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<p>DA OS MARVIN HARRIS</p><p>CLAROS ENIGMAS Por que razão legiões de hindus famintos se recusam a comer carne ou a permitir o abate de seus "re- banhos sagrados"? Por que razão judeus e muçulmanos abominam a carne de porco? Alguns chefes in- dígenas do Pacífico Norte costuma- vam atear fogo a suas casas e sair apregoando os prejuízos que tiveram. Por que? E por que os membros das minúsculas tribos que habitam a imensa Amazônia tentam incansa- velmente promover o mútuo exter- mínio? Existe alguma explicação racional para a crença de alguns ocultistas da Nova Guiné no futuro retorno de seus antepassados a bor- do de naves espaciais carregadas de sorvete e motocicletas? E quanto aos mistérios de nosso próprio passado mítico? É possível explicar por que os primeiros cristãos professavam uma religião de não-violência, ba- seada nas palavras de um pacífico Messias, quando na realidade esta- vam empenhados na derrubada do Império Romano? E os cultos de feitiçaria e magia negra da Europa pós-medieval? Por que se permitiu que tantas pessoas fossem torturadas até confessarem ter voado pelos céus em vassouras e copulado com o dia- bo? E por que, após tantos séculos, observamos pasmados ao retorno das mais bárbaras práticas de magia negra no seio da atual contracultu- ra? Marvin Harris responde a estas e outras perturbadoras questões so- bre o comportamento humanos neste livro que sugestivamente intitulou</p><p>Vacas, Porcos, Guerras e Bruxas</p><p>Título do original inglês: COWS, PIGS, WARS & WITCHES THE RIDDLES OF CULTURE Desenho de capa: EUGÊNIO HIRSCH Sumário Diagramação: LÉA CAULLIRAUX Revisão: NILO FERNANDES Prefácio 9 Prólogo 13 A mãe vaca 17 Amigos e inimigos de porcos 35 As guerras primitivas 54 selvagem 70 Potlatch 89 A carga fantasma 105 Direitos desta edição reservados à Os messias 120 EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A. Rua Muniz Barreto, 91-93 O segredo do príncipe da paz 136 RIO DE JANEIRO - RJ, Cabos de vassouras e sabás 156 que se reserva a propriedade desta tradução. A grande mania das bruxas 167 1978 A volta das bruxas 179 Epílogo 192 Impresso no Brasil Printed in Brazil Referências e agradecimentos 197</p><p>Prefácio U VINHA, exatamente, de tentar convencer uma classe de universitários de que havia uma explicação racional para o tabu indiano contra o abate de vacas. Estava certo de haver previsto todas as possíveis e, radiante de confiança, indaguei se alguém tinha perguntas a fazer. Um irrequieto jovem levantou a mão e disse: "E a propósito do tabu judaico contra a carne de porco?" Meses depois, comecei a buscar razões para explicar por que judeus e detestam carne de porco. Levei quase um ano aprontando-me para testar minhas idéias com um grupo de colegas. Assim que terminei de falar-lhes, um amigo, espe- cialista em índios sul-americanos, observou: "E sobre o tabu dos Tapirapés contra a carne de veado?" E assim tem sido com cada um desses enigmas para os quais venho tentando encontrar uma explicação prática. Mal acabo de esclarecer um costume ou estilo de vida até então inescrutável, alguém me rebate com outro. - Bem, isto pode ser válido para o potlatch entre os Kwakiutl, mas, como o senhor explica a guerra entre os Yano- mamo? Creio que deve haver por lá uma deficiência de proteí- nas 9</p><p>E a propósito do culto da carga nas Novas Hébridas? prêmios a especialistas que jamais contestam um fato Explicações sobre estilos de vida são como batatas fritas: teoria. a gente vai comendo até acabar todo o pacote. Esta é uma A proporcional relação, que já por algum tempo das razões porque este livro passa de um assunto para outro, rendo entre o volume da pesquisa e a profundidade da da India para a Amazônia e de Jesus Cristo para Carlos Cas- social pode significar apenas uma coisa: a função social tañeda. Há, contudo, algumas diferenças quanto ao pacote comum essa pesquisa é evitar que o povo compreenda as razões de batatas fritas. Antes de mais nada, não lhe aconselho tirar vida em sociedade. o primeiro bocado que o atrair. Minha explicação para as Os expoentes da ciência oficial insistem que tal est bruxas depende da explicação para os "figurões" que depende confusão resulta da deficiência de estudos. Breve have da explicação para a sexualidade, que depende da explicação seminário no espaço com base em dez mil novas pesqu para o amor aos porcos, que depende da explicação para a campo. Mas saberemos menos, e não mais, se esses pe aversão aos porcos, que depende da explicação para o amor dores alcançarem seu objetivo. Sem uma estratégia para d às vacas. Não que o mundo tenha começado com o amor às a brecha existente entre as especialidades e organizar, 1 vacas, mas porque foi aí que começou minha tentativa pessoal drões teoricamente coerentes, o conhecimento atual, as de entender as razões dos vários estilos de vida. Portanto, por pesquisas não levarão a uma compreensão melhor das favor, não leia ao acaso. dos estilos de vida. Se realmente, buscamos É importante que se considerem os capítulos deste livro tais causas, devemos ter pelo menos uma vaga perspect como se completando uns aos outros e tendo um efeito cumula- meio à massa potencialmente inexaurível de fatos de no tivo. Do contrário, não poderei me defender da surra que espe- tureza e cultura. Espero que algum dia meu trabalho seja cialistas numa dúzia de áreas e assuntos hão de, certamente, derado uma contribuição ao desenvolvimento dessa estrat querer me aplicar. Respeito técnicos e quero aprender com eles. por apresentar tal perspectiva. Mas podem ser um estorvo ou uma vantagem se tivermos de depender de vários deles ao mesmo tempo. Já experimentou indagar de um especialista em hinduísmo sobre o amor aos porcos na Nova Guiné, ou de um perito sobre a Nova Guiné acerca da aversão aos porcos entre os judeus, ou de um versa- do em judaísmo sobre o messias na Nova Guiné? (É da natu- reza do animal desejar apenas uma batatinha frita em toda a sua vida.) A desculpa por me aventurar a transpor matérias, continen- tes e séculos é que o mundo se estende por matérias, continentes e séculos. Nada é tão diverso, na natureza, como dois montí- culos de sabedorias. Respeito o trabalho individual dos pesquisadores que, pa- cientemente, ampliam e aperfeiçoam seus conhecimentos sobre uma única era, tribo ou personalidade, mas creio que tais esfor- deveriam concentrar-se em problemas de relativo interesse geral. A evidente incapacidade do nosso superespecializado es- tablishment científico de dizer algo coerente sobre as causas dos estilos de vida não provém de alguma desordem inerente a esses fenômenos. Julgo ser antes o resultado da concessão de 10</p><p>Prólogo E STE LIVRO trata das razões de estilos de vida aparentemen- te irracionais e inexplicáveis. Alguns destes enigmáticos costumes ocorrem entre povos analfabetos ou "primitivos", como por exemplo os vaidosos chefes índios norte-americanos que queimam seus bens por mera ostentação. Outros se referem a sociedades subdesenvolvidas, sendo meus favoritos os hindus, que se re- cusam a comer carne de vaca mesmo que estejam morrendo de fome. Outros ainda dizem respeito a messias e feiticeiras, que fazem parte do caudal de nossa própria civilização. Para provar meu ponto de vista, escolhi, intencionalmente, exemplos bizarros e controversos que se afiguram enigmas insolúveis. Vivemos numa época que se considera vítima de um excesso de inteligência. Com intuitos vindicativos, os especialistas se empenham em demonstrar que nem a ciência nem a razão podem explicar as variações de estilos de vida da humanidade. Por isso está na moda insistir que não há solução para os enigmas aqui examinados. fundamento da maior parte desses principais conceitos sobre costumes misteriosos foi apresentado por Ruth Benedict no seu livro Patterns of culture. Para explicar as mar- cantes diferenças entre as culturas dos Kwakiutl, dos Dobuans e dos Zuni, ela se reportou a um mito atribuído aos índios Ca- 13</p><p>vadores. Diz o mito que "Deus doou a cada povo uma tigela em sociedade. Decepções sobre os fundamentos banais da cultura de barro, e dessa tigela beberam sua vida. Todos tomaram da pesam como placas de chumbo sobre as mentes comuns. E não água, mas em tigelas diferentes." que isto tem desde então é fácil contornar, penetrar ou levantar esta carga opressora. significado para muitos povos é que só Deus sabe porque os Numa era ansiosa por experimentar estados diversos e Kwakiutl incendeiam suas casas, assim como porque os hindus extraordinários de consciência, tendemos a ignorar a extensão se abstêm de comer carne de vaca, ou porque os judeus e os em que nossa mentalidade comum constitui, em si mesma, uma abominam a carne de porco, ou ainda porque consciência profundamente mistificada uma consciência sur- certos povos acreditam em messias, enquanto outros crêem em preendentemente alheia à realidade prática da vida. Por que deve bruxas. A longo prazo, a prática desta hipótese ser assim? tem sido desencorajar a busca de outros tipos de explicações, Em primeiro lugar, existe a ignorância. A maioria das pes- pois uma coisa é certa: se não se crê que haja solução para um soas percebe apenas uma pequena parcela da gama de alterna- quebra-cabeças, jamais se haverá de encontrá-la. tivas relativa aos modos de viver. Para passar do mito e da Para explicar padrões diferentes de cultura temos de come- lenda à perfeita consciência é preciso comparar toda a classe çar por admitir que a vida humana não resulta de um mero de culturas passadas e presentes. E existe o medo. Uma falsa acaso ou capricho. Sem tal premissa, mal podemos resistir à consciência pode ser a única defesa efetiva contra ocorrências tentação de recuar diante de um costume ou instituição tenaz- como o envelhecimento e a morte. E, finalmente, existe a luta. mente indecifrável. Com o passar dos anos descobri que costu- Na vida social comum é invariável que alguns controlem ou mes por muitos considerados totalmente inescrutáveis tinham, explorem outros. Essas desigualdades são tão disfarçadas, mis- na verdade, origens determinadas e logo perceptíveis. A prin- tificadas e desvirtuadas quanto a velhice e a morte. cipal razão de terem passado tanto tempo despercebidas é que Ignorância, medo e luta constituem os elementos básicos todos estavam convictos de que "só Deus sabe a resposta." da consciência comum. Com tais elementos, a arte e a política Outra razão de muitos costumes e instituições parecerem modelam o mundo coletivo de sonhos, cuja função é evitar que tão misteriosos é que nos ensinaram a dar mais valor às com- as pessoas compreendam o que realmente seja sua vida em plexas explicações "espiritualistas" dos fenômenos culturais do sociedade. Nossa consciência comum, portanto, não pode expli- que às mais simples e naturais. Afirmo que a solução de cada car-se a si mesma. Sua própria existência se deve a uma capa- um dos enigmas analisados neste livro consiste numa melhor cidade desenvolvida para negar os fatos que esclarecem essa compreensão de circunstâncias de ordem prática. Mostrarei que existência. Assim como não se concebe que sonhadores justifi- até as crenças e práticas aparentemente mais extravagantes, quem seus sonhos, também não seria de esperar que os parti- quando atentamente examinadas, revelam-se baseadas em condi- cipantes de tais estilos de vida esclarecessem seus costumes. ções, necessidades e atividades comuns, banais ou mesmo vulga- Alguns antropologistas e historiadores, porém, pensam o res. A meu ver, uma solução banal ou vulgar é a que se apóia contrário. Argumentam que a explicação dos participantes cons- na realidade e é constituída de coragem, sexo, energia, ventos, titui uma realidade irredutível. E advertem que jamais se deveria chuvas e outros fenômenos tangíveis e comuns. considerar a consciência humana como um "objeto" e que a Isto não significa, porém, que as soluções oferecidas sejam estrutura científica apropriada ao estudo da física ou da quími- de algum modo simples ou óbvias. Ao contrário. É um empreen- ca não tem valor quando aplicada ao estudo dos estilos de vida. dimento sempre difícil identificar os fatores materiais relevantes Vários profetas da moderna "contracultura" chegam a acusar nos acontecimentos humanos. A vida prática tem muitos disfar- o excesso de "objetificação" como causa das injustiças e desas- ces. Cada estilo de vida está envolto em mitos e lendas, que tres da história contemporânea. Alega um deles que uma cons- desviam a atenção para aspectos irreais ou sobrenaturais. Esses ciência objetiva leva sempre a uma perda de "sensibilidade envoltórios dão ao povo uma identidade social e uma consciên- moral", igualando assim ao pecado original a busca de conheci- cia de objetivo social, mas ocultam as cruas verdades da vida mento científico. 14 15</p><p>Nada mais absurdo. Fome, guerra, sexualidade, tortura e exploração têm ocorrido em toda a história e pré-história muito antes de que alguém tivesse a idéia de tentar "objetificar" os acontecimentos humanos. Pessoas há que, desiludidas com as secundá- rias da tecnologia avançada, imaginam ser a ciência o "principal estilo de vida da nossa sociedade". Isto pode estar certo quanto ao nosso conhecimento da natureza, mas é absolutamente erra- do com relação ao nosso conhecimento da cultura. No que toca aos estilos de vida, não se pode ter o conhecimento como pecado original porque ainda nos encontramos em nosso estado original de ignorância. Mas deixemos para o capítulo final o exame dos postulados A Mãe Vaca da contracultura. Mostrarei antes como se pode dar uma expli- cação científica a uma série de importantes enigmas sobre esti- los de vida. Pouco se ganharia em discutir teorias que não se fundamentam em fatos e contextos específicos. Peço apenas que não se esqueçam de que, como qualquer cientista, espero apre- sentar soluções prováveis e razoáveis, e não certezas. Contudo, por mais imperfeitas que sejam, as soluções prováveis devem ser preferíveis à ausência de soluções - como o mito dos índios que entro em discussões sobre a influência de fa- Cavadores de Ruth Benedict. Como qualquer cientista, aceito tores práticos e naturais nos estilos de vida, aparece alguém de bom grado explicações alternativas, desde que correspondam e diz: "O que há com todas aquelas vacas que os famintos aos padrões da verdade científica e sejam também esclarecedo- camponeses da India se recusam a comer?" A imagem de um ras. E agora, aos enigmas. agricultor maltrapilho, morrendo de fome ao lado de uma imensa vaca gorda, transmite aos observadores ocidentais uma tran- qüilizante sensação de mistério. Inúmeras alusões, eruditas e po- pulares, confirmam nossa mais profunda convicção de como deveriam agir os povos de mentalidade oriental. agradável saber - algo assim como "sempre haverá uma Inglaterra" - que na India os valores espirituais são mais preciosos que a própria vida. E ao mesmo tempo, isto nos entristece. Como po- deremos esperar compreender um povo tão diferente de nós? Os ocidentais julgam a idéia de que possa haver alguma explica- ção prática para o amor indiano às vacas muito mais perturba- dora do que os próprios indianos. A vaca sagrada - e de que outra forma poderia dizê-lo? - é uma das nossas vacas sagra- das favoritas. Os hindus veneram as vacas porque são o símbolo de tudo o que é vivo. Assim como Maria é, para os cristãos, a Mãe de Deus, para os indianos a vaca é a mãe da vida. Não existe, 16 17</p><p>portanto, maior sacrilégio para um indiano que matar uma vaca. Ao invés de jorrarem leite das tetas, os esqueléticos animais Até mesmo o sacrifício de uma vida humana deixa de ter o quase não conseguem amamentar uma só cria até a maturidade. significado simbólico, ou a inexprimível profanação representada O rendimento médio de leite da vaca zebu típica na India não pelo abate de uma vaca. chega a 227 litros por ano. O gado leiteiro comum, nos Estados Segundo vários técnicos, a veneração às vacas é a causa Unidos, produz mais de 2.680 litros, sendo que as produtoras principal da fome e da pobreza na India. Alguns agrônomos não raro atingem a casa dos 9.970 litros anuais, mas esta educados no Ocidente afirmam que o tabu contra o seu abate comparação ainda não diz tudo. Em qualquer ano, cerca da tem conservado vivos cem milhões de "inúteis" animais. Alegam metade das vacas zebuínas da India não dão sequer uma gota que essa veneração reduz a eficiência na agricultura, já que as de leite. vacas não contribuem nem com o leite e nem com a carne, Para agravar a situação, o amor à vaca não estimula o amor embora entrem em competição, por cereais e alimentos, com ao homem. Já que os abominam a carne de porco, os animais úteis e com famintos seres humanos. Um estudo mas comem a bovina, muitos hindus os consideram matadores patrocinado pela Fundação Ford, em 1959, concluiu que se po- de vacas. Antes da divisão do subcontinente indiano entre a deria. considerar a metade do rebanho indiano como excedente India e o Paquistão, ocorriam anualmente sangrentas rebeliões em relação ao suprimento alimentar. E um economista da Uni- para impedir que os muçulmanos abatessem vacas. E a lem- versidade da Pennsylvania afirmou, em 1971, que a India possui brança desses antigos motins continua a acirrar as relações entre trinta milhões de vacas improdutivas. os dois países. Em Bihar, em 1917, por exemplo, 30 pessoas Parece que há uma grande quantidade de animais supér- morreram e 170 aldeias muçulmanas foram totalmente arrasadas. fluos, inúteis e antieconômicos, e que tal situação é Embora lamentasse tais distúrbios, Mohandas K. Gandhi direta de irracionais doutrinas indianas. Turistas em trânsito foi um fervoroso defensor do amor à vaca, e desejava a proi- por Délhi, Calcutá, Madras, Bombaim e outras cidades indianas bição total de seu abate. Quando se redigiu a constituição india- espantam-se com a liberdade de que goza o gado vadio. Os ani- na, incluiu-se um dispositivo em defesa das vacas, que quase mais perambulam pelas ruas, derrubam as bancas do mercado, tornou ilegal toda e qualquer forma de abate. Alguns Estados invadem jardins particulares, defecam nas calçadas e interrom- baniram-no definitivamente, mas outros ainda admitem pem o trânsito, quedando-se a ruminar nas esquinas congestio- O problema da vaca continua a ser uma das principais causas nadas. No campo, amontoam-se pelas estradas e estão sempre a de motins e conflitos, não apenas entre hindus e os remanes- caminhar pelas linhas férreas. centes da comunidade mas também entre o Partido O amor às vacas afeta a vida de múltiplas maneiras. Repar- do Governo no Congresso e facções extremistas de hindus de- tições do governo mantêm asilos, onde os proprietários podem fensores das vacas. 7 de novembro de 1966, uma multidão alojar, gratuitamente, suas vacas magras e decrépitas. Em Ma- de quase 120 mil pessoas, liderada por um bando de homens dras a polícia recolhe o gado vadio que fica doente e leva-o a santos ornados de grinaldas de cravo-da-índia e co- pastar e se restabelecer em pequenos campos próximos à esta- bertos de cinza de protestava contra o abate de vacas ção ferroviária. Os agricultores consideram as vacas membros diante da sede do Parlamento indiano. Oito pessoas morreram da família, enfeitando-as com grinaldas e borlas, rezando por e quarenta e oito saíram feridas na agitação que então ocorreu. elas quando adoecem e convidando os vizinhos para, juntamente Seguiu-se uma onda nacional de jejum entre os homens santos, com um sacerdote, celebrar o nascimento de uma nova cria. Em liderados por Muni Shustril Kumar, presidente do Comitê para toda a India, pendem das paredes calendários estampando belas a Campanha Multipartidária de Proteção à Vaca. Aos observa- e ornadas jovens, com o corpo de grandes vacas brancas. Vê-se dores ocidentais, familiarizados com as modernas técnicas da o leite jorrar das tetas dessas deusas, meio mulher, meio zebu. agricultura e pecuária, o amor às vacas parece insensato, ou Afora o lindo rosto humano, as vacas dessas estampas pou- mesmo suicida. O técnico eficiente anseia por apoderar-se de se assemelham àquelas que se encontram em carne e osso. todos aqueles inúteis animais e mandá-los a um destino mais São os ossos seu aspecto característico na maior parte do ano. apropriado. Há, contudo, certas incongruências na condenação 18 19</p><p>a esse Quando principiei a perguntar a mim mesmo duzir bois. Com ou sem amor às vacas, isto já seria uma boa se não haveria uma justificação prática para as vacas sagradas, razão para que não a vendesse ao matadouro. Começa-se tam- deparei com um curioso relatório governamental que afirmava bém a perceber porque os camponeses indianos estão prontos haver na India muitíssimas vacas, mas muito poucos bois. Com a tolerar vacas que dêem apenas 227 litros de leite por ano. Se tantas vacas à vista, como poderia existir escassez de bois? A a principal função econômica da vaca zebu é gerar animais ma- principal fonte de tração na aradura do campo, no país, é re- chos para carga, então não tem cabimento compará-la com as presentada pelo boi e pelo búfalo macho. Para cada sítio de especializadas vacas leiteiras norte-americanas, cuja principal 10 acres ou menos, considera-se como adequado um par de função é produzir leite. Além disso, o leite produzido pelas va- bois ou de búfalos. Um pouco de aritmética revela-nos que, no cas zebus desempenha um papel importante no suprimento das que toca à aradura da terra, existe, de fato, mais escassez que necessidades alimentares de muitas famílias pobres. Mesmo pe- excesso de animais de tração. A India possui 60 milhões de quenas quantidades de produtos lácteos podem melhorar a saúde granjas, mas apenas 80 milhões de animais de tiro. Se cada de pessoas que são forçadas a sobreviver à beira da inanição. granja tivesse sua cota de duas cabeças de gado, deveria haver 120 milhões de animais, ou seja, 40 milhões a mais do que os Quando o camponês indiano quer um animal que, princi- realmente existentes. palmente, lhe forneça leite, recorre à fêmea do búfalo, que tem períodos mais longos de lactação e maior rendimento em gordura A carência pode não ser assim tão ruim, já que alguns granjeiros alugam ou tomam emprestado animais vizinhos. Mas de manteiga do que a zebu. Os búfalos machos são também tal partilha resulta impraticável. Deve-se con- animais mais apropriados para a aradura em arrozais alagados, ciliar a aradura com as chuvas da monção e, quando um sítio conquanto os bois sejam mais versáteis e preferíveis para a la- acaba de ser arado, a época ideal para arar-se outro já pode voura seca e para o transporte na estrada. Acima de tudo, as raças zebus são notoriamente robustas e capazes de suportar as haver passado. Ademais, terminada a aradura, ainda precisa longas secas que, periodicamente, assolam diversas regiões da o agricultor do seu par de bois para puxar-lhe a carroça, que India. é a base do transporte predominante no interior da India. Muito provavelmente, a propriedade privada de sítios, gado, arados e A agricultura faz parte de um vasto sistema de relações carroças reduz a eficiência da agricultura indiana, mas, como humanas e físicas. Julgar porções isoladas desse "ecossistema", logo percebi, isto não acontece por causa do amor às vacas. em termos que interessam mais à conduta dos negócios na agri- A escassez de animais de tiro é uma terrível ameaça que cultura norte-americana, pode levar a conclusões muito estra- pende sobre a maioria das famílias campesinas da India. Quan- nhas. O gado figura no ecossistema indiano de formas facilmente do um animal cai doente, o agricultor pobre corre perigo de per- despercebidas ou desprezadas pelas sociedades industrializadas der sua propriedade. Se não conta com um substituto, terá de e de alto teor energético. Nos Estados Unidos, as substâncias tomar dinheiro emprestado a taxas exorbitantes. E milhões de químicas já substituíram quase completamente o esterco animal famílias rurais têm, efetivamente, perdido tudo, ou parte das como fonte principal de fertilizante agrícola. Os agricultores norte- suas posses, recorrendo à parceria ou empregando-se noutros americanos pararam de usar o estrume quando começaram a sítios, em dessas dívidas. Anualmente, centenas arar com tratores, em vez de mulas ou cavalos. Como os de milhares de agricultores desvalidos acabam emigrando para tratores destilam mais venenos que fertilizantes, a preferência as cidades, já saturadas de desempregados e desabrigados. pela mecanização agrícola em larga escala significa, quase que O camponês indiano que não for capaz de substituir o seu necessariamente a preferência pelo emprego de fertilizantes gado doente ou morto encontra-se na mesma situação do agri- químicos. E hoje, no mundo inteiro, vem-se desenvolvendo real- cultor norte-americano que não pode substituir ou reparar o tra- mente um vasto complexo industrial de petroquímicos, tratores tor quebrado. Mas há uma grande diferença: os tratores são e caminhões, que produz máquinas agrícolas, transporte motori- feitos nas fábricas, enquanto os bois são produzidos por vacas. zado, óleos e gasolina, fertilizantes químicos e pesticidas, dos agricultor que possui uma vaca possui uma fábrica de pro- quais dependem as novas técnicas de alta produtividade. 20 21</p><p>Para bem ou mal, a maioria dos agricultores da India não deram-no um combustível de primeira qualidade, por ajustar-se pode participar desse complexo, não porque venerem suas va- perfeitamente à sua rotina doméstica. A grande maioria dos cas, mas simplesmente porque não têm condições para comprar pratos indianos são preparados com a manteiga pura chamada tratores. Tal como outras nações subdesenvolvidas, não pode a GHEE, para a qual o estrume de vaca é a fonte preferida de India construir fábricas competitivas com as instalações dos paí- calor, por queimar com uma chama límpida e duradoura, que ses industrializados, nem pagar por grandes quantidades de pro- não resseca a comida. Com esse combustível a mulher indiana dutos industriais importados. A troca de animais e estrumes por pode pôr os alimentos a cozinhar e deixá-los no fogo por várias tratores e petroquímicos exigiria o investimento de um volume horas, enquanto cuida das crianças, ajuda na lavoura ou deso- incrível de capital. Ademais, a inevitável de substi- briga-se de outros afazeres. Já a dona-de-casa norte-americana tuir animais baratos por dispendiosas máquinas seria reduzir o obtém o mesmo resultado através de um conjunto de controles número de pessoas que podem ganhar a vida com a atividade eletrônicos que acompanham, como dispendiosas alternativas, os agrícola e forçar um aumento correspondente no tamanho do últimos modelos de fogões. sítio comum. Sabemos que o desenvolvimento da agricultura esterco de vaca tem ainda, pelo menos, outra importante de largo porte nos Estados Unidos significou a virtual destrui- função. Misturado com água e transformado em pasta, usa-se ção da pequena granja familiar. Menos de 5 por cento das famí- para assoalhar as casas. Espalhando-o pelo chão de terra e dei- lias norte-americanas vivem hoje no campo, em contraste com xando-o endurecer e formar uma superfície polida, diminui a 60 por cento cerca de cem anos atrás. Fosse a agricultura de- poeira e pode ser limpo com uma vassoura. senvolver-se de modo semelhante na India, ter-se-ia logo de en- Como o estrume de gado tem múltiplas utilidades, colhe-se contrar trabalho e habitação para 25 milhões de pessoas desa- cuidadosamente tudo o que dele houver. crianças na aldeia, brigadas. dá-se o encargo de seguir a vaca da família e trazer para casa Sendo já insuportável o sofrimento causado pelo desempre- sua produção petroquímica diária. Nas cidades, a casta de var- go e desabrigo nas cidades indianas, um considerável aumento redores tem o monopólio do esterco deixado pelos animais des- adicional da população urbana só poderia levar a revoluções garrados, e ganha a vida vendendo-o às donas-de-casa. e catástrofes sem precedentes. Do ponto de vista agrícola, uma vaca seca e estéril cons- Tendo em vista tal alternativa, torna-se mais fácil com- titui uma abominação econômica. Mas, para o agricultor, a preender regimes baseados em animais, em baixa energia e em mesma vaca estéril pode significar sua última e desesperada defe- pequena escala de produção. Como já assinalei, vacas e bois for- sa contra os agiotas. Sempre haverá a possibilidade de que uma necem substitutos de baixa energia para tratores e fábricas de monção favorável venha restaurar as energias até do mais de- tratores. E deveriam também ter a seu crédito o desempenho das crépito espécime, fazê-lo engordar, gerar uma cria e tornar a funções de uma indústria petroquímica. O rebanho indiano produzir leite. Para isso ele reza e às vezes suas orações são produz, anualmente, 700 milhões de toneladas de esterco apro- ouvidas. Entrementes, continua a produção de estrume. E a gen- veitável. Cerca da metade é empregada como fertilizante, en- te, aos poucos, vai compreendendo porque um molambo de quanto a maior parte do restante é queimada na cozinha. O vaca ainda pode parecer belo aos olhos de seu dono. volume anual de energia gerada por esse esterco, - principal gado zebu tem corpos pequenos, reservas de energia na combustível da dona-de-casa indiana - equivale, termicamente, giba e grande capacidade de recuperação. Estas características a 27 milhões de toneladas de querosene, 35 milhões de tonela- se adaptam às condições específicas da agricultura indiana. As das de carvão ou 68 milhões de toneladas de lenha. Contando raças nativas são capazes de sobreviver por longos períodos com a India com apenas modestas reservas de petróleo e carvão, pouco alimento ou água, além de serem muito resistentes às além de já ser vítima de intenso desflorestamento, nenhum desses doenças que atacam outras raças nos trópicos. Os bois zebus combustíveis pode ser tido como substitutos práticos do esterco trabalham enquanto neles houver um sopro de vida. Stuart de vaca. A idéia de estrume de vaca na cozinha pode não agra- Odend'hal, ex-veterinário da Universidade John Hopkins, pra- dar ao norte-americano comum, mas as mulheres indianas consi- ticou autópsias locais em reses indianas que haviam trabalhado 23 22</p><p>normalmente até poucas horas antes de morrer, mas cujos órgãos contradição entre necessidades imediatas e condições de sobre- vitais apresentavam graves lesões. Com sua imensa capacidade vivência a longo prazo. amor à vaca, com seus símbolos sa- de recuperação, não se pode jamais classificar esses animais como grados e doutrinas santas, protege o agricultor contra atitudes totalmente "inúteis" enquanto estiverem vivos. que são "racionais" apenas a curto prazo. Para os analistas Mais cedo ou mais tarde, porém, chega o momento em ocidentais é como se "o agricultor indiano preferisse antes mor- que se perde toda a esperança de sua recuperação, cessando rer de fome do que comer sua vaca". Ao mesmo tipo de técni- até a produção de estrume. Ainda assim o agricultor hindu cos agrada falar sobre a "inescrutável mente oriental" e imagi- recusa-se a matá-lo para servir de alimento, ou a vendê-lo ao nar que "a vida não é assim tão cara aos povos asiáticos". Não Não estaria aí um testemunho irrefutável de uma percebem que o agricultor preferiria comer sua vaca a morrer perniciosa prática econômica sem outra explicação senão os tabus de fome, mas que, de fato, morreria de fome se a comesse. religiosos sobre o abate de vacas e o consumo de carne bovina? Mesmo com o amparo das leis sagradas e o amor à vaca, Ninguém pode negar que o amor às vacas mobiliza as pes- às vezes torna-se irresistível a tentação de comer carne bovina soas a resistir ao seu abate e ao consumo da carne. Não con- durante os rigores da fome. Na Segunda Guerra Mundial, ocor- cordo, porém, que os tabus contra a matança e o consumo te- reu uma grande fome em Bengala, provocada por secas e pela nham, necessariamente, algum efeito prejudicial à sobrevivência ocupação japonesa da Birmânia. A matança de vacas e de ani- e bem-estar dos homens. Com o abate ou venda de seus decré- mais de carga chegou a níveis tão alarmantes, no verão de 1944, pitos animais, pode um agricultor ganhar umas poucas rupias que os ingleses tiveram de empregar tropas para impor as leis a mais, ou melhorar temporariamente a dieta familiar. A longo de proteção à vaca. Em 1967 The New York Times noticiava: prazo, porém, benéficas poderão advir da recusa em os matar para sua própria mesa, ou em os vender ao mata- "Hindus ameaçados de morrer à míngua, na região douro. Há um princípio aceito de análise ecológica segundo o assolada pela seca em Bihar, estão sacrificando vacas e qual as comunidades de organismos se adaptam, não às condi- comendo-as, embora esses animais sejam sagrados para a ções normais, mas às extremas. A característica predominante religião hindu." na India é a ausência cíclica das chuvas de monção. A fim de avaliar o significado econômico dos tabus contra o abate e E os comentaristas afirmavam que "a miséria do povo esta- o consumo de carne, temos de analisar o que esses tabus repre- va além do que se pudesse imaginar". sentam no contexto de secas e fomes periódicas. A sobrevivência até a idade avançada de certo número de Esses tabus podem ser um produto da seleção natural, do animais absolutamente inúteis, em épocas de bonança, é parte mesmo modo que o pequeno porte e a fantástica capacidade de do preço a pagar para proteger animais úteis contra o abate, recuperação das raças Durante as secas e fomes, os agri- em épocas difíceis. Mas pergunto a mim mesmo quanto real- cultores sentem-se fortemente tentados a matar ou vender o mente se perde com a proibição do abate e com o tabu contra gado. Os que sucumbem à tentação asseguram a própria des- a carne de vaca. Do ponto de vista da economia agrícola oci- graça, mesmo que sobrevivam à seca, porque estarão impossi- dental, parece irracional não ter a India uma indústria frigorí- bilitados de arar a terra quando as chuvas chegarem. Para ser fica do produto. Mas é muito limitado o efetivo potencial para ainda mais enfático, a matança sistemática do gado, sob os rigo- essa indústria num país como aquele. Um aumento substancial res da fome, constitui uma ameaça muito maior ao bem-estar na produção de carne bovina abalaria toda a ecologia, não por geral do que qualquer possível erro de previsão de certos agri- causa do amor à vaca, mas em face das leis da termodinâmica. cultores com relação à utilidade dos seus animais em períodos Em qualquer cadeia de alimentos, a interposição de elos animais normais. Parece provável que o sentimento de inominável sa- adicionais resulta numa queda brusca na eficiência da produ- crilégio associado ao abate de vacas tenha origem na penosa ção alimentar. O valor calórico daquilo que um animal come 24 25</p><p>é sempre muito maior que o valor calórico do seu corpo. Quer nato de couro. Até na morte, animais aparentemente inúteis isto dizer que há mais calorias disponíveis per capita quando alimentos vegetais são consumidos pelo homem do que quando continuam a ser explorados para atender a interesses humanos. utilizados na alimentação de animais domésticos. Poderia acertar, no que toca à sua utilidade como trans- Em vista da alta taxa de consumo de carne bovina nos Es- porte, combustível, fertilizante, leite, pavimentação, carne e cou- tados Unidos, três quartos de toda sua terra arável destinam-se ro, e ainda assim errar quanto ao significado ecológico e eco- mais à alimentação de animais do que à humana. Como o con- nômico de todo o complexo. Tudo depende do custo das mer- sumo calórico per capita na India já se situa abaixo do mínimo cadorias, em termos de recursos naturais e de trabalho humano diário requerido, passar as terras à produção de carne só poderia relativos às maneiras alternativas de satisfazer as necessidades resultar em alta de preços dos alimentos e ainda maior deterio- da vasta população da India. Estes custos são, em grande parte, ração do padrão de vida das famílias pobres. Duvido que mais determinados pelo que o gado São muitos os técnicos que uns 10 por cento da população indiana viesse a tornar a que acreditam estar o homem e a vaca fadados a uma compe- carne de vaca um item importante da sua dieta, independente- tição mortal por terras e alimentos. Isto poderia ser verdade se mente de acreditar ou não no amor às vacas. os agricultores indianos seguissem o modelo norte-americano de Duvido também que a remessa de mais animais velhos e exploração agrícola e alimentassem seus animais com o produto dessas lavouras. Mas a incrível verdade sobre as vacas sagra- decrépitos aos matadouros existentes trouxesse proveitos nutri- cionais para os mais necessitados. A maioria desses animais das é que são infatigáveis limpadoras de ruas. E apenas uma acaba mesmo sendo devorada, ainda que não seja enviada ao parcela insignificante do alimento consumido pelas vacas comuns matadouro, porque existem, em toda a India, castas inferiores provém de pastos e lavouras destacados para esse fim. Isto cujos membros têm o direito de aproveitar as carcaças das reses deveria tornar-se evidente diante de todas essas insistentes no- mortas. De uma ou outra forma, vinte milhões de cabeças de tícias sobre vacas que vagueiam pelas ruas congestionando o gado morrem anualmente e grande parte da sua carne é comida trânsito. Que fazem esses animais nos mercados, nos jardins, por esses "intocáveis" necrófagos. nas estradas e ferrovias, ou nas encostas das colinas? Que estão Minha amiga, a Dra. Joan Mencher, uma antropologista fazendo senão comendo toda e qualquer porção de capim, res- que há muitos anos trabalha na India, observa que os matadou- tolhos e lixo, que não poderiam ser diretamente consumidos por ros existentes abastecem os não-hindus da classe média urbana. seres humanos, para transformá-los em leite e outros produtos Diz ainda que "os intocáveis obtêm alimento por outros meios. úteis! Em seu estudo sobre o gado na Bengala Ocidental, des- bom para eles que uma vaca que morra de fome numa aldeia cobriu o Dr. Odend'hal que o maior ingrediente na dieta do não seja enviada ao matadouro da cidade para ser vendida a gado são subprodutos não-comestíveis de lavouras destinadas muçulmanos ou cristãos". Os informantes da Dra. Mencher ne- à alimentação humana, principalmente palha e casca de arroz e garam, a princípio, que os hindus comessem carne bovina; mas farelo de trigo. Segundo estimativa da Fundação Ford, metade logo confessaram sua predileção por carne com caril quando do gado é excedente em relação ao suprimento alimentar, o souberam que as "classes superiores" norte-americanas gostam de que quer dizer que a metade do rebanho consegue sobreviver bifes. até mesmo sem acesso às fontes de forragem. Mas isto ainda Tal como tudo o mais que venho analisando, o consumo não diz tudo. Provavelmente, menos de 20 por cento do que o de carne pelos intocáveis adapta-se admiravelmente a condições gado come consiste em matéria de consumo humano; e a maior de ordem prática. As castas que comem carne tendem também parte disso destina-se a bois ativos e a búfalos, e não a vacas a ser as mesmas que trabalham o couro, já que têm o direito de secas e estéreis. Odend'hal constatou que na região por ele pes- dispor do couro do gado Assim, não obstante o amor à quisada não havia competição entre o gado e seres humanos vaca, consegue a India ostentar uma grande indústria de artesa- pela terra ou pelo alimento: "Em geral, o gado transforma em 26 27</p><p>produtos de imediata utilidade itens de pouco valor humano direto." é perfeitamente compatível com um extremado empenho de ob- Uma razão porque o amor às vacas é muitas vezes incom- ter até, literalmente, a última gota de leite. O homem que leva preendido é que tem implicações diferentes para os ricos e para a vaca de porta em porta traz consigo um bezerro empalhado, os pobres. Os agricultores pobres valem-se dele como uma licen- feito do próprio couro da cria, e deixa-o do lado para indu- zi-la a dar leite. Quando isto falha, ele pode valer-se do ça para apanhar o lixo, ao passo que os ricos o rejeitam por phooka, que consiste em soprar ar dentro do útero através de considerá-lo um Para o agricultor pobre, a vaca é um mendigo sagrado; para o rico é um ladrão. vezes as vacas um cano, ou do doom dev, que consiste em meter-lhe a própria invadem o pasto ou a plantação de alguém. O proprietário re- cauda no orifício vaginal. Gandhi acreditava que as vacas eram clama, mas os pobres camponeses alegam desconhecimento e tratadas mais cruelmente na India do que em qualquer outra confiam no amor à vaca para ter seus animais de volta. Se parte do mundo. Lamentava ele: "Nós as sangramos até to- existe alguma competição, é entre homens ou entre castas, mas mar-lhes a última gota de leite, as privamos de alimento até nunca entre o homem e o animal. definharem, maltratamos os bezerros, privando-os de sua por- ção de leite, tratamos cruelmente os bois, castrando-os, surran- Nas cidades há também donos de vacas que as deixam do-os, sobrecarregando-os." soltas durante o dia, chamando-as de volta, à noite, para serem ordenhadas. Conta a Dra. Mencher, que viveu por algum tempo Ninguém melhor que Gandhi percebeu que o amor à vaca num bairro de classe média, em Madras, que seus vizinhos esta- tinha implicações diferentes para ricos e pobres. Segundo ele, vam constantemente se queixando de vacas vadias que lhes inva- a vaca era o foco central da luta para despertar na India um diam as casas. Na realidade, tratava-se de animais de pessoas autêntico nacionalismo. O amor à vaca adaptava-se à agricul- que moravam num quarto, em cima de uma loja, e vendiam tura em pequena escala, à fabricação de fios de algodão em leite de porta em porta pela redondeza. Quanto aos asilos de teares manuais, à maneira de sentar-se de pernas cruzadas no animais velhos e aos currais da polícia, prestam-se admira- chão, às tangas, ao vegetarianismo, ao respeito pela vida e à velmente a que se reduza o risco de manter vacas dentro dos rigorosa não-violência. A tais princípios devia Gandhi o seu limites urbanos. Se uma vaca pára de dar leite, seu dono pode imenso proselitismo entre as massas campesinas, os mendigos decidir deixá-la perambular até que a polícia a recolha e a das cidades e os intocáveis. Era a sua maneira de protegê-los leve para a delegacia. Quando ela se restabelece, o dono paga contra a devastação da industrialização. uma pequena multa e leva-a de volta ao seu ponto habitual. As implicações assimétricas do ahimsa para ricos e pobres Os asilos funcionam de modo semelhante, proporcionando pas- são ignoradas por economistas que querem tornar a agricultura tagens baratas, mantidas pelo governo, e às quais, de outra indiana mais eficiente com a matança dos animais "exceden- forma, jamais teriam acesso as vacas soltas na cidade. tes". O Prof. Alan Heston, por exemplo, admite o fato de que O método preferido para comprar leite nas cidades con- o gado desempenha funções vitais para as quais não se en- siste em trazer a vaca até a casa do freguês e ordenhá-la na contram facilmente substitutivos. Mas alega que essas funções hora. É às vezes a única maneira de a dona-de-casa poder certi- poderiam ser executadas com maior eficiência se houvesse 30 ficar-se de que está comprando leite sem mistura com milhões de vacas a menos. Baseia-se tal cálculo na presunção água ou urina. de que, devidamente tratadas, seriam necessárias apenas 40 O que parece ainda mais incrível nessas práticas é que vacas para cada 100 machos, para substituir o número atual têm sido interpretadas como prova de costumes hindus perdu- de bois. Como existem 72 milhões de animais machos adultos, lários e antieconômicos quando, na verdade, refletem um grau com esta fórmula bastariam 24 milhões de fêmeas para repro- de economicidade que suplanta os padrões ocidentais "protes- dução. Na realidade, existem 54 milhões de vacas. Subtraindo- tantes" de economia e poupança domésticas. O amor à vaca se 24 de 54, chega Heston ao cálculo de 30 milhões de ani- mais "inúteis" a serem abatidos. A forragem e outros alimentos 28 29</p><p>que esses "inúteis" animais vêm consumindo seriam distribuídos mais, quantidades desconhecidas de vacas velhas são sorratei- entre os restantes, que se tornariam mais saudáveis e capazes, ramente vendidas através de uma cadeia de intermediários portanto, de manter a produção total de leite e de estrume em muçulmanos e cristãos, e acabam nos matadouros urbanos. níveis iguais ou superiores aos atuais. Mas de quem seriam as vacas a sacrificar? Cerca de 43 por cento do rebanho total en- Se quisermos encontrar a razão da desproporção existente entre vacas e bois, devemos analisar não o amor às vacas, mas contram-se nos 62 por cento das mais pobres granjas. Essas granjas de 5 acres (cerca de 20 mil m2) ou menos contam a chuva, o vento, a água e o sistema de posse da terra. A com apenas 5 por cento dos pastos e capineiras. Em outras prova disso está em que a proporção de vacas para bois varia palavras, a maioria dos animais temporariamente secos, esté- com a importância relativa dos diversos componentes do siste- reis e depauperados pertence à gente que habita os sítios me- ma agrícola em diferentes regiões. A variável mais relevante nores e mais pobres. Assim, quando os economistas falam em é o volume de água disponível para a irrigação no plantio do dar cabo de 30 milhões de vacas, estão em verdade falando arroz. Onde houver extensos arrozais alagados, o búfalo tende em dar cabo de 30 milhões de vacas que pertencem a famílias a ser o animal de carga preferido, assim como sua fêmea subs- pobres, não a famílias ricas. A maior parte das famílias pobres, titui a vaca zebu como fonte de leite. É por isso que nos vas- porém, possui apenas uma vaca, de maneira que toda esta pou- tos planaltos do Norte, onde as monções e as neves liquefeitas pança traduz-se não tanto em desfazer-se de 30 milhões de do Himalaia formam o sagrado rio Ganges, a proporção entre vacas, mas em desfazer-se de 150 milhões de pessoas for- vacas e bois baixa para 47 por 100. Como já assinalou o re- nomado economista indiano K. N. Raj, as regiões do Vale çando-as a sair do campo para as cidades. do Ganges, onde se cultiva o arroz durante o ano inteiro, pos- Os entusiastas do abate de vacas fundamentam sua opinião suem uma relação vaca-boi muito próxima do que seria teori- num erro compreensível. Argumentam que, já que os agricul- camente ótimo. E isto ainda é mais notável, por ser essa re- tores se recusam a matar seus animais e existe um tabu reli- gião - a planície do Ganges - a alma da religião hindu, gioso contra isso, deve-se concluir que o tabu é o principal onde se localizam seus mais venerados santuários. responsável pela alta percentagem de vacas em relação aos bois. Oculta-se seu engano na própria percentagem verificada: 70 A teoria de que a religião é responsável pela alta per- vacas para 100 bois. Se é o amor às vacas que os impede de centagem de vacas em relação a bois é também refutada pela abater as que se mostrem economicamente inúteis, como é que comparação entre a India hindu e o muçulmano Paquistão existem 30 por cento menos vacas do que bois? Já que nascem Ocidental. Apesar da rejeição do amor à vaca e dos tabus con- aproximadamente tantas fêmeas quanto machos, algo deve estar tra o seu abate e consumo da sua carne, o Paquistão Ocidental causando a morte de mais fêmeas do que machos. A solução conta com 60 fêmeas para cada 100 machos, o que é muito do enigma está no fato de que, embora nenhum agricultor hindu mais do que a média no estado de Uttar Pradesh, predomi- mate deliberadamente um bezerro ou vaca decrépita com um nantemente hindu. A proporção entre machos e fêmeas vem a porrete ou uma faca, pode e chega a desfazer-se deles quando, ser praticamente a mesma, em distritos de Uttar Pradesh sele- de seu ponto de vista, se tornam realmente inúteis. Empregam- cionados pela importância do búfalo e da irrigação de canais, se vários métodos que não chegam a constituir matança direta. em comparação com distritos ecologicamente semelhantes, no Para "matar" bezerros indesejáveis, por exemplo, coloca-se uma Paquistão Ocidental. canga triangular em seu pescoço, de modo que, ao tentar ma- Acaso pretendo dizer que o amor às vacas não tem ne- mar, golpeiam o úbere da vaca e são mortos a coices. Os ani- nhum efeito sobre a proporção entre sexos no gado ou sobre mais mais velhos são simplesmente presos a cordas curtas, outros aspectos do sistema agrícola? Absolutamente não. que deixando-se que morram de fome processo que não leva estou afirmando é que constitui um elemento ativo num con- muito tempo se o animal já se encontra fraco e doente. Ade- junto material e cultural complexo e intimamente articulado. 30 31</p><p>tes da "modernização" destruir o sistema antigo e substituí-lo amor às vacas mobiliza a capacidade latente dos seres humanos por um complexo agrícola-industrial de alto consumo de ener- para sobreviver num ecossistema de baixa energia, no qual não Mas estaremos errados se julgarmos que tal complexo há há lugar para desperdício ou indolência. Contribui para o im- de ser necessariamente mais "racional" ou mais "eficiente" do pulso de adaptação da população humana, por preservar ani- que o sistema que agora existe. mais temporariamente magros ou estéreis, mas ainda úteis; por Contra todas as expectativas, estudos sobre os custos e desencorajar o crescimento de uma indústria de carnes dispen- rendimentos da energia demonstram que a India conta com um diosa em energia; por proteger o gado que engorda na via pú- emprego mais eficiente do seu gado do que os Estados Unidos. blica ou às custas do proprietário; e por conservar o potencial No distrito de Singur, na Bengala Ocidental, o Dr. Odend'hal de recuperação do gado durante secas e fomes. Tal como em descobriu que a eficiência energética bruta do gado, entendida qualquer sistema natural ou artificial, existem algumas falhas, como a soma total de calorias úteis produzidas por um ano atritos ou desperdícios inerentes a essas complexas interações. e divididas pelo total das calorias consumidas durante o mesmo Acham-se envolvidos meio bilhão de pessoas, animais, terras, período, não passava de 17 por cento. Compare-se isto com trabalho, economia política, solo e clima. Os partidários do um déficit energético de menos de 4 por cento no rebanho de abate asseveram que a prática de deixar que as vacas procriem corte norte-americano criado na região ocidental do país. Como indiscriminadamente e então diminuir-lhes o número através do afirma Odend'hal, a eficiência comparativamente elevada do abandono e da fome é antieconômica e ineficiente. Não duvido complexo pecuário indiano resulta não de serem os animais es- de que estejam certos, mas apenas num sentido estreito e rela- pecialmente produtivos, mas da escrupulosa utilização de pro- tivamente insignificante. A economia que um engenheiro agrô- dutos pelos seres humanos: "Os camponeses são extremamen- nomo possa obter com a eliminação de certo número de ani- te utilitaristas e nada é perdido." mais absolutamente inúteis deve-se confrontar com as perdas O desperdício é mais uma característica da agroindústria catastróficas sofridas pelos agricultores marginais, principal- moderna do que da economia agrícola tradicional. Sob o novo mente durante secas e fomes, se o amor às vacas deixar de sistema americano de produção de carne com comedouros auto- constituir um dever sagrado. máticos não só é desperdiçado o esterco do gado, mas também acaba-se por contaminar a água subterrânea de vastas áreas Já que a mobilização efetiva de todo o esforço humano contribuindo, assim, para a poluição de lagos e rios. depende da aceitação de crenças e' doutrinas psicologicamente O padrão de vida mais elevado de que gozam as nações compulsivas, devemos admitir que os sistemas econômicos es- industrializadas não é resultado de maior eficiência de produ- tarão sempre oscilando abaixo e acima dos seus pontos ótimos de eficiência. É premissa ingênua e perigosa, porém, admitir ção, mas de um aumento enorme no volume de energia à dis- que se pode fazer todo o sistema funcionar melhor simplesmen- posição de cada pessoa. Em 1970 os Estados Unidos consu- te atacando seu conhecimento. Podem-se obter grandes melho- miram a energia equivalente a doze toneladas de carvão por rias no sistema atual pela estabilização da população humana habitante, enquanto que o número correspondente na India foi da India e proporcionando mais terra, água, bois e búfalos a de um quinto de tonelada por pessoa. A maneira por que foi mais gente, em bases mais equitativas. A alternativa estaria em gasta toda esta energia implicou um desperdício muito maior destruir o atual sistema e substituí-lo por um conjunto inteira- por indivíduo nos Estados Unidos do que na India. Automó- veis e aviões são mais velozes que carros de boi, mas não mente novo de relações demográficas, tecnológicas, político- econômicas e ideológicas - todo um novo ecossistema. É o consomem energia mais eficientemente. Na verdade, gastam-se hinduísmo, indubitavelmente, uma força conservadora que torna mais calorias em calor e fumaça inúteis durante um único dia mais difícil aos especialistas do "desenvolvimento" e aos agen- de engarrafamento de trânsito nos Estados Unidos do que se 33 32</p><p>da India durante um ano inteiro. la mais desfavorável quando con- veículos engarrafados estão quei- eis de petróleo que a terra levou ara acumular. Se quiser ver uma olhe o carro da família. Amigos e Inimigos de Porcos Topos ODOS sabem que existem hábitos alimentares aparente- mente irracionais. Os chineses gostam de carne de cachorro, mas desdenham o leite de vaca; nós apreciamos o leite de vaca, mas não comeríamos carne de cachorro; algumas tribos de in- dios brasileiros adoram formigas, mas detestam carne de veado. E assim vai pelo mundo afora. mistério do porco me impressiona como uma boa se- qüência do amor às vacas. Impõe-me o desafio de ter de ex- plicar porque certas pessoas gostam e outras odeiam o mesmo animal. A metade do enigma que se refere aos do porco é bem conhecida dos judeus, e cristãos. O deus dos antigos hebreus saiu dos seus cuidados (uma vez no Livro do Gênesis e outra no Levítico) para denunciar o porco como imundo - um animal que polui, se for provado ou tocado. Cerca de 1.500 anos mais tarde, Alá declarou ao seu profeta Maomé que idêntica seria a reputação dos porcos para todos os seguidores do islamismo. Entre milhões de judeus e cente- nas de milhões de o porco continua a ser uma abominação, apesar do fato de poder transformar cereais e 35</p><p>tubérculos em gorduras e proteínas de alto valor e mais efi- classificar locustídeos e gafanhotos como "limpos". A propo- cientemente do que qualquer outro animal. sição de que os insetos são esteticamente mais saudáveis que Menos conhecidas ainda são as tradições dos apreciadores os porcos não adiantará à causa dos fiéis. fanáticos do porco. O centro mundial do amor ao porco situa- se na Nova Guiné e nas Ilhas Melanésias do Sul do Pacífico. Tais incoerências foram reconhecidas pelo rabinado judaico no começo da Renascença. Devemos a Moisés Maimônides, Para as tribos horticultoras que habitam as aldeias dessa região, médico da corte de Saladino, no século XIII, no Cairo, a pri- os porcos são animais sagrados que se devem sacrificar aos meira explicação naturalista da rejeição da carne de porco por antepassados e comer em todas as ocasiões importantes, tais judeus e Afirma Maimônides que Deus havia im- como casamentos e funerais. Em muitas tribos, deve-se matar o posto a interdição da carne de porco como uma medida de porco tanto para declarar guerra como para fazer a paz. Os saúde pública. Essa carne "tem exercido uma influência ma- nativos acreditam que seus ancestrais anseiam por carne de por- lévola e daninha sobre o organismo", escreveu o rabino. Em- co. É tão irresistível a avidez pela carne suína entre vivos e bora não se mostrasse nada explícito nos fundamentos médicos mortos que, de tempos em tempos, organizam-se grandes festas, de tal afirmação, Maimônides era o médico do imperador e e quase todos os porcos da tribo são devorados de uma só sua opinião amplamente respeitada. vez. Durante vários dias, os aldeãos e seus convivas empantur- Nos meados do século XIX, a descoberta de que a triqui- ram-se de grandes quantidades de carne, vomitando a que não nose era causada pela ingestão de carne de porco mal cozida conseguem digerir, para dar lugar a ainda mais. Quando tudo foi interpretada como uma prova da sabedoria de Maimônides. termina, o rebanho suíno de tal modo está reduzido que serão Os judeus com idéias reformistas rejubilaram-se com a racio- necessários anos de assíduo trabalho para o reconstituir. Tão nalidade dos códigos bíblicos e prontamente renunciaram ao logo o conseguem, porém, iniciam os preparativos para outra tabu contra o porco. Quando devidamente cozida, a carne de orgia de glutonaria. E assim prossegue o ciclo bizarro desse porco não constitui ameaça à saúde pública e seu consumo aparente desmando. não pode, portanto, considerar-se ofensivo a Deus. Isto levou Principiarei pelo problema dos inimigos judaicos e os rabinos de estritas a lançar um contra-ataque a micos do porco. Por que seria que deuses tão enaltecidos como toda a tradição naturalista. Se houvesse apenas querido e Alá se haveriam dado ao trabalho de condenar um proteger a saúde de seu povo, tê-lo-ia instruído a comer apenas animal inofensivo, e até mesmo ridículo, cuja carne é apreciada a carne de porco bem cozida, ao invés de determinar que ab- pela maior parte da humanidade? Estudiosos que aceitam as solutamente não a comesse. E argumentava-se que era evidente condenações bíblica e maometana dos porcos têm apresentado que tinha algo mais em mente algo bem mais impor- inúmeras explicações. Antes da Renascença, a crença mais po- tante do que o simples bem-estar físico. pular era de que o porco é literalmente um animal sujo mais sujo que os outros porque se chafurda na própria urina Além dessa teológica, a explicação de Mai- e come excrementos. Mas a associação da sujeira física à aver- apresenta contradições médicas e epidemiológicas. são religiosa leva a certas incongruências. As vacas mantidas porco é um vetor de moléstias humanas, mas também o são em currais também patinham nas próprias fezes e urina. E va- outros animais domésticos livremente consumidos por muçul- cas famintas comerão com prazer dejeções humanas. e manos e judeus. A carne de vaca mal cozida, por exemplo, cons- titui uma fonte de parasitas, principalmente de que galinhas fazem a mesma coisa, sem que ninguém se importe, podem alcançar um comprimento de 5 a 7 metros no interior e os antigos deviam ter sabido que os porcos criados em po- dos intestinos de um homem, provocar severa anemia e menor cilgas higiênicas tornam-se pachorrentos mascotes domésticos. resistência a outras doenças infecciosas. Bois, cabras e carneiros Por último, se apelarmos para padrões de "limpeza" exclusiva- são também vetores de brucelose, uma infecção nos mente estéticos, há a formidável inconsistência da Bíblia ao países subdesenvolvidos, que vem acompanhada de febre, ca- 36 37</p><p>lafrios, suores, debilidade, dores e sofrimentos. Sua mais peri- neiros, cabras e vacas também foram outrora adorados no gosa forma é a brucellosis melitensis, transmitida por cabras e Oriente Médio, sendo a sua carne hoje muito apreciada por carneiros. Seus sintomas são letargia, fadiga, nervosismo e de- todos os grupos étnicos e religiosos da região. Pelo raciocínio pressão mental, muitas vezes confundidos com psiconeurose. de Frazer a vaca, em particular, cuja cria em ouro foi ve- Por fim, existe o antraz, uma moléstia transmitida por bois, ca- nerada aos pés do Monte Sinai, afigurar-se-ia, mais logicamente bras, carneiros, cavalos e jumentos, mas não pelos porcos. Di- que o um animal impuro para os hebreus. versamente da triquinose, que raras vezes é fatal e não chega sequer a produzir sintomas na maioria dos indivíduos atingidos, Outros especialistas têm sugerido que os porcos, da mesma o antraz apresenta, frequentemente, uma evolução rápida que forma que o restante dos animais considerados tabus na Bíblia começa com furúnculos pelo corpo e termina em morte por e no Alcorão, foram antigamente símbolos totêmicos de diversos envenenamento do sangue. As grandes epidemias de antraz, que grupos tribais. Isto bem pode ter de fato acontecido em algum antigamente assolaram a Europa e a Ásia, não foram contro- ponto remoto da história, mas, se o admitirmos, teremos tam- ladas até que Louis Pasteur descobriu sua vacina, em 1881. A bém de admitir que animais "puros" como os bois, os carneiros omissão de em proibir o contato com os vetores domés- e as cabras hajam ainda servido de totens. Em oposição a ticos do antraz é particularmente prejudicial à explicação de muita coisa escrita sobre o totemismo, totens não são, em Maimônides, pois a relação entre essa doença nos animais e geral, animais estimados como fontes de alimentos. Os totens nos homens já era conhecida desde os tempos bíblicos. Tal mais populares entre as tribos primitivas da Austrália e da como vem descrito no Livro do Exodo, uma das pragas lan- são aves relativamente inúteis, como os corvos e tenti- çadas contra os egípcios associa, claramente, toda a sintoma- ou insetos como mosquitos, formigas, pernilongos, ou tologia do antraz animal à moléstia no homem: mesmo objetos inanimados como nuvens e seixos. Ademais, ain- e tornou-se um furúnculo, desfazendo-se em pús- da quando um animal de valor constitui um totem, não existe tulas sobre homens e animais. E os mágicos não podiam regra alguma invariável que exija dos seus sócios humanos que manter-se em pé diante de Moisés por causa dos furún- se abstenham de comê-lo. Com tantas opções disponíveis, dizer culos, pois havia furúnculos nos mágicos e em todos os que o porco era um totem não explica absolutamente nada. egípcios. Seria o mesmo que dizer: "O porco era tabu porque era tabu". Prefiro a focalização de Maimônides. Pelo menos esse ra- Em face dessas contradições, a maioria dos teólogos judeus bino tentou compreender o tabu, ao colocá-lo num contexto e maometanos abandonou a pesquisa de uma base naturalista natural de saúde e doença, onde atuavam forças explícitas de para explicar a aversão ao porco. Uma concepção decididamen- ordem prática e corriqueira. O único obstáculo consistia em te mística vem sendo acolhida ultimamente, e afirma que a que sua opinião sobre as condições reais da aversão ao porco graça a obter-se com a obediência aos tabus dietéticos depende restringia-se a uma estreita preocupação, típica do médico, com de não se saber exatamente, nem tentar descobrir, o que a patologia corporal. tinha em mente. A solução do enigma do porco exige que adotemos uma A moderna ciência antropológica também chegou ao mes- definição bem mais ampla de saúde pública, que inclua os prin- mo impasse. Por exemplo: não obstante todas as suas falhas, cipais processos pelos quais os animais, plantas e pessoas con- Moisés Maimônides esteve mais perto de uma explicação do seguem coexistir em comunidades naturais e culturais viáveis. que Sir James Frazer, renomado autor de The Golden Bough. Creio que a Bíblia e o Alcorão condenaram o porco porque Declarou Frazer que os porcos, tal como "todos os chamados a sua criação constituía uma ameaça à integridade dos ecossis- animais inferiores, eram a princípio sagrados; a razão de não temas culturais e naturais básicos do Oriente Médio. os comer era porque, inicialmente, muitos eram tidos por di- Para começar, temos de levar em conta o fato de que os vinos". Isto não ajuda absolutamente em nada, já que os car- hebreus pré-históricos - os filhos de por volta do 38 39</p><p>segundo milênio A.C. - estavam culturalmente adaptados à Acima de tudo, está o porco termodinamicamente mal existência nas áridas regiões escarpadas e pouco habitadas entre adaptado ao clima quente e seco do Negev, Vale do Jordão os vales fluviais da Mesopotâmia e do Egito. Até conquistarem e outras regiões da Bíblia e do Alcorão. Comparado com os o Vale do Jordão, na Palestina, no começo do XIII século bois, carneiros e cabras, possui um ineficiente sistema de regu- A.C., os hebreus eram pastores nômades, vivendo quase que larização da temperatura do próprio corpo. Não obstante a exclusivamente dos rebanhos de carneiro, cabra e gado. Como expressão "suar como um porco", foi recentemente provado que todos os povos pastores, mantinham estreitas relações com os os porcos não podem, absolutamente, suar. Os seres humanos, agricultores sedentários que controlavam os oásis e os grandes os mais sudoríparos dentre todos os mamíferos, refrescam-se rios. Com o correr do tempo, essas relações levaram a um evaporando tanto quanto 1.000 gramas de líquido corporal por estilo de vida mais sedentário e voltado para a agricultura. As- hora e para cada metro quadrado de superfície do corpo. O sim parece haver ocorrido com os descendentes de Abraão na máximo que os porcos conseguem é 30 gramas por metro qua- Mesopotâmia, os seguidores de José no Egito e os de Isac no drado. Até o carneiro evapora através da pele o dobro em Negev Ocidental. Contudo, mesmo durante o apogeu da vida líquido corporal. E os carneiros também têm a vantagem da urbana ou rural, sob os reis Davi e Salomão, o pastoreio de espessa branca, que tanto reflete os raios solares como pro- carneiros, cabras e gado continuou a ser uma atividade econô- porciona isolamento, quando a temperatura do ar ambiente se mica muito importante. eleva acima da do corpo. Segundo L. E. Mount, do Departa- Dentro do contexto geral deste múltiplo complexo agrícola mento de Pesquisas do Instituto de Fisiologia Animal de Cam- e pastoril a proibição divina contra a carne de porco constituía bridge, Inglaterra, os porcos adultos morrem se expostos à luz uma sensata estratégia ecológica. Os israelitas nômades não po- direta do sol e à temperatura acima de 36.7°C. No Vale do deriam criar porcos nos seus áridos ambientes, enquanto que Jordão registram-se temperaturas de 43°C quase que em todo para as semi-sedentárias populações agrícolas os porcos eram verão, e há intensa luz solar durante o ano inteiro. mais uma ameaça que um patrimônio. Para compensar a carência de pêlo protetor e a incapa- A razão básica deste fato é que as zonas de nomadismo cidade de suar, o porco necessita refrescar a pele com umidade pastoril no mundo correspondem a planícies e colinas desflo- exterior. Prefere fazê-lo chafurdando na lama fresca, mas co- restadas e áridas demais para a agricultura pluvial e difíceis brirá a pele com a própria urina e fezes se não a encontra. de serem irrigadas. Os animais domésticos mais bem adaptados Abaixo de 28.8°C, os porcos mantidos em pocilgas lançam a tais regiões são os ruminantes bois, carneiros e cabras. os excrementos fora das respectivas áreas de dormida e ali- Os ruminantes possuem uma pança antes do estômago, que mentação, ao passo que acima daquela temperatura entram os habilita, mais eficientemente que aos outros a a defecar indiscriminadamente por todo o chiqueiro. Quanto digerir capim, folhas e outros alimentos constituídos principal- mais elevada a temperatura, mais "sujos" se tornam. Há, por- mente de celulose. tanto, algo de verdadeiro na teoria de que a impureza religiosa dos porcos fundamenta-se numa real sujeira física. Apenas não O porco, porém, é primordialmente uma criatura dos bos- faz parte da sua natureza ser sujo em todo lugar; mas é o ques e ensombradas margens fluviais. Embora seja onívoro, seu quente e árido ambiente do Oriente Médio que torna o porco melhor ganho de peso provém de alimentos de baixo teor de demasiado dependente da ação de refrescar-se com o próprio celulose - castanhas, frutas, tubérculos e especialmente cereais, excremento. fazendo-o um concorrente direto do homem. Não pode viver ape- nas de capim em parte alguma do globo, se encontram pastores Carneiros e cabras foram os primeiros animais a serem nômades criando um número razoável de porcos. Possui ainda domesticados no Oriente Médio, desde 9.000 a desvantagem adicional de não ser uma fonte de leite, além A.C. Porcos foram domesticados na mesma região por volta de ser difícil de tanger a longas distâncias. de 2.000 anos mais tarde. Análises de ossos de animais, reali- 40 41</p><p>zadas por arqueologistas em aldeias agrícolas pré-históricas, de- mente como alimento, mas também para serem tocados. Ou monstram que o porco doméstico era quase sempre uma par- se Alá repetir a mensagem pela mesma razão: não era ec cela mínima da fauna da aldeia, constituindo apenas uns 5 por gicamente conveniente criar porcos em grandes números. cento dos restos alimentares animais. Isto é o que seria de pequena escala, a criação só serviria para aumentar a tenta esperar de uma criatura que devia contar com sombra e poças Melhor seria, portanto, interditar totalmente o consumo de de lama, que não poderia ser ordenhada e que comia mesmo de porco e concentrar-se na criação de cabras, carneiros e alimento que o homem. O porco era gostoso, mas tornava-se muito dispendioso alir tá-lo e mantê-lo saudável. Como já assinalei no caso da proibição hindu a propósito da carne de vaca, sob condições pré-industriais qualquer ani- Muitas dúvidas persistem e, sobretudo, há que saber mal, criado principalmente por causa da sua carne, constitui que cada um dos animais proibidos pela Bíblia - urubus, luxo. Esta generalização aplica-se também ao pastoreio pré-in- vos, serpentes, caracóis, mariscos, peixes sem escamas e o dustrial, no qual raramente se exploram os rebanhos visando mais - veio a ser objeto do tabu divino. E porque ju sobretudo a sua carne. e maometanos, que já não vivem no Oriente Médio, contin Entre as antigas comunidades mistas de agricultura e pas- em variados graus de exatidão e zelo, a observar suas an toreio do Oriente Médio avaliavam-se os animais domésticos leis dietéticas. De um modo geral, parece-me que a ma principalmente como fontes de leite, queijo, couro, estrume e dos animais e aves proibidos abarca, precisamente, um força de tração para o arado. Cabras, carneiros, gado bovino duas categorias. Alguns, como as águias, abutres e corvos, supriam amplas porções desses itens, mais um suplemento oca- mesmo são fonte potencial de alimentos. Outros, como os sional de carne magra. Desde o princípio, portanto, a carne riscos, são obviamente irrecusáveis para as populações m de porco deve ter sido um alimento de luxo, apreciado por agrícola-pastoris. Nenhuma destas categorias de criaturas sua natureza suculenta, tenra e gordurosa. ditas provocaria o tipo de pergunta que me propus respo Entre 7.000 e 2.000 A.C., tornou-se um luxo ainda ou seja: como explicar um tabu tão aparentemente estrar antieconômico. Naturalmente nada existe de irracional em maior. Ao longo desse período, a população humana do Oriente Médio cresceu 60 vezes. Extenso desflorestamento acompanhou se perder tempo a caçar abutres para o jantar, ou não ma o crescimento demográfico, principalmente como resultado dos cem quilômetros pelo deserto em busca de um prato de luscos. estragos permanentes causados pelos grandes rebanhos de car- neiros e cabras. Água e sombra, condições naturais apropria- Eis o momento apropriado para contestar a das para a criação de porcos, foram ficando cada vez mais es- que todas as práticas culinárias sancionadas pela religião cassas, e a carne de porco tornou-se ainda mais um luxo eco- explicações ecológicas. Os tabus também têm funções lógico e econômico. tais como ajudar o povo a pensar em si mesmo como um Tal como no caso do tabu contra a carne de vaca, quanto munidade à parte. Esta função é bem servida pelo respeito maior a tentação, maior a necessidade da intervenção divina. derno a regras dietéticas entre maometanos e judeus fo Esta relação é geralmente aceita como conveniente para expli- suas terras no Oriente Médio. A pergunta a fazer sobre car porque estão os deuses sempre interessados em combater práticas é se elas, de algum modo, diminuem o bem-esta tentações sexuais como o incesto e o adultério. Aqui, estou terial dos judeus e ao privá-los de elemento aplicando-a simplesmente a um alimento tentador. O Oriente tritivos para os quais não existem substitutos disponíveis Médio não é o lugar apropriado para criar porcos, mas sua tamente, creio que a resposta será negativa. Mas permita carne continua sendo um prato apetitoso. As pessoas sempre resistir agora a outro tipo de tentação - a tentação de ex têm dificuldade em resistir por si mesmas a essas tentações. tudo. Penso que mais se aprenderá a respeito dos inimigo Daí ouvir-se Jeová dizer que os porcos eram impuros, não porcos se se atentar para o outro lado do enigma: seus 42</p><p>amor ao porco é a nobre antítese do opróbrio divino solução de problemas humanos básicos. Nas condições de vida que e judeus lançam sobre a raça suína. Esta po- imperantes entre os Maring, poucas são as alternativas viáveis. sição não se alcança através de um simples entusiasmo gusta- Cada subgrupo ou clã dos Maring promove um festival suíno, tório pelo cardápio porcino. Muitas tradições culinárias, inclu- em média de doze em doze anos. Todo o festival - inclusive sive a chinesa e a euro-americana, apreciam a carne e as gor- as múltiplas preparações, sacrifícios menores e grande matança duras do porco. Amor aos porcos é outra coisa. É um estado final - dura cerca de um ano e é conhecido, na linguagem de total comunhão entre o homem e o animal. Enquanto a Maring, como um kaiko. Nos primeiros dois ou três meses que presença de porcos ameaça a condição humana dos muçulma- se seguem imediatamente ao término de um kaiko, o clã se nos e judeus, no espírito do amor ao porco não se pode ser entrega à luta armada com clãs ou tribos inimigas, o que leva verdadeiramente humano, a não ser na companhia de porcos. a muitas mortes e eventual perda ou conquista de território. Este amor inclui criar os leitões como membros da famí- Porcos adicionais são sacrificados durante a batalha e tanto lia, dormir a seu lado, falar-lhes, tocá-los e acariciá-los, cha- vencedores como vencidos logo se vêem inteiramente privados má-los por nomes, guiá-los com uma correia até o campo, de porcos adultos com que reivindicar a proteção dos respecti- chorar quando ficam doentes ou se machucam, e alimentá-los vos antepassados. combate cessa de repente e os combatentes com os melhores bocados da mesa familiar. Ao contrário do retornam aos lugares sagrados para plantar árvores chamadas amor hindu à vaca, o amor ao porco inclui também a obriga- rumbim. Cada nativo masculino adulto participa desse ritual, toriedade de o sacrificar e comer em ocasiões especiais. Por pousando as mãos sobre a muda de rumbim ao ser ela fincada causa do abate ritual e das celebrações sagradas, o amor ao ao solo. porco oferece maior possibilidade de comunhão entre o homem feiticeiro dirige-se aos ancestrais, explicando que acaba- e o animal do que no caso do agricultor hindu e sua vaca. ram ficando sem porcos e estão contentes por haverem sobre- O do amor aos porcos ocorre com a incorporação do vivido. Assegura-lhes que a luta já terminou e que não haverá porco como carne, na carne do seu hóspede humano, e do porco reinício de hostilidades enquanto o rumbim permanecer no solo. como espírito, no espírito dos ancestrais. A partir de então, os pensamentos e esforços dos sobreviventes Amor ao porco é homenagear nosso falecido pai, esbor- estarão voltados para a criação de porcos; só quando um novo doando até a morte uma porquinha querida sobre sua sepultura rebanho estiver formado e for suficiente para um grande kaiko e assando-a num forno de barro, mesmo local. Amor com que agradecer convenientemente aos seus ancestrais, pen- ao porco é meter mancheias de banha fria e salgada boca a sarão os guerreiros em desenterrar o rumbim e voltar ao campo dentro do nosso cunhado, para fazê-lo leal e feliz. Acima de de batalha. tudo, amor ao porco é a grande festa porcina celebrada uma Através do detalhado estudo de uma tribo chamada Tsem- ou duas vezes em cada geração, quando a maioria dos porcos baga, pôde Rappaport demonstrar que o ciclo todo - constituí- adultos são sacrificados e gulosamente devorados para satisfa- do do kaiko, seguido da luta, do plantio do rumbim, da paz, zer a ânsia dos antepassados pela carne do animal, preservar da criação de um novo rebanho, da erradicação do rumbim e a saúde da comunidade e assegurar a vitória nas guerras fu- de um novo kaiko não é um mero psicodrama de criadores turas. de porcos que ficaram malucos. Cada parte deste ciclo vem O Prof. Roy Rappaport, da Universidade de Michigan, fez integrada num complexo ecossistema auto-regulador, que real- um estudo detalhado da relação entre porcos e os Maring, mente ajusta o volume e a distribuição das populações humana amantes dos porcos, um remoto grupo silvícola que vive nas e animal dos Tsembaga, em conformidade com os recursos dis- montanhas Bismarck, na Nova Guiné. No seu livro Pigs for poníveis e as oportunidades de produção. the Ancestors: Ritual in the Ecology of a New Guinea People, Uma questão básica para a compreensão do amor aos descreve Rappaport como o amor ao porco contribui para a porcos entre os Maring é a seguinte: Como é que o povo de- 44 45</p><p>cide que já existe porcos suficientes para agradecer adequada- de 50 por cento da energia diária despendida por uma mulher mente aos antepassados? Os próprios Maring desconhecem saudável e bem alimentada. quantos anos devem decorrer ou quantos porcos são necessá- aumento da população de porcos é normalmente acom- rios para que se organize um novo kaiko. A possibilidade de panhado do aumento da população humana, sobretudo entre as um acordo baseado em número fixo de animais ou de anos tribos vitoriosas nas guerras imediatamente anteriores. Porcos e pode seguramente ser desprezada, pois os Maring não têm ca- gente devem ser mantidos com alimentos cultivados nas terras lendário e nem há, em seu vocabulário, palavras para indicar conquistadas, pelo fogo e pela enxada, à floresta tropical que algarismos além do número três. cobre as encostas das montanhas Bismarck. Como nas outras O kaiko realizado em 1963 a que se refere Rappaport co- áreas tropicais em que semelhante sistema de cultivo é empre- meçou no momento em que a tribo Tsembaga contava com gado, a fertilidade das plantações dos Maring depende do ni- 200 membros e 169 porcos. O significado desses números, em trogênio fornecido ao solo pelas cinzas da vegetação queimada. termos de trabalho diário de rotina e em relação às normas Estas plantações não podem ser repetidas por mais de dois ou estabelecidas constitui a chave para decifrar o kaiko e a du- três anos consecutivos já que, uma vez extintas as grandes ração de seu ciclo. árvores, as chuvas torrenciais arrastam o nitrogênio e outros A tarefa de criar porcos, bem como a de cultivar inhame, nutrientes do solo. O único remédio é procurar outro lugar e taioba e batata-doce cabia às mulheres. Os eram queimar nova extensão da floresta. Depois de mais ou menos levados para as plantações juntamente com as crianças. Depois uma década, a plantação abandonada cobre-se novamente de de desmamados, suas donas os treinavam a segui-las como ca- árvores que podem então ser queimadas. As áreas já antes cul- chorros. Após 4 ou 5 meses, eram soltos na floresta para se tivadas são as preferidas para novas plantações por estarem cuidarem por si mesmos, até que suas donas os chamassem, à cobertas de vegetação secundária e serem mais fáceis de des- noite, para complementar-lhes a alimentação com restos de co- bastar. Mas a recuperação das antigas queimadas não acom- mida ou inhames e batatas da pior qualidade. À medida que panha, no mesmo passo, o crescimento da população humana os porcos cresciam, cada mulher devia trabalhar mais dura- e suína durante o período de trégua assegurado pelo lento cres- mente a fim de garantir-lhes a ração diária. cimento do rumbim. Assim, novas clareiras devem ser abertas Enquanto o rumbim crescia, assinalou Rappaport, as mu- na floresta virgem. Enquanto há grandes extensões de florestas lheres Tsembaga empenhavam-se em aumentar suas plantações, disponíveis, o trabalho com as novas plantações consome gran- cultivar mais inhame e batata-doce, e criar o maior número de de parte do esforço extra de cada indivíduo e, em diminui a taxa de retorno de cada unidade de trabalho inves- porcos no menor tempo possível, para que tivessem um núme- ro suficientemente grande de animais e assim organizar o pró- tida na própria manutenção e na manutenção de seus rebanhos. ximo kaiko, antes que o fizesse o inimigo. Porcos adultos, com Os homens incumbidos de abrir novas clareiras na floresta cerca de 60 quilos, pesavam mais do que a média dos Maring devem trabalhar mais duramente por causa da grossura e da adultos e, mesmo com sua busca diária de alimentos, esses altura das árvores virgens. Porém são as mulheres as mais sa- animais exigiam das mulheres quase o mesmo esforço despen- crificadas, porque as novas plantações ficam a distâncias cada dido para alimentar um adulto. Na erradicação do rumbim, vez maiores do centro das aldeias. Não apenas devem cultivar em 1963, as mulheres Tsembaga mais operosas tinham meia áreas mais extensas para alimentar suas famílias e seus porcos, dúzia de porcos adultos para cuidar, além do trabalho de pro- mas também precisam de muito mais tempo para alcançar os dução agrícola para si e para sua família, cabendo-lhes ainda campos de trabalho e despender cada vez mais energia para cozinhar, amamentar, cuidar das crianças e manufaturar uten- subir e descer as encostas com leitões e crianças, levando para sílios domésticos como cestos, cordas, aventais e roupas. Rap- casa pesadas cargas de inhames e batatas-doces colhidas nas paport calculou que só o cuidado de seis porcos exigia mais plantações. 46 47</p><p>Nova fonte de tensão resulta da necessidade de proteger rantir-lhes a continuidade da manutenção; sem dúvida, esses as plantações do ataque dos porcos adultos, que andam soltos aliados eram também grandes apreciadores de carne de porco. por ali. Todas as plantações devem ser protegidas por cercas Os convidados vestiam-se com suas melhores indumentá- suficientemente fortes para deter os animais. No entanto, uma rias. Usavam colares de contas e de conchas, ligas de cauri porca de 150 libras é um adversário formidável. Cercas são nas panturrilhas, cintos de fibras de orquídeas, tangas de listras destruídas e plantações invadidas com mais à me- purpúreas com barras de pele de canguru e, entufando-lhes as dida que se multiplica o rebanho. De quando em vez uma ancas, pufes de folhas sanfonadas. Coroas de penas de águia mulher furiosa mata um porco invasor, e esses incidentes jo- e papagaios, festoadas com caules de orquídeas, besouros ver- gam vizinhos contra vizinhos e aumentam a sensação geral de des e cauris, e encimadas por uma ave-do-paraíso empalhada, insatisfação. Como Rappaport observa, os incidentes envolven- ornavam suas cabeças. Os homens levavam horas pintando o do porcos e homens multiplicam-se mais rapidamente do que rosto com um desenho original e exibiam sua melhor pena de os próprios porcos. ave-do-paraíso atravessada no nariz, juntamente com um disco Para evitar tais incidentes e ficar mais perto de suas plan- favorito ou uma concha dourada encravada no lábio. Visitantes tações, os Maring começavam a construir suas casas mais afas- e hospedeiros passavam muito tempo exibindo-se uns aos outros, tadas umas das outras, ocupando maior área de terreno. Essa dançando no terreiro especialmente construído para essa finali- dispersão diminuía a segurança dos grupos, em caso de novos dade e abrindo caminho para uniões amorosas com as mulheres ataques. Assim, todo o mundo tornava-se mais inquieto. As e alianças militares com os homens. mulheres queixavam-se do excesso de trabalho, brigavam com Mais de mil pessoas comprimiam-se no terreiro de dança os maridos e batiam nas crianças. Logo os homens punham-se para participar dos rituais que seguiam o grande sacrifício de a pensar se já não haveria porcos suficientes e então desciam porcos testemunhado por Rappaport, em 1963. Pedaços de por- para verificar a altura do rumbim. As mulheres dobravam as cos salgados e destinados a prêmios especiais amontoavam-se reclamações e, finalmente, os homens concordavam, por una- atrás das janelas de um prédio triangular para cerimônias, ad- nimidade, que já era chegado o momento de dar início ao jacente ao terreiro de dança. Nas palavras de Rappaport: kaiko, mesmo sem contar o número de porcos existentes. "Do topo do prédio, vários homens proclamavam para Durante o kaiko de 1963, os Tsembaga mataram 3/4 de a multidão, um a um, os nomes e as tribos dos homena- seus porcos, num total de 7/8 do peso de carne disponível. geados. Ao ser aclamado, cada um dos homenageados in- A maior parte dessa carne foi distribuída entre parentes e vestia para a janela, brandindo a machadinha e gritando. aliados militares, convidados a tomar parte nas festividades que Seus partidários, lançando gritos de batalha, batendo os se prolongaram por todo o ano. Nos rituais culminantes, reali- tambores, sacudindo as armas, vinham logo atrás dele. Os zados nos dias 7 e 8 de novembro desse mesmo ano, foram Tsembaga, a quem o homenageado havia ajudado últi- sacrificados 96 porcos e sua carne e gordura foram distribuídas ma batalha, enchiam-lhe a boca com pedaços de toucinho entre duas ou três mil pessoas. Os Tsembaga reservaram para salgado e entregavam, pela janela, outros fardos de gordu- si 2.500 libras de carne, ou seja, 12 libras para cada homem, ra para seus companheiros. Com o toucinho pendendo da mulher e criança, e essa quantidade foi consumida durante boca, o herói retirava-se com os companheiros, gritando, cinco dias consecutivos de irrestrita glutoneria. cantando, soando os tambores, dançando. Os nomes dos Os Maring aproveitavam o kaiko como ocasião para re- homenageados sucediam-se e, muitas vezes, o grupo que compensar seus aliados pela assistência anterior e garantir sua entrava esbarrava com o que saía." lealdade em hostilidades futuras. Os aliados, por sua vez, acei- Dentro dos limites impostos pelas condições tecnológicas tavam o convite para o kaiko como oportunidade para verificar e ambientais dos Maring, toda essa encenação tem uma expli- se seus hospedeiros estavam suficientemente prósperos para ga- cação prática. Em primeiro lugar, a avidez pela carne de porco 48 49</p><p>é uma decorrência racional da permanente escassez de carne rasitas e evitar que a população de porcos se transforme num na dieta habitual. Essa dieta básica, constituída de vegetais e estorvo. suplementada, ocasionalmente, com ratos e raros cangurus, Se os ancestrais são tão espertos, por que então não esta- encontra no porco domesticado sua melhor fonte potencial de belecem um limite para o número de porcos que cada mulher proteínas e gorduras animais de alto valor nutritivo. Isto não deve criar? Não seria preferível manter um número constante significa que os Maring sofram de deficiência aguda de proteí- de porcos a permitir o ciclo ilógico de extremos de abundância nas. Pelo contrário, sua dieta de inhames, batatas-doces, taioba e de escassez? e outros vegetais lhes fornece proteínas vegetais em quantidades Esta alternativa seria preferível simplesmente se cada tribo que satisfazem os padrões nutricionais mínimos, sem os exceder Maring tivesse crescimento nulo de população, não tivesse ini- muito. Obter proteínas de porco é, no entanto, uma coisa dife- migos, exercesse uma forma diversa de agricultura, fosse go- rente. As proteínas animais, em geral, são mais concentradas e vernada por legisladores poderosos e tivesse leis escritas em metabolicamente mais ativas do que as proteínas vegetais, o resumo, se eles não fossem Maring. Ninguém, nem mesmo os que explica a irresistível tentação que os povos, vivendo em ancestrais, pode prever quantos porcos representam "excesso restritas dietas vegetarianas (sem queijo, leite, ovos ou peixes), pernicioso de uma coisa boa". O ponto em que os porcos se sentem pela carne. convertem, por seu número, em estorvo, não depende de ne- Além disso, até certo ponto, há um sentido ecológico no nhuma combinação de constantes mas, ao contrário, de um costume dos Maring de criar porcos. A temperatura e o grau conjunto de variáveis que se modificam de ano para ano. De- de umidade são ideais. Porcos desenvolvem-se bem no ambiente pende do número de pessoas que houver na região inteira e sombrio e úmido das encostas e obtêm porção substancial de em cada tribo, do vigor físico e do estado psicológico de seus seu alimento perambulando livremente pela floresta. A interdi- membros, da extensão de seu território, da área de floresta ção completa ao porco solução do Oriente Médio seria secundária disponível e das condições e intenções dos grupos a conduta mais irracional e antieconômica nestas condições. Por inimigos vizinhos. Os ancestrais dos Tsembaga não podem sim- outro lado, o aumento ilimitado da população suína só poderia plesmente dizer: "Guardarás quatro porcos e nada mais", por- levar a uma competição entre homens e porcos. Permitindo-se que não há nenhum meio de garantir que os ancestrais dos tal aumento, a criação de porcos sobrecarrega as mulheres e Kundugai, Dimbagai, Yimgagai, Tuguma, Aundagai, Kauwasi, Monambant e de todos os demais concordem com este número. em perigo as plantações das quais dependem os Maring Todos estes grupos estão empenhados em lutas para fazer va- para sobreviver. À medida que cresce a população porcina, as ler seus direitos a uma parcela de recursos disponíveis. A mulheres devem trabalhar cada vez mais e acabam por encon- guerra é a conduta que à prova tais reivindicações. A gana trar-se alimentando porcos, em vez de alimentar gente. Quando insaciável dos ancestrais pela carne de porco é uma conse- terras virgens são desbastadas para cultura, a eficiência de todo quência dessa disputa armada entre as tribos que compõem sistema agrícola cai verticalmente. É nesse momento que o povo Maring. kaiko se realiza, cabendo aos ancestrais o papel de estimular a Para satisfazer os ancestrais, torna-se necessário um esfor- criação de porcos e, ao mesmo tempo, evitar que eles acabem máximo, não só no sentido de produzir tanto alimento por destruir as mulheres e as plantações. Sua tarefa, decidida- quanto possível, mas também no de acumular provisões sob mente, é mais difícil que a de Jeová ou de Alá, já que é bem a forma de rebanhos de porcos. Este esforço, mesmo resultando mais fácil controlar um tabu total que um parcial. Contudo, em excedentes cíclicos de porcos, realça a habilidade do grupo a crença de que o kaiko deve ser celebrado tão logo quanto para sobreviver e defender seu território. E isto é feito de possível, para manter felizes os ancestrais, contribui, efetiva- diversas maneiras. Primeiro, o esforço extra exigido pelo in- mente, para livrar os Maring dos animais que se tornaram pa- saciável desejo dos antepassados eleva o nível de ingestão pro- 50 51</p><p>téica do grupo inteiro durante a trégua do rumbim, daí resul- da humanidade, podemos realmente nos ma tando uma população mais alta, mais saudável e mais vigorosa. genhoso sistema imaginado pelos "selvagen Além disso, relacionando o kaiko ao fim da trégua, os ances- para manter prolongados períodos de paz. trais garantem que doses maciças de gorduras e proteínas de rumbim dos vizinhos permanecerem de pé alta qualidade sejam consumidas no período de maior tensão têm que preocupar-se com prováveis social - os meses que precedem o deflagrar das guerras inter- dizer o mesmo, mas não mais, das nações tribais. Finalmente, preparando grandes quantidades extras de em vez de rumbim. alimentos na forma de nutritiva carne de porco, as tribos Ma- ring podem atrair e recompensar aliados no momento em que são mais necessários, ou seja, logo antes de irromper a nova guerra. Os Tsembaga e seus vizinhos têm consciência da relação que existe entre a bem sucedida criação de porcos e o poderio militar. O número de porcos abatidos durante a realização do kaiko dá aos hóspedes e aliados uma base acurada para avaliar a saúde, a energia e a determinação dos promotores da festa. De uma tribo que não é bem sucedida na acumulação de porcos não se pode esperar que também seja capaz de defender eficazmente seu território e, por isso, não atrairá aliados fortes. Não são, pois, meras premonições irracionais de derrota que pai- ram no campo de batalha, quando os ancestrais não são ho- menageados com carne de porco suficiente durante o kaiko. Rap- paport insiste corretamente, creio que, num sentido ecológico fundamental, o tamanho do rebanho de porcos per- tencente a uma tribo é indicativo de seu poderio militar e torna válidas ou inválidas suas pretensões territoriais. Em outras palavras, do ponto de vista ecológico, o sistema inteiro resulta da eficiente distribuição de plantas, animais e pessoas na região. Estou certo de que, nesta altura, muitos leitores hão de insistir que o amor aos porcos é inadequado e terrivelmente ineficaz, pois se prende a periódicas eclosões bélicas. Se a guer- ra é uma atividade irracional, também o será o kaiko. Que me permitam novamente ceder à tentação de explicar tudo de uma vez. No próximo capítulo discutirei as causas primárias do comportamento militar dos Maring. No momento, direi ape- nas que sua belicosidade não resulta do amor aos porcos. Mi- lhões de pessoas que jamais viram um porco promovem guerras; nem por isso os aversos ao animal, antigos e atuais, encarecem a pacificação das relações entre os povos do Oriente Médio. Dada a prevalência das guerras na história e na pré-história</p><p>des de autodestruição não desencorajarão as lutas, se as guer- ras forem desencadeadas por razões inescrutáveis e irracionais. Se as guerras são declaradas, como acreditam muitos, prima- riamente porque o homem é belicoso, instintivamente agressivo, um animal que mata por esporte, por glória, por vingança, ou pela mera inclinação para o sangue e a violência, então po- demos dar adeus aos Nas atuais explicações para as hostilidades primitivas, pre- dominam motivos irracionais e inescrutáveis. Como as conse- desses conflitos eram mortais para os combatentes, parece presunçoso duvidar de que os participantes não soubes- As Guerras Primitivas sem porque estariam lutando. Mas as respostas para o enigma das vacas, dos porcos, das guerras e feiticeiras não são encon- tradas no consciente dos participantes. Os próprios beligerantes raramente percebem as causas e orgânicas de suas lutas. Chamados a explicar a guerra, eles tendem a des- crever os sentimentos e motivações pessoais experimentados no período que precedeu imediatamente as hostilidades. Um Jívaro, prestes a partir numa expedição caçadora de cabeças, recebe As guerras promovidas pelas esparsas tribos primitivas com alegria a oportunidade de capturar a alma do inimigo; os guerreiros Crow anseiam por tocar o corpo morto do inimigo como a dos Maring levantam dúvidas sobre a sanidade básica para provar sua coragem; outros guerreiros são incitados pelo de seus estilos humanos de vida. Quando os Estados modernos pensamento de vingança, e outros, ainda, pela oportunidade de entram em guerra, muitas vezes ficamos embaraçados ao tentar comer carne humana. precisar-lhe a causa, mas raramente faltam explicações alterna- Estes exóticos anseios são bastante reais, mas são antes tivas plausíveis entre as quais escolher. os resultados, e não as causas da guerra. Eles mobilizam o po- Tratados de história estão repletos de detalhes de guerras tencial humano para a violência e ajudam a organizar um com- nas quais os combatentes lutaram pelo domínio de rotas de portamento belicoso. A guerra primitiva, assim como o amor mercado, de fontes de recursos naturais, de trabalho barato ou à vaca ou o ódio ao porco, tem bases práticas. Os povos pri- de mercados de massa. As guerras dos impérios modernos po- mitivos apelam para a guerra porque não encontram outras dem ser lamentáveis, mas não são Esta distinção alternativas para certos problemas - soluções alternativas que é básica para a atual détente nuclear, que repousa na premissa envolvem menos sofrimento e menos mortes prematuras. de que as guerras envolvem uma espécie de balanço racional Os Maring, como muitos outros povos primitivos, expli- entre perdas e ganhos. Se os Estados Unidos e a União Sovié- cam suas atividades bélicas em termos de vingança contrat os tica concluírem, definitivamente, que perderão mais do que ga- atos violentos de seus inimigos. Em todos os casos averiguados nharão com um ataque nuclear, não se pode esperar que ne- por Rappaport, tribos anteriormente amigas, começaram a se nhum dos dois dê início a uma guerra como solução para seus guerrear, alegando atos específicos de violência. As provoca- problemas. Mas tal sistema só será efetivo na prevenção da ções mais citadas eram as de rapto de mulhe- guerra nuclear se as guerras, num consenso geral, estiverem res, estupro, morte de um porco numa plantação, roubo de relacionadas a condições práticas e mundanas. As probabilida- colheitas, invasão e morte ou doença causada por feitiçaria. 55 54</p><p>Uma vez que duas tribos Maring entrem numa guerra em sim que algum deles é seriamente ferido. Se um ou outro lado que haja mortos, nunca lhes faltarão motivos para renovar as insistir em posterior vingança, a luta recrudesce. Os guerreiros hostilidades. Cada morte em campo de batalha é afagada pelos munem-se de machados e de lanças pontiagudas, e as fileiras parentes da vítima, que não ficarão satisfeitos enquanto não em- opostas se aproximam. Cada um dos lados tenta agora atacar patarem a contagem, matando um dos inimigos. Cada episódio o outro, com a determinada intenção de matar. de luta provê motivação suficiente para o próximo, e guerreiros Logo que alguém é morto, há uma trégua. Por um ou Maring, muitas vezes, entram na luta com o desejo ardente de dois dias, os guerreiros ficam em casa preparando os rituais matar determinados membros do grupo inimigo - aqueles que, funerários e louvando os antepassados. Mas se houve um em- dez anos passados, tenham sido os responsáveis pela morte de pate, logo eles retornam ao campo de batalha. À medida que um pai ou de um irmão. a luta se arrasta, os aliados ficam cansados e desejosos de voltar Já contei parte da história de preparação da guerra entre para suas aldeias. Se as perdas forem maiores num grupo do os Maring. Depois de erradicar o rumbim sagrado, as tribos be- que no outro, os mais fortes podem tentar escorraçar os mais ligerantes realizam os grandes festivais do porco, nos quais pro- fracos. A tribo mais fraca junta suas tralhas e foge para as curam recrutar novos aliados e consolidar relações com grupos aldeias de seus aliados. A tribo vencedora, antecipando a vi- anteriormente amigos. O kaiko é um ruidoso acontecimento, tória final, pode procurar tirar partido da situação, arrasando cujas várias fases duram meses, de modo que não há possi- a aldeia do inimigo, queimando-a e matando todos que possa bilidade de um ataque traiçoeiro. De fato, os Maring esperam encontrar. que a opulência de seu kaiko desmoralize os inimigos. Os dois Quando há uma debandada, os vitoriosos não perseguem lados fazem os preparativos para a guerra com muita antece- o inimigo, mas concentram-se em matar os desgarrados, a in- dência. Através de emissários, escolhem e concordam sobre a cendiar casas, destruir colheitas e retirar os porcos. Dezenove localização de uma clareira para o campo de batalha, localizada entre vinte e nove das guerras conhecidas entre os Maring na fronteira entre as terras dos combatentes. Ambos os lados, terminaram em debandada geral, um grupo fugindo do outro. alternadamente, participam da limpeza e preparação do lugar Logo após uma debandada, o grupo vitorioso retorna à sua escolhido, e o combate começa num dia predeterminado por aldeia, sacrifica os porcos remanescentes e planta um novo mútuo acordo. rumbim, dando início ao período de paz. O território do ini- Antes de partir para o combate, os guerreiros reúnem-se em migo vencido não é obrigatoriamente ocupado. torno de seus mágicos, que ajoelhados ao pé de uma fogueira Uma debandada completa, na qual muita gente é morta, soluçam e conversam com os antepassados, colocando toras de pode fazer com que um grupo não mais volte a seu antigo bambus verdes nas chamas. Quando o calor faz os bambus território. Os perdedores sobreviventes ficam com seus aliados estourarem os guerreiros, batendo com os pés, gritam Oooooo!, e hospedeiros, enquanto o território abandonado é ocupado pe- e partem para o campo de batalha em fila indiana, saltando e los vitoriosos e seus aliados. Ocasionalmente, o grupo vencido cantando pelo caminho. As forças oponentes formam-se no lado cede suas terras aos aliados, entre os quais buscaram refúgio. oposto da clareira, a uma distância de um tiro de arco do Prof. Andrew Vayda, que estudou as das inimigo. Apóiam no chão seus escudos de madeira, do tamanho guerras na região do Bismarck Range, afirma que os grupos ou de um homem, protegem-se atrás deles e a ameaçar tribos vencidas, debandadas ou não, preferem estabelecer-se e insultar o inimigo. De vez em quando um guerreiro sai de longe das fronteiras de seus inimigos. trás do escudo para insultar os adversários, mas uma chuva de Há grande interesse em esclarecer se as lutas e os ajustes flechas atiradas em sua direção o obriga a proteger-se rapida- territoriais entre os Maring não seriam provocados por aquilo mente. As baixas são poucas durante esta fase de luta, e os a que vagamente chamamos "pressão demográfica". Se por aliados, em ambos os campos, procuram pôr fim à guerra as- "pressão demográfica" queremos indicar a inabilidade absoluta 56 57</p><p>de um grupo para prover suas necessidades calóricas mínimas, dades instintivas; são simplesmente um dos mecanismos de re- então não podemos afirmar que exista entre os Maring pressão gulação que ajudam a manter as populações humanas num demográfica. Quando os Tsembaga realizaram o festival do por- estado de equilíbrio ecológico, com respeito aos seus territórios. em 1963, sua população era de 200 membros, enquanto a A maioria de nós prefere encarar a guerra não como um população de seus porcos era de 169. Rappaport calculou que mecanismo de defesa, mas como uma ameaça às sólidas rela- eles tinham reservas de terras não-cultivadas suficientes para ções ecológicas induzidas por um comportamento irracional e alimentar os 84 membros adicionais (ou 84 porcos adultos) irreprimível. Muitos amigos meus acreditam ser pecaminoso sem causar nenhum dano permanente à floresta ou degradar afirmar que a guerra é uma solução racional para qualquer outro aspecto vital de seu habitat. Mas recuso-me a definir "pressão demográfica" como o início de deficiências nutricio- tipo de problema. No entanto, creio que minhas explicações sobre a guerra primitiva - um mecanismo de adaptação eco- nais ou de danos irreversíveis ao meio-ambiente. Na minha opi- nião, a pressão demográfica passa a existir no momento em lógica - fornecem mais bases para otimismo, quando se en- caram as possibilidades de pôr um termo à guerra moderna, do que as populações começam a aproximar-se do ponto em que que as teorias popularmente correntes do instinto de agressão. haverá deficiência de caloria e de proteína, ou logo que co- Como já disse, se as guerras forem resultantes dos instintos meçam a crescer e a consumir numa proporção em que, cedo humanos inatos para matar, não há praticamente nada que pos- ou tarde, acabará por degradar e exaurir a capacidade de sub- sistência do ambiente. samos fazer para evitá-las. Se, ao contrário, as guerras forem determinadas por condições e relações de natureza prática, en- O índice da população em que as deficiências nutricionais tão poderemos reduzir a ameaça de guerra, procurando modifi- e a degradação ambiental começam a ocorrer é o limite supe- car essas condições e relações. rior do que os ecologistas chamam "capacidade de subsistên- cia". Assim como os Maring, muitas sociedades primitivas pos- Não quero ser rotulado como defensor da guerra, portanto suem mecanismos institucionais para restringir e reverter o permitam-me esclarecer o seguinte: estou afirmando que a guer- crescimento populacional e mantê-lo bem abaixo de sua capa- ra é uma modalidade de adaptação à vida entre os povos cidade de subsistência. Esta descoberta levou a muita confusão. primitivos, mas não que as guerras modernas são ecologica- Desde que determinados grupos humanos limitam a população, mente aceitáveis como mecanismos de adaptação. Com armas a produção e o consumo antes da evidência de quaisquer con- nucleares, as guerras podem ser promovidas a mecanismos de negativas determinadas pela ultrapassagem da capa- aniquilação mútua total. Assim é que chegamos a uma fase da cidade de subsistência do meio, a pressão demográfica, segundo evolução de nossa espécie em que o próximo recurso válido de alguns especialistas, não deve ser a causa primária desse contro- adaptação deverá ser a eliminação das armas nucleares ou a le. Mas não temos de esperar que uma válvula de segurança eliminação da própria guerra. fique emperrada e cause a explosão de uma caldeira para con- O sistema de regulagem ou de manutenção das funções cluir que ela existe para evitar essa explosão. guerreiras dos Maring pode ser deduzido pela apreciação de várias diferentes linhas de evidência. Em primeiro lugar, sabe- Não há nenhum grande mistério sobre a maneira pela qual estes cortes niveladores equivalentes culturais de termostatos, mos que a guerra é desencadeada no momento em que o con- válvulas de segurança e fusíveis - tornaram-se parte da vida sumo e a produção estão progredindo e tanto a população hu- tribal. Como no caso de outras adaptações evolutivas a novos mana quanto a porcina estão ultrapassando os níveis atingidos padrões, os grupos que adotaram instituições de controle de no fim da guerra anterior. O festival dos porcos que controla esse crescimento e as hostilidades subseqüentes não coincidem crescimento sobreviveram por mais tempo do que aqueles que com os mesmos limites máximos para cada ciclo. Algumas tri- deixaram ultrapassar sua capacidade limite de sustentação. As bos procuram firmar suas pretensões territoriais quando estão guerras primitivas não resultam de caprichos, nem de necessi- ainda em níveis mais baixos que os máximos anteriores, como 58 59</p><p>resultado do crescimento desproporcionalmente rápido dos ini- primitivos do mundo, cerca de 15% dos adultos são dizimados migos vizinhos. Outras podem retardar seu festival dos porcos pelas guerras. Terei muito que contar sobre os Yanomamo no até ultrapassarem realmente o limite da capacidade de subsis- tência de seu território. O ponto importante, contudo, não é próximo capítulo. o efeito regulador da guerra sobre a população desta ou da- A razão mais importante para encarar o combate como quela tribo, mas sobre a totalidade da população Maring. um meio de controle de crescimento populacional é que, em todo o mundo, os homens são os principais beligerantes e as A guerra primitiva não alcança seus efeitos reguladores principais vítimas dos compromissos bélicos. Entre os Yanoma- pelo número de mortes em combate. Mesmo en- mo, por exemplo, apenas 7% das mulheres contra 33% dos tre as nações que praticam as formas de eliminação industria- homens morrem em combate. Segundo Andrew Vayda, do mais lizadas, as baixas em combate não afetam substancialmente a sangrento combate entre os Maring resultou a morte de 14 ho- taxa de crescimento da população. Dezenas de milhões de fa- mens, 6 mulheres e 3 crianças, numa população de 300 habi- talidades de guerra, no século XX, determinaram uma variação tantes da tribo derrotada. A morte de combatentes masculinos mínima na implacável ascensão da curva de crescimento demo- pode ser considerada virtualmente inexpressiva para o potencial gráfico. Tome-se o caso da Rússia: no apogeu da luta e da de reprodução de grupos como os Tsembaga. Mesmo que 75% fome, na Primeira Guerra Mundial e na revolução bolchevista, dos homens fossem aniquilados numa única batalha, as mu- a correlação entre a população projetada para o tempo de paz sobreviventes poderiam facilmente cobrir a deficiência e a verdadeira população na época da guerra baixou apenas por numa única geração. uma pequena percentagem. Uma década depois do fim da guer- Como na maioria das sociedades primitivas, os Maring e ra, a população russa havia se recuperado e estava exatamente os Yanomamo são polígamos, isto é, cada homem pode ter vá- no ponto da curva onde deveria estar se não tivessem ocorrido rias mulheres. Todas as mulheres casam logo que possam guerra e revolução. Outro exemplo: no Vietnã, a despeito da intensidade extraordinária dos combates em terra e no ar, a conceber e permanecem casadas durante toda sua vida fértil. população cresceu regularmente durante toda a década de 60. Qualquer homem pode manter, na maior parte do tempo, qua- tro ou cinco esposas grávidas. Quando um Maring morre, há Referindo-se a catástrofes como a Segunda Guerra Mun- vários irmãos e sobrinhos para agregar as viúvas a sua casa. dial, Frank Livingstone, da Universidade de Michigan, disse Mesmo do ponto de vista de subsistência, a maioria dos ho- rudemente: "Quando consideramos que essas matanças ocorrem mens é inteiramente dispensável e sua morte em combate não apenas uma vez numa geração, á conclusão irrefutável é que cria, necessariamente, dificuldades intransponíveis para viúvas e elas não exercem nenhum efeito no crescimento ou no total crianças. Entre os Maring, como já foi mencionado antes, as das populações." Uma das razões disso é que a média das mulheres eram mais importantes na agricultura e na criação de mulheres é extremamente fecunda e pode facilmente procriar porcos. E isto se verifica no mundo inteiro nos sistemas de oito ou nove vezes durante os 25 ou 35 anos de sua vida. Na subsistência que dependem da destruição da floresta ou da lim- Segunda Guerra Mundial, o número de mortes permaneceu peza do terreno pela queimada. Os homens contribuem para a abaixo de 10 por cento da população, e um pequeno aumento agricultura cortando e queimando a mata, mas as mulheres são de nascimentos, por mulher, facilmente cobriria a diferença em perfeitamente capazes de efetuar esse trabalho sem a ajuda alguns anos. (Houve ainda a contribuição da diminuição da masculina. Na maioria das sociedades primitivas, sempre que taxa de mortalidade infantil e da taxa de mortalidade de um modo geral.) há pesadas cargas a transportar lenha ou cestos de batatas as mulheres, e não os homens, é que são consideradas as Não posso dizer quais as taxas de mortalidade entre os bestas de carga apropriadas. Excetuando-se as contribuições Maring, mas entre os Yanomamo, uma tribo que vive entre o mínimas do trabalho masculino para a subsistência do grupo, Brasil e a Venezuela, tida como um dos grupos guerreiros mais quanto maior for a proporção de mulheres na população, maior 60 61</p><p>a eficiência da produção de alimentos. No que concerne aos vencedores ou seus aliados utilizavam temporariamente as terras alimentos, os homens Maring são iguais aos porcos: consomem abandonadas. Mas, em qualquer das situações, o efeito imediato muito mais que produzem. As mulheres e crianças poderiam de um conflito era que extensões de terras já desgastadas pelo alimentar-se melhor se elas se concentrassem em criar porcos, cultivo intensivo ficavam alqueivadas, enquanto outras áreas não- em vez de homens. utilizadas limítrofes aos territórios dos vencidos - eram Assim, o sentido de adaptação da guerra entre os Maring cultivadas. não pode consistir no cruel efeito das mortes em combate so- Nos planaltos da Nova Guiné, bem como em todas as de- bre crescimento da população. Em vez disso, creio que a mais florestas tropicais, as derrubadas e queimadas sistemáticas guerra preserva o ecossistema Maring através de duas conse- numa mesma região ameaçam a capacidade de recuperação da qüências indiretas e menos conhecidas. Uma dessas floresta. Se os intervalos entre essas queimadas forem muito cias diz respeito ao fato de que grupos vencidos são obrigados curtos, o solo resseca e endurece, e a semeadura das árvores a abandonar seus antigos territórios no momento em que eles torna-se impossível. As gramíneas invadem as terras de cultura já estão abaixo de sua capacidade de subsistência. A outra, e todo o habitat se transforma, passando das frondosas florestas é que a guerra aumenta a taxa de mortalidade de crianças e primárias às escavadas e erodidas pastagens, que não mais po- de mulheres e assim, a despeito da insignificância demográfica dem ser aproveitadas para as culturas tradicionais. Milhões de das baixas masculinas, atua como um fato efetivo na regulação hectares de pastagens no mundo inteiro foram produzidos nesta do crescimento regional de população. devastadora. Em primeiro lugar, vamos explicar o abandono da terra Entre os Maring, o desflorestamento tem sido relativamente primitiva de cultura. Durantes vários anos após um conflito, pequeno. Algumas clareiras e florestas secundárias permanentes nem vencedores e nem vencidos se utilizam dos territórios aban- podem ser encontradas nos territórios das populosas e agressi- donados, que consistem nas melhores glebas de altitude média e vas tribos dos Kundegai - o grupo responsável pela debandada de floresta secundária. Este abandono temporário ajuda a refa- dos Tsembaga, em 1953. Mas a destruição da vida, como con- zer a capacidade de subsistência do território. Quando os Kunde- de tentar forçar a floresta ao sustento de mais porcos gai venceram os Tsembaga, em 1953, destruíram suas planta- e gente do que ela pode tolerar, é evidente em muitas regiões ções e seus pomares, desrespeitaram os cemitérios, queimaram vizinhas dos planaltos da Nova Guiné. Por exemplo, um estudo as casas, abateram todos os porcos adultos que puderam encon- recente do Dr. Arthur Sorenson, do Instituto Nacional de Saúde, trar e carregaram todos os leitões para suas aldeias. Como disse na região dos South mostrou que estes haviam infligido Rappaport, a depredação tinha por finalidade tornar difícil a danos irreversíveis a uma área de florestas primárias que se volta dos Tsembaga ao seu território, e não propriamente a pilha- estende por mais de quatrocentas milhas quadradas, na região gem. Os Kundegai, temendo a vingança dos fantasmas dos ante- do Central Range. Espesso capim kunai tomou o lugar das áreas passados dos Tsembaga, retornaram às suas terras. Lá pendura- outrora cultivadas e abandonadas, acompanhando o movimento ram, em sacos de fibras, certas pedras mágicas, abrigando-as migratório para o interior da selva. Uma vasta derrubada de num esconderijo sagrado. Essas pedras não seriam tocadas antes floresta pode ser vista em regiões que vinham sendo cultivadas que os Kundegai estivessem aptos a agradecer a seus antepassa- durante muitos anos. Creio que, entre os Maring, os rituais dos, ofertando-lhes um festival do porco. Enquanto as pedras cíclicos das guerras, das tréguas durante o crescimento dos mágicas ali permanecessem os Kundegai temeriam os fantasmas rumbim, da matança dos porcos, ajudaram-nos a proteger seu habitat de destino semelhante. ancestrais dos Tsembaga e se absteriam de cultivar ou de caçar em seu Entre todos os estranhos acontecimentos observados du- rante os rituais cíclicos - a plantação do rumbim, a matança Posteriormente os próprios Tsembaga ocupavam as terras de porcos, as pendentes pedras mágicas de luta e a guerra pro- abandonadas. Em outras guerras, como já foi mencionado, os priamente dita a simples observação do ritmo me impressiona 62 63</p><p>muito mais. Na região dos Maring, as terras de cultura devem porco, de outra forma tão incompatível com o asco que ele pro- permanecer em pouso por dez ou doze anos consecutivos, antes voca no resto do mundo. Já que um porco adulto "come" tanta que possam ser novamente queimadas e cultivadas, sem o perigo floresta quanto um homem adulto, a matança de porcos reduz de se degradarem. O festival de porcos também ocorre duas a matança de homens, no auge de cada ciclo. Não admira que vezes em cada geração - ou a cada dez ou doze anos. E isto os antepassados sejam loucos por porcos, de outro modo, teriam não pode ser mera coincidência. Penso então que, finalmente, de "comer" seus próprios filhos e filhas! podemos responder à questão: "Quando é que os Maring têm Um problema, entretanto, permanece. Quando os Tsemba- porcos suficientes para agradecer a seus antepassados?" Respos- ga foram expulsos de seu território em 1953, procuraram asilo ta: "Eles os têm quando a floresta recobriu as áreas anterior- em sete diferentes tribos locais. Em alguns casos, as tribos aco- mente cultivadas pelos grupos vencidos e desbaratados." lhedoras receberam refugiados adicionais de outras guerras ante- Os Maring, como outros agricultores primitivos que se utili- riores e posteriores à dos Tsembaga. Parece, portanto, que a zam do sistema de cortar e queimar, vivem "comendo a flo- ameaça ecológica para os grupos vencidos e suas terras tinha resta" - queimando árvores e fazendo plantações em suas cin- apenas sido transferida de um local para outro, e os refugiados zas. Seus rituais cíclicos e guerras cerimoniáticas evitam que eles logo começariam a comer as florestas de seus hospedeiros. As- devorem a floresta depressa demais. O grupo vencido retira-se sim, o mero deslocamento de populações não é suficiente para das terras topograficamente mais adequadas ao cultivo. Esta reti- evitar o desgaste das terras e do ambiente. Deve também haver rada permite a regeneração da coberta verde dos locais onde algum meio de limitar o crescimento da população. E esta neces- homens e porcos comeram demais. Durante a estada entre seus sidade nos leva à segunda das da guerra primitiva aliados, o povo vencido pode retornar a seu território para culti- que há pouco mencionei. vá-lo, mas, neste caso, procura limitar-se a regiões fora do alcan- Nas sociedades mais primitivas, a guerra é um meio eficiente ce de seus vencedores, no seio da floresta primitiva. Se forem de controle demográfico porque os combates constantes entre bem sucedidos - com a ajuda dos aliados na recuperação de os grupos tornam mais valiosa a criação dos homens do que a seu rebanho e de seu poder, tentarão reocupar suas terras e das mulheres. Quanto maior o número de homens adultos, mais cultivá-las plenamente outra vez. forte será o poderio militar com que uma tribo poderá enfrentar A alternância entre guerra e paz, fraqueza e poder, muitos outra em combates que dependem de armas manuais e, mais e poucos porcos, áreas cultivadas no centro do território ou em seguramente, poderá manter-se dentro dos limites de seu terrri- sua periferia, determina um ritmo correspondente em todas as tório, sempre pressionado pelos vizinhos. De acordo com um tribos vizinhas. Embora os vencedores não ocupem imediata- levantamento demográfico feito por William T. Divale, do Mu- mente o território dos vencidos, cultivam áreas mais próximas seu de História Natural Americano, em 600 populações primi- às terras do inimigo derrotado, o que não faziam antes da guer- tivas, há um constante desequilíbrio entre meninos e meninas, ra. E, o mais importante é que a população porcina, drastica- predominando aqueles até uma idade de 15 anos. A proporção mente reduzida, permite, ao menos temporariamente, um retar- média entre meninos e meninas é de 150:100, havendo mesmo damento no ritmo do avanço para o limite da capacidade de em alguns grupos duas vezes mais meninos do que meninas. A subsistência do território. Quando a população porcina atinge seu limite máximo, os vitoriosos abatem o rumbim, tomam suas proporção meninos-meninas, entre os Tsembaga, está perto da pedras mágicas, e preparam-se para entrar no território deso- média assinalada. Ao voltarmo-nos para a idade adulta, con- cupado e reconstituído pacificamente, se seus inimigos anterior- tudo, a proporção média entre homens e mulheres, no estudo res ainda estiverem enfraquecidos para enfrentá-los, vingativa- de Divale, aproxima-se da unidade, sugerindo um índice de mente, se os vencidos tiverem retornado. mortalidade para homens adultos superior ao de mulheres adultas. Nas vibrações uníssonas do povo, porcos, culturas e flores- As baixas em combate constituem a razão mais provável da tas, pode-se encontrar a explicação para a santidade ritual do maior mortalidade de homens adultos. Entre os Maring essa pro- 64 65</p><p>porção é de 10 homens para 1 mulher. Mas qual a causa da to a problemas ligados à menstruação e à gravidez, es situação inversa na infância e na puberdade? certas as líderes modernas da women's lib, quando A resposta de Divale é que, em muitos grupos primitivos, que esses "problemas" podem facilmente ser eliminados pratica-se abertamente o infanticídio de meninas, que são sufo- ria dos empregos e atividades produtoras por cadas ou simplesmente largadas no mato. Mas, na maioria das ças nos esquemas de trabalho. A base biológica alega vezes, o infanticídio é oculto e sua prática negada assim como divisão sexual do trabalho é um amontoado de toli os agricultores hindus negam matar suas vacas. Do mesmo que todas as mulheres de um grupo não ficam grávidas modo que a desproporção entre os sexos do gado na India, essa tempo, as funções econômicas consideradas como pr discrepância entre as taxas de mortalidade de meninos e meni- masculinas caça ou pastoreio podem ser per nas resulta mais de um negligente padrão de cuidados infantis exercidas pelas mulheres. do que propriamente de um atentado direto à vida das recém- A única atividade humana, fora a participação nascidas. Mesmo uma pequena diferença na reação materna ao para a qual é indispensável a especialização masculina choro das crianças para obter alimento e proteção pode, cumu- que envolva armas brandidas pelos próprios combat lativamente, responder pela desproporção entre os sexos dos geral, os homens são mais altos, mais pesados, mais I seres humanos. que as mulheres. Eles podem atirar uma lança mais lon Somente um conjunto extremamente poderoso de forças um arco mais forte e usar uma clava maior. Poder culturais pode explicar a prática do infanticídio feminino e o correr mais depressa para o inimigo durante um tratamento preferencial dispensado aos meninos. Em termos do inimigo durante uma derrota. Concordar com alg estritamente biológicos, as mulheres são mais valiosas que os res da libertação feminina que as mulheres podem ta homens. A maioria dos homens são reprodutivamente supérfluos, treinadas a brandir armas manuais não altera o já que um só macho pode emprenhar centenas de fêmeas. Só algum grupo primitivo já treinou mulheres, em vez d as fêmeas podem gerar crianças e só elas as podem amamentar como especialistas militares, cometeu um grande erro. (em sociedades em que não se usam mamadeiras e fórmulas certamente, praticou suicídio, porque nem um só caso substitutivas do leite materno). Se tivesse que haver qualquer espé- é conhecido, em qualquer parte do mundo. cie de discriminação sexual contra recém-nascidos, prediríamos A guerra inverte o valor relativo da contribuição que os meninos seriam as vítimas. Mas acontece justamente o na e feminina para a perspectiva de sobrevivência de contrário. Este paradoxo torna-se mais difícil de ser compreen- Premiando o nascimento de mais um soldado, a gue dido se admitirmos que as mulheres são, física e mentalmente, as sociedades primitivas a limitar a criação das mulh capazes de executar todas as tarefas básicas de produção e de esta última condição, e não os combates por si me subsistência, independente de qualquer ajuda masculina. Mu- tornam a guerra um meio eficiente de controle do c lheres podem fazer qualquer trabalho que um homem faça, se populacional. Como todo Maring sabe, os antepassad bem que, talvez, com menor eficiência, quando a força bruta aqueles que mais se ajudam a si mesmos, colocando é requerida. Elas podem caçar com arco e flecha, pescar, armar número possível de homens no campo de batalha e ti armadilhas e cortar árvores, se forem ensinadas ou se lhes for os conservar lá. Por isso estou mais inclinado a admit permitido aprender. Podem e carregam pesadas cargas, podem de vista de que o ciclo inteiro de rituais não passa de e executam trabalho de lavoura no mundo inteiro. Entre os inteligente dos antepassados para forçar os Maring a agricultores do sistema de derrubar e queimar, como os Maring, e homens, em vez de mulheres, de modo a proteger a as mulheres são as principais produtoras de alimentos. Mesmo Continuando a pesquisar as causas práticas que entre as tribos caçadoras como a dos Bosquímanos, as mulheres as guerras primitivas, tenho ainda de enfrentar a provêm dois terços das necessidades nutricionais do grupo. Quan- "Por que não se usavam processos menos violentos pa 66</p><p>proporção maior de mortes de crianças do sexo feminino do as populações locais dentro dos limites da capacidade de subsis- as do sexo masculino. Se não houvesse discriminação contra tência?" Por exemplo, não teria sido melhor para os Tsembaga bebês femininos, muitos dos masculinos seriam vítimas da e seu habitat que eles tivessem optado por algum outro meio cessidade de controle de população. A guerra, que estimula de controle de natalidade para limitar sua população? A respos- criação do maior número possível de machos, é responsável ta é não, porque antes da invenção da camisa-de-vênus no sé- proporção mais alta de sobreviventes masculinos, quando culo XVIII não havia em parte alguma nenhum artifício anti- parada com o número de meninas que escapam ao infantic concepcional seguro, relativamente agradável e eficaz. Antes, o direto ou indireto. Ou, para resumir, a guerra é o preço que meio mais eficaz e "pacífico" de controlar a população, salvo sociedades primitivas devem pagar para criar filhos, quando o infanticídio, era o aborto. Muitos povos primitivos sabem co- podem dar-se o luxo de criar filhas. mo provocar aborto por meio de beberagens venenosas. Outros O estudo da guerra primitiva leva à conclusão de que instruem a mulher grávida a amarrar uma faixa bem apertada atividade bélica tem sido parte de uma estratégia de adapta em torno do ventre. Quando tudo falha, a gestante é deitada associada a condições tecnológicas, demográficas e ecológ de costas, enquanto um amigo pula, a todo o peso, no seu especiais. Não precisamos invocar instintos homicidas imag abdome. Estes métodos eram absolutamente infalíveis, mas apre- rios ou motivos e caprichos inescrutáveis para compreender sentavam efeitos colaterais desagradáveis, dentre os quais o de, que os conflitos armados têm sido tão na his geralmente, matar também a mãe. humana. E, assim, temos sobejas razões para esperar que, q Não contando com nenhum método eficaz para evitar a do a humanidade perceber que perde mais do que pode ga concepção ou o aborto, os povos primitivos devem concentrar com a guerra, outros meios de resolver conflitos grupa seus meios institucionais de controle da população nos que já substituirão. estão vivos. As crianças são as vítimas naturais desses esforços e quanto mais novas melhor visto que, em primeiro lugar, não podem resistir; em segundo lugar, implicam menor inves- timento material e social; e, finalmente, os laços emocionais com as criancinhas são mais fáceis de cortar do que os que existem entre os adultos. Quem quer que julgue minhas razões perversas ou incivili- zadas deve ler sobre a Inglaterra do século XVIII. Dezenas de milhares de mães encharcadas de gim costumavam atirar os bebês no Tâmisa, ou os enrolavam nos panos utilizados por variolosos, lançavam-nos em barris de entulhos, rolavam por cima deles durante o estupor alcoólico e, de qualquer maneira, procuravam encurtar a vida dos filhos por meios diretos ou indiretos. Nos dias de hoje, somente um grau extremo de virtude de teimosia nos leva a não admitir que o infanticídio ainda é praticado em grande escala nos países subdesenvolvidos, onde a mortalidade infantil no primeiro ano de idade, em torno de 250 por 1.000 nascimentos, é lugar-comum. Os Maring procuram tirar o melhor partido de uma situa- ção difícil a situação geral da humanidade antes do desen- volvimento de anticoncepcionais eficientes e da prática sem riscos de abortos prematuros. Eles incentivam ou toleram uma 68</p><p>não é uma automática das diferenças biológicas entre homens e mulheres. Conhecendo apenas os fatos da anatomia e da biologia humanas, não se poderia predizer que as mulheres seriam o sexo socialmente subordinado, pois a espécie humana é única, no reino animal, com relação à falta de correspondên- cia entre seu equipamento anatômico hereditário e seus meios de subsistência e defesa. Somos a espécie mais perigosa do mun- do, não pelo maior tamanho de nossos dentes, ou porque tenha- mos afiadas garras, ou os mais venenosos ferrões, ou uma pele mais grossa, mas porque sabemos como nos equipar com ferra- mentas e armas mortíferas, que exercem as funções das unhas, dentes, ferrões e atuam com mais eficácia que qualquer recurso Selvagem anatômico. Nosso modo primário de adaptação biológica é a cultura, e não a anatomia. Não espero que os homens dominem as mulheres pelo fato de serem mais altos e mais pesados, do mes- mo modo como não posso esperar que os homens sejam domi- nados por gado ou cavalos - animais que pesam cerca de trinta vezes mais que um marido em relação à mulher. Nas sociedades humanas a autoridade sexual não é determinada pelo indivíduo O maior ou mais agressivo, mas principalmente pelo que controla INFANTICÍDIO feminino é uma das manifestações da supre- a tecnologia de defesa e agressão. macia masculina. Creio que se pode demonstrar que as demais manifestações da supremacia masculina têm origem também nas Se eu tivesse conhecimento apenas da anatomia e da capa- exigências práticas dos conflitos armados. cidade cultural de homens e mulheres, prediria que as mulheres, Para explicar as hierarquias sexuais temos mais uma vez mais que os homens, estariam aptas a obter o controle da tecno- de escolher entre as teorias que enfatizam instintos imutáveis e logia de defesa e agressão, e que se um dos sexos tivesse de submeter-se ao outro, seria o masculino ao feminino. Por um as que em relevo a adaptação de estilos de vida às variá- veis condições práticas e habituais. Sou a favor do conceito lado, me impressionaria o dimorfismo físico - o peso, a altura liberacionista feminino de que "anatomia não é destino", o que e a força maiores dos homens especialmente quando tais atri- butos são relacionados a armas manuais, mas ficaria muito mais significa que as diferenças sexuais inatas não podem responder pela desigualdade na distribuição de privilégios e poderes entre impressionado por algo que têm as mulheres e que os homens homens e mulheres nas esferas doméstica, econômica e política. jamais podem ter principalmente o controle do nascimento, isto é, a capacidade de gerar, cuidar e amamentar seus bebês. As feministas não negam que a posse de ovários, em vez de Em outras palavras, as mulheres controlam as crianças e por testículos, leva necessariamente a experiências de vida diferen- causa disso podem, potencialmente, modificar qualquer estilo de tes. O que elas negam é que haja alguma coisa na constituição vida que as ameace. Está em seu poder, por negligência seletiva, biológica de homens e mulheres que, por si só, assegure maiores fazer pender a balança sexual a favor do seu próprio sexo. A privilégios sexuais, econômicos e políticos aos homens do que às mulheres. mulher tem ainda o poder de sabotar o desenvolvimento de homens viris, recompensando os meninos por serem passivos, e Exceto a concepção e as particularidades sexuais correlatas, não agressivos. Esperaria que concentrassem seus esforços em a atribuição de funções sociais baseada na diferença de sexos criar mulheres solidárias e agressivas, em vez de homens. Espe- 70 71</p><p>raria ainda que os poucos homens sobreviventes de uma gera- ção fossem tímidos, obedientes, trabalhadores e gratos pelos fa- É a importância da guerra que arruína a lógica sobre a qual se baseia a predição do matriarcado. As mulheres são teori- vores sexuais recebidos. Prediria que as mulheres monopoliza- riam a direção de grupos locais, que seriam responsáveis pelas camente capazes de resistir, e até de subjugar os homens que relações xamanistas com o sobrenatural e que Deus seria cha- elas mesmas criaram e socializaram, mas os homens criados em outra aldeia ou tribo representam uma espécie de desafio. Logo mado ELA. Finalmente, esperaria que a forma ideal e mais pres- tigiosa de casamento fosse a poliandria - uma mulher contro- que os homens, seja qual for a razão, começam a responsabili- lando as atividades sexuais e econômicas de vários homens. zar-se pelos conflitos grupais, as mulheres não têm outra esco- lha senão criar grandes números de machos bravios para si mes- Sistemas sociais feministas desse tipo foram realmente pos- mas. tulados como condição da humanidade por vários A supremacia masculina é um caso de feedback positivo, ou teóricos que viveram no século XIX. Friedrich Engels, por exem- o que se costuma chamar "desvio de amplificação" espécie plo, que esposou as idéias do antropologista americano Lewis de processo que conduz a sistemas populares de gritos ensurde- Henry Morgan, acreditava que as sociedades modernas passaram cedores, captando-os e então reamplificando seus próprios sinais. por uma fase matriarcal durante a qual a descendência era reco- Quanto mais ferozes forem os homens, maior o número de guer- exclusivamente pela linhagen materna, e as mulheres ras e maior ainda o número de homens necessários. E, também, dominavam politicamente os homens. Muitas feministas mo- quanto mais ferozes os homens, mais sexualmente agressivos se dernas continuam acreditando neste mito e em suas tornam, sendo maior a exploração das mulheres e mais alta a cias. Supostamente os homens subordinados aliaram-se e derro- incidência da poliginia - controle de várias esposas por um só taram as matriarcas, apoderaram-se de suas armas e desde então homem. A poliginia, por outro lado, intensifica a carência de vêm conspirando para explorar e degradar o sexo feminino. mulheres disponíveis, eleva o nível de frustração entre os adoles- Algumas mulheres que aceitam este tipo de análise alegam que centes e aumenta a motivação para a guerra. A amplificação o equilíbrio entre poder e a autoridade de homens e mulheres conduz a um clima excruciante; as mulheres são desprezadas e pode ser restabelecido somente por uma contraconspiração mili- assassinadas na infância, tornando necessário que os homens tante equivalente a uma espécie de guerrilha entre os sexos. façam guerra para capturar esposas que criem um número adi- Há algo errado nesta teoria: ninguém jamais pôde com- cional de homens agressivos. provar a existência de um só caso representativo de um verda- Para compreender a relação entre o chauvinismo masculino deiro matriarcado. A única evidência desta fase, fora o mito e a guerra é melhor examinar o estilo de vida de um grupo es- antigo das Amazonas, é que cerca de 10 a 15 por cento das pecífico de guerreiros primitivos e discriminadores sexuais. Es- sociedades humanas registram o parentesco e a descendência colhi os Yanomamo, um grupo de cerca de 10.000 índios ame- exclusivamente através de mulheres. Mas o registro da descen- ricanos que habitam na fronteira entre o Brasil e a Venezuela. dência através da mulher constitui sucessão matrilinear, e não Os Yanomamo foram denominados "povo feroz" pelo seu prin- matriarcado. Enquanto a posição das mulheres nos grupos ma- cipal etnógrafo, Napoleon Chagnon, da Universidade Estadual trilineares tende a ser relativamente boa, as características essen- da Pensilvânia. Todos os observadores que estiveram em contato ciais do matriarcado estão ausentes. Homens, e não mulheres, com eles concordam que constituem uma das mais agressivas, dominam a vida econômica, civil e religiosa, e eles, não elas, belicosas e machistas sociedades no mundo. gozam do direito de ter várias esposas ao mesmo tempo. O pai Quando um Yanomamo típico alcança a maturidade, já não é a fonte principal de autoridade na família, mas nem tam- está coberto de cicatrizes e ferimentos produzidos por incontá- veis brigas, duelos e incursões militares. Ainda que tenham pouco o é a mulher. A figura autoritária nas famílias matrili- pela mulher um grande desprezo, os Yanomamo estão sempre neares é outro homem: o irmão da mãe, ou o irmão da avó ou brigando por causa de adultérios reais ou imaginários, ou por o filho da tia-avó. causa de promessas não-cumpridas de arranjos matrimoniais. As 72 73</p><p>mulheres Yanomamo apresentam-se, também, cobertas de cica- trocar suas irmãs. cunhado de um homem torna-se o seu mais trizes e contusões, a maioria resultante de encontros violentos próximo e importante parente. Estes homens passam longas com sedutores, raptores e maridos. Nenhuma mulher Yanomamo horas soprando pós alucinógenos uns nos nariz dos outros e escapa da tutelagem brutal dos maridos temperamentais, vicia- deitando-se juntos na mesma rede. Num caso contado por Chag- dos em drogas e guerreiros. Todos os homens Yanomamo maltra- non, o irmão de uma fugitiva ficou tão irritado com ela por tam as esposas. Maridos bondosos apenas as machucam ou estar perturbando as boas relações entre ele e o cunhado, que a mutilam; os mais ferozes ferem e matam. golpeou com o machado. Uma das maneiras favoritas de maltratar a mulher é puxar Um aspecto importante da supremacia masculina Yanoma- as varetas de taquara que elas trespassam nos lóbulos das ore- mo é o monopólio que os homens exercem sobre as drogas alu- lhas. Um marido irritado pode puxar de modo tão violento cinógenas. Fazendo uso delas (a mais comum, ebene, deriva-se que o lóbulo auricular é rasgado. Enquanto Chagnon se encon- de um vinho selvagem), têm visões sobrenaturais que as mu- trava no campo, um homem que suspeitou que sua mulher esta- lheres não podem experimentar. Estas visões capacitam os ho- va cometendo adultério foi mais além e cortou-lhe ambas as mens a tornarem-se a visitar demônios e controlar as orelhas. Numa aldeia vizinha, outro marido tirou com um facão forças do mal. A inalação do ebene também ajuda o homem um naco de carne do braço da esposa. Os homens esperam que a tolerar extremos de dor e a superar o medo durante os duelos suas mulheres os sirvam e a seus hóspedes e que atendam pron- e incursões. A aparente imunidade à dor exibida durante as tamente e sem protesto a todos os pedidos. Se uma mulher não disputas de golpes no peito e pauladas na cabeça, que a seguir obedecer logo, o marido pode espancá-la com uma acha em descreverei, é resultante da ação analgésica das drogas. Homens brasa, feri-la com o ou chamuscar-lhe o braço com um que estiveram "em viagem" têm visões formidáveis antes de tição. Se estiver realmente furioso, pode ainda acertar-lhe as morrer ou de cair em estupor. Um ranho verde goteja-lhes do panturrilhas ou o traseiro com uma flecha farpada. Num caso nariz; emitem estranhos grunhidos, andam de quatro e conver- citado por Chagnon, a flecha desviou-se, penetrou no estômago sam com demônios invisíveis. da mulher e quase a matou. Um homem chamado Paruriwa Como no caso das tradições os Yanomamo enfureceu-se porque sua mulher o seguia vagarosamente, pegou justificam seu chauvinismo machista com seu mito de origem. do machado e o lançou contra ela. Ela se desviou e saiu cor- No começo do mundo, contam eles, existiam apenas homens rendo, aos gritos. Paruriwa tornou a atirar o machado, que pas- bravos formados do sangue da lua. Entre estes primeiros ho- sou rente à sua cabeça. Ele então correu atrás dela, empunhan- mens havia um de nome Kanaborama, cujas pernas se tornaram do o facão e rachou-lhe a mão, antes que o chefe da aldeia prenhes. Da perna esquerda de Kanaborama surgiram as mulhe- pudesse intervir. res e de sua perna direita os homens efeminados - aqueles Há ainda muita violência contra as mulheres, sem a me- Yanomamo que são relutantes no combate e covardes nas bata- nor provocação. Chagnon acredita que parte dessa agressivida- lhas. de resulta da necessidade que tem o homem de provar que é Como em outras culturas de dominação masculina, os capaz de investidas mortais. Se um homem bate publicamente Yanomamo acreditam que o sangue menstrual é malfazejo e em sua mulher com um porrete, isto ajuda-o a construir "uma perigoso. Quando uma menina tem sua primeira menstruação, imagem". As mulheres são também utilizadas simplesmente co- trancam-na numa jaula de bambu, especialmente construída para mo bodes-expiatórios. Um homem que realmente desejava descar- esse fim, e a deixam sem alimentação. Posteriormente ela deve regar sua raiva no irmão, em vez disso atirou na própria mulher; isolar-se durante o período menstrual e permanecer sozinha, de ele mirou um ponto não-vital, mas a flecha desviou-se e a matou. cócoras, num canto escuro da casa. As mulheres que fogem dos maridos podem esperar uma As mulheres Yanomamo são maltratadas desde a infância. limitada proteção de seus parentes masculinos. A maioria dos Quando o irmãozinho de uma menina bate nela, ela é castigada casamentos são contratados entre os homens que concordam em se lhe bater também. Meninos, entretanto, jamais são castigados 74 75</p><p>por bater em quem quer que seja. Os pais uivam de prazer Imagine-se uma multidão e esmagadora de homens, quando seus zangados garotos de quatro anos os esbofeteiam. com os corpos pintados de vermelho e preto, penas brancas nos Considerei ainda a possibilidade de que as descrições de cabelos, pênis expostos e amarrados ao ventre por barbantes. Chagnon dos papéis sexuais dos Yanomamo pudessem ser, em Brandem arcos e flechas, machados, porretes e agitando- parte, reflexos de sua própria tendência masculina. Felizmente os e retinindo-os, enquanto se ameaçam uns aos outros. Os ho- os Yanomamo foram também estudados por uma mulher. A mens, divididos em hóspedes e hospedeiros, juntavam-se na Judith Shapiro, da Universidade de Chicago, também clareira central da aldeia, ansiosamente seguidos pelo olhar das enfatiza o papel essencialmente passivo dessas mulheres. Ela re- mulheres e filhos que ficam atrás, sob o beiral da grande habi- lata que, em questões de casamento, os homens são decisivamente tação comum. Os hospedeiros acusam os hóspedes de roubar os permutadores e as mulheres as permutadas. Traduz o termo suas plantações. Os hóspedes gritam que os hospedeiros são Yanomamo referente a casamento como "arrastar alguma coisa" mesquinhos e que estão guardando a melhor parte dos alimen- e divórcio como "jogar alguma coisa fora". Conta que aos oito tos para si mesmos. E os hóspedes, já não receberam seus pre- ou nove anos de idade as meninas já começam a servir aos sentes de despedida? Então por que ainda não se foram? Assim, maridos; dormem perto deles, seguem-nos por toda parte, pre- para se livrarem deles, os hospedeiros os desafiam para um param suas refeições. Um homem pode até tentar relações sexuais duelo de socos no peito. com sua noiva de oito anos. A Dra. Shapiro testemunhou cenas Um guerreiro da aldeia hospedeira pula para o centro da terríficas nas quais meninazinhas imploravam a seus parentes clareira. Afasta as pernas, as mãos atrás das costas e empina masculinos que as tirassem da companhia de seus futuros mari- o peito em direção ao grupo oponente. Um segundo homem, dos. Em um caso, os braços da noivinha relutante foram desarti- dentre os hóspedes, abre caminho e entra na arena. Olha o culados, quando seus parentes a puxavam de um lado e os pa- adversário calmamente e procura fazê-lo mudar de posição. Este rentes do marido, do outro. leva o braço esquerdo à cabeça, toma nova posição e faz um Chagnon afirma que as mulheres Yanomamo esperam maus arranjo final. Com seu oponente bem situado, o hóspede coloca- tratos de seus maridos e que medem o status de esposa pela fre- se a um braço de distância dele, firmando e afundando o pé qüência das surras mais brandas que recebem deles. Certa vez na terra dura, simulando ir para a frente, negaceando repetidas ele ouviu a conversa de duas jovens a respeito de suas cicatri- vezes para testar a distância e controlar o equilíbrio. Então, in- zes. Uma delas dizia que o marido da outra devia realmente clinando-se como um lançador de beisebol, concentra toda sua preocupar-se com ela; já que tantas vezes a havia ferido na força e seu peso no punho cerrado e arremessa-o contra o peito cabeça. Referindo-se à própria experiência, a Dra. Shapiro diz do adversário, entre o mamilo e o ombro. O homem atingido que sua condição física perfeita, sem cicatrizes e equimoses, cambaleia, ajoelha-se, dobra-se, sacudindo a cabeça, mas taci- causava admiração às mulheres Yanomamo. Diz ela que as mu- turno e inexpressivo. Seus torcedores gritam e berram: "Outro!" lheres concluíram que "os homens com quem eu convivera real- A cena é repetida. O primeiro homem, um colosso já em pé, mente jamais se importaram bastante Embora não empinando os músculos peitorais, toma de novo posição. Seu possamos concluir que as mulheres Yanomamo quisessem ser adversário ombreia-se com ele, testa a distância, inclina-se para espancadas, podemos afirmar que esperavam por isso. Elas acha- trás e arremessa uma segunda pancada no mesmo lugar. O atin- vam difícil conceber um mundo em que os maridos pudessem gido dobra os joelhos e afunda no chão. O atacante agita os ser menos brutais. braços vitoriosamente sobre a cabeça e dança em torno da víti- A intensidade peculiar do chauvinismo masculino entre os ma, soltando grunhidos ameaçadores e movimentando os pés, Yanomamo se manifesta melhor em seus duelos, nos quais dois tão rapidamente, que são vistos como manchas no pó, enquanto homens devem bater-se até o limite de sua resistência. Socos no seus ruidosos torcedores batem as armas de madeira e agacham- peito é a forma favorita de infligir esta mútua punição. se e levantam-se pulando. Os camaradas do homem caído ani- mam-no a receber mais punição. Cada SOCO que suportar lhe dá 76 77</p><p>o direito de revanche. Quanto mais mais poderá dar do a pancada, o primeiro está habilitado a uma oportunidade e mais oportunidade terá de estropiar o adversário ou fazê-lo imediata de atingir seu oponente da mesma maneira. desistir da luta. Depois de levar mais duas pancadas, o lado Chagnon afirma que uma cabeça de Yanomamo típica é esquerdo do peito do homem fica vermelho e inchado. Entre a recoberta de cicatrizes grandes e feias. Como os antigos prussia- gritaria de seus torcedores em delírio, ele faz sinal de que já é nos, os Yanomamo se orgulham dessas recordações de duelos. bastante, pedindo a seu adversário que permaneça imóvel para Eles raspam o topo da cabeça para manter as cicatrizes à vista receber o que lhe é devido. e esfregam as áreas atingidas com pigmentos vermelhos, de mo- A cena que acabo de descrever é baseada no relato de do a fazer sobressair todas as cicatrizes. Se um Yanomamo Napoleon Chagnon, que a presenciou. Como acontece em muitos viver até quarenta anos, sua cabeça terá pelo menos um cru- outros duelos desse tipo, há uma escalada violenta logo que um zamento de vinte grandes cicatrizes. Vista do alto, anota Chag- grupo começa a mostrar-se melhor que o outro. Os hospedeiros non, a cabeça de um veterano de duelos de clavas "parece um já não contam com peitos disponíveis, mas não querem dar mapa rodoviário". início a nenhuma encenação de paz. Então desafiam os hóspedes Os duelos são igualmente comuns entre homens da mesma a outro tipo de duelo: espancamento-lateral, que consiste em aldeia e de aldeias vizinhas. Mesmo parentes próximos ficar imóvel, enquanto o oponente bate com a mão espalmada temente escolhem o combate armado para acertar disputas. logo abaixo das costelas. Golpes desferidos nessa área paralisam Chagnon observou pelo menos um encontro entre pai e filho. o diafragma, e a vítima cai por terra ofegante e O jovem comera algumas bananas que o pai pendurara para Neste caso particular, a visão de camaradas favoritos derruba- amadurecer. Quando o furto foi descoberto, o pai ficou furioso, dos logo enfurece a ambos os lados, e os homens começam a arrancou um pau dentre os esteios de sua casa e brandiu-o na armar suas flechas com pontas de bambu envenenadas. Anoitecia, cabeça do filho. O filho arrancou outro pau e atacou o pai. Num e as mulheres e crianças começaram a se lamuriar. Correram instante, todo o pessoal da aldeia tomou partido e pôs-se a então para trás dos homens, que formavam uma barreira prote- malhar alguém. Como a briga se generalizou, sua finalidade tora. Arquejantes, hóspedes e hospedeiros encaravam-se na cla- degenerou, resultando em muitos dedos esmagados, ombros feri- reira. Chagnon observava atrás de uma linha de arqueiros. Com dos e cabeças dilaceradas. Essas brigas podem acontecer em grande alívio, viu os hóspedes juntarem achas em chama, da qualquer duelo, logo que os espectadores vejam correr sangue. fogueira, e se retirarem vagarosamente da aldeia, para a escuri- Os Yanomamo atingem mais um nível na escala de feroci- dão da floresta. dade de suas lutas, que se avizinha do homicídio - a luta de vezes há um estágio intermediário na escala de lutas de lanças. Fazem lanças que consistem em galhos de seis pés de no peito. Os adversários empunham pedras e dão socos comprimento, descascados e decorados com desenhos vermelhos que fazem a vítima sangrar. Outro meio de entretenimento en- e negros, e pontas longas e afiadas. Estas armas podem infligir tre os hóspedes e seus aliados é a disputa a Pares de ferimentos graves, mas não chegam a matar. adversários revezam-se, golpeando-se mutuamente com a parte A guerra é a suprema expressão do estilo de vida dos cega do facão. A mínima escorregadela pode acarretar ferimen- Yanomamo. Diferindo dos Maring, eles parecem não ter nenhum tos sérios e posteriores embates mais violentos. meio de assegurar o estabelecimento de uma trégua. Fazem uma nível mais alto de violência é a luta de clavas. Um ho- série de alianças com os vizinhos, mas as relações intergrupais mem, que tenha certa antipatia por outro, desafia-o a bater-lhe são arruinadas por infinita desconfiança, rumores maliciosos e na cabeça com um pau de oito a dez pés de comprimento, do atos de consumada traição. Já relatei as espécies de diversão formato de um taco de bilhar. desafiador firma seu bastão que os aliados se oferecem mutuamente em suas festas. Supõe-se no chão, apóia-se nele e inclina a cabeça. O adversário segura que essas ocasiões visam consolidar amizades, mas até o melhor seu bastão pela extremidade fina, golpeando violentamente com dos aliados se comporta de modo feroz e agressivo, a fim de não a mais pesada a cabeça que o outro lhe oferece. Tendo deixar dúvidas quanto ao valor da contribuição de cada grupo 79 78</p><p>para a manutenção da aliança. Em vista de todo o aparato, sores lançam, às cegas, uma chuva de flechas sobre a aldeia ostentação e exibição sexual que ocorrem durante uma suposta e fogem apressados para seu território, sem esperar os resulta- festa amistosa, o final é sempre imprevisível, até que o último dos. Ataques dessa natureza são comuns. Durante a permanên- convidado tenha voltado para casa. Todos os participantes estão cia de Chagnon, uma aldeia foi atacada mais de vinte e cinco também perfeitamente cientes de certos incidentes célebres, em vezes em quinze meses. A habilidade de Chagnon para sobre- que aldeias hospedeiras deliberadamente planejaram massacrar viver nestas condições é simplesmente admirável - um grande seus hóspedes, ou então estes, antecipando tal possibilidade, pla- tributo à sua destreza e coragem como etnógrafo. nejaram massacrar os hospedeiros. Em 1950, muitos homens das Por que os Yanomamo lutam tanto? Nem mesmo Prof. aldeias que promoveram as lutas de no peito que acabei Chagnon apresentou razões satisfatórias. Essencialmente, ele acei- de descrever foram vítimas de uma famosa festa de traição. Eles ta as explicações dadas pelos Yanomamo. Dizem eles que a tinham ido a uma aldeia, a uma distância de dois dias de via- maioria dos duelos, ataques e outras manifestações de violência gem, para estabelecer uma nova aliança. Seus hospedeiros dei- decorre de disputas por causa de mulheres. As mulheres são, xaram-nos dançar como se nada houvesse de errado. Mais tarde, decisivamente, uma minoria. Embora um quarto dos homens quando se retiraram para descansar, foram atacados com ma- morra em combate, eles superam numericamente as mulheres na chados e clavas. Doze homens morreram. Os sobreviventes que razão de 120-100. Para piorar as coisas, os chefes e outros fugiram da aldeia foram atacados novamente por um grupo homens notáveis pela bravura podem ter quatro ou cinco espo- armado que se havia escondido na floresta. Vários outros ho- sas ao mesmo tempo. Ao todo, cerca de 25 por cento dos ho- mens morreram e foram feridos. mens possuem duas ou mais esposas. E como os pais compro- Os Yanomamo estão sempre preocupados com traição; fa- metem as filhas menores com as figuras mais velhas, e influentes, zem alianças com base nos últimos sucessos ou fracassos mili- para obter privilégios ou reciprocar seus próprios casamentos, tares, dando menos importância a interesses comuns de natureza todas as mulheres sexualmente maduras, na aldeia, são casadas. pessoal ou econômica. Se uma aldeia sofrer uma derrota militar Isto deixa muitos jovens sem nenhuma fonte de satisfação hete- séria, pode esperar ser atacada repetidas vezes, até por ex-alia- rossexual além do adultério. Jovens ardentes marcam entrevistas dos. A melhor solução para uma aldeia que perdeu muitos ho- com esposas enfadadas ou tímidas, à tarde, e na manhã seguinte mens em combate é ir viver com seus aliados. Mas nenhum encontram-se na floresta, quando muita gente deixa a aldeia grupo dá asilo a outro por razões sentimentais. Em troca de para defecar e urinar. alimentação e abrigo temporários, os aliados esperam que os Um marido Yanomamo compartilha prazerosamente uma de protegidos lhes façam presente de suas mulheres. suas mulheres com irmãos mais novos ou amigos. Mas os ho- Emboscadas, festas traiçoeiras e ataques secretos noturnos mens que se aproximam das mulheres por este processo de em- são estas as características da arte militar dos préstimo ficam em débito com o marido e terão de pagar-lhe com Depois de ultrapassar a fase de exibição e de duelos, seu objetivo trabalhos ou com mulheres capturadas em lutas. Um jovem que é matar tantos inimigos masculinos e capturar tantas mulheres pretenda ter uma boa reputação não deve colocar-se em posi- inimigas quanto possível, com o mínimo de perdas para si mes- ção de dependência: em vez disso, prefere atrair e coagir as mos. Num ataque, os guerreiros Yanomamo aproximam-se sor- mulheres casadas da aldeia a manter encontros clandesti- rateiramente do inimigo, à noite, sem acender tochas e, tiritando nos. Já que as meninas Yanomamo ficam noivas mesmo de frio, esperam o amanhecer na úmida e sombria floresta. Num antes de menstruarem, todos os rapazes cobiçam as esposas de ato extremo de valentia, um guerreiro pode rastejar até a aldeia seus vizinhos. Os maridos se enfurecem quando descobrem que inimiga e matar alguém que esteja dormindo numa rede. Ou, estão sendo enganados, não exatamente por ciúmes, mas porque então, os atacantes se contentam em matar homens que acom- o adúltero deveria tê-lo compensado com presentes e serviços. panham as mulheres que vão apanhar água no rio. Se o inimigo A captura de mulheres durante os ataques às aldeias ini- estiver alerta e se deslocar somente em grandes grupos, os agres- migas é um dos objetivos principais da guerra dos Yanomamo. 80 81</p><p>Logo que um grupo de atacantes vê-se a salvo da perseguição O aspecto enganador do infanticídio e da arte da guerra dos inimigos, seus guerreiros violentam as mulheres cativas. Ao entre os Yanomamo é a aparente ausência de pressão demo- chegarem às aldeias, entregam-nas aos homens que aí ficaram gráfica e a pretensa superabundância de recursos. Como fontes e, mais uma vez, elas são violentadas. Mas depois de muita principais de calorias eles têm as bananas e pacovas, que cres- argumentação e disputa, os vitoriosos concordam que as cativas cem em suas plantações nas florestas. Do mesmo modo que os sejam entregues como esposas a determinados guerreiros. Maring, devem queimar a floresta para iniciar estas plantações. Uma das mais terríveis histórias sobre esse povo foi conta- Mas bananas e pacovas não são como inhames e batatas-doces. da por Helena Valero, uma brasileira raptada durante um ata- Ao contrário, são plantações perenes que dão alto rendimento que Yanomamo, aos dez anos de idade. Logo depois de sua por unidade de trabalho consumido e por vários anos consecuti- captura, seus captores começaram a brigar entre si, e a facção vos. E como os Yanomamo vivem na maior floresta tropical do vitoriosa matou todas as criancinhas da aldeia, esmagando-lhes mundo, suas pequenas queimadas não chegam a constituir uma as cabeças nas pedras, e carregou com as mulheres. Helena Va- ameaça de destruição das árvores. Uma aldeia Yanomamo típica lero passou todo o resto de sua infância e juventude fugindo de comporta de 100 a 200 habitantes, população que pode culti- uma tribo para ser aprisionada por outra e, então, fugir de var facilmente as bananas e pacovas necessárias em plantações novo e esconder-se de seus perseguidores, na mata, para de bem próximas, sem precisar deslocar-se. No entanto, os Yano- novo ser capturada e destinada a diferentes maridos. Foi duas mamo estão sempre mudando-se, separando-se e transferindo vezes ferida por flechas envenenadas com curare e teve vários suas plantações com muito maior do que qualquer filhos antes que, finalmente, pudesse escapar, alcançando uma outro povo selvagem da floresta amazônica. missão na região do rio Orenoco. Chagnon afirma que eles assim agem em virtude de suas A escassez de mulheres, o compromisso das meninas, o lutas por mulheres e por estarem sempre em guerra. Creio que adultério, a poliginia e a captura de mulheres, todos esses ele- seria mais correto afirmar que eles lutam por mulheres e estão mentos parecem apontar o sexo como a causa central da guerra sempre em guerra justamente pelo fato de se mudarem tanto. entre os Contudo, há um fato curioso que esta Os Yanomamo não são agricultores típicos do sistema de derru- teoria não pode explicar: a escassez de mulheres é criada artifi- bar e queimar. Seus ancestrais eram caçadores nômades e co- cialmente. Os Yanomamo sempre matam uma grande percenta- lhedores de frutos que viviam longe dos rios, em pequenos ban- gem dos bebês femininos, não somente por negligência seletiva, dos esparsos que dependiam dos produtos da floresta virgem mas através de atos específicos de assassinato. como fontes principais de subsistência. Podemos estar certos Os homens exigem que seu primeiro filho seja homem. As mulheres matam as filhas até que possam apresentar um bebê de que só em tempos mais recentes eles começaram a depender masculino. A seguir, crianças de ambos os sexos podem ser de bananas e pacovas como alimento básico, já que tais espécies assassinadas. As mulheres matam os filhos estrangulando-os com foram trazidas ao Novo Mundo pelos portugueses e espanhóis. cipós, firmando-se nas duas extremidades de um pau colocado Até há bem tempo os principais agrupamentos de índios na garganta da criança, batendo-lhe com a cabeça contra uma americanos da Amazônia localizavam-se ao longo dos grandes árvore, ou simplesmente abandonando o récem-nascido na flo- rios e seus tributários. Tribos como as dos Yanomamo viviam resta. O efeito imediato do infanticídio e das formas mais be- em lugares remotos, longe da vista das populações ribeirinhas, nignas de seleção sexual é uma percentagem juvenil de 154 ho- que tinham grandes aldeias permanentes e canoas que lhes per- mens para 100 mulheres. Dadas as dificuldades que os homens mitiam alta mobilidade. Lá pelos fins do século XIX, as últimas enfrentam para conseguir uma esposa, deve haver uma força das grandes aldeias indígenas ribeirinhas foram destruídas, em muito poderosa - uma força mais poderosa que o sexo do comércio da borracha e da expansão da colo- que os leva a destruir a própria fonte e objeto de seus desejos e nização brasileira e venezuelana. Os únicos índios que sobrevi- de suas lutas. veram na extensa área amazônica foram os "andarilhos", cujo 82 83</p><p>nomadismo os protegeu dos rifles dos homens brancos e de suas Os Yanomamo têm duas palavras para significar fome doenças. uma denota o estômago vazio, enquanto a outra denota o estô- Até os dias atuais, os Yanomamo revelam sinais inconfun- mago cheio, mas ansiando por carne. A fome de carne é um díveis de seu recente nomadismo. Não sabem construir canoas tema constante das canções e poesias, e a carne é o centro de nem remar, embora suas principais aldeias estejam às margens todos os seus festivais. Em seu relato de cativeiro, Helena Valero ou nas proximidades dos rios Orenoco e Mavaca. Pescam muito conta que um dos poucos meios com que contava uma mulher pouco, se bem que essas águas sejam bastante piscosas. Não co- para fazer com que seu homem a bajulasse, era queixar-se de nhecem a cerâmica, embora as bananas sejam melhores quando sua pouca habilidade como caçador. Os caçadores deviam afas- cozidas. E, finalmente, não sabem fazer machados de pedras, tar-se cada vez mais das aldeias para não voltar com as mãos apesar de dependerem dos machados de aço, para fazer suas vazias. Expedições de dez ou doze dias eram necessárias para plantações. poder trazer um número substancial de animais grandes. Chag- Vamos fazer um relato um tanto especulativo da moderna non conta ter ido com uma dessas expedições caçadoras, que história desse povo. Os nômades Yanomamo que viviam nas durou cinco dias, numa área que, já há algumas décadas, não distantes montanhas entre a Venezuela e o Brasil começaram tinha sido explorada pela caça, sem que se conseguisse obter por experimentar o plantio de bananas e pacovas. Estes pro- carne suficiente nem mesmo para os membros da expedição. dutos lhes garantiram um grande aumento de calorias per capita. Visto que uma aldeia típica Yanomamo situa-se a distância su- Como resultado imediato, a população começou a crescer perior a um dia de viagem da outra, expedições mais prolon- atualmente constituem um dos mais populosos grupos indígenas gadas fatalmente cruzavam e recruzavam territórios de caça utili- de toda Amazônia. Mas bananas e pacovas têm um grave zados por aldeias vizinhas. Estas aldeias competiam pela mesma defeito: são notoriamente deficientes em proteínas. A princípio, fonte escassa de recursos, que eram proteínas, e não mulheres. como nômades e caçadores, os Yanomamo satisfaziam facilmente Prefiro esta explicação para o enigma do homem selvagem, suas necessidades protéicas alimentando-se de animais selva- pois ela permite compreender, em termos práticos, porque as gens, inclusive o tapir, veados, queixadas, tamanduás, tatus, ma- mulheres Yanomamo colaboram ativamente para sua própria cacos, pacas, cotias, crocodilos, lagartos, cobras e tartarugas. Com exploração, matando e negligenciando mais bebês femininos que o aumento de densidade da população, decorrente da eficiência masculinos. verdade que os homens preferem filhos a filhas. das colheitas, esses animais passaram a ser caçados com maior Uma mulher que desaponta o marido por não lhes criar filhos intensidade. Como é sabido, as populações de animais selvagens cairá certamente em desfavor, arriscando-se a ser mais espanca- são facilmente dizimadas ou afugentadas pela caça intensiva. An- da. No entanto, creio que as Yanomamo poderiam facilmente tes do contato com os brancos, as tribos amazônicas de popula- reverter a proporção de sexos para favorecer as mulheres contra ção densa evitavam tal explorando a pesca em os homens, se lhes interessasse fazê-lo. Elas dão à luz na flo- suas moradas ribeirinhas. Contudo, os Yanomamo não agiam resta, longe das aldeias, sem a presença de nenhum homem. Isto assim. significa que poderiam praticar infanticídio seletivo contra os Jane e Eric Ross, especialistas em temas amazônicos, suge- homens, com impunidade, depois do nascimento do primeiro rem que a escassez de proteínas, e não o excesso de libidina- filho. Além disso, elas têm inúmeras oportunidades de praticar a negligência seletiva contra os filhos, sem nenhum risco de des- gem, seria o fator responsável pela constante separação e fre- coberta ou punição por parte dos maridos. lutas entre as aldeias Yanomamo. Eu concordo. Os Posso citar, pelo menos, um bom exemplo de como as mu- Yanomamo "comeram" a floresta - não suas árvores, mas seus lheres poderiam exercer absoluto controle sobre a proporção de animais - e estão sofrendo as em termos de sexos, no próprio local de nascimento. Chagnon conta que uma mais numerosas guerras, traições, infanticídio e de uma vida vez viu "uma gorducha e bem nutrida jovem mãe" comendo sexual brutal. (provavelmente bananas amassadas). Ao lado dela estava seu 84 85</p><p>filho pequeno de dois anos, "emaciado, sujo, quase morto de seres humanos homem ou mulher para ser e feroz. fome", tentando alcançar um pouco do alimento. Chagnon per- Na minha opinião, há duas estratégias clássicas pelas quais a guntou à mãe por que não alimentava o filho, e ela explicou que sociedade torna o homem brutal. Uma delas é o incentivo à ele havia tido uma diarréia muito forte alguns dias antes e então brutalidade, recompensando com alimentos, conforto e bem-estar deixara de alimentar-se. Em o leite dela secara as personalidades mais brutais. A outra, é a concessão de maio- e não havia nada que lhe pudesse dar. Nenhum outro alimento res recompensas e privilégios sexuais às personalidades mais serve, disse, porque "a criança não saberia Chagnon agressivas. Destas duas estratégias a segunda é a mais eficaz, insistiu para que ela "repartisse sua papa com a criança". O porque a privação de alimento, conforto e bem-estar é, militar- pequeno comeu a papa gulosamente, o que levou Chagnon a mente, contraproducente. Os Yanomamo precisam de matado- concluir que "ela estava deixando a criança morrer lentamente res altamente motivados, mas devem ser fortes e robustos, se de fome". forem destinados a funções sociais redentoras. Sexo é a força A prática e habitual razão para a sistemática matança e mais efetiva no condicionamento de personalidades brutais, por- negligência com relação às meninas não pode ser simplesmente que a privação sexual exalta mais que diminui a capacidade de o fato de os homens forçarem as mulheres a assim proceder. Há luta. muitas oportunidades, como ilustra o exemplo que acabo de Aqui, meu argumento se choca com a pseudociência con- dar, de evadir-se e burlar os desejos masculinos a esse respeito. cebida à imagem dos representantes do nosso chauvinismo tribal, Realmente, o principal fundamento do comportamento das mu- tais como Sigmund Freud, Konrad Lorenz e Robert Ardrey. A lheres Yanomamo para com as filhas é o seu próprio interesse concepção que nos foi transmitida por eles é a de que os homens em criar mais meninos que meninas. Este interesse tem origem são instintivamente mais agressivos e ferozes porque o papel do no fato de que já existe muito Yanomamo em relação à sua sexo masculino é, naturalmente, um papel agressivo. Mas a capacidade de explorar seu habitat. Uma proporção maior de conexão entre sexo e agressão é tão falsa quanto a que existe homens em relação a mulheres significa mais proteínas per capita entre a guerra e o infanticídio. sexo é uma fonte de energia (porque os homens são os caçadores) e um crescimento menor agressiva e de comportamento brutal simplesmente porque o da população. Também significa mais guerras, mas para os sistema social masculino e chauvinista expropria as recompensas Yanomamo, assim como para os Maring, guerra é o preço pago sexuais, com elas aquinhoa os machos agressivos e nega-as aos por criar mais homens que mulheres. Os Yanomamo pagam elementos submissos e pacíficos. mais caro por esse privilégio, que degradaram a capacidade Francamente, não vejo nenhuma razão pela qual o mesmo de subsistência do seu habitat. tipo de brutalização não possa ser imposto às mulheres. O mito Algumas liberacionistas, que reconhecem o papel da guerra da fêmea instintivamente passiva, terna, maternal, é simples- no sexismo, insistem, contudo, que as mulheres são vítimas de mente um eco repetido pela mitologia chauvinista do macho a conspiração masculina, porque só aos homens é ensinado o ma- respeito da brutalidade instintiva do sexo masculino. Se se per- nejo de armas mortíferas. Por que, querem elas saber, não se mitisse às mulheres masculinizadas e bravas ter relações sexuais ensinam às mulheres as táticas e a arte dos guerreiros? Uma com os homens, não teríamos a menor dificuldade em fazer todo aldeia Yanomamo, por exemplo, não seria mais inexpugnável se o mundo crer que as mulheres são naturalmente agressivas e ambos, homens e mulheres, empunhassem arcos e clavas, do que brutais. outra aldeia em que as mulheres simplesmente se escondessem Se o sexo fosse utilizado para incentivar e controlar o com- nas sombras esperando seu destino? portamento agressivo, então se deveria concluir que ambos os Por que o esforço de brutalidade deve concentrar-se no sexos não simultaneamente, ser brutalizados num mesmo homem? Por que não ensinar homens e mulheres a empregar a grau. Um ou outro deve ser treinado para ser o dominante. Não tecnologia da agressão? Estas são questões importantes. Creio podem ser ambos. Brutalizar a ambos é convidar a uma literal que a resposta está vinculada ao problema de treinamento dos guerra de sexos. Entre os Yanomamo isto equivaleria a guerra 86 87</p><p>armada entre homens e mulheres pelo controle do poder, como uma recompensa pelas suas façanhas no campo de batalha. Em outras palavras, para fazer do sexo uma recompensa por bravura, um dos sexos deve aprender a ser covarde. Estas considerações levam-me a uma pequena emenda do paradigma dos liberacionistas: "Anatomia não é destino". A ana- tomia humana é destino sob certas condições. Quando a guerra era um dos meios efetivos de controle de população, e quando a tecnologia da guerra consistia primordialmente no manuseio de armas primitivas, os estilos de vida chauvinistas do homem eram necessariamente predominantes. Como atualmente nenhu- ma dessas condições é verídica, os liberacionistas andam certos ao predizerem o declínio dos estilos chauvinistas masculinos de Potlatch vida. Acrescentaria que a marcha desse declínio e as probabili- dades da igualdade sexual dependem da eliminação das forças convencionais militares e policiais. Esperemos que isto ocorra como resultado da eliminação das forças policiais e militares, e não como decorrência do aper- feiçoamento de táticas de guerra que independam de força física. Deveríamos ter ido um pouco além dos Yanomamo, se o resul- U tado final da revolução sexual fosse uma posição definida para M dos mais enigmáticos estilos de vida visto no museu de a mulher, quer no comando de pelotões de clavas, ou nos postos etnografia mundial traz a marca de um estranho desejo conhe- de comando nucleares. cido por "compulsão para o prestígio". Certos povos parecem ter fome de aprovação, como outros têm fome de carne. O pro- blema não é sua ânsia de prestígio, mas é que, ocasionalmente, esse desejo se torna tão exacerbado que as pessoas começam a competir umas com as outras por prestígio, como outros com- petem por terra, por proteína ou sexo. Algumas vezes esta com- petição torna-se tão feroz que é como se fosse, por si mesma, um fim. Toma então a aparência de uma obsessão totalmente divorciada e mesmo inteiramente oposta a qualquer racionali- zação de seus custos materiais. Vance Packard tocou na corda sensível quando descreveu os Estados Unidos como uma nação de competidores por status. Muitos americanos parecem passar a vida inteira procurando escalar a pirâmide social simplesmente para impressionar os outros. Parecemos mais interessados em trabalhar para que nos admirem pela nossa riqueza do que pela riqueza propriamente dita, que muitas vezes consiste em bugigangas cromadas ou ob- jetos inúteis e incômodos. É espantoso como o povo se esforça para obter o que Thorstein Veblen descreve como a falsa emo- 88 89</p><p>ção de ser tomado por membro de uma classe que não tem Pretendo demonstrar aqui que o potlatch dos Kwakiutl de trabalhar. As frases mordentes de Veblen "consumo eviden- resulta de caprichos maníacos, mas de definidas condições eco te" e "desperdício evidente" traduzem fielmente a sensação do nômicas e ecológicas. Quando tais condições estão ausentes peculiar e intenso desejo de equiparar-se aos vizinhos que está a necessidade de ser admirado e o impulso para o prestígio por trás das incessantes alterações introduzidas pelas indústrias expressam por práticas de estilo de vida completamente dife de automóveis, de eletrodomésticos e de roupas. rentes. O consumo modesto substitui o consumo evidente, No início deste século, os antropologistas surpreenderam- desperdício evidente é proibido e não existe competição se com a descoberta de que certas tribos primitivas se compro- status. metiam com o consumo e o desperdício evidentes num grau Os Kwakiutl viviam em casas de madeira, em aldeias pró não atingido nem pelas mais perdulárias economias de consu- ximo à praia, no meio de florestas de cedros e pinheiros. Pes mo modernas. Homens ambiciosos, famintos de status, compe- cavam e caçavam em enormes pirogas no labirinto de canai tiam com outros pela aprovação, oferecendo fabulosas festas. e fiordes da ilha de Vancouver. Sempre ansiosos por atrai Os rivais promotores das festas julgavam-se mutuamente pela mercadores, tornavam famosas suas aldeias levantando na quantidade de alimentos oferecidos, e a festa só era conside- praias os troncos de árvores esculpidos que erroneamente cha rada um sucesso se os convidados pudessem comer até ficarem mamos de "mastros totêmicos". Os entalhes destes mastros sim entorpecidos, quando então cambaleavam rumo à floresta, pro- bolizavam os títulos ancestrais a que aspiravam os chefes vocavam o vômito com os dedos enfiados na garganta e voltavam aldeia. para recomeçar a comilança. Um chefe Kwakiutl nunca se satisfaz com o respeito qu A forma mais bizarra de conquistar status foi descoberta recebe de seus adeptos e dos chefes vizinhos. Está sempre inse entre os índios americanos que outrora habitavam as regiões guro quanto a seu status. Na verdade, os títulos familiares costeiras do sul do Alasca, da Colúmbia Britânica e Washing- que aspira pertenciam a seus antepassados. Mas há outros gru ton. Ali os caçadores de status praticavam o que nos parece pos que podem descender dos mesmos antepassados e que estã uma forma maníaca de consumo e desperdício evidentes co- aptos a disputar com ele o lugar de chefia. Todo chefe nhecida por potlatch. O objetivo de um potlatch era jogar fora portanto, na obrigação de justificar e validar suas pretensõe ou destruir mais riquezas que as do rival. Se o ofertante do à chefia. A maneira utilizada para fazer esta justificação é potlatch era um chefe poderoso, procurava humilhar seus rivais adoção do potlatch. potlatch é oferecido por um chefe hos e ganhar a eterna admiração de seus homens destruindo ali- pedeiro e seus seguidores a um chefe convidado e seus partida mentos, roupas e dinheiro. Muitas vezes ele chegava mesmo a rios. O objetivo do potlatch é mostrar ao conviva que o anf queimar a própria casa. trião está verdadeiramente intitulado à posição de chefe e qu Potlatch tornou-se famoso através do livro de Ruth Bene- foi mais enaltecido que ele. Para provar isso, o chefe dict, Patterns of Culture, que o descreve entre os Kwakiutl, deiro presenteia o convidado e seus seguidores com muitas dá aborígenes que habitam a ilha de Vancouver. Benedict pensou divas valiosas. Os convidados podem depreciar as oferendas que o potlatch fosse parte de um estilo de vida megalomaníaco, prometer organizar um potlatch no qual seu chefe provaria característico da cultura dos Kwakiutl. Era a "taça" da qual maior que o anfitrião, retribuindo-lhe com maior número Deus lhes dera a beber. Desde então, o potlatch tem sido um mais valiosos presentes. monumento à crença de que as culturas são criações de forças Os preparos de um potlatch exigem o acúmulo de peix inescrutáveis e de personalidades desequilibradas. A leitura de fresco e seco, de óleo de peixes, morangos, peles de animai Patterns of Culture leva os especialistas em várias áreas a con- cobertores e outros valores. No dia determinado, os convidado cluir que o impulso para o prestígio anula, em termos práticos remavam para a aldeia do anfitrião e dirigiam-se a sua casa e comuns, todas as tentativas para explicar os estilos de vida. Lá se empanturravam com salmão e morangos silvestres, 90 9</p><p>quanto dançarinos, com máscaras de ursos divinos e de pássa- envergonhando profundamente os convidados e causando grande ros, os entretinham. alegria aos hospedeiros. anfitrião e seus seguidores empilhavam cuidadosamente Segundo Ruth Benedict, o costume do potlatch resultava os bens a serem distribuídos. Os visitantes fitavam sombria- da obsessiva ânsia de status dos chefes Kwakiutl. "Julgados mente o anfitrião, enquanto ele se pavoneava de um lado para pelos padrões de outras culturas, os discursos de seus chefes outro, vangloriando-se pela profusão de coisas que lhes ia dar. eram desabrida megalomania", escreveu ela. "O objetivo de todos Ao contar os vasos de óleo de peixe, as cestas cheias de mo- os atos do Kwakiutl era mostrar-se superior ao rival." Em sua rangos e as pilhas de cobertores, comentava com ironia a po- opinião, todo o sistema econômico aborígene do Noroeste do breza de seus rivais. Carregados de presentes, os hóspedes, Pacífico "estava a serviço dessa obsessão". finalmente, ficavam livres para remar de volta à sua aldeia. Creio que Benedict se enganou. O sistema econômico dos Instigados ao extremo, o chefe e seus adeptos prometiam des- Kwakiutl não estava a serviço da competição por status; pelo forrar-se. Isto só podia ser feito convidando os rivais para outro contrário, essa competição é que servia ao sistema econômico. potlatch e obrigando-os a receber uma quantidade ainda maior Todos os ingredientes básicos da prodigalidade dos Kwa- de presentes valiosos. Considerando todas as aldeias Kwakiutl kiutl, exceto em seus aspectos destrutivos, estão presentes nas como uma simples unidade, os potlatch um inces- sociedades primitivas amplamente dispersas pelo mundo afora. sante fluxo de prestígio e de bens em direções opostas. Reduzido à sua essência, o potlatch é uma festa competitiva, Um chefe ambicioso e seus comandados promoviam, ao mes- um mecanismo quase universal para assegurar a produção e a mo tempo, potlatch rivais em múltiplas e diferentes aldeias. Espe- distribuição de riquezas entre povos que ainda não conseguiram cialistas em contagem de mercadorias relacionavam tudo que ia ter uma classe governante. ser distribuído em cada aldeia, de modo a equilibrar a distri- A Melanésia e a Nova Guiné apresentam a melhor opor- buição. Se um dos chefes manobrava para sobrepujar o outro tunidade para o estudo de festas competitivas sob condições re- em determinada aldeia, deveria depois enfrentar os adversários lativamente primitivas. Em toda esta região, existem os chama- numa aldeia diferente. dos "figurões", que devem sua superioridade ao grande número Num potlatch o anfitrião dizia coisas assim: "Eu sou a de festas que durante a vida. Cada festa deve ser única árvore frondosa. Tragam seu contador e em vão ele ten- precedida de um intenso esforço por parte de um aspirante a tará contar tudo que tenho para distribuir." Então os partidá- figurão para acumular a riqueza necessária. rios do chefe pediam silêncio aos hóspedes, com esta advertên- Entre os povos de língua Kaoka, das Ilhas Salomão, por cia: "Não façam barulho! Fiquem quietos ou causaremos uma exemplo, o indivíduo faminto de status começa por fazer com avalanche com as montanhas de riquezas de nosso chefe." Em que sua mulher e filhos cultivem maiores plantações de inha- alguns potlatch as cobertas e outros objetos de valor não eram me. Como foi descrito pelo antropólogo australiano Ian Hog- doados, mas destruídos. vezes, anfitriões bem sucedidos de- bin, o Kaoka que quer tornar-se um figurão reúne os parentes cidiam promover as "festas da graxa", nas quais se derrama- e companheiros de idade para ajudá-lo a pescar. Mais tarde, vam grandes quantidades de óleo de cachalote no fogo aceso pede aos amigos que lhe dêem porcas e com elas aumenta o no centro da Enquanto as labaredas estrepitavam, a fu- seu rebanho. medida que os vão nascendo, ele maça gordurosa e escura inundava o aposento. Os convidados alimenta outros animais dos vizinhos. Logo os parentes e amigos ficavam sentados, impassíveis, ou mesmo queixando-se da fria- sentem que o jovem vencerá na vida. suas grandes plan- gem do ar, enquanto o dissipador blasonava: "Eu sou o único tações e seu grande rebanho de porcos e então redobram esfor- na terra o único no mundo inteiro que faz subir esta fu- para que a festa vindoura seja memorável. Quando se tor- maça durante todo o ano diante das tribos convidadas." Em nar um figurão, querem que o jovem candidato se lembre dos algumas festas dessa natureza, as chamas alcançavam o madei- que o ajudaram. Finalmente, todos se reúnem e constroem uma ramento do teto e a casa inteira transformava-se numa oferenda, casa especial. Os homens partem para uma última pescaria. As 92 93</p><p>mulheres colhem inhames e apanham lenha, folhas de bananas perspectivas econômicas. Isto tem o efeito de reunir o esforço e cocos. À medida que chegam os convidados (como acontece de produção de maiores porções da população do que as que nos potlatch), a riqueza é empilhada e posta em exposição para poderiam ser mobilizadas por qualquer das aldeias isoladamente. todos contarem e admirarem. Finalmente, as festas competitivas dos figurões atuam como um No dia da festa promovida por um jovem chamado Atana, compensador automático das flutuações da produtividade entre Hogbin contou os seguintes itens: 250 libras de peixe seco, uma série de aldeias que ocupam diferentes microambientes - 3.000 bolos de inhame e de coco, 11 grandes bacias de pudim litoral, lagoa ou planaltos. Automaticamente, as maiores festas de inhame e 8 porcos. Tudo isso era o resultado do trabalho em qualquer ano serão promovidas por aldeias que tiveram extra organizado por Atana. Mas alguns dos hóspedes, preven- condições mais favoráveis à produção, no tocante a chuvas, tem- do uma ocasião importante, trouxeram presentes para serem peratura e umidade. acrescentados às dádivas. Sua contribuição elevou o total de Todos esses pontos se aplicam aos Kwakiutl, cujos chefes peixe para 300 libras, o de bolos para 5.000, 19 bacias de são como os figurões melanésios, com a exceção de que atuam pudins e 13 porcos. Atana tratou de dividir essa riqueza em com um processo tecnológico muito mais produtivo num am- 257 porções, uma para cada pessoa que o havia ajudado ou biente mais rico. Como os figurões, eles competiam uns com que lhe havia trazido presentes, recompensando a uns mais que os outros para atrair homens e mulheres a suas aldeias. Os a outros. "Só as sobras foram deixadas para Atana", anota maiores chefes eram os melhores provedores e os que promo- Hogbin. Isto é normal para os caçadores de status em Guadal- viam os maiores potlatch. Os partidários do chefe comparti- canal, onde se diz: "O promotor da festa fica com os ossos lhavam indiretamente de seu prestígio e o ajudavam a alcançar e os bolos velhos; a carne e a gordura vão para os outros." honras mais altas. Os chefes mandavam esculpir os "postes to- Os dias festivos e as doações do figurão, como as dos têmicos" que eram, de fato, anúncios grandiosos proclamando, chefes dos potlatch, nunca terminam. Sob ameaça de ser re- por sua altura e arrojados desenhos, que ali estava a aldeia duzido ao status do homem comum, cada figurão é obrigado de um poderoso chefe que poderia empreender grandes traba- a empenhar planos e preparativos para a próxima festa. E lhos e resguardar seus adeptos da fome e da doença. Invocan- como existem vários figurões por aldeia e comunidade, tais pla- do direitos hereditários sobre as efígies de animais esculpidos nos e preparativos as vezes levam a complexas manobras com- nos totens, os chefes queriam realmente declarar que eram petitivas pela lealdade de parentes e vizinhos. O figurão trabalha grandes provedores de alimentos e de conforto. Potlatch era o mais duramente, preocupa-se consome menos que qual- meio de dizer aos rivais que se manifestassem ou se calassem. quer um. Prestígio é sua única recompensa. A despeito do caráter francamente competitivo do potlatch, O figurão pode ser descrito como um empresário os ele servia, do ponto de vista aborígene, para transferir alimen- russos chamam-no Stakhanovites - que presta serviços im- tos e outros bens dos centros de alta produtividade a aldeias portantes à sociedade por elevar os níveis de produção. Em menos favorecidas. Poderia mesmo dizê-lo mais categorica- da fome de status do figurão, muita gente traba- lha mais duramente e produz mais alimentos e outros bens. mente: dado o seu caráter competitivo, tais transferências fi- Sob condições em que todos têm igual acesso às fontes cavam asseguradas. E como havia flutuações imprevisíveis na de subsistência, festas competitivas servem ao propósito prático pesca e na colheita de frutos silvestres e vegetais, o potlatch de evitar que a força de trabalho caia a níveis de produtivi- entre as aldeias era vantajoso, do ponto de vista da totalidade dade que não ofereçam margem de segurança durante crises da população. Quando os peixes desovavam em riachos vizi- como as guerras e más colheitas. Além disso, já que não há nhos e os morangos amadureciam ao alcance da mão, os hós- nenhuma instituição política formal capaz de promover a inte- pedes do ano anterior tornavam-se os anfitriões do novo ano. gração das aldeias independentes numa estrutura econômica No idioma aborígene potlatch significava que, anualmente, os comum, as festas competitivas criam uma extensa cadeia de que tinham doavam e os que não tinham recebiam. Para co- 94 95</p><p>mer, tudo que um deserdado tinha a fazer era admitir que o chefe rival era um figurão. Kwakiutl representam uma forma de trocas econômicas conhe- cidas por redistribuição. Isto é, eles reúnem os resultados do Por que as bases práticas do potlatch escaparam à percep- ção de Ruth Benedict? Os antropologistas só começaram a es- esforço produtivo de muitos indivíduos e então redistribuem a tudar o potlatch muito depois de terem os aborígenes do No- riqueza acumulada em quantidades diferentes para diferentes classes de pessoas. Como já disse, o grande figurão e redis- roeste do Pacífico entrado em relações comerciais e trabalhis- tribuidor Kaoka trabalha mais duramente, preocupa-se mais e tas com os comerciantes e colonizadores russos, ingleses, consome menos que qualquer outra pessoa na aldeia. O mesmo canadenses e americanos. Esse contato logo deu origem a não acontece com o chefe redistribuidor Kwakiutl. Os grandes epidemias de varíola e de outras doenças européias que dizi- chefes dos potlatch exercem as funções de empresários e de maram grande parte da população nativa. A população dos gerentes, necessárias à realização de um grande potlatch, mas Kwakiutl, por exemplo, caiu de 23.000, em 1836, para 2.000, além de uma ou outra pescaria ou ocasional caça ao leão- em 1886. O declínio automaticamente intensificou a competição marinho, deixam o trabalho pesado a seus seguidores. Os maio- pelo poder. Ao mesmo tempo, os salários pagos pelos europeus res chefes do potlatch só têm alguns cativos de guerra traba- garantiram um acervo de bens sem precedente na cadeia dos lhando para eles como escravos. Do ponto de vista dos privi- potlatch. Da Hudson's Bay Company, os Kwakiutl recebiam légios de consumo, os chefes Kwakiutl começaram a reverter milhares de mantas em troca de pele de animais. Nos grandes a fórmula Kaoka, guardando para si parte da "carne e gordu- potlatch, essas mantas substituíam alimentos, como o mais im- ra" e deixando "ossos e bolos velhos" para seus seguidores. portante item a ser doado. A reduzida população logo se en- Seguindo a linha de evolução a partir de Atana, o grande controu de posse de mais cobertas e outros bens do que po- empresário empobrecido, aos semi-hereditários chefes Kwakiutl, deria consumir. No entanto, a necessidade de atrair adeptos chegaremos às sociedades estatais, governadas por reis heredi- tornou-se maior que nunca, dada a escassez de mão-de-obra. tários que não executam nenhum trabalho agrícola ou industrial Assim, os chefes dos potlatch ordenavam a destruição de suas e, no entanto, guardam para si a maior e melhor parte de propriedades na esperança de que essas demonstrações espe- todas as coisas. Ao nível imperial, enaltecidos governantes com taculares fizessem o povo voltar às aldeias vazias. Mas estas poderes divinos mantêm seu prestígio construindo grandiosos eram as práticas de uma cultura agonizante, lutando para adap- palácios, templos e megamonumentos, e fazendo valer seus di- tar-se a uma nova série de condições políticas e econômicas; reitos hereditários contra todos os desafiadores, não por meio mal lembravam os potlatch dos tempos primitivos. de potlatch, mas pela força das armas. Invertendo o sentido Os festejos competitivos observados, narrados e imagina- evolutivo, podemos ir dos reis aos chefes dos potlatch e figu- dos pelos participantes são totalmente diferentes dos vistos co- e aos passados estilos de vida igualitários em que todas mo uma adaptação a imperativos e oportunidades materiais. as demonstrações competitivas e evidente consumo individual Na encenação social, a idéia que têm os participantes sobre desaparecem e qualquer um, bastante, tolo para se vangloriar estilo de vida é a de que as festas competitivas nada mais sobre a própria grandeza, será acusado de feitiçaria e morto a são que manifestações da insaciável ânsia de prestígio do figu- pedradas. rão e do chefe do potlatch. Mas, do ponto de vista seguido Nas sociedades realmente igualitárias que sobreviveram o neste livro, a insaciável ânsia de prestígio é apenas uma ma- bastante para serem estudadas por antropologistas, não ocorre nifestação das festas competitivas. Toda sociedade utiliza-se da a redistribuição de bens sob a forma de festas competitivas. necessidade de mas nem toda sociedade associa o Em vez disso, predomina a troca de bens conhecida por reci- prestígio ao sucesso de festas competitivas. procidade. Reciprocidade é o termo técnico para uma troca eco- As festas competitivas como fonte de prestígio devem ser nômica que se realiza entre dois indivíduos, na qual nenhum vistas em função de perspectiva de evolução, para que possam deles especifica precisamente o que espera receber e nem quan- ser cabalmente compreendidas. Figurões como Atana ou chefes do o espera. Aparentemente, a troca recíproca não parece 96 97</p><p>de fato uma troca. A expectativa de uma das partes e a obrigação da outra estão subentendidas. Uma delas pode guém, realmente, deva alguma coisa. Pode-se afirmar que um continuar recebendo por algum tempo, sem nenhuma re- estilo de vida é baseado na reciprocidade ou em algo seme- sistência da outra e nenhum constrangimento da primeira. lhante, quando não se usa agradecer. Nas sociedades verdadei- Contudo, a transação não pode ser considerada como ramente igualitárias, não é de bom tom agradecer abertamente o recebimento de bens materiais ou de serviços. Entre os Se- um presente. Há uma expectativa implícita de recompensa, e se o equilíbrio entre os dois indivíduos afastar-se muito de um mai da Malásia Central, por exemplo, ninguém jamais expressa termo médio, o doador logo começará a queixar-se e a taga- gratidão pela carne que um caçador distribui, em quantidades relar. Todos passam a se preocupar com a saúde e a sanidade exatamente iguais, entre seus companheiros. Robert Dentan, que mental do captador e, se a situação não mudar, o povo começa viveu com os Semai, aprendeu que dizer obrigado era muito rude porque poderia sugerir que se estava achando seu pedaço a pensar que ele está possuído de maus espíritos ou está prati- cando feitiçaria. Nas sociedades igualitárias, os indivíduos que de carne maior que o dos outros, ou que se estava surpreen- dido com o sucesso e com a generosidade do caçador. constantemente violam as leis de reciprocidade podem ser con- siderados psicóticos e, como tal, uma ameaça à comunidade. Em contraste com a evidente exibição do figurão Kaoka, Podemos ter uma idéia do que significam as trocas recí- com a fanfarronice dos chefes do potlatch e com nossa própria procas, pensando nas maneiras pelas quais permutamos bens e ostentação de símbolos de status, os Semai têm um estilo de serviços com nossos amigos íntimos ou parentes. Não se espera vida no qual aqueles que alcançam maior sucesso devem ser os de irmãos, por exemplo, que calculem o valor monetário pre- mais discretos. Em seu estilo de vida igualitário, a busca do ciso de cada coisa que um dá ao outro. Eles deveriam sentir- status através de distribuições desiguais ou qualquer forma de se à vontade ao tomar emprestado, uns dos outros, camisas ou consumo ou desperdício evidentes é literalmente inconcebível. álbuns de discos, e não hesitar em pedir favores. Na fraterni- Povos igualitários se retraem e se assustam diante da mais leve dade e na amizade, ambas as partes aceitam o princípio de que sugestão de que estão sendo tratados generosamente ou de que se um deve dar mais do que recebe, o fato não afetará a re- se pense que um seja melhor que o outro. lação solidária entre elas. Se um amigo convida o outro para O Prof. Richard Lee, da Universidade de Toronto, conta jantar, não deve haver hesitação em aceitar um segundo e um uma história divertida sobre o significado de trocas recíprocas terceiro convites, mesmo que o primeiro não tenha sido retri- entre caçadores e coletores igualitários. Durante a maior parte buído. Contudo, há um limite para esse tipo de relacionamento, do ano, Lee seguia os boximanes pelo deserto de Kalahari, ob- porque depois de algum tempo a oferta sem reciprocidade co- servando o que comiam. Eles cooperavam de boa vontade e meça a dar a sensação de exploração. Em outras palavras, todo Lee queria mostrar sua gratidão, mas nada tinha para dar-lhes o mundo gosta de ser tomado por generoso, mas ninguém que não destoasse de sua dieta normal e padrão de atividade. quer ser considerado trouxa. Isto explica bem o embaraço que Soube então que, ao aproximar-se o Natal, os boximanes gos- sentimos ao tentar reverter o princípio da reciprocidade quando tavam de acampar nos limites do deserto com as aldeias, onde fazemos a lista de presentes de Natal. presente não pode ser algumas vezes conseguiam obter carne mediante trocas. Tencio- nem muito barato nem muito caro; contudo, nossos cálculos nando dar-lhes um boi como presente natalino, foi de jipe de devem parecer inteiramente casuais, daí removermos a etiqueta uma aldeia a outra, procurando comprar o maior boi que en- do preço. contrasse. Numa aldeia remota, encontrou finalmente um ani- Mas para ver realmente a reciprocidade em ação, precisa- mal gigantesco e imensamente gordo. Como muitos outros povos mos viver numa sociedade igualitária, onde não exista dinheiro primitivos, os boximanes são loucos por carne gorda, já que e nada possa ser comprado ou vendido. Tudo na reciprocidade os animais que caçam são magros e musculosos. Voltando ao se opõe à precisão no cálculo e no reconhecimento do que uma campo, Lee reuniu seus amigos selvagens e contou-lhes, um pessoa deve à outra. De fato, a idéia básica é negar que al- a um, que comprara o maior boi que já havia visto e que lhes daria para matar no Natal. 98 99</p>