesse contexto, uma vez que nela figura justamente uma expedição mi- de rua de Jean-Baptiste Debret (1768-1848). Me- litar, é o conjunto de 37 guaches atribuído ao rece atenção também o conjunto de desenhos desconhecido Joaquim José de Miranda, nome aquarelados que compõem os Ditos de figurinhos de que consta do documento descritivo que acom- brancos e negros dos usos do Rio de Janeiro e Serro do Frio panha as imagens. Trata-se de um relatório pertencente ao acervo da Fundação Biblioteca ilustrado que narra o encontro da expedição Nacional, Rio de Janeiro. Composto por 43 pran- comandada em 1771 pelo tenente-coronel Afon- chas de ilustrações não acompanhadas de texto, so Botelho de Sampaio e Sousa (1726-93) aos ser- esse manuscrito não traz indicação de autoria, tões do Tibagi, no atual estado do com mas é tradicionalmente atribuído a Julião pela os índios o próprio formato do direta correspondência entre muitas de suas fi- CARLOS JULIÃO rio já é pouco usual, pois apresenta imagens guras e as que compõem a obra citada. E FACHADA QUE numeradas sequencialmente que ilustram um A ação reformadora do Marquês de Pombal em campo e coordenou a sistematização das re- MOSTRA EM PROSPECTO argumento É possível observar nessas (1699-1782) sobre a organização do Estado luso messas científicas no complexo por ele consti- PELA MARINHA A CIDADE DE SALVADOR. 1779. imagens o uso de convenções da representação traria à tona a necessidade de promover o inven- tuído em torno do Jardim Botânico do Palácio da TINTA E AQUARELA SOBRE cartográfica na composição dos cenários onde tário das riquezas das colônias. Nesse sentido, o Ajuda, em Esse complexo compreendia PAPEL GABINETE DE ocorre o episódio narrado, bem como a figura- maior empreendimento incentivado pela mo- um laboratório químico, um museu de história ESTUDOS DE ENGENHARIA LISBOA ção um tanto "posada" dos personagens, clara- narquia portuguesa para reconhecimento das bem como a chamada Casa do mente derivados de manuais de potencialidades naturais de suas conquistas foi A Casa do Risco reunia um corpo de dese- Também a Elevação e fachada que mostra em pelo naturalista italiano Domenico nhistas treinados para o registro de espécies prospecto pela marinha a cidade de Salvador, de Vandelli (1730-1816), responsável pela cadeira de dos três reinos da natureza e habilitados nove anos pela região Aluno de obra do oficial de artilharia Carlos Julião (Tu- História Natural e Química do curso de Filoso- para o trabalho de campo nas Ali Vandelli em Coimbra, Rodrigues Ferreira ha- rim, 1740-Lisboa, 1811), apresenta configura- fia da Universidade de Foi Vandelli atuaram cerca de vinte profissionais, entre via sido treinado pelo mestre para dirigir essa ção bastante original no âmbito da produção quem idealizou o plano das chamadas Viagens os quais se encontravam José Joaquim Freire expedição, com a tarefa de preparar os diários, iconográfica de cunho militar no Setecentos Filosóficas expedições científicas que foram (Belas, 1760-Lisboa, 1847), desenhista forma- orientar a execução dos desenhos e organizar português. A vista da cidade em perfil, toma- despachadas para os domínios ultramarinos a do nos quadros do Arsenal Real do Exército, e as remessas de produtos naturais para o Mu- da do mar, acompanhada do plano dos fortes e partir da década de 1780 treinou os natura- Joaquim José Codina (?-1794), que acompanha- seu da Ajuda. De fato, a coleta empreendida baterias que compõem seu sistema de defesa, listas em laboratório, redigiu as instruções que ram o naturalista brasileiro Alexandre Rodri- pelo naturalista e seu grupo entre 1783 e 1792 seria convencional, não fosse a superposição deveriam orientar os procedimentos de trabalho gues Ferreira (1756-1815) em sua expedição de foi abrangendo as áreas da 13 AViagem Filosófica a Mocambique também seria che- fiada por um naturalista Manoel Galvão da Silva natural da Bahia</p><p>CARLOS JULIÃO CORTEJO DA RAINHA NEGRA NA FESTA DE ACERVO BIBLIOTECA NACIONAL BRASIL JOSE JOAQUIM FREIRE PROSPECTO DA VILLA zoologia e etnografia. Suas observações cien- recompostos e trabalhados a nanquim pelos ar- Santo Antônio do Rio de Habituado DO E DA ENTRADA tíficas englobam, além da geografia local, a tistas da Casa do o frescor do registro dos à formação de coleções mineralógicas e zooló- QUE FEZ 0 animais recém-mortos, das espécies botânicas MARTINHO DE SOUZA navegabilidade dos rios, os assentamentos ur- gicas, Frei Veloso conduziu, entre 1782 e 1790, 1784 banos, a agricultura e possibilidades de acli- apenas preparadas e dos prospectos de vilas ob- uma expedição botânica pelas províncias 46 22 CM matação de espécies botânicas. servadas em navegação pelos rios é substituído do Rio de Janeiro e de São Paulo, em que foi ACERVO FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL A atuação dos desenhistas da Casa do Risco por cenas em que indígenas, animais e plantas acompanhado por onze desenhistas, alguns BRASIL previa a reelaboração dos registros de espécies são ambientados em paisagens mais arbitrá- com formação militar, outros religiosos com feitos loco durante as viagens, transformando rias. o que sobressai nessas cenas feitas a poste- treinamento no o frade naturalista as anotações de campo em composições prepa- riori é propriamente o caráter narrativo, a inten- ocupou-se ele mesmo da descrição e prepara- ratórias para gravuras. Estas, por sua vez, ilus- ção de contextualizar a ação que se representa. ção de cerca de 1.640 espécies vegetais, 104 adiaram, porém, a concretização do projeto. trariam o mais ambicioso projeto de Vandelli, São pensadas, sem dúvida, como complemento delas novas, desenvolvendo métodos próprios Em 1808, entre o vasto material científico con- a publicação de uma História natural das colônias, de um texto que viriam acompanhar. de preservação de plantas Reconhecida fiscado pelos franceses estavam as coleções bo- cuja concretização foi inviabilizada pelo clima Ainda na transição do século XVIII ao XIX, a importância de suas pesquisas, ele acompa- tânicas de Veloso, que desapareceriam depois de instabilidade política que se espalhou pela outro frade franciscano contribuiria de ma- nhou o vice-rei do Luís de Vasconcelos de levadas à França. Afinal, a Flora fluminensis, Europa em finais do século XVIII. neira significativa para a amplitude e difusão e Sousa (1742-1809), a Lisboa, onde iniciou os o robusto trabalho de levantamento botânico Assim, é possível identificar no numeroso das pesquisas da história natural em Portugal. preparativos para a publicação de seu trabalho realizado por esse naturalista, seria impressa acervo resultante da Viagem Filosófica de Ro- Trata-se do Frei José Mariano da Ve- junto à Casa Literária do Arco do para o em sua totalidade apenas em 1827, em drigues Ferreira à Amazônia atualmente dis- loso (São José del Rei, 1742-Rio de Janeiro, 1811), qual foi designado As ilustrações de espécies botânicas, represen- perso entre coleções no Brasil, Portugal e França que, além de ministrar a catequese em aldeias A vida breve dessa casa impressora, assim tadas segundo o sistema de Lineu, foram os desenhos de campo aquarelados, executados indígenas, também foi lente de Geometria, como as turbulências que antecederam a in- gravadas na oficina de Alois (1771- seguramente por Freire ou Codina, os desenhos Retórica e História Natural do Convento de vasão de Portugal pelas tropas napoleônicas -1834), o célebre inventor da técnica litográfica. 14 Ainda que de atuação funcionou apenas en- mento de técnicas de agricultura, à modernização dos tre 1799 e 1801 a Casa Literária do Arco do Cego alcan- métodos de exploração de recursos naturais, a estudos çou uma de publicações inédita na história do sobre a flora à tradução de obras cientificas livro impresso em constituindo-se em centro para entre muitos difusor de conhecimentos úteis voltados ao</p><p>Os onze volumes que compõem a Flora Fluminen- de Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840), sis são o primeiro trabalho publicado por um precursor nos estudos de anatomia compa- brasileiro a respeito da flora local, tendo sido rada, Neuwied interessava-se em particular referência indispensável para todos os estudos pelas populações nativas da América. No pla- empreendidos sobre o assunto no século XIX. nejamento de sua viagem ao Brasil, escolheu percorrer territórios ainda bastante desconhe- cidos, na tentativa de travar contato direto 0 BRASIL NA ROTA DOS VIAJANTES com populações indígenas mais No A transferência da família real para o Rio de Brasil, Neuwied se reuniria ao botânico Frie- Janeiro em 1808 marca o momento em que se drich Sellow (1789-1831) e ao ornitólogo Georg altera em definitivo a condição de isolamento Freyriss (1789-1825), com quem percorreu a cos- cultural da América portuguesa. A consequen- ta entre o Rio de Janeiro e a Bahia. te abertura dos portos brasileiros ao comércio Após seu retorno à Europa, Neuwied organi- com as nações amigas revogou a de zou o livro Reise nach Brasilien, ou Viagem ao Brasil, entrada de estrangeiros no país, que vigora- publicado entre 1819 e 1822, em dois volumes ra por trezentos anos, e permitiu o acesso de acompanhados de um atlas As gra- representações diplomáticas e missões vuras que ilustram a publicação são obra de di- ficas, como também de comerciantes, mari- versos artistas do círculo da academia de Dres- nheiros, turistas e diletantes de diversas nacio- den, que se basearam, para a sua elaboração, nalidades, sobretudo europeias. Muitos desses em desenhos feitos em campo pelo próprio estrangeiros, fossem ou não artistas de forma- Neuwied e seus companheiros. Existem pro- tinham domínio do A esses ar- fundas diferenças entre os registros originais e tistas e/ou amadores, que a historiografia con- as estampas, o que traz à tona questões não vencionou chamar genericamente de artistas desprezíveis quando se analisam as ilustrações viajantes, a cultura figurativa deve mudanças de livros de viagem. Há que se considerar o fato fundamentais na maneira de perceber e repre- de que uma gravura é sempre uma obra coleti- sentar a natureza va, produto da ação de muitas mãos com fre- A diversidade de versões do país que emer- quência, executada por artistas que nunca tive- ge da produção desses artistas obriga aqui ao ram diante dos olhos o objeto representado. Os estabelecimento de um critério ordenador. desenhos de Neuwied, hoje conservados no Sendo assim, serão examinados, de início, os acervo da Fundação Bosch, em Stuttgart, reve- viajantes envolvidos em missões científicas lam alguma liberdade com relação às normas MAXIMILIAN ZU ou diplomáticas. do desenho culto e caracterizam-se mais como WIED-NEUWIED REISE NACH A pioneira entre as viagens de exploração registros de sensações, nos quais se percebe 1820 científica pelo Brasil foi aquela empreendida certo encantamento diante da visão da floresta COLEÇÃO pelo Maximilian zu Wied-Neuwied virgem do homem em "estado natural". As gra- ITAU CULTURAL (Neuwied, 1782-1867) entre 1815 e 1817. Aluno vuras, por sua vez, resultam de adaptações e FOTOS HORST MERKEL</p><p>extensão do espaço aberto nos limites reduzidos derivada do modelo classificatório de Lineu, e do suporte. Ender também foi responsável pela a espécie inserida em seu contexto preparação das ilustrações do livro Reise im Innern fico, conforme preconizado por Alexander von von Brasilien (Viagem pelo interior do Brasil), de autoria Humboldt (1769-1859) em seu Atlas pittoresque. do botânico Johann Emmanuel Pohl As gravuras da Flora baseiam-se em desenhos publicado em 1832. Pohl, outro integrante da de vários artistas que se correspondiam com Missão tinha excursionado sozinho entre os quais vale lembrar Benjamin pelas províncias de Minas Gerais e e rea- Mary (Mons, 1846), lizado uma série de esboços com a utilização de primeiro representante diplomático da Bélgica THOMAS ENDER uma câmera escura. Com base nesses esboços e no Brasil, desenhista amador e grande interes- MATTA PORCOS também em suas próprias anotações de viagem, ACERVO FUNDAÇÃO sado em Martius parece ter executa- BIBLIOTECA NACIONAL Ender elaborou as imagens que posteriormente do também desenhos em viagem. É que indi- BRASIL foram gravadas para ilustrar o álbum de viagem. ca uma grande coleção de originais atribuídos Entre 1818 e 1821, Spix e Martius cruzaram ao botânico conservada na Bayerische Staatsbi- os atuais estados do Rio de Janeiro, São Pau- bliothek, em Munique, que ainda merece um ajustes impostos às imagens por convenções botânico Carl von Martius (1794-1868) e do lo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, estudo mais utilizadas na ilustração científica da época. logo Johann Baptiste von Spix (1781-1826), cien- Piauí, Maranhão, Pará e Foram os Os resultados científicos da chamada Expe- Um impressionante corpus de imagens cien- tistas bávaros que tinham recebido permissão primeiros cientistas a percorrer toda a exten- dição Langsdorff (1821-29) foram certamente in- tíficas e topográficas do Brasil resulta dos di- especial para juntar-se ao grupo em são do Amazonas brasileiro e seus feriores aos da Missão embora esta ferentes itinerários cumpridos pelo interior do um longo itinerário pelo interior do Con- Quando retornaram a Munique, dedicaram-se tenha dado origem a um conjunto país pelos membros da chamada Missão Aus- tudo, chegando a São Paulo, logo na primeira a trabalhar na publicação de seu livro, Reise in não menos expressivo. As vistas topográficas, Motivada pelo casamento entre a arqui- etapa da viagem, ele adoeceu gravemente e foi Brasilien (Viagem pelo Brasil), produzindo ainda di- os desenhos de botânica e zoologia, hoje con- duquesa Leopoldina de Habsburgo (1797-1826) forçado a retornar a Viena em junho de 1818, versos outros títulos de interesse científico nas servados na Academia de Ciências da herdeiro do trono português Pedro de apenas dez meses após sua chegada ao áreas da zoologia e Spix faleceu pouco em Moscou, são de autoria dos artistas Johann Alcântara em 1817, a Missão reuniu Prosseguiu carreira artística em sua cidade na- após a chegada à Europa, mas Martius não só Moritz Rugendas (Augsburg, um grupo de cientistas de renome destinado a tal, tornando-se professor de pintura de paisa- deu continuidade ao trabalho do companheiro 1859), Aimé Adrien Taunay (Paris, 1803-Vila coletar no Brasil material botânico, zoológico e gem na Academia de Belas Artes de Viena, ins- de viagem, como dedicou toda a vida a estudar Bela de Mato Grosso, 1828) e Hercule Florence mineralógico para o enriquecimento das cole- tituição que conserva hoje a quase totalidade e publicar o material coletado no Entre (Nice, 1804-Campinas, que em etapas ções Planejava-se mesmo a consti- de sua obra brasileira. as muitas edições ilustradas que organizou está diferentes participaram desse tumultuado tuição de um museu brasileiro em Viena, que As aquarelas de Ender denotam o aprendi- a monumental Flora Brasiliensis, a mais completa empreendimento. chegou a funcionar, ainda que parcialmente. zado clássico na apreensão da paisagem, re- catalogação botânica já realizada sobre a flora A viagem planejada pelo médico e natura- Do ponto de vista de um legado iconográfi- presentada na tradicional estrutura dos três Composta por quarenta volumes, é lista Georg Heinrich von Langsdorff (1774-1852) a contribuição mais significativa da Missão planos sucessivos, concentrando a narrativa no fruto do trabalho de 66 botânicos de diversas teve seu início adiado sucessivamente devido Austríaca são os cerca de setecentos desenhos e plano próximo ao observador. As cenas tendem nacionalidades que descreveram 22.767 espécies. ao processo de independência brasileiro, que aquarelas produzidos por Thomas Ender (Vie- a ser quase despovoadas ou apresentam perso- Nas ilustrações da Flora, podemos notar a Langsdorff, em sua função de cônsul-geral na, 1793-1875). Pintor de paisagens, Ender de- nagens em escala pequena, o que potencializa convivência de dois modelos de representação da Rússia no Rio de Janeiro, deveria presen- veria, a princípio, acompanhar a viagem do sua já impressionante capacidade de sugerir a da natureza: a gravura de cunho científico, Em os cientistas partem para Minas 15 Contribuição importante de Martius à cultura bra- IHGB em janeiro de argumenta que a originalidade sileira foi a monografia escrita por ocasião do concurso da história brasileira residia justamente na possibilidade promovido pelo Instituto Histórico e Brasileiro de convivência e miscigenação entre negros e logo após a sua texto, intitulado "Como se teoria que funda a ideia do Brasil como um melting deve escrever a história do e publicado no Jornal do pot</p><p>FLORENCE BERTHOLLETIA 1829 NANQUIM AQUARELADO 54.3 ACERVO FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL BRASIL PÁGINA AO LADO CARL FRIEDERICH PHILIPP VON MARTIUS PHYSIOGNOMICAE IN FLORA BRASILIENSIS COLEÇÃO BRASILIANA/ITAU CULTURAL FOTOS MERKEL Gerais, acompanhados de Rugendas. No meio Brésil (Viagem pitoresca através do Brasil), álbum que do percurso, entretanto, este se desentende se- se tornaria um dos mais conhecidos livros de riamente com Langsdorff e abandona o grupo, viagem ao país já editados, rivalizando com retornando sozinho ao Rio de Janeiro. Rugen- o de Debret em popularidade. Tempos das deixaria com o naturalista apenas a par- Rugendas empreenderia uma grande viagem te de seu trabalho realizada para a expedição, de quinze anos pelo continente americano, levando consigo muitas das anotações e dese- deslocando-se do México à Argentina e passan- nhos feitos no Rio de Janeiro enquanto aguar- do novamente pelo Brasil em 1846. dava a partida da expedição. Voltou de pronto à Em sua segunda etapa, a expedição Langs- Europa ainda em 1825 e dirigiu-se a Paris, onde dorff cumpriria um itinerário por via fluvial, conheceu Humboldt. Este, admirado com partindo de Porto nas margens do rio Tie- seus desenhos, afirmou que Rugendas era, na tê, prosseguindo até Manaus, no rio Amazonas, sua artista que melhor conseguia e terminando em Belém do Pará em 1829. Nes- expressar a fisionomia da natureza do conti- se percurso, os cientistas foram acompanhados nente americano. Por influência de Humboldt, por Taunay e Florence. Rugendas chegaria a publicar, na prestigiosa Taunay era o filho mais novo de Nicolas editora Engelmann, a Voyage pittoresque dans le Taunay (1755-1830), pintor da Missão Francesa,</p><p>e tinha chegado ao Brasil com a família, em 1799-1878) como seu desenhista oficial. Land- 1816. Faleceu tragicamente durante a expedi- seer pertencia a uma família de artistas e pos- afogando-se na travessia do rio suía sólida formação acadêmica, adquirida na no Mato Grosso. Provavelmente treinado nas Royal Academy, em Londres. Depois do período artes pelo pai, representou com grande lirismo brasileiro, novamente da insti- cenas da vida tribal dos Bororo do Mato Grosso, tuição, onde fez carreira como professor, até se bem como de outros índios habitantes das mis- tornar reitor de ensino em 1851. De sua estadia de cerca de dois anos no Brasil resultou grande da região. Florence, por sua vez, chegara ao Rio de quantidade de desenhos e aquarelas, que regis- Janeiro em 1824, a bordo de uma fragata fran- tram sobretudo aspectos da paisagem do Rio de cesa em que pretendia dar a volta ao mundo. Janeiro e arredores, mas também tipos huma- Acabou por se juntar à expedição, em resposta nos e estudos de vegetação. Quando retornou à a um anúncio de jornal publicado por Langs- Inglaterra com Stuart, foi obrigado por contrato, dorff. o artista teve papel decisivo no final da mas não sem resistência, a entregar ao chefe da expedição, pois foi o responsável por organizar missão todo o material produzido. Sua obra foi, as remessas de material científico enviadas à dessa forma, conservada como conjunto no ál- Rússia, diante da incapacidade de Langsdorff, bum conhecido como hoje no acervo que enlouquecera, vítima da febre tropical. do Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro. Em Diferentemente de Taunay, os desenhos de parte da viagem, Landseer foi acompanhado Florence buscam a objetividade do registro, pelo botânico William John Burchell (Fulham, CHARLES LANDSEER atendo-se à linha que delimita os corpos, sen- 1781-Londres, 1863), também excelente dese- VISTA DO PÃO DE ACUCAR TOMADA do a cor empregada como complemento e di- que revela certa preferência pela repre- ou de Maria Graham (Cockermouth, 1785-Lon- DA ESTRADA 1827 OLEO SOBRE ferenciação das superfícies. Finda a viagem, sentação panorâmica de cidades. dres, 1842), caso raro de mulher viajante. ACERVO FUNDAÇÃO EM o artista tornou-se fazendeiro em Campinas. Em se tratando de negociantes, represen- Entre os militares britânicos, vale lembrar COMODATO NA PINACOTECA Entre seus muitos inventos que incluem tantes diplomáticos e militares proficientes Emeric Essex Vidal (Bedford, 1791-Brighton, ESTADO DE BRASIL FOTO ROMULO FIALDINI prensas mecânicas, veículos e diferentes mé- no uso amador da aquarela e do desenho, os 1861), oficial da Marinha que esteve três vezes no todos de impressão está a técnica de fixação de origem britânica sobressaem facilmente. Brasil, a primeira como integrante da escolta da da imagem captada pela câmera escura em Basta observar as aquarelas de Richard Bate família real portuguesa, em Exímio aqua- papéis sensibilizados pelo nitrato de prata, a (Londres, 1775-1856), proprietário de uma loja relista, Vidal é autor de um importante panora- cidade do Rio de Janeiro seus famoso álbum que chamou de fotografia em 1833. Florence de instrumentos óticos na capital, em que se ma circular da baía da Guanabara de 5 metros de ilustrado com gravuras feitas a partir de seus é reconhecido hoje como um dos pioneiros revela o desejo de conservar a memória dos lu- Ou também Henry Chamberlain (?, desenhos. As 36 estampas do livro combinam o mundiais na invenção da técnica fotográfica. gares familiares, em especial aqueles que cer- 1796-Bermudas, 1844), tenente do Exército gosto inglês pelos recantos bucólicos e pequenas Em 1825, a missão diplomática de Sir Char- cavam o cotidiano da comunidade britânica no nico e filho do encarregado de negócios da Ingla- enseadas com cenas de rua de tom mais anedó- les Stuart (1779-1845), encarregado das negocia- Rio. Outros exemplos podem ser encontrados terra junto à Corte brasileira. Após permanecer tico. Estas últimas são de especial interesse, na ções para reconhecimento da independência nas obras do diplomata William Gore Ouseley por cerca de um ano no Rio de Janeiro, retornou medida em que registram um curioso desfile brasileira pelo rei de Portugal, chegaria ao Rio (Londres, 1797-1866), também autor de um li- a Londres e publicou Views and Costumes of the City de personagens típicos, como negros de ganho, de Janeiro, trazendo Charles Landseer (Londres, vro de viagem ao Brasil publicado em Londres, and Neighbourhood of Rio de Janeiro (Vistas e costumes da vendedores ambulantes, pedintes e religiosos, 16 álbum pode ser visto http://ims.uol.com.br/hs/ charleslandseer/highcliffealbum.htm do</p><p>profunda, confere a seu trabalho forte efeito de Paris de Nessa cena imaginária, artis- dramaticidade, que o distancia muito das ima- ta coloca-se como um voyeur que surpreende gens mais descritivas de Ender ou momento de um ritual mágico, encenado em As três telas de autoria de François-Augus- meio à exuberância da floresta virgem. A luz te Biard (Lyon, 1798-Les Plâtreries, 1882) dedi- do sol que penetra a floresta permite distin- cadas aos índios da conferem ao guir os cipós, as bromélias e uma diversidade artista lugar de destaque entre os viajantes do de espécies botânicas que compõem a densa Oitocentos. Com carreira consolidada na Fran- vegetação tropical, delineada com atenção de ça, por obras originadas de viagem empreendi- naturalista por Biard. É importante assinalar da ao arquipélago norueguês de Spitsbergen e que essa pintura foi exposta no mesmo Salão à em 1839, Biard decide-se por uma de Paris em que Victor Meirelles (1832-1903) nova aventura que o traria ao Brasil em 1858. apresentou a icônica A primeira missa no Brasil A busca pela natureza selvagem e pelo conta- p. 180], imagem da fundação do Brasil que se to com os modos "primitivos" de vida do habi- dá no ritual observado por um grupo tante das florestas leva o artista a permanecer de indígenas. apenas alguns meses no Rio de Janeiro, tempo Não se pode considerar que a Academia do suficiente para pintar retratos de membros da Rio de Janeiro tenha monopolizado o ensino Corte e ser convidado a integrar o corpo docen- e a produção artística durante todo o século te da Academia Imperial de Belas XIX. Entre os muitos pintores estrangeiros que A navegação pelos rios Amazonas, Negro EDUARD HILDEBRANDT circularam pelo Brasil, em especial na segun- PAISAGEM COM 1845 e Madeira está narrada no livro Deux années au da metade do Oitocentos, alguns chegaram a OLEO SOBRE 36.9 CM Escandinávia à China e ao Japão, da India às Brésil (Dois anos no Brasil), que Biard fez publicar estabelecer ateliês no país, principalmente na ACERVO PINACOTECA DO Antilhas e aos Estados Unidos, personificando ESTADO DE SÃO BRASIL em Paris em 1862. Naquela região, o pintor Corte, com certeza por serem mais frequentes COLEÇÃO BRASILIANA/FUNDAÇÃO o artista romântico que sai pelo mundo em encontrou, como pretendia, povos indígenas ali as oportunidades de trabalho. É esse o caso, DOAÇÃO FUNDAÇÃO busca de seus temas. Chega ao Brasil em ainda pouco aculturados, entre os quais os por exemplo, de Henri Nicolas Vinet 2007 financiado pelo rei da Prússia, e no ano e meio FOTO ROMULO FIALDINI Mundurucu, com quem conviveu mais proxi- 1817-Niterói, 1876), estabelecido no Rio de Ja- que permaneceu no país produziu grande mamente. o índio João, um velho capitão e neiro a partir de 1856 como professor de pintura, quantidade de desenhos e aquarelas, hoje con- chefe de um povoado Mundurucu, chegou a em parceria com o artista Emil Bauch (Hambur- servados no Staatliche Museen, em Berlim. Al- convencer toda a sua tribo a se deixar fotogra- go, 1823-Rio de Janeiro, C. 1890). Ativo par- todos inspirados nas célebres figurinhas de ti- gumas telas foram produzidas já na Europa, e pintar por Biard e tornou-se o principal ticipante das Exposições Gerais da Academia, pos urbanos do artista português Joaquim Cân- com inspiração em seus desenhos de campo. interlocutor e informante do artista com rela- Vinet demonstra em seu trabalho interesse dido Guillobel (1787-1859). Sua obra combina o gosto pelo exótico e a afini- ção aos hábitos dos povos amazônicos. É João por trechos de paisagem situados em recantos o alemão Eduard Hildebrandt (Dantzig, dade com a pintura orientalista, resultado de quem menciona que alguns índios residen- mais isolados, tratados com uma abordagem 1817-Berlim, 1868) surge entre os artistas viajan- seu contato com a escola romântica tes no alto do Madeira dirigiam preces ao sol, mais naturalista e franca do assunto, que tes como um caso singular pela força poética e A estruturação da imagem por meio da incisão como faziam os antigos peruanos. o comentá- pode certamente ser considerado um ante- expressiva de sua obra. o pintor é um explora- de focos de luz dirigidos, que submerge as ou- rio motiva a realização da pintura da Ama- cedente para as experiências de pintura ao ar dor aventureiro por excelência: viajou da tras áreas da pintura em zonas de sombra zônia adorando 0 Deus-Sol, apresentada no Salão de livre empreendidas pelos artistas comandados 17 sabido que artista realizou outras pinturas com 18 Biard menciona no livro que havia adquirido no Rio de mesmo expostas nos Salões de Paris na década de Janeiro uma câmera escura de segunda mão e material 1860 No entanto, apenas três são conhecidas atualmen- para a prática da atividade com a qual não tinha, te e integram as coleções de Zózimo Gomes da da no entanto, nenhuma familiaridade (Biard Dois anos no Fundação Estudar (em comodato com a Pinacoteca do p. Estado de São ambas em São e do Musée du Nouveau La</p><p>FRANCOIS-AUGUSTE BIARD comprometidos com as regras acadêmicas, ao INDIOS DA AMAZÔNIA ADORANDO C. OLEO contrário, alinhados com as pesquisas SOBRE TELA. X 111.5 CM ticas do Realismo e do Naturalismo. ACERVO FUNDAÇÃO Vale destacar, ainda, a presença no Rio de EM COMODATO NA PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO Janeiro, a partir de do pintor tino Facchinetti (Treviso, 1824-Rio de Janeiro, 1900), cujo trabalho minucioso veio ao encon- tro do gosto não só de comerciantes e diploma- por Georg Grimm (Immenstad, 1846-Palermo, tas estrangeiros, que adquiriam suas paisagens 1887) a partir da década de como suvenires de viagem, como também da Os nove anos em que Grimm viveu no Rio de elite agrária, que lhe encomendava pinturas Janeiro, a partir de 1878, foram decisivos para a para documentar suas imponentes fazendas de introdução de importantes alterações na cultu- Facchinetti estabeleceu-se no Brasil como ra artística brasileira. Ancorado pelo sucesso de professor de pintura e, por cerca de cinquenta uma exposição de mais de cem obras realizadas anos, manteve um "gabinete de vistas do Bra- em périplos pela Itália, Grécia, Turquia, Pales- sil", como qualificava seu Vendia a preços tina e norte da África, Grimm foi convidado a acessíveis quadros de pequenas dimensões, em ocupar a cadeira de Pintura de Paisagem, Flores que as excentricidades da topografia do litoral e Animais da Academia Imperial de Belas Artes, do Rio eram tratadas do ponto de vista ceno- cargo que desempenhou por dois anos, entre gráfico, em vistas abrangentes que tendiam ao 1882 e 1884. No entanto, ao propor que seus alu- panorama, tingidas por efeitos de luz ao nas- nos saíssem dos ateliês e se colocassem diante cer ou ao por do sol. Construiu uma respeitável da natureza para pintar, Grimm adota uma carreira trabalhando totalmente à margem da postura de confronto com o tradicional método Academia de A popularidade de acadêmico, baseado na cópia de modelos con- suas vedutas do Rio de Janeiro e arredores pode sagrados e na subordinação a determinadas ser aferida pelas encomendas que lhe foram normas de composição de uma "boa" pintura. feitas pelo Duque de Saxe (1845-1907), genro do Após o rompimento inevitável com a Acade- imperador dom Pedro II, e mesmo pela princesa mia, formou-se ao redor do artista um grupo de Isabel (1846-1921), na década de 1870. discípulos que se reunia para pintar preferen- Caminho diverso e certamente mais árido foi cialmente em Niterói, onde as enseadas despo- o escolhido pelo também italiano (ou piemon- voadas e a natureza agreste eram motivos mais tês) Joseph Léon Righini (Turim, C. convenientes ao estilo e à abordagem da paisa- 1884). Filho de um gravador e irmão de um pin- gem defendidos por Grimm. Forma-se, assim, tor, o artista cumpriu seu treinamento na Ac- uma notável geração de paisagistas brasileiros, cademia delle Belle Arti de sua cidade natal. Ao entre os quais incluem-se Antônio Parreiras contrário da maior parte dos estrangeiros apor- (1860-1937) e Hipólito Caron (1862-92), menos tados no Brasil, que preferiam estabelecer-se</p><p>no Righini desembarcou no Recife em rapidamente ao meio local. Interessam aqui, na condição de pintor de cenografias da em especial, as séries de pinturas que realizou companhia de opera de Giuseppe Ramonda. De por encomenda de proprietários de fazendas de lá partiu com a companhia para São no café do interior da de São De Maranhão, onde um sério desentendimento maneira muito mais abrangente do que fizera com Ramonda levou-o a abandonar a compa- o também italiano Facchinetti antes dele, Fer- nhia e transferir-se para no Pará, onde rigno dedica obras às várias etapas do trabalho viveu até falecer. A importância do trabalho de envolvido no cultivo do chamado "ouro ANTONIO FERRIGNO A FLORADA DE Righini no contexto da pintura de paisagem no como se pode observar, por exemplo, nas seis 1903 SOBRE telas que conjunto executado para 96 X 147 CM Brasil oitocentista decorre, sem do fato a Fazenda Santa Gertrudes A florada, A colheita, ACERVO SOCIEDADE de ter sido o único a registrar as paisagens da RURAL BRASILEIRA região amazônica naquele período. o terreiro, Beneficiamento do café e SÃO PAULO Sua atuação como cenógrafo é visível em para a estação hoje pertencentes ao Museu suas pinturas, uma vez que as paisagens pare- A série, datada de 1903, foi enviada cem estar sempre à espera da entrada de algum pelo governo brasileiro ao pavilhão nacional da personagem em cena. o pintor revela certo gos- Exposição Universal de Saint-Louis, nos Esta- to pelas formas retorcidas das raízes aéreas que dos Unidos, e no retorno foi exposta também surgem com frequência no proscênio de suas em São Outra série semelhante, dedica- obras, onde sempre insere traços da presença da à cafeicultura na Fazenda Victória, em Bo- humana. estão uma tapera, um jirau, um tucatu, foi encomendada pelo Conde de Serra pequeno barco a sinalizar a convivência entre o Negra para divulgação do café paulista na Eu- homem e a natureza luxuriante da zona equato- ropa. As telas foram apresentadas na Exposição rial. Sua notável contribuição para uma icono- Universal de Paris em 1900, seguindo depois grafia de Belém passa ainda pela publicação, em para outras capitais europeias. 1867, do álbum Panorama do Pará em doze As Parece sintomático que, duzentos anos de- gravuras obedecem aqui aos modelos correntes pois da passagem de Nassau e seus artistas, o de vistas urbanas difundidos pelos livros de via- Brasil se tenha feito representar nas exposições gens pitorescas, em que os edifícios principais universais pela decantada fertilidade de sua da cidade são tomados frontalmente ou em es- terra e prodigalidade de sua natureza. Nesse corço, e os espaços públicos aparecem animados século XIX que marcou a cultura artística bra- com personagens típicos do lugar. sileira pela acentuada internacionalização, a Interessado no mercado de arte que se con- imagem de uma natureza generosa e de pro- figurava em São Paulo a partir da riqueza pro- porções grandiosas, sedimentada pelo olhar vinda da cafeicultura, o pintor Antonio Ferrigno estrangeiro, foi em definitivo incorporada ao (Maiori, 1863-Salerno, 1940), formado pela imaginário nacional, tornando-se desde então Accademia delle Belle Arti de estabe- parte constitutiva dele. leceu-se na cidade por doze anos, integrando-se</p><p>MANEIRISMO, BARROCO E ROCOCÓ NA Nos séculos XVI, XVII e XVIII, três estilos europeus diferenciados, o maneirismo e barroco, de fonte italiana, e o rococó, de fonte francesa e germânica, foram sucessivamente implantados no Brasil pelos colonizadores portugueses. De modo geral, ter- ARTE RELIGIOSA mo maneirismo é hoje aplicado à arquitetura e às MYRIAM ANDRADE artes visuais do século XVII, anteriores às primeiras RIBEIRO DE OLIVEIRA manifestações do barroco, já no final da centúria, HISTORIADORA DA ARTE. FORMADA de preferência a outros que vigoraram no passado MANUEL DA COSTA / FREI PELA UNIVERSIDADE DA COSTA / MANUEL DA SILVA AMORIM E SEUS como arte ou estilo Já termo AGOSTINHO DE JESUS / MANUEL INÁCIO DE LOUVAIN ONDE inicialmente empregado em sentido amplo para de- OBTEVE DOUTORADO EM signar as expressões artísticas do século XVIII, hoje 1990. PROFESSORA TITULAR DA divide essa hegemonia com em particular UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO nas regiões de Minas Gerais, Pernambuco, Rio de ANTECEDENTES DE JANEIRO (ESCOLA DE BELAS Janeiro e São Paulo, que conheceram suas expres- ARTES). MEMBRO DO CONSELHO mais abrangentes. Observe-se que as três de- CONSULTIVO DO INSTITUTO signações são empregadas quase sempre no setor DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E da arte religiosa, tendo em vista a simplicidade das ARTÍSTICO NACIONAL (IPHAN) E DO tradições arquitetônicas portuguesas no campo da EUROPEUS ERMIDA / DE SOUZA / INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO arquitetura civil de caráter oficial ou residencial e a JESUÍTAS / FRANCISCANOS / BRASILEIRO (IHGB). AUTORA DE precariedade da encomenda suntuária nesse campo, BENEDITINOS / CARMELITAS DIVERSOS TÍTULOS SOBRE 0 TEMA. inerente à situação de 1 Cf Lucio Costa. "A arquitetura jesuita no Textos es- colhidos da Revista do São Paulo: pp. 98-9 2 Tradução da expressão plain proposta por George Kubler Cf. A arquitetura portuguesa, entre as especiarias e diamantes 1521-1706 3 Situação decorrente da ausência de corte e monarca residente e que só sofreria mudança substancial a partir de 1808, com a transferência da corte portuguesa para Rio de</p><p>CAPELA DE NOSSA SENHORA TIPOLOGIAS E PROGRAMAS o caso de Minas Gerais pode ser tomado como casamentos e os enterros, atos essenciais da MG Estreitamente ligada ao Estado pelo regime exemplo. Ponto de referência do arraial que vida comunitária. FOTO MONTEIRO/ crescia à sua volta, a capelinha primitiva mi- o programa das catedrais, nas sedes de SAMBAPHOTO do a Igreja Católica assumiu o pa- pel de cliente preponderante da encomenda neira parte do cômodo único inicial, com o al- bispado, reproduz o das matrizes em escala arquitetônica e artística no período colonial, tar do santo padroeiro, ao programa completo, monumental, com a capela-mor alongada repartida nos dois segmentos que a condicio- incorporando nave, capela-mor e sacristia late- para inclusão do cadeiral para o No nam desde a época medieval: a Igreja secular ral. Da mesma forma, o recurso provisório dos período colonial, sete igrejas foram e as Ordens religiosas. o primeiro caracteriza sinos dependurados nas janelas ou nas peque- das ou reformadas no Brasil para se tornarem os programas ligados à administração oficial nas sineiras de madeira foi aos poucos sendo sedes de catedrais, nas cidades de Salvador da Igreja e à iniciativa privada dos colonos e substituído por soluções mais funcionais, até (bispado constituído em Rio de Janeiro abrange tanto construções de vulto, como as a solução definitiva da torre única em posição e Olinda (1676), São (1677), Belém (1720), matrizes, catedrais e misericórdias, quanto central na fachada, como na capela de Nossa São Paulo e Mariana (1745) Destas ainda se as ermidas, capelas primitivas e igrejas de Senhora do em Sabará, ou em situação in- conservam as catedrais coloniais de Olinda, o segundo engloba os partidos dependente, como na do Padre Faria, em Mariana e Belém. As primitivas Sés de Salva- subordinados às diretrizes espirituais e pro- Observe-se que também foi utilizado dor, Rio de Janeiro e São Paulo não resistiram gramas específicos das ordens fran- em Minas tipo tradicional de capela urbana às transformações urbanas aceleradas da pri- ciscana, beneditina e carmelita, instaladas no portuguesa, com torre única lateral, que preva- meira metade do século Observe-se que, Brasil a partir do estabelecimento do primeiro leceu nas regiões litorâneas e nas construções das construções que se conservaram, a única governo geral, em iniciais das Ordens religiosas. que mantém a integridade de sua decoração Começando pelo programa mais simples, diversificação tipológica das capelas pri- original é a antiga Catedral de Mariana. As das ermidas e capelas primitivas, a primei- mitivas sucede-se a relativa padronização das Sés de Olinda e Belém passaram por reformas ra observação que se impõe é sobre a diver- matrizes, símbolos do poder oficial da Igreja, e restaurações abrangentes a partir de fins sidade de tipologias nas diferentes regiões construídas nas proximidades do poder civil, do século XIX, que reduziram a decoração da brasileiras, determinada tanto pela ausência representado pelas casas de Câmara e primeira ao e con- de modelos eruditos e mão de obra especia- Construções de grandes dimensões, para que feriram à segunda imponente ambientação lizada, nos estágios iniciais do povoamento, nelas pudessem assistir aos ofícios todos os neobarroca. quanto pelas variantes geográficas e climáti- "fregueses" de determinada paróquia ou fre- Da mesma forma, pouca coisa restou das Os exemplos mais característicos encon- guesia, sua planta incluía, via de regra, uma antigas Misericórdias, que chegaram a tota- tram-se nas regiões interioranas afastadas ampla nave alongada, separada da capela-mor lizar 21 edificações nas vilas coloniais, com dos núcleos urbanos litorâneos, como ates- pelo arco cruzeiro, corredores externos para maior concentração nas vilas de tam pequenas capelas desse tipo ainda hoje circulação e sacristia nos fundos, com o con- povoamento mais antigo. Presentes em todo o remanescentes em antigas vilas coloniais nos sistório para reunião das irmandades no cô- império colonial português, essas instituições estados de São Paulo, Goiás e Minas Gerais, modo superior. Na fachada, duas possantes de assistência social incluíam, em seu progra- entre torres de seção quadrada com campanários, ma arquitetônico, hospitais e recolhimentos Particularmente significativo, tendo em uma das quais alojava o batistério, impres- de e donzelas, construídos lateralmente vista o processo acelerado de povoamento sem cindível ao funcionamento do programa pa- às igrejas, em torno de um pátio central, como o enquadramento oficial das Ordens religiosas, roquial, que incluía, além dos batismos, os pode ser visto ainda hoje na Misericórdia de 4 Regime de origem medieval pelo qual a Igreja reconhe- 5 Assembleia de Cônegos que assessorava o bispo 7 Solução adotada na última restauração do em cia monarca encarregado da nas para ressaltar as características excepcionais da manutenção e propagação da fé em seus territórios 6 As construções das primitivas catedrais de Salvador e quitetura seiscentista da igreja. São Luis acabaram sendo demolidas após a transferência para Colégio das duas cidades, onde ainda se encontram</p>