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<p>INTRODUÇÃO</p><p>AOS ESTUDOS</p><p>GEOGRÁFICOS</p><p>Anna Paula Lombardi</p><p>A geografia clássica</p><p>Objetivos de aprendizagem</p><p>Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:</p><p> Reconhecer a geografia tradicional: natureza, homem e economia.</p><p> Analisar o espaço geográfico a partir dos elementos do positivismo</p><p>e da geografia quantitativa.</p><p> Identificar a geografia ambiental e as suas contribuições para a história</p><p>do pensamento geográfico.</p><p>Introdução</p><p>Ao longo do tempo, a geografia clássica foi criando características pró-</p><p>prias por meio de obras importantes como as dos alemães Carl Ritter</p><p>e Alexander Von Humboldt, que podem ser considerados precursores</p><p>dessa corrente. Por meio de suas bases fundamentadoras e de cunho</p><p>determinista, esses autores possibilitaram avanços na história do pensa-</p><p>mento geográfico.</p><p>No século XVIII, época em que a geografia clássica se constituiu, o</p><p>Iluminismo contribuiu para a liberdade e para o desenvolvimento inte-</p><p>lectual e artístico, embasado pela filosofia de René Descartes. A evolução</p><p>científica trouxe à tona novas informações, promovendo uma forma</p><p>inédita de produzir ciência no Ocidente. A geografia não ficou de fora</p><p>desse contexto. No começo, essa ciência organizava o conhecimento</p><p>pela descrição dos fenômenos na superfície terrestre, considerando os</p><p>elementos naturais. Contudo, após a geografia clássica, houve a transição</p><p>para a geografia tradicional, surgindo um novo paradigma científico.</p><p>A geografia tradicional e os aspectos fundantes:</p><p>natureza, homem e economia</p><p>A geografi a tradicional (1870–1950) se constituiu no período moderno, no</p><p>panorama científi co da Alemanha e da França. Esse contexto pode ser carac-</p><p>terizado pelo desenvolvimento do sistema capitalista (séculos XVIII e XIX).</p><p>A geografi a tinha como objetos de estudo a paisagem e a região. Ela estava</p><p>relacionada ao determinismo e ao possibilismo geográfi co, paradigmas que</p><p>marcaram a geografi a clássica e a geografi a tradicional.</p><p>Nesse período, os estudos se dedicavam às particularidades regionais. Os</p><p>alemães se preocuparam com a descrição e a análise da paisagem em suas</p><p>características naturais. Já entre os franceses a geografia da paisagem era</p><p>considerada uma ciência de síntese. Dava-se grande importância à visualiza-</p><p>ção da paisagem, tanto em seus aspectos físicos originais como nas marcas</p><p>deixadas pelo homem.</p><p>Segundo Côrrea (2000), nessa fase, o estudo da geografia incluiu debates</p><p>que envolviam os conceitos de paisagem, região natural, gênero de vida e a</p><p>diferenciação de áreas ou áreas regionais. Os geógrafos que seguiam os para-</p><p>digmas deterministas, possibilistas, culturais e regionais foram os responsáveis</p><p>por dar à geografia uma identidade que a diferenciava das demais ciências.</p><p>Santos (2004) explica que a origem da geografia como disciplina foi marcada</p><p>por características mais ideológicas do que filosóficas. A ideologia que estava em</p><p>jogo era a produzida pelo capitalismo, ou seja, havia a necessidade de expansão</p><p>da Europa para as américas. Tal ideologia tinha como única proposição criar as</p><p>condições para a expansão do comércio mundial. O excesso de produção e as</p><p>crises sociais e econômicas que mexeram com os países interessados deveriam</p><p>ter uma solução rápida para que eles não deixassem de acumular capital. Os</p><p>países centrais deveriam garantir além-mar as matérias-primas necessárias à</p><p>grande indústria e as terras necessárias à produção de alimentos. Nessa fase, a</p><p>DIT estabelece o papel comercial de cada grande grupo de países.</p><p>Assim, havia a necessidade de as economias periféricas se adaptarem às</p><p>novas tarefas, assegurando a continuidade do projeto imperialista imposto</p><p>pelos países europeus. Os geógrafos da época se dividiram em dois pontos</p><p>de vista distintos. De um lado, estavam aqueles que lutavam por um mundo</p><p>mais justo no qual o espaço seria organizado com o fim de oferecer ao homem</p><p>mais igualdade, sem os entraves da divisão das classes sociais. Era o caso</p><p>de Élisée Reclus (1830–1905) e Camille Vallaux (1870–1945). De outro lado,</p><p>havia aqueles que defendiam o colonialismo e o império do capital e reivin-</p><p>dicavam a construção de uma geografia humana. Contudo, como a geografia</p><p>foi considerada uma ciência tardiamente em relação às outras ciências, teve</p><p>dificuldades de se desligar dos grandes interesses. Uma das grandes metas</p><p>conceituais da geografia, na época, foi esconder o papel do Estado, bem como</p><p>os das classes sociais, na organização socioespacial (SANTOS, 2004).</p><p>A geografia clássica2</p><p>A geografia clássica foi sistematizada por Alexander Von Humboldt</p><p>(1769–1859) e Carl Rittter (1779–1859). A geografia tradicional positivista</p><p>da era moderna, que demarca o período de 1870 a 1950, foi desenvolvida</p><p>principalmente por Alfred Hettner (1859–1941), Friedrich Ratzel (1844–1904) e</p><p>Vidal de La Blache (1845–1918). Esses grandes pensadores atuaram no período</p><p>em que a geografia se institucionalizou como disciplina nas universidades</p><p>europeias. Portanto, a geografia tradicional positivista sofreu forte influência</p><p>das obras de Humboldt e Carl Ritter.</p><p>Que tal conhecer melhor Alexander Von Humboldt e a sua contribuição para a</p><p>geografia clássica tradicional? A diversidade de economias dos diferentes lugares</p><p>pelos quais Humboldt viajou permitiu que ele realizasse estudos regionais de caráter</p><p>comparativo. Ele também estudou a diversidade do relevo, do clima e da vegetação,</p><p>reforçando a sua contribuição para a geografia física.</p><p>Graças ao contato com os habitantes da América, Humboldt, em sua obra Quadros</p><p>da natureza, dividiu o clima das terras da seguinte forma: terras quentes, frias e</p><p>temperadas. Para ele, as massas continentais e a configuração topográfica eram o</p><p>que realmente ocasionava os diferentes climas. Em Kosmos, Humboldt trabalhou</p><p>com o elemento paisagem como retrato da ligação entre o observador e o objeto.</p><p>Na obra, que resultou das primeiras preocupações com a ideia de natureza organi-</p><p>zadas empiricamente, Humboldt já observava técnicas para o cultivo das plantas</p><p>(GODOY, 2010).</p><p>O espaço geográfico pela perspectiva</p><p>da geografia positivista e da geografia</p><p>quantitativa</p><p>A geografi a tradicional positivista tinha como método científi co a observação</p><p>dos fenômenos baseada na doutrina fi losófi ca, política e sociológica desen-</p><p>volvida por Auguste Comte (1798–1857). Já a geografi a teórico-quantitativa,</p><p>também conhecida como “nova geografi a”, foi constituída devido à conjuntura</p><p>socioeconômica mundial do pós-Segunda Guerra. O panorama de destruição</p><p>fez com que os geógrafos procurassem novas formulações para superar a crise</p><p>econômica capitalista. Essa corrente efetuou uma crítica à geografi a tradicional</p><p>pela insufi ciência da sua análise.</p><p>3A geografia clássica</p><p>Côrrea (2000) explica que a geografia tradicional privilegiou os conceitos</p><p>de paisagem e região, que na época eram os principais objetos de estudo da</p><p>geografia e o que a diferenciava das demais ciências existentes. O espaço,</p><p>ou a abordagem espacial, que envolvia estudos sobre as localizações das</p><p>atividades produtivas dos homens e sobre os fluxos das mercadorias (sua</p><p>distribuição e seu consumo), era secundário para os geógrafos dessa corrente.</p><p>Nesse período, o espaço em si não era considerado um conceito-chave da</p><p>geografia tradicional. Apesar disso, o conceito de espaço já aparecia nas</p><p>obras de Ratzel e Richard Hartshorne (1899–1992).</p><p>Hartshorne utilizou o conceito de espaço de forma implícita. Ele reco-</p><p>nhecia a importância desse conceito na geografia da seguinte maneira: os</p><p>geógrafos deveriam descrever e analisar a interação dos fenômenos alocados</p><p>no espaço. Para Hartshorne, o espaço era absoluto e correspondia a um</p><p>conjunto de pontos que teriam essência em si. Logo, Hartshorne levava</p><p>em conta a visão de Kant a respeito da racionalidade, considerando que a</p><p>geografia era uma ciência que estudaria todos os fenômenos sistematizados</p><p>espacialmente com a concepção idiográfica da realidade. Assim, numa</p><p>determinada área do espaço, se estabeleceria</p><p>o ciclo constante de emigração e pobreza.</p><p>Os fenômenos migratórios causam consequências nos países e regiões de</p><p>destino, mas especialmente nos países e regiões de origem. Como a migração</p><p>geralmente envolve indivíduos que são classificados como economicamente</p><p>ativos, ao abandonar sua região ou país, eles também provocam a descapi-</p><p>talização dessas economias. Assim, a força de trabalho local, responsável</p><p>pela geração de renda, passa a ser empregada em outro país. A capacidade</p><p>de movimentação econômica por parte dos grupos sociais que permanecem</p><p>é menor, resultando em um empobrecimento da população. Essa situação</p><p>mantém o ciclo de migração ativo, pois se as condições são ruins, os indivíduos</p><p>continuam a migrar, aumentando as desigualdades regionais.</p><p>ANDRADE, M. S.; ANGELUCCI, P. D.. Refugiados ambientais: mudanças climáticas e</p><p>responsabilidade internacional. HOLOS, v. 4, p. 189–196, 2016. Disponível em: http://</p><p>www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/HOLOS/article/view/4165. Acesso em: 17 abr. 2020.</p><p>AUSAID. Tsunami 2004 aftermath. Aceh, Indonesia, 2005. Photo: AusAID. Wikimedia</p><p>Commons, the free media repository, 2 mar. 2018. Disponível em: https://commons.wiki-</p><p>media.org/wiki/File:Tsunami_2004_aftermath._Aceh,_Indonesia,_2005._Photo-_Au-</p><p>sAID_(10730863873).jpg. Acesso em: 17 abr. 2020.</p><p>DANTAS, E. M.; MORAIS, I. R. D.; FERNANDES, M. J. C. Geografia da população. 2. ed.</p><p>Natal: Editora da UFRN, 2011.</p><p>ERNESTO, M. et al. Decifrando a Terra. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009.</p><p>FUNARI, P. P. A. Migrations flows from a long-term perspective. Anos 90, Porto Alegre,</p><p>v. 25, n. 47, p. 19–38, 2018.</p><p>LEUZINGER, M.; RAFFOUL, J. Caminhos para a proteção dos migrantes ambientais.</p><p>Revista de Direitos Difusos, v. 69, n. 1, p. 91–108, 2018.</p><p>MOREIRA, R. O círculo e a espiral: para a crítica da geografia que se ensina. Niterói: AGB</p><p>Niterói, 2004.</p><p>SANTOS, M. A. et al. Migração: uma revisão sobre algumas das principais teorias. Belo</p><p>Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2010. (Textos para Discussão, n. 18).</p><p>SILVA, D. F. O fenômeno dos refugiados no mundo e o atual cenário complexo das</p><p>migrações forçadas. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, v. 34, n. 1, p. 163–170, 2017.</p><p>Migrações internacionais no mundo contemporâneo14</p><p>Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun-</p><p>cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a</p><p>rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de</p><p>local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade</p><p>sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links.</p><p>UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES. Global trends forced dis-</p><p>placement in 2018. Genebra: UNHCR, 2018. Disponível em: https://www.unhcr.org/</p><p>globaltrends2018/#_ga=2.129582668.1541669757.1585681436-390478583.1585681436.</p><p>Acesso em: 17 abr. 2020.</p><p>Leituras recomendadas</p><p>DAMIANI, A. População e geografia. São Paulo: Contexto, 1998.</p><p>MARTINI, G. (Org.). População, meio ambiente e desenvolvimento: verdade e contradições.</p><p>São Paulo: UNICAMP, 1996.</p><p>MARTINS, J. Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997.</p><p>RIOS NETO, E. L. G. A população nas políticas públicas: gênero, geração e raça. Brasília:</p><p>CNPD/UNFPA, 2006.</p><p>SANTOS, J.; LEVY, M. S.; SZMRECSANYI, T. (Org.). Dinâmica da população: teoria, métodos</p><p>e técnicas de análise. São Paulo: T.A. Queiroz, 1980.</p><p>THUMERELLE, P. J. As populações do mundo. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.</p><p>15Migrações internacionais no mundo contemporâneo</p><p>INTRODUÇÃO AOS</p><p>ESTUDOS</p><p>GEOGRÁFICOS</p><p>Silvana Kloster dos Santos</p><p>A geografia pós-moderna</p><p>Objetivos de aprendizagem</p><p>Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:</p><p> Definir a geografia pós-moderna.</p><p> Analisar a geografia pós-moderna e suas contribuições para a ciência</p><p>geográfica.</p><p> Descrever a geografia pós-moderna e suas implicações no espaço</p><p>geográfico.</p><p>Introdução</p><p>Nos dois últimos séculos, os geógrafos têm buscado expandir a literatura</p><p>a respeito do papel da geografia no campo do conhecimento e suas</p><p>interpretações sobre o mundo em constante transformação. A geografia</p><p>não é uma disciplina emblemática, como a física ou a matemática, ela</p><p>necessita de interpretações e visões do mundo contemporâneo de forma</p><p>crítica e histórica.</p><p>Neste capítulo, você aprenderá sobre o pensamento geográfico re-</p><p>lacionado à pós-modernidade, bem como compreenderá os caminhos</p><p>percorridos pela geografia por meio dos conceitos de modernidade e</p><p>pós-modernidade, as contribuições da geografia pós-moderna para a</p><p>ciência geográfica e suas relações com o espaço geográfico.</p><p>Modernidade e pós-modernidade</p><p>Podemos compreender os caminhos percorridos pela geografi a por meio</p><p>dos conceitos de modernidade e pós-modernidade. O termo “modernidade”,</p><p>relacionado aproximadamente a “mundo industrializado”, passou a ser empre-</p><p>gado na Europa depois do feudalismo, mas foi no século XX que passamos a</p><p>perceber suas relações e mudanças sociais. Já a “pós-modernidade” é marcada</p><p>pela sociedade pós-industrial, caracterizada pelo período “descontinuista” da</p><p>noção de progresso. A seguir, estudaremos ambos os conceitos.</p><p>Modernidade</p><p>O período da modernidade tem sua identidade caracterizada pela racionalidade,</p><p>pelo construtivismo, no entanto, pensar que existe apenas um tipo-ideal de</p><p>pensamento homogêneo é uma utopia, segundo Max Weber (2004). A moder-</p><p>nidade é apresentada por meio de duas correntes do pensamento: de um lado,</p><p>uma corrente coordenada plenamente pela racionalidade, caracterizada pelo</p><p>uso da razão, formada por instituições do saber metódico, e do outro, é formada</p><p>por diversas “contracorrentes”, “[...] contestando o poder da razão, os modelos</p><p>e métodos da ciência institucionalizada e o espírito científi co universalizante”</p><p>(GOMES, 1996, p. 26). O diálogo entre essas duas disposições gerou um campo</p><p>de tensões, com “[...] confl itos periódicos em torno do tema da legitimidade</p><p>da atividade intelectual e de sua organização” (GOMES, 1996, p. 26-27).</p><p>A modernidade, segundo Harvey (2008), caracteriza-se por uma implacável</p><p>ruptura com todas e quaisquer condições históricas precedentes, além de pos-</p><p>suir várias rupturas e fragmentações intrínsecas particulares. O modernismo</p><p>caracteriza-se por um grandioso esforço intelectual dos pensadores iluministas</p><p>“[...] para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei universais e a</p><p>arte autônoma nos termos da própria lógica interna destas” (HABERMAS,</p><p>1983 apud HARVEY, 2008, p. 23).</p><p>A primeira fase do modernismo, segundo Harvey (1993), corresponde à ex-</p><p>pansão do movimento iluminista, a partir do século XVIII. O objetivo era utilizar</p><p>o acúmulo de conhecimento adquirido de forma livre e criativa pela humanidade,</p><p>a fim de libertá-los dos problemas de escassez e advindos de desastres naturais.</p><p>O desenvolvimento de formas racionais de organização social e de modos</p><p>racionais de pensamento prometia a libertação das irracionalidades do mito,</p><p>da religião, da superstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem como</p><p>do lado sombrio da nossa própria natureza humana (HARVEY, 2008, p. 23).</p><p>Os iluministas adotaram a concepção de progresso, rompendo ativamente com a</p><p>história e a tradição deixada de lado pela modernidade. O modernismo foi um movi-</p><p>mento que buscou revelar e desmistificar o conhecimento humano e a organização</p><p>social em nome da liberdade intelectual da humanidade. Foi a busca pelo progresso</p><p>e da excelência individual humana, da descoberta científica. Os iluministas adotaram</p><p>a doutrina da igualdade, liberdade, fé na inteligência humana e da razão universal,</p><p>despertando o sentimento de otimismo em reação a humanidade (HARVEY, 2008).</p><p>A geografia pós-moderna2</p><p>A ciência está comprometida, em sua base, como um dos fundamentos da</p><p>modernidade. O debate sobre a legitimidade e os limites da razão se encontra</p><p>no centro das questões críticas sobre a modernidade, e a geografia busca,</p><p>dentro</p><p>desse contexto, descrever o mundo por meio de um discurso científico</p><p>e moderno, reproduzindo e seguindo as características essenciais da época e</p><p>todas as suas modificações (GOMES, 1996).</p><p>A análise dessas modificações, segundo Gomes (1996), baseia-se nos</p><p>valores modernos em um duplo fundamento: o novo e o tradicional.</p><p>Para que se possa falar de um sistema centrado na tradição, é preciso que, ao</p><p>mesmo tempo exista um outro sistema que marque em relação a ele sua oposi-</p><p>ção, definido por aquilo que não é tradicional, ou seja, o sistema do novo; são,</p><p>pois, dois sistemas que se opõem, mas que estruturam uma mesma ordem, é</p><p>justamente essa ordem que guia a análise desse trabalho (GOMES, 1996, p. 29).</p><p>Para Gomes (1996), dentro do sistema de racionalidade, o progresso é uma</p><p>percepção fundamental que age por meio de rupturas que apontam precisamente</p><p>a promoção gradual do conhecimento. A crise é o indício de uma alteração e o</p><p>sinal de confronto entre o antigo e o novo, por meio do método lógico racional.</p><p>Através desta dinâmica da confrontação, o racionalismo faz da crítica o</p><p>seu princípio fundador. É a partir dela que o movimento de progressão se</p><p>perpetua e se renova. Desta forma, a crítica é, desde o final do século XVIII</p><p>até os nossos dias, o veículo e o motor do processo da renovação moderna</p><p>(GOMES, 1996, p. 31).</p><p>Dessa forma, o modernismo é marcado pelo modelo de ciência raciona-</p><p>lista, que busca estabelecer sistemas explicativos, ligando, por meio de uma</p><p>metodologia, fenômenos ou fatos entre si, mas também busca conhecer a</p><p>conduta e o movimento previsível daquilo que se quer explicar. A explicação</p><p>é o resultado da análise das questões invariáveis de um conhecido fenômeno.</p><p>Ela é o produto da operacionalização de uma ordem formal instrumentalizada</p><p>por uma lógica coerente e geral, e de uma ordem material. Que relaciona o</p><p>modelo abstrato à realidade. Desta maneira, a explicação se apresenta sempre</p><p>com um duplo e complementar alcance (GOMES, 1996, p. 31).</p><p>3A geografia pós-moderna</p><p>Todavia, nem todos concordam com a racionalidade do modernismo. É o caso das</p><p>contracorrentes, que se opõe absolutamente à concepção racionalista. Na maior parte</p><p>dessas contracorrentes, a razão humana não é a base da uniformidade presumida pelos</p><p>racionalistas, pois ela não é universal, não possui a mesma natureza, manifestações e</p><p>formas. Ao contrário, as contracorrentes valorizam o que é particular, singular (GOMES, 1996).</p><p>Enquanto alguns pensadores são otimistas em relação ao modernismo,</p><p>para outros ele apresentava certas contradições incômodas, tais como a forma</p><p>como era definido, quem eram os responsáveis pela razão superior e de que</p><p>maneira essa razão deveria ser exercida.</p><p>A concepção de uma sabedoria de elite, mas coletiva, masculina e branca,</p><p>outros opunham a imagem de um individualismo, sem peias de grandes pen-</p><p>sadores, os grandes benfeitores da humanidade, que, por intermédio de suas</p><p>utas e esforços singulares, levariam a razão e a civilização do nada ao ponto</p><p>da verdadeira emancipação (HARVEY, 2008, p. 24).</p><p>Aumentam as tensões e inquietações em relação ao modernismo com a</p><p>revolução social, formada pelo fenômeno urbano, a partir de 1848, quando</p><p>ocorre o crescimento urbano explosivo, com forte imigração para os centros</p><p>urbanos devido à industrialização, à mecanização e à reorganização espacial e</p><p>ao surgimento de movimentos revolucionários urbanos de base política, como</p><p>os de Paris, em 1848 e 1871. Esses acontecimentos reforçaram: “A crescente</p><p>necessidade de enfrentar os problemas psicológicos sociológicos, técnicos,</p><p>organizacionais e políticos da urbanização maciça em que floresceram mo-</p><p>vimentos modernistas” (HARVEY, 2008, p. 34).</p><p>A perda da fé na instabilidade do progresso e pelo crescente desconforto</p><p>com a imutabilidade do pensamento iluminista faz crescer os movimentos</p><p>socialistas e a luta de classes estimulada a partir da publicação do Manifesto</p><p>Comunista de Karl Marx (1818-1883). Marx e Engels contestavam a ideia de</p><p>capitalismo benevolente, defendida por Adam Smith (1723-1790), no libera-</p><p>lismo clássico. Smith alegava que a mão invisível do mercado poderia trazer</p><p>os benefícios da modernidade capitalista para todos. De acordo com Harvey</p><p>(2008, p. 37):</p><p>A geografia pós-moderna4</p><p>Essa tese foi rigorosamente rejeitada por Marx e Engels, tornou-se menos</p><p>sustentável à medida que o século passava e as disparidades de classe pro-</p><p>duzidas no âmbito do capitalismo se tornavam cada vez mais evidentes. O</p><p>movimento socialista contestava cava vez mais a unidade da razão iluminista</p><p>e inseriu uma dimensão de classe no modernismo.</p><p>Esses debates entre o liberalismo clássico e o socialismo influenciaram,</p><p>no século XIX, o campo das artes, da literatura, da política, entre outros.</p><p>[...] era uma reação às novas condições de produção (a máquina, a fábrica, a</p><p>urbanização), da circulação (os novos sistemas de transporte e comunicações)</p><p>e de consumo (a ascensão dos mercados de massa, da publicidade, da moda</p><p>de massas) do que um pioneiro na produção dessas mudanças (HARVEY,</p><p>2008, p. 32).</p><p>O modernismo entra em uma nova fase entre a Primeira e a Segunda</p><p>Guerra Mundial, mostrando uma verdadeira alienação política e pouco social,</p><p>forçando artistas a explicitarem seus compromissos políticos. O modernismo</p><p>precisou reconhecer a impossibilidade de representar o mundo por meio de</p><p>uma linguagem simples.</p><p>A compreensão tinha de ser construída por meio da exploração de múltiplas</p><p>perspectivas. Em resumo, o modernismo assumiu um perspectivismo e um</p><p>relativismo múltiplos como sua epistemologia, para revelar o que ainda con-</p><p>siderava a verdadeira natureza de uma realidade subjacente unificada, mas</p><p>complexa (HARVEY, 2008, pp. 37-38).</p><p>Dessa forma, a razão universal, doutrina estabelecida pelos iluministas,</p><p>sofreu uma grande ruptura. Nesse período, o significado da razão fica obscure-</p><p>cido pelas correntes. Após 1945, o modernismo adquire o status de “universal”</p><p>ou “alto”, relacionando-se diretamente ao poder dominante da sociedade. A</p><p>versão capitalista corporativa do projeto iluminista de desenvolvimento do</p><p>progresso linear e a emancipação humana adotaram a função de dominante</p><p>político-econômica nesse período, o que se refletiu nas artes, na arquitetura,</p><p>na literatura, etc. O modernismo era positivista, tecnocêntrico e racionalista.</p><p>A ‘modernização’ de economias europeias ocorria velozmente, enquanto</p><p>todo o impulso da política e do comércio internacional era justificado como</p><p>o agente de um benevolente e progressista ‘processo de modernização’ num</p><p>Terceiro Mundo atrasado (HARVEY, 2008, p. 38).</p><p>5A geografia pós-moderna</p><p>Durante o século XX, o modernismo vai perdendo a força contra o raciona-</p><p>lismo e a ideologia tradicionalista. A arte e a cultura eram reflexo de uma elite</p><p>economicamente dominante, sendo a cultura americana um modelo de aspirações</p><p>humanas. Nesse contexto, vários movimentos contracultura e antimodernistas dos</p><p>anos de 1960 surgem. Contrárias às particularidades repressoras da racionalidade</p><p>técnico-burocrática cientificadas nos moldes corporativos e estatais monopo-</p><p>lísticos, entre outras formas de poder institucionalizado, essas contraculturas</p><p>estimulam a autorrealização do sujeito de forma individualizada, adotando</p><p>uma política “neo-esquerdista” com adoção de “[...] gestos antiautoritários e de</p><p>hábitos iconoclastas (na música, no vestuário, na linguagem e no estilo de vida)</p><p>e da crítica da vida cotidiana” (HARVEY, 2008, p. 44).</p><p>A agitação global no ano de 1968 com os movimentos de contracultura,</p><p>surgidos nas universidades, institutos de arte e nas margens culturais da vida</p><p>nas grandes cidades, se espalharam pelas ruas, criando uma grande onda de</p><p>rebeldia, atingindo cidades como Chicago, Paris, Praga, Cidade do México,</p><p>Madri, Tóquio e Berlim. Esse movimento de resistência à hegemonia da</p><p>alta cultura moderna de 1968, segundo Harvey (1993), deve ser considerado</p><p>o arauto cultural político da subsequente virada para o pós-modernismo</p><p>(HARVEY,</p><p>2008).</p><p>Pós-modernidade</p><p>Com base em outros autores pós-modernistas, Harvey (1993) aponta que o</p><p>início do pós-modernismo teve uma ligação direta com a economia mundial. A</p><p>evolução cultural, que ocorre a partir do início dos anos de 1960 e se assegura</p><p>como hegemônica no começo dos anos de 1970, não ocorre num vazio social,</p><p>econômico ou político. A produção da cultura:</p><p>[...] tornou-se integrada à produção de mercadorias em geral: a frenética</p><p>urgência de produzir novas ondas de bens com aparência cada vez mais nova</p><p>(de roupas a aviões), e taxas de transferência cada vez maiores, agora atribui</p><p>uma função estrutural cada vez mais essencial à inovação e à experimentação</p><p>estéticas (MANDEL, 1975 apud HARVEY, 2008, p. 65).</p><p>O pós-modernismo aparece primeiramente no setor da cultura (arquitetura,</p><p>cinema, literatura, pintura, etc.), alegando que há uma evidente transformação</p><p>na sensibilidade, nas práticas e nas formações discursivas, que se diferencia</p><p>de um conjunto pós-moderno de pressupostos, experiências e proposições do</p><p>período precedente.</p><p>A geografia pós-moderna6</p><p>Os críticos literários ‘modernistas’ de fato têm a tendência de ver as obras</p><p>como exemplos de um ‘gênero’, enquanto o estilo ‘pós-moderno’ consiste em</p><p>ver a obra como um ‘texto’ com sua ‘retórica’ e seu ‘idioleto’ particulares, mas</p><p>que em princípio, pode ser comparado com qualquer outro texto de qualquer</p><p>espécie (HARVEY, 2008, p. 49).</p><p>No campo da filosofia, os pensadores rejeitam o humanismo e o legado</p><p>deixado pelo iluminismo. Eles alegam que os problemas atuais são consequ-</p><p>ências do pensamento ocidental e buscam inspiração nas obras de Friedrich</p><p>Wilhelm Nietzsche (1884-1900). Nietzsche acreditava que o ser humano pas-</p><p>saria a manter uma desconfiança total em relação a todos os valores devido a</p><p>um conjunto de falsidades do cristianismo. Acreditava que nada que cerca o</p><p>ser humano tem sentido; seu pensamento é voltado ao pessimismo.</p><p>No campo do desenvolvimento urbano, ao contrário das formas racionais</p><p>matemáticas dos planejadores modernistas em projetar os espaços de forma</p><p>integrada, em larga escala e abrangentes, baseados no zoneamento funcional,</p><p>no pós-modernismo adota-se a norma de procurar estratégias “pluralistas”</p><p>e “orgânicas”, como uma “colagem” de espaços e misturas altamente dife-</p><p>renciados. “A ‘cidade-colagem’ é agora o tema, e a ‘revitalização urbana’</p><p>substituiu a vilificada ‘renovação urbana’ como a palavra-chave do léxico</p><p>dos planejadores” (HARVEY, 2008, p. 46). Segundo Harvey (2008, p. 49):</p><p>Os planejadores ‘modernistas’ de cidades, por exemplo, tendem de fato a bus-</p><p>car o ‘domínio’ da metrópole como ‘totalidade’ ao projetar deliberadamente</p><p>uma ‘forma fechada’, enquanto os pós-modernistas costumam ver o processo</p><p>urbano como algo incontrolável e ‘caótico’, no qual a ‘anarquia’ e o ‘acaso’</p><p>podem ‘jogar’ em situações inteiramente ‘abertas’.</p><p>O pós-modernismo é marcado pela sua aceitação à condição de fragmentação,</p><p>efemeridade, descontinuidade e mudança caótica. O pensamento pós-moderno</p><p>destaca o caos da vida moderna e a incapacidade de lidar com ela pela racionalidade.</p><p>Não existe uma determinada ordem de vida que possa ser relatada por conexões</p><p>entre fatos por meio da metalinguagem ou metateoria (HARVEY, 2008).</p><p>Para entender essa afirmação, Harvey (1993) traz uma metáfora utilizada</p><p>por Lyotard para iluminar a condição do conhecimento pós-moderno:</p><p>A nova linguagem pode ser vista como uma cidade antiga: um labirinto de ruelas</p><p>e pracinhas, de velhas e novas casas, e de casas com acréscimos de diferentes</p><p>períodos; e tudo isso cercado por uma multiplicidade de novos burgos com ruas</p><p>regulares retas e casas uniformes (LYOTARD, 1884 apud HARVEY, 2008, p. 51).</p><p>7A geografia pós-moderna</p><p>A pós-modernidade abre novas possibilidades de informação, produção e</p><p>transferência do conhecimento por meio de espaços fragmentados, pluraliza-</p><p>dos, dando veracidade a outras vozes e outros espaços. A pós-modernidade</p><p>é marcada pela combinação entre os discursos. Cada um pode recorrer a um</p><p>conjunto de códigos, dependendo da situação em que se encontrar (casa,</p><p>trabalho, igreja, ruas, etc.) (HARVEY, 2008).</p><p>Não existe uma representação unificada do mundo, e a tese do pragmatismo</p><p>é a única filosofia aceita, ou seja, a ideia que temos de um objeto qualquer, nada</p><p>mais é senão a soma das ideias de todos os efeitos imaginários atribuídos por</p><p>nós a esse objeto. O modo particular de conhecer, interpretar e ser no mundo</p><p>leva a pressupostos tanto psicológicos quanto de personalidade à motivação</p><p>e ao comportamento (HARVEY, 2008).</p><p>A pós-modernidade é marcada pela ruptura da ordem temporal e rejeita a</p><p>ideia de progresso do modernismo. Ela abandona o sentido de continuidade</p><p>e memória histórica, mas desenvolve a capacidade de captar elementos da</p><p>história e filtrar os aspectos relacionados ao presente. Na Figura 1 é possível</p><p>observar os diferentes estilos arquitetônicos que fazem parte da paisagem de</p><p>Varsóvia. Já na Figura 2 é possível observar um exemplo do pós-modernismo</p><p>nas artes, evidenciado pela colagem de muitos temas.</p><p>Figura 1. Panorama do centro da cidade de Varsóvia, Palácio da Cultura e da Ciência,</p><p>um marco e símbolo do stalinismo e comunismo próximo a modernos arranha-céus.</p><p>Fonte: Poland (2019).</p><p>A geografia pós-moderna8</p><p>Figura 2. Obra de Robert Rauschenberg, Buffalo II, de 1964. Faz</p><p>a colagem de muitos temas. Eliminação da fronteira entre a arte</p><p>e a vida cotidiana.</p><p>Fonte: Retroactive I (2019).</p><p>A seguir estão listadas as principais características do pós-modernismo:</p><p> perda da racionalidade;</p><p> pouco esforço aberto para sustentar a continuidade de valores, de crenças</p><p>ou mesmo de descrenças;</p><p> perda da continuidade histórica de valores e crenças;</p><p> a produção da cultura passou a ser integrada à produção de mercadorias;</p><p> os espaços são fragmentados, descontínuos (diferentes espaços em um</p><p>mesmo território, p. ex., bairros de classe média, bairros mais carentes, etc.);</p><p> o conhecimento é a principal força de produção;</p><p>9A geografia pós-moderna</p><p> espaços de consumo personalizado onde os sujeitos são “seduzidos” ao</p><p>consumo pelos meios de comunicação (anúncios publicitários e televisão);</p><p> o movimento pós-moderno está na arquitetura, na pintura, na escultura</p><p>e na literatura, fazendo primeiramente críticas humoradas sobre o</p><p>próprio sistema econômico e social;</p><p> é típico das sociedades pós-industriais.</p><p>A geografia pós-moderna e suas contribuições</p><p>para a ciência geográfica</p><p>A infl uência do humanismo fez surgir uma enorme variedade de concepções</p><p>e obras escritas de diferentes autores, com o objetivo de obter novas vias de</p><p>análise do conhecimento geográfi co. Essas novas análises envolvem os debates</p><p>políticos e socioculturais contemporâneos, relacionando-os diretamente ao sis-</p><p>tema econômico mundial. A passagem do modernismo para a pós-modernidade,</p><p>no fi m dos anos de 1960, é marcada pelas manifestações socioculturais e pelo</p><p>fi m do período de crescimento do pós-Guerra na economia capitalista mundial.</p><p>O mundo capitalista contemporâneo, então, segue em constante transfor-</p><p>mação, e os ge��grafos acompanham essa transformação, realizando estudos</p><p>por meio de uma geografia humana crítica sobre a sociedade e seu espaço</p><p>geográfico, descrevendo sobre a sua extruturação/restruturação no âmbito de</p><p>todas as esferas da vida social, transformando a visão científica, que antes</p><p>era baseada nas formas de racionalidade simplistas, em uma multiplicidade</p><p>de novas concepções.</p><p>Geografia e pós-modernidade</p><p>De acordo com Soja (1993), as primeiras vozes insistentes da geografi a crítica</p><p>humana pós-moderna surgiram no fi m dos anos de 1960, mas seu projeto</p><p>espacializante fi cou praticamente abafado na década seguinte devido ao debate</p><p>da corrente marxista ocidental e à ciência social liberal numa “[...] visão prati-</p><p>camente santifi cada do passado eternamente cumulativo” (SOJA, 1993, p. 20).</p><p>Algumas vozes ressoaram vigorosamente como pioneiras na geografia</p><p>pós-moderna sobre a</p><p>hegemonia do historicismo, e entre as mais atuantes está</p><p>a de Henri Lefebvre (1901-1991). Sua contribuição está na teorização crítica</p><p>da produção social do espaço. O espaço vem passando por transformações, e</p><p>a geografia busca contribuições teóricas em outros campos, como na filosofia</p><p>de Michel Foucault (1926-1984), por exemplo (SOJA, 1993).</p><p>A geografia pós-moderna10</p><p>Foucault (apud SOJA, 1993, p. 25) aborda em suas obras a noção de “hete-</p><p>rotopias”, definido como “[...] espaços característicos do mundo moderno”. Ele</p><p>centrou a atenção dos geógrafos “[...] numa outra espacialidade da vida social,</p><p>num ‘espaço externo’, espaço efetivamente vivido (e socialmente produzido)</p><p>dos locais e das relações entre eles” (SOJA, 1993, p. 25).</p><p>Outro estudioso que contribuiu com a geografia foi John Berger (1916-2017),</p><p>crítico de arte e romancista. Suas obras abrangem questões relacionadas a</p><p>história, geografia, linhagem e paisagem, período e região. Segundo soja, o</p><p>autor aborda questões sobre a:</p><p>[...] conscientização do desenvolvimento desigual e o sentimento revigorado de</p><p>nossa responsabilidade política pessoal por ele, como um produto desenvolvi-</p><p>mento como um produto coletivamente criado por nós, espacializa o momento</p><p>contemporâneo e revela o discernimento a ser extraído de uma compreensão</p><p>mais profunda da crise contemporânea e da reestruturação da literatura e da</p><p>ciência, de nossa vida cotidiana e da situação dos homens e mulheres “tal como</p><p>são no mundo inteiro, em toda a sua desigualdade” (SOJA, 1993, p. 32-33.)</p><p>As obras de Foucault e Berger serviram para mostrar aos geógrafos a</p><p>necessidade de uma reestruturação significativa e necessária do pensamento</p><p>social crítico voltada às espacializações extensivas e encarcerantes da vida</p><p>social, por conta do desenvolvimento histórico do capitalismo e que foram</p><p>negligenciadas por um longo período nas geografias humanas (SOJA, 1993).</p><p>Entre as obras de importantes geógrafos, a “Condição pós-moderna”, de</p><p>David Harvey (1935-), publicada em 1992, é considerada um dos estudos de</p><p>maior valor e um dos mais completos. O autor abre caminho para o conceito</p><p>de “compreensão do tempo-espaço” e seus impactos político-econômicos na</p><p>vida social e cultural. Ele argumenta que a história do capitalismo parece ter</p><p>acelerado o ritmo de vida, fazendo o mundo, muitas vezes, parecer encolher</p><p>sobre nós. O mundo parece encolher numa “aldeia global” de telecomunicações</p><p>e a Terra é vista como uma espaçonave com interdependências econômicas</p><p>e ecológicas. “[...] os horizontes temporais se reduzem a um ponto em que</p><p>só existe o presente (o mundo do esquizofrênico), temos de aprender a lidar</p><p>com um avassalador sentido de compreensão dos nossos mundos espacial e</p><p>temporal” (HARVEY, 2008, p. 219).</p><p>Outro ponto de destaque na obra do autor fala sobre o período da Grande</p><p>Depressão, em que houve uma profunda recessão, em 1973, rompendo com</p><p>o modelo fordista do pós-guerra, fazendo surgir a “acumulação flexível”.</p><p>Harvey (1993) faz uma análise da acumulação flexível de acordo com três</p><p>perspectivas: a do trabalho, a da produção e a do Estado (HARVEY, 2008).</p><p>11A geografia pós-moderna</p><p>No próximo tópico, veremos mais profundamente sobre as contribuições de</p><p>Harvey e de outros autores sobre o espaço geográfico.</p><p>Fordismo é um sistema de produção em massa, introduzido pelo industrial e fabricante</p><p>de carros Henry Ford, em 1914, que consistia em fixar o trabalhador em uma posição</p><p>na linha de produção automobilística da Ford. Ford introduziu ao dia do trabalhador</p><p>08 horas de trabalho e cinco dólares como recompensa para os trabahadores da linha</p><p>automática de montagem de carros. Todas as peças dos veículos eram produzidas no</p><p>interior da mesma fábrica.</p><p>A geografia pós-moderna e o espaço geográfico</p><p>Os estudos sobre o espaço geográfi co na pós-modernidade estão profundamente</p><p>ligados à problemática espacial e às suas ramifi cações sociopolíticas tanto nas</p><p>escalas regional quanto internacional, tendo como responsável o desenvolvimento</p><p>geografi camente desigual na origem e na transformação do capitalismo.</p><p>Segundo Soja (1993), o capitalismo surge, cresce e se desenvolve por meio</p><p>da ocupação de um determinado espaço por meio de um processo generalizado</p><p>e problemático de espacialização. A sobrevivência do capitalismo e a produção</p><p>relativa à sua espacialização característica dependem da diferenciação do</p><p>espaço formado por regiões “superdesenvolvidas” e “subdesenvolvidas” e a</p><p>combinação e justaposição constante do desenvolvimento e do subdesenvol-</p><p>vimento. O capitalismo:</p><p>“[...] baseia-se intrinsecamente nas desigualdades regionais ou espaciais,</p><p>necessárias à sua sobrevivência contínua. A própria existência do capitalismo</p><p>pressupõe a presença mantenedora e a instrumentalidade vital do desenvol-</p><p>vimento desigual” (SOJA, 1993, p. 132).</p><p>As regiões subdesenvolvidas são partes que integram a reprodução extensiva</p><p>e ampliada, gerando grandes reservatórios de mão-de-obra para o trabalho,</p><p>complementares apropriados para atender o fluxo aleatório contrastante da</p><p>produtividade capitalista. O desenvolvimento geograficamente desigual no</p><p>sistema capitalista “[...] surge como uma estrutura hierárquica de diferentes</p><p>A geografia pós-moderna12</p><p>níveis de produtividade, desde o local até o global. Essa própria hierarquia</p><p>multiescalar é produzida pela espacialização capitalista” (SOJA, 1993, p. 131).</p><p>O desenvolvimento geograficamente desigual mostra claramente que a</p><p>expansão geográfica do capitalismo não é um processo de homogeneização</p><p>dos espaços geográficos. Sobre isso, Soja (1993, p. 134) argumenta:</p><p>Ao contrário, o mundo não capitalista tornou-se complexamente articulado</p><p>com o mundo capitalista, sendo suas relações de produção simultânea e se-</p><p>letivamente desintegradas e preservadas. A resultante divisão internacional</p><p>do trabalho, forma distinta de espacialização global do capitalismo, nasce</p><p>dessa combinação contraditória de diferenciação/igualação, desintegração/</p><p>preservação e fragmentação/articulação.</p><p>A divisão internacional do trabalho é um assunto que começou a ser debatido</p><p>nos anos de 1970 na geografia, e relaciona-se à estrutura de centro-periferia na</p><p>economia capitalista mundial. A existência de “[...] países ‘nucleares’ que eram</p><p>centros primários de produção industrial e acumulação e um conjunto subor-</p><p>dinado, dependente e sumamente explorado de países periféricos, que faziam</p><p>parte de um ‘Terceiro Mundo’” (SOJA, 1993, p. 134). A relação entre centro/</p><p>periferia ocasiona a “troca desigual” ou transferência diferenciada de valor do</p><p>trabalho e dos preços dos produtos, ocasionando espacialidades diferenciadas.</p><p>A dispersão entre empresas, setores, regiões, pessoas e mercadorias foi um</p><p>problema que estimulou o surgimento do estudo das “redes” no campo geo-</p><p>gráfico. As pessoas organizam-se no mesmo setor ou são ligadas por relações</p><p>comerciais, profissionais, formando redes sociais. Essas redes sociais e econômi-</p><p>cas só fazem sentido porque permitem estabelecer, no espaço, contatos, realizar</p><p>transações, fazer negócios, o que supõe a existência de infraestrutura material,</p><p>vias de transporte e sistemas de comunicação. Segundo Claval (2004, p. 18):</p><p>Os lugares para onde estas vias convergem levam vantagem em relação aos</p><p>outros: nesses lugares fica mais fácil organizar encontros, estabelecer rela-</p><p>ções e fechar negócios. Nesses lugares, passa-se num tempo mínimo de um</p><p>parceiro comercial para outro. As cidades são comutadores sociais, formas</p><p>de organizações do espaço destinadas a facilitar ao máximo todas as formas</p><p>de interação. Quem nelas está instalado acessa mais rápido e por um preço</p><p>menor a informação, basta que prestem atenção para entender aquilo que</p><p>lhes é útil. Diz-se que desta maneira beneficiam-se de economias externas.</p><p>De acordo com Claval (2004), as cidades são espaços que levam vantagens</p><p>frente a outros espaços, uma vez que estão estruturadas em redes de relações</p><p>sociais e econômicas, em redes de vias de transporte e de comunicação e</p><p>em</p><p>13A geografia pós-moderna</p><p>redes urbanas, que materializam os efeitos da combinação dessas redes. Os</p><p>espaços são hierarquizados de acordo com a presença dessas redes.</p><p>A geografia pós-moderna preocupa-se em resgatar a dialética socioespacial</p><p>e a necessidade de um materialismo histórico geográfico. De acordo com Soja</p><p>(1993), o tempo, o espaço e a matéria são profundamente ligados, e a natureza</p><p>dessa relação é tema na história e na filosofia da ciência. O espaço, na forma</p><p>física e abstrata “[...] pode ser primeiramente dado, mas a organização e o</p><p>sentido do espaço são produto da translação, da transformação e da experiência</p><p>sociais” (SOJA, 1993, p. 101).</p><p>Soja (1993) descreve o espaço como um produto social, seguindo a linha</p><p>de raciocínio de Lefebvre. O espaço “[...] é uma segunda natureza que se</p><p>transforma no sujeito e no objeto geográficos da análise histórica materialista</p><p>de uma interpretação materialista da espacialidade” (SOJA, 1993, p. 102).</p><p>Segundo Lefebvre (1976 apud SOJA, 1993, p. 102):</p><p>O espaço não é um objeto científico afastado da ideologia e da política; sempre</p><p>foi político e estratégio. Se o espaço tem uma aparência de neutralidade e</p><p>indiferença em relação a seus conteudos e, desse modo, parece ser ‘pura-</p><p>mente’ formal, a epítome da abstração racional, é precisamente por ter sido</p><p>ocupado e usado, e por já ter sido foco de processos passados cujos vestígios</p><p>nem sempre são evidentes na paisagem. O espaço foi formado e moldado a</p><p>partir de elementos históricos e naturais, mas esse foi um processo político. O</p><p>espaço é político e ideológico. É um produto literalmente repleto de ideologias.</p><p>Na perspectiva materialista, o importante é a relação entre o espaço criado</p><p>e organizado e as demais estruturas dentro de determinado modo de produção.</p><p>Para Lefebvre (1976 apud SOJA, 1993), o espaço socialmente produzido é</p><p>onde se reproduzem as relações dominantes de produção. Essas relações são</p><p>reproduzidas numa espacialidade consolidada e criada, que vai sendo ocupada</p><p>progressivamente por um capitalismo que avança. As relações dominantes são</p><p>fragmentadas, homogeneizadas em diferentes mercadorias e organizadas em</p><p>posições de controle ampliadas para a escala global.</p><p>Sobre os significados do espaço na pós-modernidade, David Harvey (1993)</p><p>observa que temos vivido a fase de compressão do tempo-espaço, e isso impacta</p><p>diretamente nas práticas político-econômicas, no equilíbrio do poder de classe e</p><p>sobre a vida social e cultural. Ao citar a acumulação flexível, o autor argumenta</p><p>que houve uma rápida implantação de novas formas organizacionais e de novas</p><p>tecnologias produtivas, que aceleraram a produção e centralizaram o capital</p><p>financeiro. A aceleração do tempo na produção paralelamente acelerara as</p><p>trocas e o consumo. Os sistemas cada vez mais avançados de comunicação e</p><p>A geografia pós-moderna14</p><p>de fluxo de informações e técnicas de distribuição possibilitaram a circulação</p><p>de mercadorias no mercado a uma velocidade maior. Os sistemas bancários</p><p>e os cartões de crédito aumentaram a rapidez no fluxo de dinheiro. Dessa</p><p>forma, os mercados financeiros também foram acelerados (HARVEY, 2008).</p><p>A aceleração do tempo e de produção de mercadorias estimulou o cres-</p><p>cimento do consumo. A mobilização da moda em mercados de massa, em</p><p>oposição ao mercado de elite, acelerou o consumo de roupas, utensílios,</p><p>eletrodomésticos, objetos de decoração, aparelhos eletrônicos, informática,</p><p>automóvel, além de prestações de serviços, atividades de lazer, apresentações</p><p>culturais, entre outros, que refletem um estilo de vida (HARVEY, 2008).</p><p>Contudo, Harvey (1993) cita algumas consequências dessa aceleração</p><p>generalizada do capital no espaço geográfico. Entre elas estão a volatilidade</p><p>e a efemeridade de moda, produtos, ideias, ideologias, valores. “A sensação</p><p>de que ‘tudo o que é sólido se desmancha no ar’ raramente foi mais pervasiva</p><p>(o que provavelmente explica o volume de textos sobre esse tema nos últimos</p><p>anos)” (HARVEY, 2008, p. 258). Outro problema é o descarte (roupas, co-</p><p>midas, embalagens, produtos, etc.), mostrando que, além do impacto do lixo</p><p>produzido, também são descartados valores, estilos de vida, relacionamentos</p><p>estáveis, o apego às coisas, etc.</p><p>Milton Santos (1926-2001), um dos mais respeitados geógrafos brasilei-</p><p>ros, define o espaço como um conjunto indissociável, solidário e também</p><p>contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, que não deve ser</p><p>considerado isoladamente, mas deve ser vistos de forma conjunta. De acordo</p><p>com Santos (2006, p. 39):</p><p>No começo era a natureza selvagem, formada por objetos naturais, que ao longo</p><p>da história vão sendo substituídos por objetos fabricados, objetos técnicos,</p><p>mecanizados e, depois, cibernéticos, fazendo com que a natureza artificial</p><p>tenda a funcionar como uma máquina. Através da presença desses objetos</p><p>técnicos: hidrelétricas fábricas, fazendas modernas, portos, estradas de ro-</p><p>dagem, estradas de ferro, cidades, o espaço é marcado por esses acréscimos,</p><p>que lhe dão um conteúdo extramamente técnico.</p><p>O espaço é hoje um sistema de objetos cada vez mais artificiais, povoado por</p><p>sistemas de ações igualmente imbutidos de artificialidade, e cada vez mais</p><p>tendentes a fins estranhos ao lugar e a seus habitantes.</p><p>Para o autor, o espaço está sempre se transformando, graças à sua dinâmica de</p><p>interação entre os sistemas de objetos e sistemas de ações. Os sistemas de objetos</p><p>subordinam a forma como se dão as ações, e o sistema de ações leva à criação</p><p>de objetios novos ou se realiza sobre objetos preexistentes (SANTOS 2006).</p><p>15A geografia pós-moderna</p><p>Neste capítulo, você observou que a pós-modernidade assinala a ruptura</p><p>da ordem temporal e rejeita a ideia de progresso do modernismo. Seus espaços</p><p>são fragmentados e descontínuos, não existindo uma linearidade. A geografia</p><p>passa a abordar a pós-modernidade pela necessidade de debater as novas formas</p><p>de espacialidade justificadas pelo sistema político-econômico que se reflete</p><p>nas relações sociais. O espaço ganha enfoque nas ramificações sociopolíticas,</p><p>relacionando-se ao tempo, à compressão do espaço-tempo e à sua própria</p><p>construção, formada pelo conjunto de sistemas de objetos e de ações.</p><p>CLAVAL. P. A Revolução pós-funcionalista e as concepções atuais da geografia. In:</p><p>MENDONÇA, F.; KOZEL, S. (org.). Elementos da epistemologia da geografia contemporânea.</p><p>Curitiba: UFPR, 2004.</p><p>GOMES, P. C. da C. Geografia e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.</p><p>HARVEY, D. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança</p><p>cultural. 17. ed. São Paulo: Loyola, 2008.</p><p>POLAND. In: SOPHIA-ANTIPOLIS. MyLittleAdventure. França: [s.n.], 2019. Disponível em:</p><p>https://www.mylittleadventure.pt/best-things/warsaw/tours/excursao-para-o-palacio-</p><p>-da-cultura-e-ciencia-em-varsovia-wuy8nTrm2X. Acesso em: 6 abr. 2019.</p><p>RETROACTIVE I. In: ROBERT RAUSCHENBERG FOUNDATION. Rauschenberg Foundation.</p><p>New York: [s.n.], 2019. Disponível em: https://www.rauschenbergfoundation.org/art/</p><p>artwork/retroactive-i. Acesso em: 6 abr. 2019.</p><p>SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP,</p><p>2006.</p><p>SOJA, E. W. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social. Rio de</p><p>Janeiro: Zahar, 1993.</p><p>WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das</p><p>Letras, 2004.</p><p>Leitura recomendada</p><p>BARROS FILHO, LOPES, F.; CORRASOZA J. Identidade e consumo na pós-modernidade:</p><p>crise e revolução no marketing. Revista FAMECOS, v. 31, dez. 2006. Disponível em: http://</p><p>revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/3400. Acesso</p><p>em: 6 abr. 2019.</p><p>A geografia pós-moderna16</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>AOS ESTUDOS</p><p>GEOGRÁFICOS</p><p>Silvana Kloster dos Santos</p><p>O hibridismo da</p><p>geografia cultural</p><p>Objetivos de aprendizagem</p><p>Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:</p><p> Reconhecer os elementos da geografia cultural e suas particularidades</p><p>no conhecimento geográfico.</p><p> Apontar</p><p>as contribuições da geografia cultural aos estudos contem-</p><p>porâneos e suas novas análises sobre o espaço geográfico.</p><p> Identificar a diversidade cultural das áreas geográficas.</p><p>Introdução</p><p>Neste capítulo, você aprenderá sobre a geografia cultural, suas particula-</p><p>ridades e suas contribuições no campo geográfico. A geografia cultural é</p><p>um subcampo que surgiu na Europa a mais de um século e se espalhou</p><p>por vários lugares no mundo. Tem sua essência “ligada à Terra”, particular-</p><p>mente envolvendo aspectos produzidos e modificados pela ação humana.</p><p>Esses aspectos geográficos resultam da ação do homem sobre o</p><p>seu espaço geográfico, resultando em diferentes comunidades com</p><p>características distintas que as concebem, atribuindo aos modos carac-</p><p>terísticos de vida de cada uma delas como culturas. A geografia cultural</p><p>tem o papel de relacionar, conferir, comparar e descrever a distribuição</p><p>variável dos diferentes espaços culturais existentes nos distintos espaços</p><p>geográficos, identificando aspectos ambientais e a ação humana sobre</p><p>esses espaços que a alteram, criando as paisagens culturais.</p><p>O papel da geografia cultural</p><p>no espaço geográfico</p><p>A geografi a cultural tem um papel importante no conhecimento geográfi co,</p><p>pois dá atenção especial às relações entre os grupos humanos e o meio. Essas</p><p>relações são o tema central da disciplina, as quais envolvem a sociedade e o</p><p>espaço geográfi co. Essa disciplina sempre esteve atuante nos principais mo-</p><p>vimentos de destaque da ciência geográfi ca, como positivismo, historicismo,</p><p>geografi a teorética-quantitativa, geografi a crítica de cunho marxista, geografi a</p><p>humanista e as geografi as denominadas pós-modernas.</p><p>Observe, aluno, que a geografia é uma ciência diversificada, uma vez que</p><p>as sociedades humanas são abrangentes, assim como a cultura e os espaços</p><p>geográficos dos grupos humanos. A geografia deve estar em constante trans-</p><p>formação para que possa envolver e, assim, compreender a diversidade das</p><p>manifestações culturais existentes. Passamos a entender agora o que é cultura.</p><p>O que é cultura?</p><p>O termo “Cultura” deriva do latim colere, que tem por signifi cado o cuidado</p><p>e aperfeiçoamento das capacidades intelectuais precisamente humanas que</p><p>vão além do estado natural. Nos séculos XVII e XVIII, o termo se fortaleceu,</p><p>sendo conhecido como tudo aquilo que o homem insere à natureza, seja em si</p><p>mesmo ou em outros objetos. A cultura, então, é entendida como a somatória</p><p>de bens culturais. Enquanto natureza, constitui o que é inato do homem ou</p><p>o que existe fora de si sem sua infl uência, assim cultura passa a signifi car</p><p>tudo aquilo que deve sua origem à interferência livre e consciente do homem</p><p>(OLIVEIRA, 1990).</p><p>Segundo Oliveira (1990), é a partir do século XVIII que o uso moderno</p><p>do conceito de cultura se tornou mais comum, principalmente no pensamento</p><p>social inglês e germânico. Na verdade, o conceito passou a ser compreendido</p><p>por meio de quatro aspectos: primeiro, é uma “condição geral e específica da</p><p>mente” fortemente ligada à ideia de perfeição humana; segundo, um estado</p><p>de desenvolvimento intelectual da sociedade como um todo; terceiro, um</p><p>corpo geral de trabalho artístico e intelectual; quarto, é o todo do modo de</p><p>vida material e espiritual de uma determinada sociedade.</p><p>A cultura é a mediação entre os homens e a natureza, pois esses não estão</p><p>numa relação direta com a natureza, vivem em um meio artificial criado por</p><p>eles mesmos (vestiário, moradia, caminhos e vias de acesso que facilitam a</p><p>circulação, o cultivo de plantas, etc.) (CLAVAL, 1999).</p><p>O hibridismo da geografia cultural2</p><p>Alguns pesquisadores delimitam uma linha divisória entre as causas e as</p><p>condições da cultura. Para eles, as causas e as condições da cultura não são</p><p>provenientes delas mesmas. Entre as condições da cultura mencionam-se as</p><p>localizações geográficas de um povo, seu histórico, período e modo de ser, o</p><p>contato com outros povos e culturas, as culturas pré-estabelecidas, etc.</p><p>Assim sendo, para esses pesquisadores, não existe projeto cultural, e as</p><p>verdadeiras causas da cultura são as atitudes e necessidades do homem. O</p><p>exemplo são as ciências que nascem e se desenvolvem devido ao impulso de</p><p>investigação, que é da inteligência e curiosidade humana, a moralidade e a</p><p>religião do querer moral intrínseco à natureza humana, a arte de invenção do</p><p>sentimento estético e do impulso imaginativo e criador próprio do homem</p><p>(OLIVEIRA, 1990).</p><p>A cultura que interessa aos geógrafos é aquela constituída pelo conjunto</p><p>dos elementos, o saber fazer e os conhecimentos por meio dos quais os homens</p><p>mediatizam suas relações com o meio natural (CLAVAL, 1999).</p><p>O homem tem a capacidade de transformar o espaço geográfico onde vive.</p><p>Como parte da comunidade, o homem é capaz de ser defensor e criador de</p><p>culturas, podendo ser livre com respeito às suas ações e aos seus projetos,</p><p>que podem ocorrer sem ser instintivamente predeterminados. A habilidade de</p><p>concretizar projetos superiores se manifesta em sua capacidade cultural, pois</p><p>unicamente o homem pode criar e produzir os objetos e utensílios, preencher</p><p>seu espaço circundante com suas obras sem estar essa habilidade criadora</p><p>predeterminada pelos instintos. Somente a espécie humana possui o talento</p><p>de formar e criar os objetos segundo um objetivo e de usá-los como bens</p><p>culturais. O homem, quando nasce, vem ao mundo como um ser incapaz e</p><p>privado de instintos. São as instituições culturais que o ajudam, intervindo</p><p>no seu processo de aprendizado e o ajudando a adaptar-se à nova realidade</p><p>(OLIVEIRA, 1990).</p><p>A ação humana, ao longo do tempo, vai substituindo as suas forças mecâni-</p><p>cas pela energia fornecida pelos animais e, posteriormente, pela madeira, pelo</p><p>vento, pelas águas correntes e pela energia elétrica. Os combustíveis fósseis e</p><p>o átomo servem para acionar as máquinas e as ferramentas que multiplicam</p><p>a produção e garantem aos grupos um controle cada vez mais forte, mas não</p><p>total, sobre os meios onde vivem e sobre aqueles que cooperam para a satisfação</p><p>de suas necessidades (CLAVAL, 1999).</p><p>A cultura aparece como uma herança, visto que o homem e os grupos</p><p>são condicionados pela educação que recebem. Segundo Claval (1999), as</p><p>modalidades pelas quais a cultura é transmitida de uma geração à outra ou</p><p>de um lugar a outro é favorecida pelas trocas, pelos deslocamentos de curta</p><p>3O hibridismo da geografia cultural</p><p>duração ou pelas migrações, e dependem do meio e do nível técnico, o que</p><p>contribui amplamente para a diversidade das sociedades, formando a memória</p><p>coletiva dos grupos.</p><p>E como se forma a memória coletiva que identifica um grupo?</p><p>A cultura não é vivenciada passivamente por aqueles que a recebem como</p><p>herança. Os indivíduos reagem sobre o que lhes é proposto ou que lhes espera</p><p>impor. Certos traços culturais são interiorizados, e outros são rejeitados, pois</p><p>criticam os valores usuais quando não correspondem aos seus anseios profun-</p><p>dos. Alguns traços culturais são substituídos por novas invenções ao longo de</p><p>suas vidas, novas maneiras de fazer são atribuídas, novas formas, novas cores.</p><p>Os modelos culturais não são imutáveis, surgem inovações (CLAVAL, 1999).</p><p>Observe, na Figura 1, como o homem transforma a paisagem, inserindo traços cul-</p><p>turais que se relacionam com a história local. Neste caso, temos a cidade turística</p><p>de Gramado, no Rio Grande do Sul, e seus moradores descendentes de imigrantes</p><p>vindos da Alemanha, que fizeram questão de refletir suas origens na arquitetura local.</p><p>Figura 1. Centro da cidade de Gramado, no Rio Grande do Sul.</p><p>Fonte: Diego Grandi/Shutterstock.com.</p><p>O hibridismo da geografia cultural4</p><p>A cultura é composta de realidades e signos criados pelo homem que a</p><p>descreve, domina e a verbaliza. A ela se atribui uma dimensão simbólica.</p><p>Alguns gestos, ao serem repetidos em público, recebem novas significações</p><p>e transformam-se em rituais pertencentes à mesma comunidade. A partir do</p><p>momento em que as ações coletivas passam a fazer parte da topografia, mo-</p><p>dificando a paisagem por meio das arquiteturas admiráveis e de monumentos</p><p>criados para manter a memória coletiva de todos, o espaço torna-se território,</p><p>sendo conhecido pela sua paisagem cultural.</p><p>O que é paisagem cultural?</p><p>De acordo com conceitos geográfi cos, “paisagem” tem uma estreita relação</p><p>com o termo “região”. As formas de representação do conceito de região são</p><p>diversas e estão sempre em movimento. A região não possui limites rígidos e</p><p>está em constante construção e reconstrução, uma vez que nela está contida</p><p>a sociedade em permanente transformação, relacionando-se com o global e o</p><p>local, considerando interesses que podem ser tanto políticos como econômicos,</p><p>sociais, culturais e de interesse do próprio espaço.</p><p>A partir da década de 70, a concepção humanista passa a compreender a região</p><p>como “espaço vivido” em relação ao sistema capitalista vigente. É representada</p><p>por seus habitantes e reconhecida pelos outros, os que não habitam a região. Dessa</p><p>forma, criam-se as identidades entre os grupos sociais e os lugares específicos,</p><p>o que dá enfoque ao sentimento de pertencimento, de consciência regional. A</p><p>região existe como referência na consciência das sociedades.</p><p>A região geográfica seria uma abordagem construída a partir da descrição</p><p>das características físicas em paralelo com a descrição estrutural da população</p><p>e de suas atividades econômicas, não sendo, portanto, uma identificação,</p><p>a priori, dos traços distintivos da unidade regional, pois, segundo determi-</p><p>nados aspectos físicos, a comunidade cria uma forma diversa de se adaptar</p><p>(GOMES, 1995; BEZZI, 2004).</p><p>Ao contrário do determinismo ambiental, em que a natureza determina as</p><p>possibilidades sobre as quais o homem materializa seus hábitos, costumes,</p><p>cultura, economia, etc. sobre a paisagem, outro paradigma tem maior importân-</p><p>cia, pois justamente a partir da ação transformadora humana sobre a natureza</p><p>é que o homem a modifica com sua cultura, suas atividades, sua economia,</p><p>passando a expressar as características peculiares da sua cultura. Como afirma</p><p>Gomes (1995, p. 95): “[...] o meio ambiente propõe, o homem dispõe”.</p><p>5O hibridismo da geografia cultural</p><p>Então, caro aluno, você pode perceber que a paisagem cultural se refere</p><p>ao conteúdo geográfico de um determinado espaço, onde são expressas as</p><p>escolhas feitas e as modificações realizadas pelos homens enquanto membros</p><p>de uma comunidade cultural. A paisagem é carregada de símbolos culturais,</p><p>traz a marca da atividade produtiva dos homens e de seus empenhos em habitar</p><p>o mundo, adaptando-o às suas necessidades.</p><p>Para Machado (2007, p. 139):</p><p>A paisagem constitui um documento chave para se compreender as culturas, o</p><p>único que frequentemente subsiste para as sociedades do passado. Interpretar</p><p>uma paisagem cultural é falar dos homens que a modelaram e que a habitam</p><p>hoje, bem como aqueles que a precederam, é informar sobre as necessidades</p><p>e os sonhos de hoje e do passado, pensando no futuro.</p><p>O estudo da cultura dos indivíduos e sua relação com o território abriu</p><p>caminho para a criação da geografia cultural. A geografia cultural surgiu a</p><p>partir da Europa, difundindo-se, tendo já um século de existência. Você verá,</p><p>no próximo tópico, como se iniciou os estudos desse importante subcampo da</p><p>geografia, passando pela fase naturalista e funcionalista.</p><p>Contribuições da geografia cultural e suas</p><p>particularidades no conhecimento geográfico</p><p>No século XIX, os geógrafos abandonaram uma tradição de tendências cientí-</p><p>fi cas de caráter enciclopédico e deram lugar a uma concepção mais naturalista</p><p>e, posteriormente, funcionalista da geografi a. A geografi a cultural surge</p><p>primeiramente pelo interesse prioritário na relação entre o homem com o seu</p><p>meio, ou seja, no sentido de adaptação do homem ao meio físico.</p><p>Posteriormente, adota-se uma visão funcionalista, em que os grupos hu-</p><p>manos passam a ocupar o centro da análise, não do meio, mas do espaço</p><p>geográfico. O espaço geográfico não ignora o meio natural, meio esse que</p><p>não tolera que se produza qualquer coisa em qualquer lugar, mas a variável</p><p>principal é a distância. O funcionamento dos grupos sociais é causado pela</p><p>dispersão dos seus membros. O espaço geográfico aborda amplamente o</p><p>estudo das localizações.</p><p>O hibridismo da geografia cultural6</p><p>Tradição dos estudos em geografia cultural</p><p>O termo geografi a cultural é introduzido pela primeira vez nos estudos, nos</p><p>anos de 1880, na Alemanha, na obra de Friedrish Ratzel (1844-1904) sobre a</p><p>geografi a dos Estados Unidos. Ratzel se dedica aos estudos dos fundamentos</p><p>culturais da diferenciação regional da Terra. Sua obra divide-se em três volumes</p><p>consagrados do Völkerkunde (etnografi a), que foi publicado entre 1885 e 1888.</p><p>Suas obras abordam sobre povos primitivos, povos civilizados do Antigo e do</p><p>Novo Mundo. Nos anos de 1890, o autor dedica-se aos estudos dos povos moder-</p><p>nos, consagrando-se com sua Politische Geographie (1897) (CLAVAL, 1999).</p><p>Ratzel percebe nos povos uma característica que pertence à sua essência: a</p><p>mobilidade. Os povos dominam as técnicas que garantem sua adaptação ao meio</p><p>próximo e dependem da história e do nível de desenvolvimento. A geografia</p><p>idealizada por Ratzel confere um lugar da relação do homem com a cultura, visto</p><p>está diretamente ligada aos meios de aproveitamento do ambiente e àqueles esta-</p><p>belecidos para facilitar os deslocamentos. Todavia, essa cultura é especialmente</p><p>considerada sobre o ponto de vista material, como um conjunto de componentes</p><p>utilizados pelos homens em sua relação com o espaço (CLAVAL, 1999).</p><p>Segundo Claval (1999), outros geógrafos alemães também contribuíram na</p><p>primeira fase da geografia cultural, como Otto Schlüter (1872-1959), que se</p><p>dedicou às paisagens humanizadas, e August Meitzen (1822-1910), que trabalhou</p><p>uma vida inteira de pesquisa dedicada às migrações, à sedentarização e ao di-</p><p>reito agrário dos povos europeus no norte dos Alpes. Eduard Hahn (1856-1920)</p><p>apresentou em suas obras a complexidade das origens da agricultura, mostrando</p><p>que o trabalho da terra caminha junto com a domesticação dos animais. Siegfried</p><p>Passarge (1866-1958) fez análises comparativas de paisagem, servindo de modelo</p><p>na Alemanha e em outros países nos anos de 1920 a 1960.</p><p>A geografia cultural americana desponta 30 anos após os primeiros tra-</p><p>balhos alemães. Carl O. Sauer (1889-1975) é seu principal representante e</p><p>fundador da escola de Berkeley. Sauer observa a cultura como um conjunto</p><p>de instrumentos e de artefatos que permite ao homem atuar sobre o mundo</p><p>exterior. A cultura, para ele, é composta de associações de plantas e de animais</p><p>que as sociedades aprenderam a utilizar para modificar o ambiente natural</p><p>e, assim, torná-lo mais produtivo. Essas transformações não são inertes. Se</p><p>forem realizadas sem prudência, ameaçam o equilíbrio profundo da natureza e</p><p>conduzem a catástrofes ecológicas. A competência para gerenciar o ambiente</p><p>com bom senso é, para Sauer, um dos maiores traços segundo os quais as</p><p>culturas devem ser avaliadas (CLAVAL, 1999).</p><p>7O hibridismo da geografia cultural</p><p>O que foi a escola de Berkeley?</p><p>Nos Estados Unidos, a preocupação em estudar as paisagens e sua relação com</p><p>a cultura que fosse além da coleta de dados e às representações cartográficas fez</p><p>surgir, nos anos de 1930, a Escola de Berkeley, tendo como seu precursor o geógrafo</p><p>americano Carl O. Sauer.</p><p>Os trabalhos dessa escola tratam, especialmente, das sociedades de etnólogos</p><p>(aqueles que observam e analisam os grupos humanos, considerando as suas par-</p><p>ticularidades, visando a uma descrição fiel da vida de cada um deles) do mundo</p><p>americano ou das grandes civilizações tradicionais. Esses etnólogos concentram seus</p><p>estudos nos ameríndios e na América Latina, porém o Extremo Oriente, a Europa e</p><p>o mundo mediterrâneo também são estudados. Entre as suas contribuições estão a</p><p>reconstituição do que foi a América na véspera da descoberta.</p><p>As orientações dadas à geografia cultural por parte da escola de Berkeley continuam</p><p>atuais no que concerne à preocupação ecológica, vigente desde essa época (CLAVAL, 1999).</p><p>A contribuição francesa para a geografia cultural vem com Paul Vidal de</p><p>La Blache (1845-1918), que, com base na concepção da geografia humana pro-</p><p>posta por Ratzel, estuda as influências do meio sobre as sociedades humanas.</p><p>Para analisa-las, interessa-se, também, pelo conjunto das técnicas e dos utensí-</p><p>lios que os homens fabricam para transformar o contexto onde vivem, torna-lo</p><p>mais de acordo com suas necessidades e explora-lo: ele mostra tudo o que as</p><p>coleções de artefatos acumuladas nos museus de etnografia trazem à com-</p><p>preensão das relações entre homens e seus ambientes (CLAVAL, 1999, p. 33).</p><p>Sua aspiração é explicar os lugares, e não se concentrar sobre os homens.</p><p>Tanto para Vidal de La Blache como para os demais geógrafos alemães e</p><p>americanos, a cultura referente é aquela que compreende os instrumentos que</p><p>as sociedades utilizam e as paisagens que modelam.</p><p>Jean Brunhes (1869-1930), um dos primeiros alunos de Vidal de La Bla-</p><p>che, rigoroso em relação aos métodos de pesquisa, acreditava que a geogra-</p><p>fia humana tem por missão analisar os fatos de ocupação do solo, seja eles</p><p>produtivos ou destrutivos. Seus estudos mantêm uma relação estreita com</p><p>a etnografia. Pierre Deffontaines (1894-1978), pesquisador e fabuloso dese-</p><p>nhista de paisagens, apesar de ter perdido a mão após ser ferido na Primeira</p><p>O hibridismo da geografia cultural8</p><p>Guerra Mundial, trabalhou com Jean Brunhes. Seus temas são variados, e</p><p>suas contribuições para a geografia cultural se aproximam dos etnógrafos e</p><p>dos folcloristas (CLAVAL, 1999).</p><p>Você percebeu que a geografia cultural, nesta primeira fase, centrava seu</p><p>interesse pela cultura a partir do fato de ela ser entendida como o resultado</p><p>da ação humana alterando a paisagem natural?</p><p>No período entre o século XIX e a primeira metade do século XX, preva-</p><p>leceu uma geografia chamada ulteriormente de “clássica” ou “tradicional”,</p><p>que, mesmo leal a suas concepções, certamente foi distinta e plural, como</p><p>visto nas escolas alemã, francesa e norte-americana. A fundamentação teórica</p><p>compatível com o pensamento da época foi respaldada no chamado “neoposi-</p><p>tivismo”, ou “positivismo lógico”, como matriz filosófica da nova abordagem</p><p>geográfica (AMORIM FILHO, 2007).</p><p>Uma nova fase é implantada nos anos de 1950 – o funcionalismo –, em que</p><p>os grupos e a sua localização passam a ocupar o centro da análise, além da</p><p>distância e na dispersão dos membros. O espaço torna-se funcional, fornecedor</p><p>de recursos energéticos e monetários, e a troca entre os grupos relaciona-se a</p><p>mercados, empresas, deslocamento e transporte de bens. Alguns lugares levam</p><p>vantagens em relação aos outros, e as cidades são espaços das interações sociais.</p><p>Surgiram críticas a respeito dessa visão. O pouco interesse numa visão</p><p>prática e o constante estudo de sociedades tradicionais com ausência de uma</p><p>sensibilidade social, crítica, principalmente dos grupos dominados pela ex-</p><p>ploração capitalista, deram margem ao surgimento de críticas, vindas dos</p><p>geógrafos ligados à perspectiva do materialismo histórico.</p><p>O caráter otimista que prevaleceu nas duas ou três décadas do pós-Segunda</p><p>Guerra Mundial, que promoveu o desenvolvimento da corrente da geografia</p><p>quantitativa e teorética (Nova Geografia), chega ao fim na segunda metade</p><p>da década de 1960 e início dos anos de 1970. A insatisfação é gerada, entre</p><p>outros motivos, pelas crises socioeconômicas, ambientais, energéticas, políticas</p><p>e pelas guerras, como a do Vietnã, (AMORIM FILHO, 2007).</p><p>Essas críticas desencadearam uma intensa reformulação na geografia cul-</p><p>tural a partir do fim da década de 1970, com debates teóricos, metodológicos</p><p>e epistemológicos que renovarão a geografia cultural na década de 1990. Os</p><p>críticos da “Nova Geografia” buscaram informar que os conhecimentos, as</p><p>informações, os mapas e qualquer outra produção geográfica foram con-</p><p>tinuamente usados pelo poder político-econômico, mostrando claramente</p><p>que existe uma profunda relação entre ideologia e geografia, e que o espaço</p><p>9O hibridismo da geografia cultural</p><p>geográfico só poderá ser compreendido em suas estruturas e processos a partir</p><p>do momento em que for analisado como um produto social, um produto do</p><p>modo de produção dominante na sociedade (AMORIM FILHO, 2007).</p><p>O processo de renovação foi gerado a partir do contexto de valorização da</p><p>cultura ocorrida nos anos anteriores. A década de 1980 é marcada por uma</p><p>“virada cultural”, ou seja, um conjunto de mudanças ocorridas em escala</p><p>mundial que refletirão na dimensão cultural dos processos em ação.</p><p>Entre essas mudanças estão as ligadas à economia, como o fim da Guerra</p><p>Fria, o aumento dos fluxos migratórios dos países periféricos para os países</p><p>centrais, o surgimento da preocupação com o meio ambiente, as situações de</p><p>segregação e o aumento da pobreza, as novas formas de ativismo social e a</p><p>necessidade de novas visões para entender a realidade, até então atrelada no</p><p>racionalismo moderno, científico e tecnificado.</p><p>No Brasil, a geografia cultural vai aparecer somente a partir de 1993, com</p><p>a criação do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Espaço e Cultura (NEPEC),</p><p>do Departamento de Geografia da UERJ, responsável pelo periódico Espaço e</p><p>Cultura, a publicação eletrônica Textos NEPEC e a coleção de livros Geografia</p><p>Cultural (CORRÊA, 2009).</p><p>O papel da geografia cultural no espaço</p><p>geográfico contemporâneo: o estudo</p><p>das representações</p><p>Você observou, caro aluno, que duas grandes visões de geografi a foram ide-</p><p>alizadas entre o fi m do século XIX e os anos de 1970. Enquanto a geografi a</p><p>naturalista estudava as relações entre a natureza e a sociedade, a funcionalista</p><p>dava importância ao papel do espaço no funcionamento dos grupos humanos.</p><p>Suas concepções se divergiam em muitas questões, contudo, baseavam-se em</p><p>uma suposição comum, segundo Claval (2004, p. 11): “[...] o da existência de</p><p>realidades globais, fossem elas a natureza, a sociedade ou sociedades”. Seus</p><p>interesses estavam em desenvolver noções úteis aos homens nessa linha.</p><p>Essas abordagens foram realmente relevantes para as ciências, porém foram</p><p>incapazes de perceber e explicar a diversidade do pensamento dos homens,</p><p>por isso, as críticas que ocorrem a partir dos anos de 1970 explicam sobre a</p><p>distribuição do homem no espaço geográfico, suas atividades e suas obras, como</p><p>se os fenômenos naturais não pudessem ser questionados (CLAVAL, 2004).</p><p>O hibridismo da geografia cultural10</p><p>Veja, a seguir, no exemplo de Claval, como certos aspectos de um determinado fenô-</p><p>meno eram até então negligenciados na geografia cultural, fazendo muitos geógrafos</p><p>se interessarem por uma visão mais sistêmica:</p><p>[...] é porque os solos são pobres e ácidos que a cultura do trigo não</p><p>rende muito, razão pela qual agricultores o substituíram pelo centeio; é</p><p>porque dentro dos Estados Unidos, a acessibilidade é máxima na zona</p><p>compreendida entre a costa atlântica e o vale superior do Mississipi</p><p>que o Industrial Belt aí se fixou.</p><p>Os pesquisadores sabem muito bem que os processos são frequentemen-</p><p>te mais complexos. A característica dos solos é um indicador proble-</p><p>mático para o agricultor, mas as plantas que escolhe, a cultura rotativa</p><p>que pratica, as técnicas a que sempre recorre, os adubos que espalha,</p><p>modificam as condições pedológicas. Num mercado, os compradores</p><p>propõem um preço em vista das quantidades e das qualidades oferecidas.</p><p>Em função desse preço, os vendedores modificam suas propostas. Os</p><p>compradores reagem propondo outra cotação. É ao final desse jogo</p><p>de respostas alternativas que o preço vem a ser estabelecido: estamos</p><p>diante de um mecanismo de dupla retroação (CLAVAL, 2004, p. 22).</p><p>Os enfoques sistêmicos surgem do interesse de explicar um fenômeno não</p><p>apenas por uma cadeia causal em particular, mas pelo conjunto de cadeias</p><p>causais ativas, num meio ou numa sociedade. É necessária uma análise mais</p><p>complexa dos problemas que a geografia costuma</p><p>analisar.</p><p>Dessa maneira, a geografia aproxima-se das ciências sociais na busca</p><p>de respostas aos questionamentos sobre determinado objeto estudado. Con-</p><p>siste justamente no estudo das relações e suas representações. A perspectiva</p><p>funcionalista já dava a ideia de se estudar as relações entre as redes físicas</p><p>das infraestruturas e as redes econômicas e sociais dos lugares habitados. O</p><p>economista Francois Perroux (1903-1987) propõe uma reflexão sobre o espaço</p><p>econômico, introduzindo uma dimensão mais psicológica.</p><p>Henri Lefebvre (1901-1991), filósofo marxista e sociólogo francês, vê o espaço</p><p>por meio das realidades materiais (naturais), das realidades sociais (projetos,</p><p>símbolos e utopias) e das realidades mentais, diferenciando os níveis nos dados da</p><p>experiência: da economia, do social, do político e da ideologia (CLAVAL, 2004).</p><p>11O hibridismo da geografia cultural</p><p>Para Costa (2012), o espaço não é visto como passivo, mas como lugar</p><p>da reprodução das relações de produção. O autor ainda complementa que</p><p>“[...] essas relações (sociais) de produção que dão sentido ao espaço; elas</p><p>o produzem ao mesmo passo em que também são produzidas por este”</p><p>(COSTA, 2012, p 143). A partir disso, Lefebvre (2003) apresenta o espaço</p><p>em três dimensões: o percebido, o concebido e o vivido.</p><p> Espaço percebido (L’espace perçu): espaço empírico, material, que</p><p>remete à experiência direta, prático-sensível.</p><p> Espaço concebido (L’espace conçu): representações do espaço, espaço</p><p>planejado (p. ex., da tecnocracia, dos urbanistas).</p><p> Espaço vivido (L’espace evécu): espaço da prática cotidiana, espaço</p><p>das diferenças e das possibilidades.</p><p>A ruptura com as perspectivas antigas se torna fato consumado quando</p><p>autores como James Duncan questionam a visão da cultura como uma realidade</p><p>superior, inacessível, mas não somente à cultura, mas à natureza, à sociedade</p><p>e ao Estado como entidades superiores, que os pesquisadores deveriam aceitar</p><p>como dados. Os geógrafos, como testemunhas do mundo, devem trabalhar</p><p>esses dados do seu tempo e sobre a sua realidade próxima, assim como os</p><p>sociólogos, historiadores, etc. (CLAVAL, 2004).</p><p>A geografia cultural atual busca relatar fatos por meio da redescoberta</p><p>da experiência e da vivência, o que acaba dando voz a grupos como os das</p><p>mulheres, dos jovens, idosos, LGBTT+, negros, etc. Cada grupo tem sua</p><p>percepção sobre o mundo e as suas relações no espaço geográfico.</p><p>Para Claval (2004, p. 33), o espaço é um palco de representações:</p><p>O espaço que os novos enfoques apreendem não é mais concebido como um</p><p>mosaico de meios naturais ou humanizados; ele não aparece mais como o</p><p>suporte folheado e organizado das atividades humanas. Constitui um teatro</p><p>onde as pessoas se oferecem um espetáculo. É necessário um palco, ou palcos,</p><p>onde os atores possam atuar, uma plateia e camarotes para aqueles a quem</p><p>o drama, a comédia ou a tragédia interessam, bastidores para proteção dos</p><p>olhares indiscretos, e corredores que levem aos assentos, ou que vão do palco</p><p>aos bastidores, e vice-versa.</p><p>O hibridismo da geografia cultural12</p><p>Goffmann (1989), em seus estudos sobre as representações, também utiliza</p><p>a perspectiva da representação teatral ao longo do seu livro “A representação</p><p>do eu na vida cotidiana”. Para o autor, o indivíduo está sempre representando</p><p>intencional ou inconscientemente e utiliza a expressão “fachada” como sendo</p><p>a dimensão do desempenho do indivíduo, que funciona constantemente de</p><p>forma geral e fixa, com o objetivo de definir a situação para os observadores</p><p>de uma representação.</p><p>O espaço onde se movimentam os indivíduos lhe oferece ocasiões de</p><p>encontros e de experiências renovadas. Indivíduos com histórias e trajetórias,</p><p>muitas vezes diferentes uns dos outros, tornam o espaço um local receptáculo</p><p>de multiculturas e de trocas nem sempre muito bem aceitas, ocasionando as</p><p>tensões em muitas ocasiões em que os grupos são levados a conviverem. As-</p><p>sim, para conviver, toda sociedade precisa de normas e regras. Descobrem-se</p><p>perspectivas sobre o espaço geográfico que permitem julgá-lo, entendê-lo no</p><p>seu funcionamento e, assim, poder corrigi-lo, se necessário (CLAVAL, 2004).</p><p>Você percebeu, caro aluno, que existem várias formas de conceber a geogra-</p><p>fia. A evolução do pensamento geográfico propõe uma série de pontos de vista</p><p>diferentes, mas que jamais se excluem totalmente. Não é porque a geografia</p><p>passou a interessar-se pelas relações e o pensamento entre os indivíduos que</p><p>a preocupação com o meio ambiente ou os problemas de aumento da pobreza</p><p>deixaram de existir. As geografias, na verdade, se complementam.</p><p>Acesse o link a seguir e leia o texto “Paisagem cultural: da cena visível à encenação</p><p>da alma”, de Beatriz Helena Furlanetto e Salete Kozel (2014), que discute as diferentes</p><p>perspectivas teórico-conceituais da paisagem nos estudos da geografia cultural por</p><p>meio de análise bibliográfica e documental. Além dos temas já apresentados neste</p><p>capítulo, o texto apresenta um debate sobre paisagem espiritual, paisagem essa,</p><p>carregada de sentido e investida de afetividade, revelando as complexidades da</p><p>alma humana.</p><p>https://goo.gl/vUCE5d</p><p>13O hibridismo da geografia cultural</p><p>AMORIM FILHO, O. B. A pluralidade da geografia e a necessidade das abordagens</p><p>culturais. In: KOZEL, S.; SILVA, J. da C. (org.). Da percepção e cognição a representação: re-</p><p>construções teóricas da geografia cultural e humanista. Curitiba: Terceira Imagem, 2007.</p><p>BEZZI, M. L. Região: uma (re)visão historiográfica da gênese aos novos paradigmas.</p><p>Santa Maria: UFSM, 2004.</p><p>CLAVAL. P. A geografia cultural. Florianópolis: UFSC, 1999.</p><p>CLAVAL. P. A revolução pós-funcionalista e as concepções atuais da geografia. In: MEN-</p><p>DONÇA, F.; KOZEL, S. (org.). Elementos da epistemologia da geografia contemporânea.</p><p>Curitiba: UFPR, 2004.</p><p>CORRÊA, R. L. Sobre a geografia cultural. In: RIO GRANDE DO SUL. Instituto Histórico e</p><p>Geográfico do Rio Grande do Sul. [Porto Alegre: s.n.], 2009. Disponível em: http://ihgrgs.</p><p>org.br/artigos/contibuicoes/Roberto%20Lobato%20Corr%C3%AAa%20-%20Sobre%20</p><p>a%20Geografia%20Cultural.pdf. Acesso em: 27 mar. 2019.</p><p>COSTA, C. R. R. Turismo, produção e consumo do espaço litorâneo. Geografia em Questão,</p><p>v. 5, n. 1, 2012. Disponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/geoemquestao/</p><p>article/view/5078. Acesso em: 1 abr. 2019.</p><p>FURLANETTO, B. H.; KOZEL, S. Paisagem cultural: da cena visível à encenação da alma.</p><p>Ateliê Geográfico, v. 8, n. 3, p. 215-232, dez. 2014. Disponível em: https://www.revistas.</p><p>ufg.br/atelie/article/view/24103/18088. Acesso em: 28 mar. 2019.</p><p>GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana. São Paulo: Perspectiva, 1989.</p><p>GOMES. P. C. da C. O conceito de região e sua discussão. In: CASTRO, I. E.; GOMES, P. C. da</p><p>C.; CORRÊA, R. L. (org.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.</p><p>LEFEBVRE, H. The production of space. Oxford: Blackwell, 2003.</p><p>MACHADO, L. M. C. P. Paisagem cultural. In: KOZEL, S. et al. (org.). Da percepção e cognição</p><p>a representação: reconstruções teóricas da geografia cultural e humanista. Curitiba:</p><p>Terceira Imagem; NEER, 2007.</p><p>OLIVEIRA, A. S de. Antropologia filosófica. In: OLIVEIRA. A. S de. et al. Introdução ao</p><p>pensamento geográfico. 4. ed. São Paulo: Loyola, 1990.</p><p>O hibridismo da geografia cultural14</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>AOS ESTUDOS</p><p>GEOGRÁFICOS</p><p>Anna Paula Lombardi</p><p>Paradigmas em geografia</p><p>Objetivos de aprendizagem</p><p>Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:</p><p> Caracterizar o determinismo geográfico.</p><p> Explicar a relação entre os seres humanos e o meio.</p><p> Comparar a geografia determinista e a geografia possibilista.</p><p>Introdução</p><p>A geografia percorreu um longo caminho até se constituir como ciência</p><p>e formar seus paradigmas próprios. Os paradigmas procuram explicitar os</p><p>elementos do discurso científico que têm importância universal. Para Kuhn</p><p>(2006), os paradigmas são realizações científicas universalmente reconhecidas</p><p>que, durante algum tempo, fornecem</p><p>problemas e soluções modeladoras</p><p>do conhecimento científico para a comunidade de praticantes de uma</p><p>ciência. Por meio deles, é possível eleger o que é importante para a pesquisa.</p><p>Quando surgem, as novas ciências não têm um paradigma estabelecido,</p><p>de modo que são chamadas por Kuhn (2006) de ciências imaturas. Para ele,</p><p>quem faz ciência na ausência de um paradigma unificador se depara com</p><p>uma coleção arbitrária de conceitos não organizados, sem qualquer estrutura</p><p>integradora capaz de lhes dar coerência e unidade, ou então com múltiplas</p><p>propostas de estruturas integradoras incompatíveis entre si. Na geografia, a</p><p>primeira teoria ou paradigma foi o determinismo geográfico, proposto pelo</p><p>alemão Friedrich Ratzel. Há ainda outros quatro paradigmas importantes:</p><p>possibilismo geográfico, método regional, nova geografia e geografia crítica.</p><p>O determinismo geográfico e as suas</p><p>características</p><p>O determinismo geográfi co também é conhecido como determinismo ambiental.</p><p>Como você sabe, o desenvolvimento das grandes potências da Europa e da Amé-</p><p>rica foi possível por meio de vantagens relacionadas ao território, à localização e</p><p>principalmente às questões ambientais. Em meados do século XVI, a geografi a,</p><p>por meio do senso comum e aliada às explicações religiosas e ao conhecimento</p><p>fi losófi co, orientou as preocupações do homem em relação ao universo. Somente</p><p>após o século XVI, com a perda de espaço da religião, é que a ciência seguiu uma</p><p>linha de pensamento que propunha encontrar um conhecimento embasado em</p><p>maiores garantias, ou seja, na procura do real ou das realidades estabelecidas na</p><p>superfície terrestre. Assim, a geografi a não buscava mais compreender os fenô-</p><p>menos apenas por meio das descrições da natureza. Ela procurava compreender</p><p>as relações entre os fenômenos aliando a observação científi ca ao raciocínio.</p><p>A expressão “determinismo geográfico” foi criada pelo etnógrafo e geó-</p><p>grafo alemão Friedrich Ratzel (1844–1904), que contribuiu para a história do</p><p>pensamento geográfico e geopolítico. Segundo Moreira (2014), a modernidade</p><p>industrial e a geografia fragmentária dos séculos XIX e XX foram construídas</p><p>a partir do holismo e com as características do século das luzes. Nesse perí-</p><p>odo, a geografia teve como particularidade a organização do conhecimento</p><p>científico, e o positivismo aparece como a matriz paradigmática.</p><p>De acordo com Côrrea (2000), os geógrafos deterministas, junto à geografia</p><p>tradicional em suas diversas versões, privilegiaram os conceitos de paisagem e</p><p>região, estabelecendo discussões sobre o objeto da geografia e a sua identidade</p><p>em relação às demais ciências. Nesse período, a abordagem espacial, associada</p><p>à localização das atividades dos homens, era secundária. Ratzel também definiu</p><p>o que chamou de “espaço vital”, compreendido como base indispensável para</p><p>a vida do homem e determinante para as condições de trabalho, sendo elas</p><p>naturais ou socialmente produzidas. Portanto, para Ratzel, o espaço vital é o</p><p>domínio do espaço transformando-se em elemento para a história do homem.</p><p>Moreira (2014) explica que a geografia, nessa ordem paradigmática, se</p><p>consolidou com o surgimento das “geografias sistêmicas”, originadas da</p><p>interface da geografia com outras ciências. Considere, por exemplo, que da</p><p>união entre a geografia e a geologia surgiu a geomorfologia; da união entre</p><p>a meteorologia e a geografia, a climatologia; e da união entre a geografia e a</p><p>biologia, a biogeografia. Essa tendência fragmentária se opôs a uma tendência</p><p>surgida com a manifestação geral das ciências, o que repercutiu na geografia</p><p>por meio da criação das conhecidas geografia humana, geografia física e</p><p>geografia regional. Essa tendência da geografia veio na trilha do positivismo</p><p>e foi uma expressão do novo paradigma que teve início na Alemanha.</p><p>As ideias de Friedrich Ratzel contribuíram para a institucionalização cien-</p><p>tífica da geografia. Compreender o pensamento de Ratzel implica entender o</p><p>período histórico em que ele viveu e produziu suas obras. Ratzel tem formação</p><p>geográfica, porém também estudou farmácia e zoologia. Seus estudos tiveram</p><p>Paradigmas em geografia2</p><p>a influência de Ernst Haeckel (1834–1919). O mentor de Ratzel foi o criador</p><p>da ecologia, a disciplina que examina a interação entre o homem e o meio.</p><p>Portanto, Ratzel desde a juventude tinha uma visão orgânica e evolucionista</p><p>do mundo (ARCASSA; MOURÃO, 2011).</p><p>Haeckel foi um biólogo, naturalista, filósofo, médico, professor e artista alemão que</p><p>ajudou a popularizar o trabalho de Charles Darwin. Ele foi um dos grandes expoentes</p><p>do cientificismo positivista.</p><p>Na escola alemã, contudo, Ratzel defendia um império colonial alemão.</p><p>Ele trabalhou na África e confeccionou um mapa do continente, que não era</p><p>muito conhecido no final do século XIX. A África, apesar de pouco conhecida,</p><p>já era disputada pelas potências europeias. Ao mesmo tempo, Ratzel escreveu</p><p>as obras teóricas Estudo sobre o espaço político, em 1895, Estado e Solo, em</p><p>1896, e Geografia política: uma geografia dos estados, do comércio e da</p><p>guerra, em 1897. Ratzel também publicou Alemanha: introdução a uma ciência</p><p>do país natal, em 1898. Nessa obra, ele expõe seu ponto de vista ambicioso a</p><p>respeito da cientificidade, identificando as leis objetivas do desenvolvimento</p><p>geográfico (ARCASSA; MOURÃO, 2011).</p><p>Por fim, em 1902, Ratzel elaborou mais uma obra de caráter filosófico, A</p><p>Terra e a vida: uma geografia comparada. Nessa obra, ele esclarece a questão</p><p>do misticismo e a comparação entre a biogeografia e a geografia humana. Para</p><p>Ratzel, todas as dinâmicas das atividades humanas estão tomadas pelas perspec-</p><p>tivas vitais, biológicas, políticas e orgânicas, com a influência direta da geografia</p><p>ou da superfície terrestre e com as particularidades desse ramo de estudo. São</p><p>essas características que marcam a teoria do determinismo geográfico.</p><p>Durante seus estudos no ensino superior, Ratzel conheceu a obra A Origem das Espécies,</p><p>de Charles Darwin, que influenciou grande parte de seus estudos futuros, tanto os de</p><p>cunho naturalista quanto os de teor político. Após concluir seus estudos na Universidade</p><p>3Paradigmas em geografia</p><p>A relação entre os seres humanos e o meio</p><p>na perspectiva geográfica</p><p>A relação entre a sociedade e a natureza ou entre os seres humanos e o meio</p><p>faz parte das particularidades que cercam a ciência geográfi ca moderna. Tal</p><p>ciência tem como aspecto fundante a expansão do conhecimento da superfí-</p><p>cie terrestre por parte dos homens. No período moderno, a Terra passa a ser</p><p>encarada como um objeto de estudo da geografi a.</p><p>Para entender melhor a relação entre a sociedade e a natureza, é necessário</p><p>conhecer as obras dos grandes pioneiros da modernidade. Immanuel Kant</p><p>(1724–1804) foi um deles. Ele contribuiu para a geografia moderna conciliando</p><p>a matemática para a esfera do tratamento científico da natureza com a mate-</p><p>mática institucional para a esfera do tratamento científico do homem. Desse</p><p>modo, nasceram as ciências naturais e as ciências humanas (MOREIRA, 2010).</p><p>A ciência moderna geográfica começou a se institucionalizar em meados do</p><p>século XIX. Três acontecimentos importantes levaram à institucionalização.</p><p>Os dois primeiros estão relacionados às funções sociais: as guerras inglesa e</p><p>francesa, que eclodiram na Europa entre os séculos XVI e XVII. O terceiro</p><p>foi a Revolução Industrial. Tudo isso levou ao surgimento de um novo modo</p><p>de produção, vigente até os dias de hoje, que substituiu o sistema feudal. Tal</p><p>modo de produção foi essencial para que a ciência geográfica moderna definisse</p><p>novos objetos de estudo, que serviriam para formular as primeiras teorias e</p><p>métodos para a modificação das paisagens naturais. Nesse contexto, surgiu</p><p>também uma sociedade marcada pela hierarquia de classes sociais, o que foi</p><p>tema de diversos estudos (BERGAMO, 2014).</p><p>Na virada do século XIX para o XX, nasceram a geografia física e a geografia</p><p>humana. As subáreas da geografia física são a geomorfologia, a climatologia e</p><p>a</p><p>uma combinação única de</p><p>fenômenos espaciais e sociais.</p><p>Ratzel, por sua vez, criou o conceito de espaço vital. Tal espaço era com-</p><p>preendido como fundamental para a vida do homem. Logo, o trabalho era</p><p>considerado fundante dos aspectos naturais e sociais. O domínio do espaço</p><p>seria um elemento importante na história do homem. Além do conceito de</p><p>espaço vital, Ratzel criou o conceito de território (CÔRREA, 2000).</p><p>A geografia quantitativa, ou nova geografia, marcou o período que vai de</p><p>1950 até meados de 1970. Ela teve influência direta dos geógrafos america-</p><p>nos, por sua vez influenciados pela estatística e pelos modelos matemáticos.</p><p>No período pós-Segunda Guerra, ocorreram transformações nas ciências</p><p>e nas diversas áreas do conhecimento devido ao avanço das tecnologias.</p><p>Contudo, o novo paradigma não ocorreu de forma rápida ou da noite para o</p><p>dia: houve um processo de reflexões focado nos aspectos da reorganização</p><p>espacial mundial. Assim, havia a necessidade de a comunidade acadêmica</p><p>se redescobrir e encontrar outras formas de representar a realidade (AZE-</p><p>VEDO; BARBOZA, 2011).</p><p>A geografia clássica4</p><p>O conceito de espaço é central nos estudos geográficos, enquanto os con-</p><p>ceitos de paisagem e região aparecem como secundários. A organização</p><p>geográfica envolve os acontecimentos políticos (estratégicos), econômicos,</p><p>sociais e culturais. No contexto pós-Segunda Guerra, existia a disputa entre</p><p>duas grandes potências: Estados Unidos e União Soviética. Segundo Santos</p><p>(2004), as ciências humanas passaram por uma revolução nesse período.</p><p>A expressão “nova geografia” está relacionada às contradições da geografia</p><p>tradicional. A nova geografia se manifestou por meio da quantificação. Os</p><p>geógrafos Max Sorre (1880–1962), Pierre George (1909–2006), Carl Sauer</p><p>(1889–1975) e Richard Hartshorne foram os nomes mais importantes do</p><p>período. Eles contribuíram para o novo paradigma da ciência geográfica. Os</p><p>aspectos quantitativos da nova geografia foram importantes porque possibili-</p><p>taram a revolução quantitativa na ciência geográfica. Os modelos matemáticos</p><p>ou métodos matemáticos eram considerados os mais precisos.</p><p>A seguir, veja as principais características da nova geografia. Essas características foram</p><p>desenvolvidas na geografia contemporânea.</p><p> Ofício da linguagem matemática.</p><p> Desenvolvimento de aporte técnico e de metodologias derivadas das ciências exatas.</p><p> Larga utilização de tecnologias computacionais.</p><p> Neutralidade científica e imparcialidade do pesquisador frente ao seu objeto.</p><p> Predomínio da abordagem espacial.</p><p>A nova geografia, juntamente à revolução quantitativa, não foi criada apenas para</p><p>usar dados quantitativos em oposição aos dados não quantitativos na análise dos</p><p>fenômenos geográficos. Os métodos quantitativos representam uma arma nova e</p><p>essencial para a análise dos fenômenos geográficos, mas também são passíveis de</p><p>questionamentos. A “revolução” foi movida pela necessidade de tornar a geografia mais</p><p>científica e pela preocupação em desenvolver uma teoria com esse teor. No Brasil, o</p><p>desenvolvimento da nova geografia levou à criação de dois órgãos: o Instituto Brasileiro</p><p>de Geografia e Estatística (IBGE) e a Associação de Geografia Teorética e Quantitativa</p><p>(AGETEO) (AZEVEDO; BARBOZA, 2011).</p><p>5A geografia clássica</p><p>Segundo Azevedo e Barbosa (2011), as principais obras da geografia quan-</p><p>titativa são:</p><p> Geografia quantitativa, de William Bunge (1962);</p><p> Análise e localização da geografia humana, de Peter Haggett (1965);</p><p> Fronteiras no ensino geográfico, de Richard J. Chorley e Peter Haggett</p><p>(1965).</p><p>Como você viu, a geografia teorético-quantitativa promoveu uma renovação</p><p>metodológica. Os geógrafos passaram a buscar técnicas quantitativas que pudes-</p><p>sem ser aplicadas aos problemas conhecidos na sociedade e no meio. Assim, essa</p><p>vertente de estudos trouxe mais criatividade e estímulos à produção científica.</p><p>A geografia ambiental e as suas contribuições</p><p>para a história do pensamento geográfico</p><p>O geógrafo francês Pierre George contribuiu com os estudos da geografi a am-</p><p>biental. Por meio dos aspectos teóricos e metodológicos da ciência geográfi ca e</p><p>do paradigma da corrente marxista, ele criou o movimento chamado geografi a</p><p>ativa. Pierre George salientava a importância da problemática ambiental e as</p><p>suas principais características em relação ao mundo.</p><p>O século XX foi marcado por intensas transformações no mundo. Tais</p><p>transformações remetem à economia e às diversas formas de produção voltadas</p><p>para a acumulação de capital. Nesse contexto, as reflexões giram principal-</p><p>mente em torno do avanço e da expansão das grandes corporações, do processo</p><p>de globalização, da retirada da cobertura vegetal natural para a produção de</p><p>commodities que sustentem as relações internacionais e para as pastagens, da</p><p>extração desenfreada dos recursos naturais vegetais e minerais e da poluição</p><p>dos recursos hídricos e dos solos (RAMÃO, 2013).</p><p>Mendonça (2005) explica que, no século XIX, Élisée Reclus realizou</p><p>esforços para produzir uma geografia de cunho ambientalista. A tentativa de</p><p>explicar a relação entre a sociedade e a natureza foi bastante admirável na</p><p>época, porém, devido à perspectiva positivista em voga, a obra de Reclus não</p><p>teve aceitação. Foi nos anos 1950, com o surgimento da nova geografia ou</p><p>da geografia física, que começou uma nova etapa do pensamento geográfico.</p><p>Antes desse período, a geografia ambiental era tratada de forma separada e foi</p><p>apresentada pela teoria dos sistemas. A teoria dos geossistemas era dissociada</p><p>da sociedade e tinha caráter positivista.</p><p>A geografia clássica6</p><p>O avanço em termos de proposição metodológica global para os estudos</p><p>da geografia física e ambiental veio particularmente com a geografia teoré-</p><p>tico-quantitativa. A geografia norte-americana foi marcada pela geografia</p><p>teorético-quantitativa, e a questão dos geossistemas não aparece como opção</p><p>metodológica. Os norte-americanos trabalharam com os aspectos metodológi-</p><p>cos da modelização e da quantificação das paisagens (MENDONÇA, 2005).</p><p>Pierre George, em pleno século XX, conseguiu compreender as transfor-</p><p>mações políticas, econômicas, sociais e culturais que ocorreram no espaço.</p><p>Eram necessários novos princípios teóricos e de método. Seguindo a vertente</p><p>da geografia crítica, Pierre George foi professor de geografia na Universidade</p><p>de Lille (1946) e na Universidade Paris-Sorbonne (1948). Ele tinha uma forte</p><p>tendência a dialogar com outras ciências e também contribuiu para os estudos</p><p>geográficos no Brasil. No Quadro 1, a seguir, você pode conhecer as principais</p><p>obras de Pierre George.</p><p>Fonte: Adaptado de Ramão (2013).</p><p>Autores Obras</p><p>Pierre George, Yves</p><p>Lacoste, Bernard</p><p>Kayser e Raymond</p><p>Guglielmo</p><p>Geografia Ativa (1965) é uma referência fundamental</p><p>para a compreensão dos princípios epistemológicos</p><p>da geografia de Pierre George, sobretudo no que diz</p><p>respeito aos fundamentos da análise do meio ambiente.</p><p>Pierre George O meio ambiente (1973) aborda a questão do meio</p><p>ambiente, explorando-a sob diversos aspectos. Essa é a</p><p>maior obra do autor sobre o assunto.</p><p>Pierre George A ação do homem (1971) apresenta a intervenção hu-</p><p>mana em diversas partes do planeta. As ações humanas</p><p>são encaradas como decisivas para a transformação do</p><p>espaço e o aprofundamento dos impactos ambientais.</p><p>Pierre George Panorama do mundo atual (1970) analisa a conjuntura</p><p>do mundo no final do século XIX e em grande parte do</p><p>século XX, atentando para as transformações espaciais</p><p>e a evolução técnica.</p><p>Pierre George Sociedades em Mudança (1980) alcança um novo pano-</p><p>rama do mundo, considerando também as questões</p><p>relativas ao meio ambiente.</p><p>Quadro 1. Obras relevantes da geografia ambiental escritas por Pierre George</p><p>7A geografia clássica</p><p>Duas das obras mostradas no Quadro 1 se destacam. Em Geografia Ativa,</p><p>Pierre George esclarece que a geografia é uma ciência humana com estudos</p><p>de análise espacial. Desse modo, é caracterizada pela totalidade dos dados e</p><p>fatores específicos</p><p>biogeografia. Assim, a geografia física estuda os aspectos físicos e naturais.</p><p>de Jena, na Alemanha, Ratzel realizou pesquisas e publicou alguns estudos com base</p><p>no darwinismo e outros com base no naturalismo.</p><p>Em 1870, Ratzel se alistou nas tropas alemães, pois objetivava combater a França de</p><p>Napoleão III. Depois, ele viajou pela Itália (1872) e pelos Estados Unidos (1873). Foi na</p><p>observação do espaço americano que se tornou um geógrafo. Em 1876, Ratzel ocupou</p><p>a cadeira de geografia da Universidade Técnica de Munique. A sua tese intitula-se A</p><p>emigração chinesa. Nesse trabalho, ele dedica sua atenção à geografia, aos movimentos</p><p>da população sobre o Planeta e às diferentes formas de invasão. Em 1886, Ratzel foi</p><p>nomeado para a cadeira de geografia da Universidade de Leipzig. Essa trajetória</p><p>contribuiu para o avanço do pensamento geográfico (ARCASSA; MOURÃO, 2011).</p><p>Paradigmas em geografia4</p><p>Já as subáreas da geografia humana são a geografia agrária, a geografia ur-</p><p>bana e a geografia econômica. Nesse período, a geografia física e a geografia</p><p>humana eram simples nomenclaturas que não ofereciam referências teóricas e</p><p>metodológicas, embora o neokantismo tenha oferecido tais referências para o</p><p>plano geral das ciências, reafirmando o modelo matemático para as ciências</p><p>naturais e introduzindo o modelo das regras e normas culturais para as ciências</p><p>humanas. Logo, seguiu-se uma direção epistemológica (MOREIRA, 2010).</p><p>A ciência geográfica moderna teve sua origem na dicotomia referida an-</p><p>teriormente. Tal dicotomia ocorreu porque os estudos das ciências exatas, da</p><p>astronomia, da matemática e da física acabaram por originar novos instrumentos,</p><p>como as locomotivas e as máquinas a vapor. Além disso, os aspectos econômicos</p><p>estabeleceram uma nova ordem social. Isso levou diversos pensadores e geógrafos</p><p>a pesquisar e escrever obras com viés teórico e com um método estabelecido. A</p><p>questão do método é importante pois diz respeito à construção de um sistema</p><p>intelectual que possibilita abordar analiticamente uma realidade a partir de</p><p>um ponto de vista, e não de dados estabelecidos a priori (BERGAMO, 2014).</p><p>A seguir, veja alguns autores e obras que contribuíram para a compreensão da relação</p><p>entre sociedade e natureza e possibilitaram a evolução do pensamento geográfico</p><p>(MOREIRA, 2010).</p><p> Eliseé Reclus (1830–1905): sua obra A Terra: descrição dos fenômenos, de 1869, inspirou</p><p>estudos do quadro físico do Planeta até o surgimento do Tratado da Geografia Física, de</p><p>Emmanuel de Martonne (1873–1955). Além disso, sua obra A nova geografia universal,</p><p>de 1875, publicada em Paris, trouxe um olhar libertador sobre a natureza e o homem.</p><p>O autor a escreveu com a ideia de tratar da organização espacial das ações humanas.</p><p> Vidal de La Blache (1845–1918): sua obra Quadro da Geografia da França, de 1903,</p><p>aborda os aspectos da regionalização. Já sua obra Princípios da geografia humana,</p><p>de 1922, é relacionada à geografia da civilização e ao gênero de vida.</p><p>Como você pode notar, os estudos do período foram importantes para a compre-</p><p>ensão da relação dos homens com a natureza, relação esta que passou a incorporar</p><p>a cultura industrial. A partir da técnica, foi possível, por exemplo, estudar as</p><p>distâncias, o que facilitou o deslocamento de pessoas e mercadorias por meio de</p><p>trens, navios e automóveis. Nesse período, a natureza já era compreendida como</p><p>recurso, mas, para se chegar nessa perspectiva, foi necessário incorporar a natureza</p><p>à vida social, o que ocorreu por meio das técnicas desenvolvidas e aperfeiçoadas</p><p>5Paradigmas em geografia</p><p>que começaram a fazer parte da cultura vigente, mesmo que ainda em escala</p><p>local e regional. Além disso, as mudanças radicais na relação entre o homem e a</p><p>natureza foram incorporadas ao território ocupado. Assim, surgiram as imagens de</p><p>satélites, que permitiram conhecer toda a superfície terrestre (WENDEL, 2005).</p><p>Hoje, como você sabe, os homens se encontram cada vez mais na condição</p><p>de produtores da natureza. Desde 1970, vem se acentuando a globalização, por</p><p>meio do processo internacional de integração econômica entre as diferentes</p><p>sociedades. Logo, o homem passa a dominar a natureza utilizando tecnologias</p><p>com o objetivo de acumular capital. Isso tudo acaba aprofundando ainda mais</p><p>a crise mundial e as desigualdades.</p><p>As relações entre a geografia determinista</p><p>e a geografia possibilista</p><p>A geografi a determinista e a geografi a possibilista foram importantes para a</p><p>consolidação dos primeiros paradigmas da geografi a moderna. Tais paradig-</p><p>mas estão relacionados com o método tradicional da geografi a, do período de</p><p>1870 até 1950. A história do pensamento geográfi co enfatiza a falsa dualidade</p><p>entre o determinismo e o possibilismo. No período mencionado, estavam em</p><p>cena a escola determinista alemã e a escola possibilista francesa, considerada</p><p>banal por alguns autores. Ao se comparar a obra de Ratzel com a de Vidal de</p><p>la Blache, costuma-se opor o pensamento determinista do primeiro ao pen-</p><p>samento possibilista do segundo. Porém, essas particularidades e o dualismo</p><p>não condizem com o propósito das teorias.</p><p>Ratzel foi muito importante para a sistematização da geografia moderna.</p><p>Ele desenvolveu estudos geográficos pioneiros especialmente direcionados à</p><p>discussão dos problemas humanos, integrados à área que Ratzel chamou de</p><p>antropogeografia. Esses estudos, com caráter interdisciplinar, tiveram como</p><p>objetivo principal compreender as diversas formas de circulação de pessoas</p><p>e bens materiais e a distribuição dos povos sobre a superfície terrestre. Desse</p><p>modo, Ratzel considerava a influência das condições naturais sobre o com-</p><p>portamento humano, o que culminaria no determinismo. Ele também levava</p><p>em conta as formações do território e, intimamente ligada a elas, a dimensão</p><p>política da relação entre o homem e a natureza (SOUZA et al., 2016).</p><p>Vidal de la Blache teve a iniciativa de inserir e institucionalizar a geografia</p><p>na França. Por mais conflitante que isso pareça, ele tomou como referência</p><p>as obras e os pensamentos de geógrafos alemães (Humboldt, Ritter e, inclu-</p><p>sive, Ratzel). Vidal de La Blache realizou estudos bastante inovadores na</p><p>Paradigmas em geografia6</p><p>geografia e deu sustentação à criação da escola francesa de geografia, que</p><p>influenciou o desenvolvimento dessa ciência em diversas partes do mundo.</p><p>Seu pensamento geográfico teve como características fundantes as ideias de</p><p>totalidade, possibilismo, mapeamento das densidades e do gênero de vida.</p><p>Contudo, as obras dos dois geógrafos jamais podem ser consideradas algo</p><p>simples e acabado. Ambas suscitam muitas indagações e acirram os ânimos</p><p>de diversos estudiosos da geografia e de outras ciências (SOUZA et al., 2016).</p><p>No Quadro 1, a seguir, você pode ver alguns outros paradigmas da geografia.</p><p>Fonte: Adaptado de Morais e Diniz (2008).</p><p>Método</p><p>regional</p><p>É o terceiro paradigma e ganha expressão apenas em 1940, nos</p><p>Estados Unidos, tendo como incentivador o geógrafo ameri-</p><p>cano Richard Hartshorne. Esse paradigma se caracteriza por</p><p>utilizar modelos matemáticos e estatísticos, desenvolver diagra-</p><p>mas e matrizes e utilizar a análise fatorial e a cadeia de Markov</p><p>na geografia. Esse método também é marcado pela neutrali-</p><p>dade científica que se associa à difusão do sistema capitalista.</p><p>Nova</p><p>geografia</p><p>O quarto paradigma é o da geografia teórico-quantitativa</p><p>ou nova geografia. O momento histórico foi determinante e</p><p>consolidou essa corrente marcada pela situação socioeco-</p><p>nômica em que vivia o mundo no pós-Segunda Guerra. O</p><p>panorama de destruição fez com que os geógrafos procu-</p><p>rassem novas formulações para superar a crise econômica</p><p>capitalista. Essa corrente efetua uma crítica à geografia</p><p>tradicional pela insuficiência da sua análise.</p><p>Geografia</p><p>crítica</p><p>O quinto paradigma é o da geografia crítica, que coloca sob</p><p>severas críticas a nova geografia (método regional) e as ou-</p><p>tras correntes de tendência tradicional (a geografia determi-</p><p>nista e a geografia possibilista). Esse paradigma</p><p>está pautado</p><p>no materialismo histórico e na dialética marxista.</p><p>Geografia</p><p>humanista</p><p>e cultural</p><p>O método da geografia humanista e cultural foi criado pra-</p><p>ticamente junto ao método crítico e é considerado o sexto</p><p>paradigma. Ele defende que, no entendimento das questões</p><p>humanas, a cultura é primordial. Ela é mediadora entre o ser</p><p>humano e a natureza e é o resultado da comunicação no</p><p>grupo, na sociedade. Esse paradigma permite compreender</p><p>como os homens se estabelecem na sociedade, como se</p><p>organizam e como se identificam no espaço em que vivem.</p><p>Quadro 1. Paradigmas da geografia</p><p>7Paradigmas em geografia</p><p>Apesar da organização científica de Vidal de La Blache e Ratzel, segundo</p><p>Santos (1978), eles vulgarizaram a noção de unidade terrestre, que Carl Rit-</p><p>ter já havia estabelecido anteriormente. A noção filosófica de natureza está</p><p>relacionada com “[...] o conjunto de todas as coisas, conjunto coerente, onde</p><p>ordem e desordem se confundem nesse processo de totalização permanente</p><p>pelo qual uma totalidade evolui para tornar-se outra” (SANTOS, 1978, p. 4).</p><p>Portanto, o princípio da totalidade é básico para a elaboração de uma filosofia</p><p>do espaço do homem. Contudo, tanto Ratzel quanto Vidal de La Blache pouco</p><p>usaram o princípio da totalidade, mas foram imprescindíveis na elaboração dos</p><p>primeiros paradigmas que utilizaram a razão e os acontecimentos da época</p><p>relacionados à dinâmica entre a sociedade e a natureza.</p><p>A teoria ratzeliana, com a perspectiva da geografia humana, vê o homem</p><p>do ponto de vista biológico, e não social. Desse modo, o homem não pode ser</p><p>visto fora das relações de causa e efeito que determinam as condições de vida</p><p>no meio ambiente, já que o homem e a sociedade seriam um fruto do ambiente</p><p>em que se encontram. Nesse sentido, o homem é subordinado ao ambiente,</p><p>que influencia fortemente a fisiologia e a psicologia humanas. Além disso,</p><p>Ratzel compreendia que a história dos povos estava relacionada à interação</p><p>entre o homem e a natureza, de modo que algumas sociedades seriam melhor</p><p>adaptadas para sobreviver ao meio (SOUZA et al., 2016).</p><p>Souza et al. (2016) explicam que Vidal de La Blache é considerado um dos</p><p>principais nomes da história do pensamento geográfico. Em 1875, ele foi no-</p><p>meado conferencista de geografia da Universidade de Nancy e, em 1880, se</p><p>tornou subdiretor da Escola Normal Superior. Já em 1898, foi para a famosa e</p><p>reconhecida Universidade Sorbonne, de Paris. Seus estudos específicos na área</p><p>da geografia foram realizados quando ele foi à Turquia para desenvolver o seu</p><p>trabalho e tomou como guia uma obra que o famoso geógrafo Carl Ritter havia</p><p>escrito sobre o país. Além disso, ele percorreu toda a Europa e boa parte do norte</p><p>da África e da América do Norte. Vidal de La Blache desenvolveu o pensamento</p><p>geográfico possibilista e foi considerado o fundador da escola regional francesa.</p><p>Leia o artigo de Lúcia Cony Faria Cidade “Visões de mundo, visões da natureza e a</p><p>formação de paradigmas geográficos”, disponível no link a seguir.</p><p>https://qrgo.page.link/hrkSo</p><p>Paradigmas em geografia8</p><p>Você ainda deve considerar que La Blache não concordava com a carac-</p><p>terização da escola alemã como geografia determinista, o que havia sido</p><p>postulado por Ratzel. Para este, as condições naturais do meio ambiente</p><p>influenciavam e originavam as atividades humanas e sociais. Por outro lado,</p><p>La Blache compreendia que o homem era quem transformava o meio onde</p><p>vivia com suas ações (SOUZA et al., 2016).</p><p>Ratzel via como fundante a relação entre causa e efeito, acreditando que</p><p>o homem era passivo e submisso às condições locais e que tinha como prin-</p><p>cípio de sobrevivência a necessidade de se adaptar ao meio. Já Vidal de La</p><p>Blache defendia que as relações entre homem e natureza aconteciam pela sua</p><p>complexidade, atentando às iniciativas humanas transformadoras do meio</p><p>ambiente. A teoria do determinismo geográfico de Ratzel foi refutada pela</p><p>teoria do possibilismo geográfico de Vidal de La Blache.</p><p>Os alemães Immanuel Kant, Alexander Von Humboldt e Carl Ritter cons-</p><p>truíram conhecimentos importantes para que Friedrich Ratzel e Vidal de La</p><p>Blache criassem as teorias que os consagraram como figuras importantes da</p><p>história do pensamento geográfico, partindo dos paradigmas para a compre-</p><p>ensão da relação entre a sociedade e a natureza. A partir daí, surgiram outros</p><p>paradigmas importantes, ajudando a ciência geográfica a se consolidar e os</p><p>estudiosos a pensar a respeito da complexa interação entre sociedade e natureza.</p><p>A seguir, você pode conhecer outros geógrafos importantes para o desenvolvimento</p><p>da geografia nos séculos XIX e XX.</p><p> Maximilien Sorre (1880–1962): nasceu na França e suas obras são reconhecidas</p><p>mundialmente até os dias de hoje. Porém, ainda é pouco estudado no Brasil.</p><p>Sorre pesquisou os aspectos da geografia humana junto à sociologia e à biologia.</p><p>O seu livro O homem na Terra é uma das obras mais lidas desde a sua publicação</p><p>até os dias de hoje.</p><p> Delgado de Carvalho (1884–1980): nasceu na França e, no Brasil, contribuiu com a</p><p>publicação do livro A geografia do Brasil, em 1913.</p><p> Carl Sauer (1889–1975): geógrafo americano da Universidade de Berkeley, na Califór-</p><p>nia, foi uma referência na geografia cultural. A sua obra A morfologia da paisagem,</p><p>publicada em 1925, encarava a fenomenologia de uma perspectiva científica.</p><p> Yves Lacoste (1929): é um geógrafo geopolítico francês. Publicou uma das obras da</p><p>geografia mais lidas no mundo, A geografia: isso serve em primeiro lugar para fazer a</p><p>guerra. A obra enfatiza as diferentes sociedades atingidas pela organização de seus</p><p>espaços a partir dos interesses das estatais e das grandes corporações privadas.</p><p>9Paradigmas em geografia</p><p>ARCASSA, W. S. de.; MOURÃO, P. F. S. Ratzel: para além do determinismo geográfico.</p><p>[S.l.: s.n.], 2011. Disponível em: http://www2.fct.unesp.br/semanas/geografia/2011/2011-</p><p>-ensino%20e%20epistemologia/Wesley%20e%20Paulo.pdf. Acesso em: 7 maio 2019.</p><p>BERGAMO, M. S. As matrizes geográficas na modernidade e o desenvolvimento da</p><p>ciência sob vista de Gaston Bachelard. In: ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA</p><p>LATINA, 14., 2014. Anais [...]. Lima. 2014. Disponível: http://observatoriogeograficoa-</p><p>mericalatina.org.mx/egal14/Teoriaymetodo/Teoricos/01.pdf. Acesso em: 7 maio 2019.</p><p>CÔRREA, R. L. Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.</p><p>DANTAS, E. M.; MORAIS, I. R. D. Região no contexto da renovação da geografia. Natal: UFRN,</p><p>2008. Disponível em: http://www.ead.uepb.edu.br/ava/arquivos/cursos/geografia/orga-</p><p>nizacao_do_espaco/Org_Esp_A11_M_WEB_SF_190808.pdf. Acesso em: 10 maio 2019.</p><p>KUHN, T. S. A estrutura das revoluções cientificas. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.</p><p>MOREIRA, R. Para onde vai o pensamento geográfico? Epistemologia crítica. São Paulo:</p><p>Contexto, 2014.</p><p>MOREIRA, R. O pensamento geográfico brasileiro: matrizes clássicas originárias. São</p><p>Paulo: Contexto, 2010.</p><p>SANTOS, M. Por uma geografia nova. São Paulo: Edusp, 1978.</p><p>SOUZA, C. N. de. et al. Determinismo e posibilismo: uma análise epistemológica e</p><p>crítica. Revista Maiêutica, v. 4, n. 1, p. 43-54, 2016. Disponível em: https://publicacao.</p><p>uniasselvi.com.br/index.php/GED_EaD/article/view/1456/593. Acesso em: 7 maio 2019.</p><p>WENDEL, H. Proposta de periodização das relações sociedade e natureza: uma abor-</p><p>dagem geográfica de ideias, conceitos e representações. Terra livre, v. 1, n. 24, p. 151</p><p>– 175, 2005. Disponível em: https://www.agb.org.br/publicacoes/index.php/terralivre/</p><p>article/view/390/369. Acesso em: 7 maio 2019.</p><p>Leitura recomendada</p><p>CIDADE, L. C. F. Visões de mundo, visões da natureza e a formação de paradigmas geo-</p><p>gráficos. Terra Livre, n. 17, p. 99-118, 2001. Disponível em: http://www.geoambiente.ufba.</p><p>br/Arquivos%20extras/Textos/Vis%C3%B5es%20de%20mundo%20Vis%C3%B5es%20</p><p>de%20Natureza.pdf. Acesso em: 7 maio 2019.</p><p>Paradigmas em geografia10</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>AOS ESTUDOS</p><p>GEOGRÁFICOS</p><p>Anna Paula Lombardi</p><p>A institucionalização</p><p>da geografia no Brasil</p><p>Objetivos de aprendizagem</p><p>exercícios, etc.</p><p>Quadro 1. Principais aspectos da teoria pedagógica tradicional</p><p>A institucionalização da geografia científica se consolidou após a criação</p><p>das universidades brasileiras como a Universidade de São Paulo (USP), em</p><p>1920, e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 1938. Pierre</p><p>Deffontaines (1894–1978) e Pierre Monbeig (1935–1946) foram os geógrafos</p><p>franceses que praticamente institucionalizaram a geografia no Brasil. Em</p><p>1934, Pierre Deffontaines criou a Associação dos Geógrafos Brasileiros em</p><p>A institucionalização da geografia no Brasil4</p><p>São Paulo (AGB–SP). Essa associação promoveu um dos mais avançados</p><p>desenvolvimentos de pesquisa geográfica do País (DANTAS, 2008).</p><p>A partir da criação da Universidade de São Paulo, com a sua Faculdade de</p><p>Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ,</p><p>antiga Universidade do Brasil) e da Associação dos Geógrafos Brasileiros,</p><p>idealizada por Pierre Deffontaines, a geografia começou a se institucionalizar</p><p>por aqui (DANTAS, 2008). O ensino de geografia implementado em São</p><p>Paulo e no Rio de Janeiro foi influenciado pela tradição francesa, portanto se</p><p>fundamentou na história e na sociologia.</p><p>Pierre Monbeig e Pierre Deffontaines foram convidados pelo também fran-</p><p>cês Emmanuel de Martonne para ajudar no processo de institucionalização da</p><p>geografia no Brasil. Ambos davam maior enfoque à geografia regional e à área</p><p>humana. Monbeig ensinou por cerca de 15 anos na Universidade de São Paulo e</p><p>foi substituído por Deffontaines, que atuou por cinco anos. O geógrafo francês</p><p>Francis Ruellan (1894–1974) e o geógrafo Josué de Castro (1908–1973), da área</p><p>da geografia humana, também faziam parte do corpo docente. A influência</p><p>francesa na geografia do Brasil se estenderia por mais de 20 anos, até cerca de</p><p>1950, sendo mais acentuada aqui do que na própria França.</p><p>Segundo Andrade (1991), o geógrafo francês Delgado de Carvalho, autor</p><p>do livro O Brasil Meridional, é considerado outro dos grandes precursores</p><p>dos estudos da geografia científica no País. Ele também é considerado um dos</p><p>primeiros geógrafos que contribuíram para a história do pensamento geográfico</p><p>e para a institucionalização dessa disciplina, que passou a ser estudada em</p><p>nível superior e a ser aplicada à problemática nacional.</p><p>Confira o artigo de Rocha (2000) “Delgado de Carvalho e a orientação moderna no</p><p>ensino da geografia escolar brasileira”, disponível no link a seguir.</p><p>https://qrgo.page.link/G1RxH</p><p>A institucionalização do IBGE</p><p>e a geografia brasileira</p><p>O Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística é um dos mais importantes</p><p>órgãos de planejamento territorial do Estado brasileiro. O IBGE foi criado</p><p>5A institucionalização da geografia no Brasil</p><p>pelo Decreto-Lei nº 218, de 1938, porém esse órgão já existia desde 1934 sob</p><p>a denominação Instituto Nacional de Estatística, com o apoio do Conselho</p><p>Brasileiro de Geografi a (CBG). Com a nova denominação, o IBGE foi estrutu-</p><p>rado pelas seguintes áreas de conhecimento: geografi a, geodésia e cartografi a</p><p>(IBGE, 2017).</p><p>Almeida (2001) explica que a criação do IBGE no Brasil teve a parti-</p><p>cipação da União Geográfica Internacional (UGI) e do geógrafo francês</p><p>Emmanuel de Martonne. O contato entre a geografia brasileira e a UGI</p><p>aconteceu em meados de 1931, na França, durante o Congresso da União.</p><p>O delegado responsável por representar a Academia Brasileira de Ciências</p><p>(ABC) foi o professor Alberto José de Sampaio (1881–1946), naturalista</p><p>especializado em fitogeografia, pesquisador do Museu Nacional e autor de</p><p>várias obras sobre a vegetação brasileira. O professor contribuiu de forma</p><p>muito atuante, chamando a atenção de Martonne, diretor do Instituto de</p><p>Geografia da Universidade de Paris e presidente do Congresso Geral da</p><p>União de Geografia Internacional.</p><p>As articulações feitas no Congresso entre Sampaio e Martonne trouxeram</p><p>o francês ao Brasil em 1933. Martonne se deu conta da oportunidade de or-</p><p>ganizar dois campos de estudos e de criar os institutos e as universidades no</p><p>País. O primeiro campo era a geografia física; Martonne percebeu o grande</p><p>potencial da geografia tropical brasileira. E o segundo estava relacionado</p><p>com os aspectos políticos e culturais. Com essas duas perspectivas, havia a</p><p>necessidade de criar as principais associações e institutos (Instituto Histórico e</p><p>Geográfico Brasileiro, Sociedade Brasileira de Geografia e Academia Brasileira</p><p>de Ciências), que deveriam juntar esforços para a adesão do Brasil à UGI.</p><p>O IBGE surgiu nesse contexto, como um órgão nacional que pertenceria</p><p>ao governo central. Assim, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística foi</p><p>criado com sede no Rio de Janeiro, em 1938. Ele foi idealizado sob a égide do</p><p>presidente Getúlio Vargas (1882–1954), durante a ditadura do Estado Novo e a</p><p>partir do Instituto Nacional Estatístico. Em meados de 1939, o IBGE começou</p><p>a campanha de levantamento intensivo da divisão territorial do País, que tinha</p><p>como finalidade a definição dos mapas dos municípios (IBGE, 2017).</p><p>Em relação às atividades geodésicas realizadas pelo IBGE em 1939, o</p><p>Brasil tinha de atualizar a sua carta geográfica. Na época, foram emitidas em</p><p>torno de 602 coordenadas levantadas em cidades e vilas de todo o País, por</p><p>exemplo. De 1944 até 1970, o IBGE estruturou o sistema geodésico brasileiro</p><p>fundamentado no método de posicionamento clássico (triangulação, métodos</p><p>astronômicos e poligonação geodésica), aplicado até meados dos anos 1990</p><p>com o recurso a equipamentos como teodolitos. Outro ponto importante foi a</p><p>A institucionalização da geografia no Brasil6</p><p>divisão regional do Brasil em Norte, Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste e Sul,</p><p>proposta por Fábio Macedo Soares Guimarães em 1970 (IBGE, 2017).</p><p>Portanto, com o objetivo de promover e desenvolver o conhecimento ter-</p><p>ritorial por meio de uma política de coleta de dados estatísticos, o IBGE foi o</p><p>suporte da administração pública relacionada ao ordenamento territorial. Esse</p><p>órgão formulou e criou políticas públicas para a organização das cidades e do</p><p>meio ambiente, promovendo o desenvolvimento urbano e a sustentabilidade.</p><p>A Universidade Federal do Rio de Janeiro formou muitos geógrafos que traba-</p><p>lharam no Instituto. Nesse sentido, o IBGE também recorria aos professores da</p><p>UFRJ com o objetivo de lecionar cursos de férias para os professores de outros</p><p>estados. Os mestres estrangeiros que por um bom período permaneceram no</p><p>Brasil trabalhavam na Universidade e no IBGE (DANTAS, 2008).</p><p>O IBGE foi estruturado pelas seguintes áreas de conhecimento: geografia,</p><p>geodésia e cartografia. O Decreto nº 327, de 1938, estabeleceu as ações de</p><p>normatização da área de geodésia do IBGE para suprir o mapeamento do</p><p>recenseamento geral de 1940 (IBGE, 2017). Nesse período, foram iniciados</p><p>os trabalhos de levantamento das coordenadas geográficas das cidades bra-</p><p>sileiras, prosseguindo com a estruturação das redes planimétrica, altimétrica</p><p>e gravimétrica, que estabeleceram as bases para o mapeamento sistemático</p><p>do País, realizado e organizado pela área de cartografia.</p><p>Essa área, além de coordenar o sistema cartográfico brasileiro, imprime</p><p>continuamente cartas e é também responsável pela elaboração cartográfica</p><p>dos altas do IBGE. Outro aspecto importante é a atuação dos técnicos que</p><p>definem as políticas cartográficas, os seus parâmetros metodológicos e as</p><p>escalas de representação dos trabalhos cartográficos. Além disso, o IBGE,</p><p>junto às forças armadas, determinou os tipos de cartas especiais de trabalho</p><p>que servem de base para as organizações militares.</p><p>A área cartográfica também define com precisão os limites entre as</p><p>principais unidades territoriais legalmente vigentes no País, tanto na escala</p><p>municipal quanto na estadual. Em caso de litígios entre essas unidades,</p><p>cabe aos cartógrafos do IBGE a determinação dos novos limites, que</p><p>normalmente são arbitrados pelo Poder Judiciário. É também atribuição</p><p>da área dar apoio técnico às operações de mapeamento das bases</p><p>opera-</p><p>cionais geográficas dos censos, principalmente oferecendo suporte técnico</p><p>às prefeituras que não possuem pessoal qualificado para a confecção dos</p><p>mapas (ALMEIDA, 2001).</p><p>Em síntese, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, criado em 1938</p><p>com sede no Rio de Janeiro, é um dos órgãos mais importantes do Brasil até hoje.</p><p>No começo, o IBGE teve um papel importante tanto para a formação de professores</p><p>7A institucionalização da geografia no Brasil</p><p>e profissionais da geografia quanto para o levantamento estatístico do território</p><p>do País. Atualmente, ele é um dos órgãos estatísticos nacionais mais importantes,</p><p>realizando recenseamentos em todo o território brasileiro a cada 10 anos.</p><p>Em meados de 1950, a ciência geográfica ganhou visibilidade nacional graças à As-</p><p>sociação dos Geógrafos Brasileiros, ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e</p><p>às universidades já instituídas no Brasil. Em 1961, foi criado o Instituto de Geografia</p><p>pelo geógrafo Aroldo de Azevedo (1910–1974), com o auxílio do Departamento de</p><p>Geografia da USP. Ainda hoje, os laboratórios de pesquisa da Universidade atraem</p><p>diversos jovens para essa formação. Os laboratórios de aerofotogeografia, de estudos</p><p>regionais em geografia, de geografia agrária e de geografia urbana são exemplos dos</p><p>laboratórios de geografia da USP (SCARIM, 2008).</p><p>A geografia como disciplina obrigatória</p><p>no ensino fundamental e no ensino médio</p><p>O projeto de educação do Brasil tem uma base que remete aos diferentes</p><p>contextos históricos do País, caracterizados pelas distintas situações políticas e</p><p>econômicas pelas quais a sociedade nacional passou. Além disso, as tendências</p><p>da educação brasileira sempre estiveram articuladas com o momento histórico</p><p>e econômico mundial.</p><p>No período anterior a 1930, não existia no Brasil um sistema formal e</p><p>regular de ensino garantido pelo poder público para toda a população no</p><p>território brasileiro. Entretanto, a geografia era considerada uma disciplina</p><p>oficial desde 1837, quando foi implantada no Colégio Pedro II, um colégio</p><p>muito tradicional e modelo de ensino, frequentado apenas pela elite da época.</p><p>O currículo escolar já era estabelecido no Brasil para algumas áreas de</p><p>conhecimento antes de 1930, desde a formação do sistema escolar de ordem</p><p>religiosa. Tal sistema foi criado pelo padre Manuel da Nóbrega em meados de</p><p>1500 e se estendeu até o final do século XVII. Contudo, com a revolução pom-</p><p>balina, foi constituído um ensino de caráter laico, com os conteúdos baseados</p><p>nas cartas régias. Nesse contexto, o currículo aparece para garantir o ensino</p><p>e a aprendizagem do conteúdo que o sujeito deveria conhecer. Essa é a base</p><p>principal para que todos numa sociedade consigam ter um desenvolvimento</p><p>social, cultural, político e econômico pleno.</p><p>A institucionalização da geografia no Brasil8</p><p>Segundo Rangel e Gouvea (2016), a geografia como disciplina escolar</p><p>foi constituída em 1837 no Colégio Pedro II, como você já viu. A principal</p><p>finalidade de instituir a disciplina era garantir a identidade da população, que</p><p>deveria nutrir o amor à pátria, adquirindo certo nacionalismo. Além disso, o</p><p>objetivo era capacitar politicamente a elite, para que ocupasse os principais</p><p>e melhores cargos públicos do País. Outro fator importante para a inclusão</p><p>da geografia no Colégio Pedro II foi o fato de que ela já era uma disciplina</p><p>obrigatória no programa escolar francês.</p><p>De acordo com Araújo (2012), no século XIX, a obra precursora da geografia</p><p>brasileira foi Corografia Brasílica, do padre português Manuel Aires de Casal</p><p>(1754–1821). Essa obra apresentava as principais descrições da colônia com</p><p>base no interesse da Corte Portuguesa. Ela não tinha cunho didático escolar;</p><p>logo, é considerada um dos textos fundamentais da geografia do Brasil.</p><p>Falar sobre o currículo no ensino de geografia requer entender o que signi-</p><p>fica currículo. Na verdade, a ideia de currículo é trabalhada por várias correntes</p><p>do pensamento educacional, como você pode ver no Quadro 2, que apresenta</p><p>três correntes importantes. A primeira é a que predominou no Brasil até me-</p><p>ados de 1950 e as outras duas fazem parte do pensamento educacional atual.</p><p>Fonte: Adaptado de Rangel e Gouvea (2016).</p><p>Teoria tradicional Teoria crítica Teoria pós-crítica</p><p>Questões técnicas, neutras Questionamento constante Questionamento constante</p><p>Questão central: o que é?</p><p>(preocupação com ques-</p><p>tões de organização)</p><p>Questão central: por quê?</p><p>(preocupada com cone-</p><p>xões entre saber, identidade</p><p>e poder)</p><p>Questão central: por quê?</p><p>(preocupada com cone-</p><p>xões entre saber, identidade</p><p>e poder)</p><p>Aceita o status quo Permite ver a educação de</p><p>uma nova perspectiva</p><p>Permite ver a educação de</p><p>uma nova perspectiva.</p><p>Quadro 2. Correntes do pensamento educacional</p><p>No Brasil, a geografia se disseminou por meio das reformas educacionais.</p><p>Essa disciplina foi inserida no currículo escolar como disciplina obrigatória no</p><p>ensino fundamental e no ensino médio. No Brasil Império (1822–1899), ocorreu</p><p>a primeira tentativa de regulamentar o ensino básico; a Carta Constitucional</p><p>de 1823 declara a instrução gratuita para todas as cidades.</p><p>9A institucionalização da geografia no Brasil</p><p>Em 1834, a primeira constituição brasileira foi reformulada. No campo</p><p>educacional, a principal medida de impacto foi o direito adquirido pelas</p><p>unidades políticas de legislar sobre o seu próprio sistema educacional. Os</p><p>governos das províncias adquiriram a responsabilidade total pelo ensino</p><p>elementar e médio. Assim, surgiram os primeiros liceus provinciais, si-</p><p>tuados nas capitais, como Rio Grande do Norte, Bahia, Paraíba e Rio de</p><p>Janeiro. Contudo, foi apenas o Rio de Janeiro, cidade que abrigava a Corte,</p><p>que apresentou a divisão entre os níveis de estudo. Tal divisão foi feita no</p><p>Colégio Pedro II (ARAÚJO, 2012).</p><p>Segundo Araújo (2012, p. 94), por mais de 300 anos de colônia, “[...]</p><p>não tivemos uma estrutura escolar para ser utilizada pelo povo: os jesu-</p><p>ítas, durante esse tempo, mantiveram 17 seminários de formação de clé-</p><p>rigos. Com a expulsão dos jesuítas, ficou a Colônia sem qualquer tipo de</p><p>escola [...]”. Além disso, o Brasil criou cursos superiores sem curso elementar</p><p>e médio, dificultando a consolidação da geografia como disciplina. Entre</p><p>1840 e 1889, “[...] as províncias criaram os liceus (rapazes) e as escolas</p><p>normais (moças) e iniciaram a criação do curso elementar nas cidades e vi-</p><p>larejos (omissão total do poder central) somente por iniciativa particular [...]”</p><p>(ARAÚJO, 2012, p. 94).</p><p>Foi apenas em 1930, com a criação do Ministério da Educação (MEC), que</p><p>foi possível inserir a geografia como disciplina obrigatória no ensino seriado,</p><p>ou seja, no ensino fundamental e no ensino médio, para todos os sujeitos com</p><p>idade de adquirir conhecimento. O MEC passa a agir intensamente de 1930 a</p><p>1962 (reformas Campos e Capanema), quando “[...] perde suas funções com a</p><p>aprovação, pelo Congresso Nacional, da Lei de Diretrizes e Bases. Os estados</p><p>começam [então] a ampliar a rede oficial de ensino Fundamental e Médio [...]”</p><p>(ARAÚJO, 2012, p. 95).</p><p>Como você pode notar, a institucionalização da geografia é recente,</p><p>apesar de a necessidade de descrever e mapear o território nacional existir</p><p>desde o Brasil colonial. Inicialmente colocada em pauta pelos jesuítas, pois</p><p>a educação era sua incumbência, a geografia foi agregando aspectos mais</p><p>generalistas. Com a criação do Colégio Pedro II, essa disciplina adquiriu</p><p>um caráter elitista.</p><p>Com as sucessivas reformas do ensino, a geografia foi paulatinamente</p><p>inserida nos currículos, especialmente devido à necessidade de patriotismo</p><p>e nacionalismo. Ela era vinculada à localização física e restrita de locais</p><p>de conhecimento e cidades. Posteriormente, a disciplina passou a agregar a</p><p>política humana e social. Isso ocorreu com a criação de órgãos estatísticos</p><p>como o IBGE, que passaram a considerar os aspectos sociais e humanos e</p><p>A institucionalização da geografia no Brasil10</p><p>instituíram a geografia como ciência. Assim, ela foi</p><p>incluída efetivamente</p><p>nas academias. Como você viu, a Universidade do Brasil, atual UFRJ, e a</p><p>Universidade de São Paulo foram essenciais no processo de institucionali-</p><p>zação da geografia.</p><p>ALMEIDA, R. D. de. Do desenho ao mapa – Iniciação Cartográfica na Escola. São Paulo:</p><p>Contexto, 2001.</p><p>ANDRADE, M. C. A AGB e o pensamento geográfico no Brasil. Terra Livre, São Paulo, n.</p><p>9, p. 143–152, jul./dez. 1991. Disponível em: https://www.agb.org.br/publicacoes/index.</p><p>php/terralivre/article/view/110/108. Acesso em: 13 jun. 2019.</p><p>ARAÚJO, R. L. Ensino de Geografia: perspectiva histórico curricular no Brasil Republicano.</p><p>2012. Tese (Doutorado em Educação Brasileira) – Programa de Pós-Graduação em e,</p><p>Educação Brasileira, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2012.</p><p>BRASIL. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Disponível em: https://www2.camara.leg.</p><p>br/legin/fed/lei/2017/lei-13415-16-fevereiro-2017-784336-publicacaooriginal-152003-pl.</p><p>html. Acesso em: 13 jun. 2019.</p><p>DANTAS, A. Introdução a ciência geográfica. Natal: EDUFRM, 2008.</p><p>IBGE. Linha do tempo: síntese da história do IBGE (1936 – 2016). 2017. Disponível em:</p><p>https://memoria.ibge.gov.br/images/memoria/linha-do-tempo/LinhaDoTempoSemI-</p><p>magem.pdf. Acesso em: 13 jun. 2019</p><p>MIZUKAMI, M. G. N. Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: EPU, 1986.</p><p>OLIVEIRA, M. F. A institucionalização da geografia escolar e a sua espacialidade nos oitocentos</p><p>(1843–1889) na província Capixaba. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa-</p><p>ção de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Espírito Santo, Vitória, 2011.</p><p>RANGEL, E. S.; GOUVEA, L. M. C. A geografia e o currículo: diálogos ao longo da história</p><p>da geografia escolar. [S. l.: s. n.], 2016.</p><p>ROCHA, G. O. R. Delgado de Carvalho e a orientação moderna no ensino da Geografia</p><p>escolar brasileira. Terra Brasilis, v. 1, 2000. Disponível em: https://journals.openedition.</p><p>org/terrabrasilis/293. Acesso em: 13 jun. 2019.</p><p>SCARIM, P. C. A construção da geografia acadêmica no Brasil. Boletim Paulista de Geogra-</p><p>fia, São Paulo, n. 88, p. 41–71, 2008. Disponível em: https://www.agb.org.br/publicacoes/</p><p>index.php/boletim-paulista/article/view/781/665. Acesso em: 13 jun. 2019.</p><p>SAVIANI, D. As concepções pedagógicas na história da educação brasileira. 2005. Disponível</p><p>em: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/artigos_pdf/Dermeval_Saviani_ar-</p><p>tigo.pdf. Acesso em: 13 jun. 2019.</p><p>11A institucionalização da geografia no Brasil</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>AOS ESTUDOS</p><p>GEOGRÁFICOS</p><p>Silvana Kloster dos Santos</p><p>O papel do docente no</p><p>ensino da geografia</p><p>Objetivos de aprendizagem</p><p>Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:</p><p> Descrever o papel do professor no ensino de geografia.</p><p> Identificar novas propostas didáticas de atuação docente no ensino</p><p>de geografia.</p><p> Relacionar leituras importantes para a atuação da sociedade em seu</p><p>espaço geográfico.</p><p>Introdução</p><p>Como você sabe, o mundo está em constante mudança. As modificações</p><p>ocorrem em diferentes esferas: social, política e econômica. Atualmente,</p><p>estão em curso a revolução tecnológica e a era da globalização, modifi-</p><p>cando os espaços geográficos e alterando o mundo do trabalho. Qual é</p><p>o papel do docente de geografia diante dessa situação?</p><p>Neste capítulo, você vai conhecer algumas noções que podem lhe</p><p>auxiliar como futuro educador. É importante você notar que a geogra-</p><p>fia escolar atual conta com uma imensa pluralidade de caminhos. As</p><p>formas tradicionais de educar ficam de lado e hoje o objetivo da escola</p><p>não é simplesmente reproduzir de forma simplificada os conteúdos da</p><p>disciplina. A ideia é incentivar os alunos a refletirem sobre as mudanças</p><p>no espaço geográfico.</p><p>O papel do professor de geografia</p><p>A geografi a escolar tem posto de lado a geografi a tradicional e se associado</p><p>à geografi a crítica. Nessa transição, o aluno deixa de ser simples receptor</p><p>de temas (relevo, clima, vegetação, hidrografi a, densidade demográfi ca,</p><p>localização, etc.) e passa a entender como cada elemento age sob infl uência</p><p>da ação humana, ou seja, passa a compreender as relações do homem com</p><p>o seu espaço geográfi co e todos os elementos existentes nele. Essas relações</p><p>envolvem não apenas as associações entre o homem e a natureza, mas também</p><p>os vínculos do homem com as sociedades no tempo e no espaço.</p><p>Como você sabe, o bom professor não é simplesmente aquele que ensina,</p><p>mas aquele que ajuda os alunos a aprenderem. Portanto, o papel do docente</p><p>não é o de reproduzir, mas o de produzir conhecimento. O professor deve</p><p>saber que o educando não é um depósito vazio que recebe o conteúdo ex-</p><p>terno: o aluno é um indivíduo que pertence à sua comunidade e que têm uma</p><p>história de vida que deve ser levada em consideração no processo de ensino</p><p>e aprendizagem. Além disso, o aluno é um ser pensante e com capacidade</p><p>de assimilar, reelaborar, criar e reconstruir o saber.</p><p>Antes mesmo de a geografia ser considerada uma ciência, em meados do</p><p>século XIX, já existiam professores de geografia. As aulas eram ministradas</p><p>para crianças, adolescentes e adultos e contavam com a ajuda de manuais</p><p>que esquematizavam um saber prático que servia para viagens, comércio e</p><p>guerra. A institucionalização da geografia deveu-se precisamente à neces-</p><p>sidade de formar um grande número de professores para o sistema escolar</p><p>em crescimento no século XIX (VESENTINI, 2011).</p><p>Historicamente, no Brasil, a educação formal caracterizou-se pelo pri-</p><p>vilégio da elite em detrimento das classes mais populares. Isso ocorreu</p><p>desde D. João VI, persistindo por todo o período imperial, primeiramente</p><p>com a criação dos colégios jesuíticos e posteriormente com a criação dos</p><p>cursos superiores. Em um território onde quase todos eram analfabetos,</p><p>quem tinha formação era privilegiado. Essa configuração do ensino deu</p><p>origem, no século XXI, a um sistema educacional deficiente se comparado</p><p>ao de muitos países.</p><p>De acordo com o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes</p><p>(Programme for International Student Assessment — Pisa), que analisou a</p><p>educação em 70 países, a posição do Brasil não é nada animadora. Com base</p><p>no resultado dos mais de 23 mil estudantes brasileiros avaliados em todo o</p><p>território nacional, tanto dos estabelecimentos de ensino públicos como dos</p><p>particulares, o Brasil ocupa o 59º lugar em leitura, 63º em ciências e 65º em</p><p>matemática (OECD, 2015).</p><p>O papel do docente no ensino da geografia2</p><p>O Pisa é uma iniciativa de avaliação comparada, aplicada de forma amostral a estu-</p><p>dantes matriculados a partir do 7º ano do ensino fundamental na faixa etária dos 15</p><p>anos, idade em que se pressupõe o término da escolaridade básica obrigatória na</p><p>maioria dos países. O Programa é coordenado pela Organização para Cooperação e</p><p>Desenvolvimento Econômico (OCDE), com o apoio de uma coordenação nacional em</p><p>cada país participante. No Brasil, a coordenação do Pisa é responsabilidade do Instituto</p><p>Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) (OCDE, 2015).</p><p>É muito grande a distância entre o que seria ideal e o que é a realidade</p><p>brasileira. Entre os problemas nacionais, estão a baixa remuneração dos pro-</p><p>fessores, o elevado número de aulas por semana que muitos profissionais da</p><p>educação precisam dar, o excesso de alunos em sala de aula, além da falta de</p><p>equipamentos como vídeos, projetores multimídia, laboratórios e, em alguns</p><p>casos, quadro e giz (VESENTINI, 2011).</p><p>Diante de tantos problemas e desafios, quais são as perspectivas para a</p><p>melhoria da qualidade do ensino no Brasil? É necessário considerar, segundo</p><p>Vesentini (2011), que a educação é parte da sociedade e sofre a influência de</p><p>diversos processos socioeconômicos, políticos e culturais. Veja:</p><p>A educação no Brasil é o que é, pelo menos em parte, em virtude de nossa</p><p>cultura no sentido amplo do termo: valores, hábitos, conceitos ou preconceitos</p><p>arraigados, características das famílias, das relações de amizade e de paren-</p><p>tesco, dos meios de comunicação de massa, etc. Todo professor</p><p>que tentou</p><p>inovar radicalmente, mudar a sua prática educativa procurando realizar bons</p><p>estudos do meio, selecionar textos críticos para a leitura e discussão, abordar</p><p>novos temas/problemas, etc. conhece muito bem as enormes dificuldades que</p><p>enfrentou: muitos pais de alunos que reclamam e querem o tradicional, porque</p><p>julgam que com isso os seus filhos terão uma maior chance nos vestibulares;</p><p>alguns diretores de escolas que detestam qualquer novo procedimento que saia</p><p>da rotina preestabelecida; a pressão de muitos alunos (que não querem estudar</p><p>de fato e preferem o comodismo das aulas expositivas e dos questionários nos</p><p>quais se copiam as respostas); e até mesmo de alguns colegas, professores de</p><p>diversas disciplinas que se sentem ameaçados por alguém que se esforça para</p><p>melhorar e, dessa forma, deixa implícito para quem sabe refletir a fragilidade</p><p>das aulas repetitivas e não criativas (VESENTINI, 2011, p. 245).</p><p>3O papel do docente no ensino da geografia</p><p>Esses são casos que podem ser superados se houver professores dispostos e</p><p>escolas abertas e flexíveis que saibam superar as pressões que tentam manter o</p><p>conservadorismo da escola tradicional. Nesse contexto, ensinar geografia não é</p><p>uma tarefa fácil. A disciplina integra as ciências humanas, que, dependendo dos</p><p>Parâmetros Nacionais Curriculares (PNCs), têm sua carga horária reduzida, o</p><p>que acaba gerando um corte nos conteúdos necessários para a formação do aluno</p><p>cidadão. Considere o seguinte:</p><p>Acabar com a geografia é tão tentador, que por várias razões os conceitos das</p><p>outras disciplinas são melhor estabelecidos e mais presentes no discurso social.</p><p>Com os novos programas, o risco de escamotear a aprendizagem em sala de aula</p><p>dos raciocínios geográficos é ainda maior. Mesmo que o ajustamento de uma nova</p><p>tentativa esbarre em dificuldades epistemológicas reais, afirmar posições progres-</p><p>sistas e recusar estudar geografia é ignorar que ela é fundamentalmente um saber</p><p>estratégico, parte importante do exercício dos poderes (FOUCHER, 1995, p. 15).</p><p>Cabe ao professor de geografia estimular o raciocínio do aluno sobre o espaço</p><p>por meio da história ou da economia política marxista. Dessa forma, o estudante</p><p>pode se situar politicamente em relação às classes sociais e à nação. É necessário</p><p>levar os alunos a pensar, por exemplo, como o estabelecimento de uma empresa</p><p>pode influenciar um espaço, seja um bairro ou uma cidade. Além disso, os estu-</p><p>dantes devem conhecer as forças políticas, econômicas e sociais que agem sobre</p><p>cada território. Eles precisam saber o que é desenvolvimento, subdesenvolvimento</p><p>e imperialismo, bem como estar cientes das suas relações com os diferentes</p><p>espaços geográficos. Não entender esses conceitos e suas relações com o espaço</p><p>pode causar erros de análise graves (FOUCHER, 1995).</p><p>Os Parâmetros Curriculares Nacionais são diretrizes organizadas pelo Governo Federal</p><p>com a função de orientar os educadores no sistema educacional. De natureza aberta</p><p>e caráter flexível, os PCNs orientam os educadores nas decisões regionais e locais</p><p>sobre currículos e sobre programas de transformação da realidade educacional. Seu</p><p>modelo curricular não é homogêneo e sua posição não é imposta à competência</p><p>político-executiva dos estados e municípios, pois há respeito à autonomia dessas</p><p>instâncias, bem como à diversidade sociocultural das diferentes regiões do País e ao</p><p>trabalho de professores e equipes pedagógicas (BRASIL, 1997).</p><p>O papel do docente no ensino da geografia4</p><p>Um dos problemas existentes no Brasil é a omissão do professor na sua</p><p>missão de ensinar. Kaercher (2007), em suas pesquisas sobre a atuação dos</p><p>professores de geografia em sala de aula, observou uma relativa ausência do</p><p>professor enquanto sujeito condutor do processo pedagógico:</p><p>O professor está mais para um gerente burocrata que evita, às vezes sem</p><p>conseguir, o excesso de barulho, do que alguém que instaura o que considero</p><p>fundamental: o conflito, a tensão cognitiva entre ele e os alunos; tensão entre</p><p>o modo de pensar o “antes” e o “depois” da explanação do professor. Raras</p><p>vezes, lembro de um professor dar uma aula, fazer uma explanação, conduzir</p><p>uma linha de raciocínio. Por cerca de 30 minutos que seja. Sim, houve mui-</p><p>tos momentos em que o professor coordenou o processo, deu informações,</p><p>solicitou tarefas. Não se trata de dizer que os professores não cumprem suas</p><p>tarefas. A hipótese que levanto é que estas “tarefas de professor” estão muito</p><p>rebaixadas, estão muito ligadas ao comportamental e cada vez menos ao</p><p>cognitivo, ao intelectual. Não sei se no passado recente — décadas de 60 e</p><p>70 — era diferente, e não quero idealizar uma escola do passado que nunca</p><p>houve, mas me parece inequívoco que, a partir do final da década de 70, as</p><p>escolas públicas começaram a perder qualidade com mais força. A intenção</p><p>não é comparar o ontem e o hoje, mas constatar que as escolas têm se conten-</p><p>tado em realizar um trabalho que está mais para o burocrático do que para o</p><p>reflexivo (KAERCHER, 2007, p. 31).</p><p>O professor não deve simplesmente repassar um conteúdo pronto, mas</p><p>estar preparado para explicar por que certos acontecimentos ocorrem e para</p><p>relacioná-los ao contexto do Planeta, da Nação, dos estados e das regiões.</p><p>O educador deve saber representar no mapa os espaços vividos: onde e por</p><p>que aí? Deve entender também a respeito da noção de localização: “De fato,</p><p>é importante entender que, hoje, as práticas espaciais, isto é, os gestos, os</p><p>atos, as trocas de nossa vida social, para serem executadas, desenrolam-se</p><p>em lugares específicos e não se limitam ao que é imediatamente visível [...]”</p><p>(FOUCHER, 1995, p. 20).</p><p>Você deve notar que não existe um programa ideal, um método geográ-</p><p>fico pronto. Cabe ao bom professor a tarefa de se concentrar em pesquisas e</p><p>experiências relacionadas ao campo geográfico, de forma a construir com o</p><p>educando o conhecimento necessário para que ele atue como cidadão cons-</p><p>ciente na sociedade. A seguir, você vai conhecer algumas propostas didáticas</p><p>de atuação docente que vão contribuir para a sua formação como professor</p><p>de geografia.</p><p>5O papel do docente no ensino da geografia</p><p>As novas propostas didáticas no ensino de</p><p>geografia</p><p>Como você sabe, o mundo está em constante mudança, e os processos de</p><p>transformação obrigam as áreas do conhecimento a um movimento cons-</p><p>tante de renovação. Esse movimento representa a atualização e a renovação</p><p>de ideias, que só podem ocorrer se houver uma refl exão crítica de modo a</p><p>avançar em novos conhecimentos. Refl etir é pensar o espaço geográfi co e as</p><p>suas relações no âmbito social, histórico e natural por meio de uma dimensão</p><p>fenomenológica. Nesse sentido, os processos de formação dos espaços e as</p><p>suas múltiplas relações podem ou não se alterar.</p><p>Segundo Carlos (2006, p. 8),</p><p>[...] a ciência geográfica tem como tarefas a compreensão explicitamente</p><p>reproduzida da realidade e o questionamento sobre o modo pelo qual a aná-</p><p>lise espacial pode contribuir para o entendimento do mundo e seu processo</p><p>de transformação, recriando constantemente a necessidade de se repensar o</p><p>papel explicativo da geografia.</p><p>A geografia física e as mudanças ambientais</p><p>Estudar os aspectos físicos do planeta Terra continua sendo muito importante.</p><p>As formas de relevo terrestre, como os componentes da litosfera, são indispen-</p><p>sáveis para a adequação dos métodos de organização geográfi ca das sociedades</p><p>humanas. Porém, a Terra tem sofrido graves alterações nas suas características</p><p>físicas e biológicas, devido principalmente à interferência humana.</p><p>O ser humano passou a alterar significativamente o meio ambiente a partir</p><p>da Primeira Revolução Industrial (século XVIII). Os problemas causados por</p><p>essas alterações só começaram a ser debatidos a partir da década de 1970 e</p><p>mais intensamente nos anos 1990. Como você sabe, a interferência humana</p><p>sobre o meio ambiente afeta os ecossistemas como um todo, pois o homem,</p><p>na busca desenfreada por capital, altera o relevo e, consequentemente, o clima</p><p>do planeta. Além disso, polui as águas superficiais e subterrâneas, os oceanos</p><p>e o solo, devastando a flora e a fauna.</p><p>Em meio a tudo isso, como os alunos podem obter os conhecimentos</p><p>necessários para compreender as transformações da superfície da Terra e</p><p>dos ecossistemas se os conteúdos forem trabalhados de forma isolada? Hoje,</p><p>não é viável estudar isoladamente os fenômenos, separando-os no tempo e no</p><p>espaço. É preciso trabalhar na complexidade, com temas variados relativos</p><p>O papel do docente no ensino da geografia6</p><p>a um mesmo problema. Ou seja, os problemas do planeta não podem ser re-</p><p>solvidos de modo unilateral por ramos isolados das ciências, nem mesmo por</p><p>um só país ou continente, pois o ambiente é planetário. Não se pode estudar</p><p>o clima, o solo, os recursos hídricos e as florestas sem deixar de mencionar,</p><p>por exemplo, a industrialização, o crescimento da população mundial, os</p><p>impactos sociais e econômicos, os países ricos e os pobres.</p><p>A visão individualista em relação às diversas áreas do conhecimento deu</p><p>origem a códigos de linguagem, teorias e procedimentos específicos em cada</p><p>área, fortalecendo as barreiras existentes entre as especialidades, o que não é</p><p>positivo. Segundo Coltrinari (2007, p. 31), “[...] as questões relativas ao meio</p><p>ambiente, do passado e do presente, demandam uma reorganização da divisão</p><p>do trabalho científico que se reflete, por exemplo, na atual preocupação com</p><p>aproximações inter-trans-multi-ou-a-disciplinares [...]”.</p><p>Assim, vale a pena insistir na abordagem sobre a formação e as transforma-</p><p>ções físicas do planeta, considerando as várias áreas do conhecimento, como a</p><p>geologia, a biologia, a física e a química, juntamente à economia, à sociologia,</p><p>à história, etc. Você deve ter em mente que os processos ocorrem em escalas</p><p>que vão do global ao local, acontecendo em intervalos de tempo distintos e</p><p>em diferentes espaços. Os temas podem variar desde o movimento das placas</p><p>tectônicas até a erosão e a poluição do solo e das águas como consequência</p><p>da atividade econômica e social do homem.</p><p>A geografia e a arte de ensinar</p><p>A geografi a escolar encontra-se hoje em uma dinâmica dialética. De um</p><p>lado, está a realidade da escola e da sala de aula. De outro, a necessidade de</p><p>inovar o ensino e a aprendizagem conforme as transformações históricas no</p><p>campo geográfi co na academia e as ações governamentais expressas pelos</p><p>PCNs e pelas avaliações impostas aos professores e alunos. Além disso, há o</p><p>embate entre escola pública e privada. Nesse contexto, existem diversas ações</p><p>e orientações das instituições centrais ligadas à política educacional no Brasil</p><p>(PONTUSCHKA, 2007).</p><p>Considerando tudo isso, o professor pode se questionar: que caminho devo</p><p>seguir para que os alunos de diferentes níveis de ensino entendam o espaço</p><p>geográfico de modo a expandir a sua visão de mundo, compreendendo as</p><p>relações entre as sociedades em um ambiente globalizado? De que modo a</p><p>globalização interfere no espaço geográfico do professor e do aluno? Como</p><p>integrar os fenômenos que ocorrem globalmente a uma escala local? Segundo</p><p>Pontuschka (2007), não existe uma fórmula mágica para responder a essas</p><p>7O papel do docente no ensino da geografia</p><p>questões. Cabe à universidade analisar o contexto da educação atual do País,</p><p>o que deve ser realizado junto aos professores das escolas da educação básica</p><p>(ensinos fundamental e médio) (PONTUSCHKA, 2007).</p><p>O objetivo principal da escola, seja particular ou pública, não é simples-</p><p>mente formar profissionais para o mercado de trabalho, mas formar jovens de</p><p>personalidade criativa e crítica, que ajam de forma reflexiva com base no que</p><p>aprenderam e na realidade do seu espaço. A escola precisa proporcionar aos</p><p>alunos uma formação cidadã, mas conceituar cidadania numa sociedade tão</p><p>desigual como a brasileira não é tarefa fácil. Por isso, “Conhecer os alunos, as</p><p>representações sociais e os saberes que trazem é a primeira tarefa do professor</p><p>de qualquer disciplina [...]” (PONTUSCHKA, 2007, p. 112).</p><p>Castrogiovanni (2000) destaca a importância de ensinar aos alunos noções de espaço,</p><p>dando destaque à alfabetização espacial, definida como a “[...] construção de noções</p><p>básicas espaciais de localização, organização, representação e compreensão da estru-</p><p>tura do espaço elaboradas dinamicamente pelas sociedades [...]” (CASTROGIOVANNI,</p><p>2000, p. 11). Além disso, é necessário promover a alfabetização temporal dos estu-</p><p>dantes, ou seja, “[...] a construção das noções temporais, a quantificação do tempo, a</p><p>representação das categorias passado, presente e futuro e a caracterização de épocas</p><p>[...]” (CASTROGIOVANNI, 2000, p. 14). O autor trabalha o espaço sob a perspectiva do</p><p>espaço vivido e do espaço percebido. Ele utiliza como exemplo as crianças, que até</p><p>os 2 anos iniciam a sua construção simbólica e representativa do espaço de forma</p><p>intuitiva e operativa.</p><p>O docente de geografia precisa dominar o método para que o estudante</p><p>possa construir o conhecimento geográfico. É preciso propor atividades que</p><p>desenvolvam o raciocínio geográfico. O professor pode iniciar abordando as</p><p>condições de existência do próprio aluno e de seus familiares. Assim, o aluno</p><p>aprende a analisar o espaço a partir da própria vivência e pode expandir a sua</p><p>visão sobre os diferentes espaços.</p><p>Callai (2005) destaca a leitura do mundo por meio da leitura do espaço.</p><p>Isso implica compreender que as paisagens são o resultado da ação humana,</p><p>da vida em sociedade. Para a autora, o espaço “[...] traz em si todas as</p><p>marcas da vida dos homens [...]” (CALLAI, 2005, p. 228). Portanto, ler o</p><p>mundo vai muito além da leitura cartográfica, cujas representações refle-</p><p>O papel do docente no ensino da geografia8</p><p>tem as realidades territoriais, por vezes distorcidas devido às projeções</p><p>cartográficas adotadas:</p><p>Fazer a leitura do mundo não é fazer uma leitura apenas do mapa, ou pelo</p><p>mapa, embora ele seja muito importante. É fazer a leitura do mundo da vida,</p><p>construído cotidianamente e que expressa tanto as nossas utopias como os</p><p>limites que nos são postos, sejam eles do âmbito da natureza, sejam do âmbito</p><p>da sociedade (culturais, políticos, econômicos) (CALLAI, 2005, p. 228).</p><p>Independentemente da corrente pedagógica ou geográfica escolhida pelo</p><p>docente, a geografia deve estar relacionada ao dia a dia dos estudantes. O</p><p>conteúdo sempre é o aspecto principal. Tanto ele quanto os objetivos peda-</p><p>gógicos precisam ser expostos de maneira clara (KAERCHER, 2007). Você</p><p>deve se perguntar:</p><p>Onde queremos chegar? O espaço não pode estar ausente. [É preciso] Pensar</p><p>na importância e na influência das coisas estarem neste ou naquele lugar.</p><p>Isso requer um professor iluminista e iconoclasta. Iluminar novos caminhos,</p><p>provocar o espanto do aluno (não tinha pensado nisso!) e, também, destruir</p><p>certezas, convenções e marasmos arraigados sem discussão. Numa metáfora:</p><p>o professor fornece a escada para o aluno subir em abstração e conhecimento.</p><p>Mas, logo, retira a escada e diz: vão descobrir outros caminhos. Não voltem</p><p>por aqui, por esta escada, eu a retirei (KAERCHER, 2007, p. 31).</p><p>De acordo com Kaercher (2007), as escolas, em vez de desenvolver uma</p><p>linha mecanicista, devem incentivar os alunos a aprimorarem a sua cognição</p><p>e a sua criatividade. Veja o exemplo mencionado pela autora:</p><p>A aula expositiva, no sentido mais clássico do termo, ou falando em termos</p><p>mais pomposos, uma exposição onde se apresenta uma “tese” — por exemplo,</p><p>a industrialização do Brasil pós-1950 — expondo alguns argumentos e racio-</p><p>cínios que sustentem tais ideias, dando exemplos, mostrando alguns pontos</p><p>positivos e negativos (antíteses) do que se está falando, e, por fim, fazendo um</p><p>fechamento com algumas conclusões parciais [...] (KAERCHER, 2007, p. 32).</p><p>O professor deve fazer uma leitura analítica do espaço geográfico a fim de</p><p>chegar a uma síntese, criando mecanismos no interior do processo educativo</p><p>para favorecer o entendimento do estudante. Como resultado, o aluno deve</p><p>ter ciência de que o</p><p>espaço é construído e reconstruído pelos homens em</p><p>diferentes tempos e em diferentes sociedades, que se transformam e nas quais</p><p>se estabelecem relações distintas (PONTUSCHKA, 2007).</p><p>9O papel do docente no ensino da geografia</p><p>A primeira condição para que o professor desempenhe bem o seu papel é</p><p>dominar o conhecimento geográfico a ser ensinado. A competência do professor</p><p>alicerçada apenas no conhecimento acadêmico é algo superado, pois ele precisa</p><p>ir além, necessita de outras competências. Segundo Pontuschka (2007, p. 131), o</p><p>educador precisa de “[...] conhecimentos na área de psicologia de aprendizagem,</p><p>de psicologia social, da história da educação, da história da disciplina geográfica,</p><p>de linguagens e métodos a serem utilizados em sala de aula [...]”.</p><p>Os conhecimentos adquiridos no ambiente acadêmico, seja em pesquisas de</p><p>campo, bibliografias ou junto aos professores universitários, devem servir como</p><p>instrumento teórico a ser reelaborado, recriado e transformado em saber escolar.</p><p>Os caminhos que o professor de geografia escolhe para ministrar suas aulas</p><p>são selecionados num universo de conhecimentos adquiridos na universidade.</p><p>Para isso, o docente considera a própria estrutura da disciplina, a realidade e</p><p>a essência dos alunos, sua faixa etária, a classe social a que pertencem, além</p><p>das suas condições culturais e econômicas (PONTUSCHKA, 2007).</p><p>O bom professor de geografia precisa conhecer diferentes fontes que lhe</p><p>auxiliarão e lhe darão suporte científico. Ele pode utilizar pesquisas empíri-</p><p>cas, inventários, vídeos, além dos convencionais mapas, cartas geográficas,</p><p>gráficos e tabelas. Também pode se valer de ferramentas mais atuais, como</p><p>o sensoriamento remoto e os recursos oferecidos na era digital. A utilização</p><p>desses recursos, além de obras literárias, fotografias, cinema, etc., auxilia os</p><p>alunos a compreenderem e a serem críticos em relação à produção do espaço</p><p>(PONTUSCHKA, 2007).</p><p>O professor também deve compreender a escala em que está produzindo a</p><p>geografia com seus alunos: local, regional, nacional ou internacional. Afinal,</p><p>é necessário considerar a existência de sociedades desiguais econômica e</p><p>socialmente (PONTUSCHKA, 2007). Segundo Pontuschka (2007, p. 135),</p><p>“[...] o estudo de qualquer parte da realidade não deve se restringir aos seus</p><p>limites, mas estar inserido no interior de um contexto maior, que é o social,</p><p>político, econômico e espacial [...]”.</p><p>Outra proposta didática diz respeito à interdisciplinaridade, que requer</p><p>uma alteração nas formas tradicionais de ensinar geografia, aproximando</p><p>os seus temas e conteúdos aos das demais disciplinas escolares. A interação</p><p>entre as disciplinas como história, literatura, matemática, biologia, química,</p><p>entre outras, amplia a visão sobre o espaço geográfico e permite um melhor</p><p>entendimento da ciência geográfica como disciplina (PONTUSCHKA, 2007).</p><p>Como você pode notar, o professor de geografia escolar tem a importante</p><p>tarefa de auxiliar seus alunos na compreensão do espaço geográfico. O trabalho</p><p>pedagógico deve ensinar e conscientizar o aluno a respeito de suas respon-</p><p>O papel do docente no ensino da geografia10</p><p>sabilidades e de seus direitos, mesmo havendo tantas diferenças e injustiças</p><p>sociais. Conscientizar o aluno é auxiliá-lo e entender o seu papel de cidadão na</p><p>sociedade atual, permitindo a ele assumir posições diante dos problemas que</p><p>enfrenta e enfrentará em qualquer ambiente de que participe (familiar, escolar,</p><p>laboral, institucional). Cabe ao professor dominar as técnicas e selecionar o</p><p>que realmente serve de alicerce para a boa formação do educando.</p><p>Leituras importantes para a atuação no espaço</p><p>geográfico</p><p>A geografi a tem o importante papel de ensinar o educando a refl etir sobre a</p><p>sociedade e as relações que desenvolve com o espaço geográfi co em que vive. Atu-</p><p>almente, é o viés da geografi a crítica que permite a refl exão sobre as modifi cações</p><p>que ocorrem no espaço geográfi co devido à ação humana. Uma das formas de</p><p>compreender essas modifi cações é por meio do conceito de território, pensado em</p><p>diferentes abordagens, como espaço natural, social, cultural, econômico, político.</p><p>As modifi cações podem ser de caráter político, por exemplo. Assim, estudar os</p><p>movimentos políticos, as ações democráticas e as ditatoriais de diferentes espaços</p><p>auxilia no entendimento das ações políticas dentro do território nacional e na</p><p>compreensão dos eventos geopolíticos que ocorrem local e globalmente.</p><p>Historicamente, existem poucos registros sobre leituras relacionadas ao</p><p>ensino de geografia até os anos 1960 no Brasil. Os registros apontam apenas</p><p>críticas feitas por historiadores aos livros didáticos, em especial àqueles pro-</p><p>duzidos com base na metodologia de Delgado de Carvalho, diretor e professor</p><p>do tradicional Colégio D. Pedro II, no Rio de Janeiro. Carvalho foi o primeiro</p><p>a se preocupar com o ensino de geografia, propondo uma metodologia e uma</p><p>melhor distribuição dos conteúdos, participando inclusive da formulação da</p><p>disciplina de geografia nas reformas de ensino do início do século XX no País</p><p>(PONTUSCHKA, 2007).</p><p>Durante a segunda metade do século XX, os geógrafos produziram diversos</p><p>artigos sobre o ensino da geografia. Contudo, a preocupação central era relativa</p><p>ao que ensinar, e não ao modo de ensinar geografia. O Instituto Brasileiro de</p><p>Geografia e Estatística (IBGE) e o Colégio D. Pedro II eram as instituições</p><p>que influenciavam os conteúdos que deveriam estar presentes no programa</p><p>pedagógico do Brasil antes da primeira formação de licenciados em geografia</p><p>das universidades do Rio de Janeiro e São Paulo (PONTUSCHKA, 2007).</p><p>Segundo Pontuschka (2007), a fundação da Faculdade de Filosofia, Letras</p><p>e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), em 1934,</p><p>11O papel do docente no ensino da geografia</p><p>e a criação do Departamento de Geografia, em 1946, foram extremamente</p><p>importantes para o desenvolvimento da ciência geográfica no Brasil. Com</p><p>relação à questão teórica, o desenvolvimento da geografia no Brasil recebeu</p><p>forte influência europeia, principalmente da escola francesa, pois os primeiros</p><p>mestres eram da França. Juntamente com a USP, foi criada a Associação dos</p><p>Geógrafos Brasileiros, que até hoje possui importância para os pesquisadores</p><p>e professores de geografia (PONTUSCHKA, 2007).</p><p>De acordo com Pontuschka (2007), a geografia ensinada no antigo ginásio</p><p>era muito atrasada nesse período (décadas de 1930 e 1940) e totalmente fun-</p><p>damentada nos livros didáticos: “Geralmente eles expressavam o que havia</p><p>sido a geografia até meados do século XIX na Europa: enumeração de nomes</p><p>de rios, serras, montanhas, capitais, cidades principais, totais demográficos</p><p>de países, de cidades, etc. [...]” (PONTUSCHKA, 2007, p. 114).</p><p>Conforme estabelece a Lei nº. 4.024/61, a educação de grau médio era dividida em dois</p><p>ciclos: o ginasial e o colegial. Para ingressar na primeira série do ginásio, era necessária</p><p>a aprovação do aluno no exame de admissão. O colegial compreendia os cursos</p><p>técnicos (industrial, agrícola e comercial) e a formação de magistério (BRASIL, 1961).</p><p>Aroldo de Azevedo, um dos primeiros professores da FFLCH da USP,</p><p>preocupado com a geografia puramente descritiva e enumerativa, argumen-</p><p>tava que a verdadeira geografia era aquela produzida nos grandes centros do</p><p>Hemisfério Norte. Nesse época, o Brasil época dependia culturalmente da</p><p>Europa, em especial da França e, em segundo plano, dos Estados Unidos. Nos</p><p>anos 1940 e 1950, aumentou a produção científica por aqui, e a pesquisa passou</p><p>a se desenvolver a partir de trabalhos de campo realizados com embasamento</p><p>teórico da geografia francesa e alemã (PONTUSCHKA, 2007).</p><p>Nesse período, o Departamento de Geografia da USP passou a dar im-</p><p>portância aos estudos regionais. O IBGE era a principal fonte de pesquisa,</p><p>produzindo vários artigos geográficos que serviam como suporte para a</p><p>elaboração de livros didáticos e davam orientações metodológicas para os</p><p>professores dos antigos ginásios e</p><p>colégios, desde a escola fundamental até</p><p>as faculdades. Para o ensino médio, utilizava-se o Boletim Geográfico, que</p><p>circulou de 1943 a 1978 em todo o território nacional por meio do próprio</p><p>O papel do docente no ensino da geografia12</p><p>IBGE. Entre as suas várias seções, uma era dedicada ao ensino da geografia.</p><p>Outra fonte de pesquisa era o Boletim Paulista de Geografia (BPG), publicado</p><p>pela Associação dos Geógrafos Brasileiros Seção de São Paulo. Surgido em</p><p>1946, ele existe até hoje. O BPG procura divulgar ideias e pesquisas, servindo</p><p>como fonte bibliográfica obrigatória, segundo Pontuschka (2007), para os</p><p>professores da educação básica e os estudantes de geografia de São Paulo e</p><p>de outros estados do País.</p><p>Muitas teses já estavam sendo publicadas por geógrafos brasileiros na</p><p>década de 1950. Porém, ainda se destacavam as análises inspiradas no pen-</p><p>samento de Vidal de La Blache. Esse geógrafo francês abordava as relações</p><p>do homem com a natureza deixando de lado o viés social (PONTUSCHKA,</p><p>2007). A partir dos anos 1950, o Brasil passou por uma reelaboração das suas</p><p>condições de dependência, reintegrando-se ao sistema econômico mundial</p><p>sob a supremacia dos Estados Unidos. Nesse momento, várias alterações</p><p>ocorreram no território nacional. Entre elas, você pode considerar: o aumento</p><p>da urbanização e a criação de áreas metropolitanas, a introdução de novas</p><p>tecnologias e as transformações no setor agrário (devido à industrialização</p><p>e à mecanização).</p><p>Nesse contexto, diversos lugares passaram a se organizar com base em</p><p>redes articuladas nacional e mundialmente. Assim, os locais deixaram de ser</p><p>analisados sob uma perspectiva histórica e social e passaram a ser vistos sob a</p><p>perspectiva do trabalho e do capital financeiro. Ficava claro, então, que o espaço</p><p>geográfico mundializado pelo capitalismo monopolizado não poderia mais ser</p><p>estudado apenas pela metodologia da geografia tradicional (PONTUSCHKA,</p><p>2007). Para entender as transformações da sociedade e suas relações com o</p><p>espaço geográfico, era necessária uma mudança na metodologia de pesquisa</p><p>e ensino. Surgiu, então, a corrente do pensamento teorético-quantitativo,</p><p>também conhecida como nova geografia. Veja:</p><p>A Nova Geografia, provinda principalmente dos Estados Unidos, influenciou</p><p>o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a Universidade</p><p>Estadual Paulista (Campus de Rio Claro), portanto a divulgação do pensa-</p><p>mento Teorético-Quantitativo foi realizada de forma sistemática e contínua</p><p>por quase duas décadas, influenciando a postura metodológica dos autores</p><p>de livros didáticos e dos próprios professores de Geografia, que tiveram sua</p><p>formação sob os auspícios de tais teorias geográficas (BARBOSA, 2006, p. 81).</p><p>O pensamento teorético-quantitativo considerava a natureza apenas como</p><p>um recurso disponível para exploração, uso e transformação pelo Estado, por</p><p>sua vez subordinado ao grande capital. A natureza era considerada, inclusive,</p><p>13O papel do docente no ensino da geografia</p><p>um entrave ao desenvolvimento econômico. Era necessário substituir os espa-</p><p>ços de natureza preservada por áreas para o plantio. Só haveria progresso por</p><p>meio da exploração da natureza transformada em matéria-prima para produtos</p><p>industrializados. No Brasil, os projetos de industrialização foram intensifi-</p><p>cados e diversas florestas foram devastadas para o cultivo e a mecanização</p><p>da agricultura. Assim, pequenos latifúndios foram absorvidos ou destruídos</p><p>em nome do capital, impulsionando um processo de degradação ambiental e,</p><p>consequentemente, social (BARBOSA, 2006).</p><p>A nova geografia foi bastante criticada por geógrafos que buscaram outros</p><p>caminhos para a compreensão do espaço geográfico. Foi então que surgiu a</p><p>escola nova e que ocorreu a disseminação da obra de Jean Piaget, nos anos</p><p>1960. Segundo Piaget, a aprendizagem ocorre de maneira construtiva e exige</p><p>a interação do sujeito com o meio — é o que Piaget chama de psicologia da</p><p>educação. Para ele, o conhecimento é o resultado da construção pessoal, é um</p><p>processo interno de pensamento em que o próprio sujeito coordena as diferen-</p><p>tes informações, organizando-as e relacionando-as com outras já existentes,</p><p>dando-lhes significado (PEAGET, 1973 apud TENREIRO et al., 2009).</p><p>A partir dos anos 1970, o Brasil passou por uma intensa reflexão teórico-</p><p>-metodológica. O embasamento filosófico centrado no positivismo clássico</p><p>e no historicismo começou a ser questionado pelos geógrafos teoréticos. Em</p><p>São Paulo, os geógrafos do Departamento de Geografia da Faculdade de Fi-</p><p>losofia de Rio Claro fundaram a Associação de Geografia Teorética (Ageteo)</p><p>e criaram, em 1971, o primeiro Boletim de Geografia Teorética. Segundo</p><p>Pontuschka (2007, p. 121):</p><p>A geografia teorética não teve repercussão direta no ensino fundamental e</p><p>médio, no entanto medidas ligadas à política educacional do país (torna-se im-</p><p>portante lembrar que vivíamos em um regime militar) levaram para as escolas</p><p>livros com saberes geográficos extremamente empobrecidos em conteúdos</p><p>escolares, desvinculados da realidade então vivida e descaracterizados pelas</p><p>propostas de estudos sociais, introduzidos pela Lei 5.692/71, sendo muitos os</p><p>livros que realizavam colocações de cunho altamente ideológico, valorizando</p><p>as “grandes obras” dos militares, como as hidrelétricas e as chamadas rodovias</p><p>de integração, com o fim de continuarem no mercado editorial.</p><p>Foi então que as aulas ministradas nos três níveis de educação (1º, 2º e</p><p>3º graus) passaram a ser criticadas pelos próprios educadores dos ensinos</p><p>fundamental e médio. Nesse cenário, muitos dos professores buscaram se</p><p>aproximar de associações culturais, como a Associação dos Geógrafos do</p><p>Brasil (AGB) e a Associação Nacional de História (ANPUH), e das univer-</p><p>O papel do docente no ensino da geografia14</p><p>sidades. A ideia era diminuir a defasagem e a desatualização de parte dos</p><p>professores sobre o que estava sendo produzido, tanto no campo geográfico</p><p>como no de história, na década de 1970, sob o regime militar. Ao mesmo</p><p>tempo em que as escolas particulares cresciam, mesmo sem as condições</p><p>necessárias, as universidades públicas debatiam sobre a geografia e o ensino</p><p>(PONTUSCHKA, 2007).</p><p>Uma das mais importantes obras elaboradas nos anos 1970 reflete sobre</p><p>o materialismo histórico e dialético. Essa obra, escrita por Yves Lacoste e</p><p>intitulada A Geografia: isso serve em primeiro lugar para fazer a guerra,</p><p>desencadeou debates polêmicos entre geógrafos de variadas correntes e gera-</p><p>ções. Ela foi publicada na França, em 1976. De acordo com Lacoste, o Estado</p><p>e a grande empresa são privilegiados porque possuem uma visão integrada do</p><p>espaço e agem em vários lugares. Já o homem comum, cidadão, possui uma</p><p>visão fragmentada, parcial e restrita do seu espaço geográfico, seu cotidiano,</p><p>sem conhecimentos sobre outras realidades. Portanto, o conhecimento inte-</p><p>grado sobre o espaço é um instrumento de poder do Estado. Como você pode</p><p>imaginar, essa obra fez com que muitos pensassem sobre questões políticas</p><p>relativas ao espaço (PONTUSCHKA, 2007).</p><p>Nos anos 1980, teóricos inspirados nas teorias marxistas influenciaram</p><p>os geógrafos paulistas, reduzindo os teoréticos a um pequeno grupo. Desde</p><p>então, a geografia valoriza uma perspectiva mais crítica, tendo o materialismo</p><p>histórico como método de investigação da realidade. Pensadores que não</p><p>eram geógrafos se incorporaram a essa nova fase da geografia, contribuindo</p><p>ao colocar o espaço como tema central de suas análises. Entre os autores que</p><p>se destacam nesse nova corrente, você pode considerar:</p><p> Manuel Castells, com Sociedade em Rede (1999);</p><p> Henri Lefebvre, com A Produção do Espaço (1974);</p><p> Michel Foucault, com Microfísica do Poder (1979);</p><p> Milton Santos, com A Urbanização Brasileira (1993), Manual de Geo-</p><p>grafia Urbana (1980) e Território, Globalização e Fragmentação (1998);</p><p> Paul Claval, com A Geografia Cultural (2007);</p><p> Marcelo Lopes de Souza, com A Prisão e a Ágora (2006);</p><p> Yi-Fu Tuan, com Espaço e Lugar</p><p>de uma porção do espaço que se define, antes de tudo, pela</p><p>relatividade das relações entre as ações humanas e o meio. Já a obra Panorama</p><p>do mundo atual apresenta as mudanças no mundo do século XIX, delineando</p><p>a relação entre a sociedade e o meio ambiente. Nessa obra, Pierre George faz</p><p>referência às novas fontes de energia, às novas matérias-primas e à abundância</p><p>cada vez maior de produtos fabricados e consumidos, que vão se eliminando</p><p>mutuamente por meio de processos de concorrência técnica e comercial.</p><p>Assim, a geografia ambiental é apresentada primeiramente como um estudo</p><p>da geografia tradicional positivista. Mais tarde, ela ganha outros enfoques</p><p>em relação ao tempo e ao espaço, com a geografia teorético-quantitativa</p><p>contribuindo para a história do pensamento geográfico (RAMÃO, 2013).</p><p>Leia o artigo de Raquel Desiderio Souto “O papel da geografia em face da crise am-</p><p>biental”, disponível no link a seguir.</p><p>https://qrgo.page.link/G9fEf</p><p>Como você viu, a geografia clássica foi importante para a criação de no-</p><p>vos aspectos teóricos e metodológicos e para o desenvolvimento de novos</p><p>paradigmas, como a geografia tradicional positivista e, anos mais tarde, a</p><p>geografia nova ou geografia teorético-quantitativa. Foi em meados do século</p><p>XIX que a geografia primeiramente se institucionalizou como uma disciplina</p><p>nas universidades europeias e se tornou uma ciência. Assim, os estudos da</p><p>geografia tradicional positivista deixaram de ser inquietantes a partir do</p><p>desenvolvimento do novo paradigma, a geografia nova, que surgiu em con-</p><p>tradição à corrente anterior.</p><p>A geografia clássica8</p><p>Conheça alguns geógrafos importantes para geografia ambiental brasileira:</p><p> Aroldo de Azevedo (1910–1974) foi o responsável pela primeira classificação bra-</p><p>sileira do relevo;</p><p> Lysia Bernardes (1924–1991) foi a responsável pela criação da classificação climática</p><p>do Brasil, baseada na de Köppen;</p><p> Dora do Amarante Romariz (1922–2017) trabalhou no IBGE e fez parte do primeiro</p><p>grupo de pesquisa de biogeografia, participando da 1ª Conferência Nacional de</p><p>Geografia (CONFEGE) e de algumas edições do Congresso Internacional de Geo-</p><p>grafia (MEDONÇA, 2005).</p><p>AZEVEDO, J. R. N.; BARBOSA, T. A geografia quantitativa: ensaios. Espaço em revista,</p><p>v. 13, n. 2, p. 1-15, 2011. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/espaco/article/</p><p>view/16893. Acesso em: 15 maio 2019.</p><p>CÔRREA, R. L. Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.</p><p>GODOY, P. R. T. de. História do pensamento geográfico e epistemológico em geografia. São</p><p>Paulo: Cultura acadêmica, 2010.</p><p>MENDONÇA, F. A. de. Geografia e o meio ambiente. São Paulo: Contexto: 2005.</p><p>RAMÃO, F. S. de. A geografia de Pierre George e a questão ambiental: considerações</p><p>iniciais. Revista Continente, v. 2, n. 3, p. 1 – 21, 2013. Disponível em: http://www.tiagoma-</p><p>rino.com/continentes/index.php/continentes/article/view/28. Acesso em: 15 maio 2019.</p><p>SANTOS, M. Por uma geografia nova. São Paulo: Hucitec, 2004.</p><p>Leitura recomendada</p><p>SOUTO, R. D. O papel da geografia em face da crise ambiental. Estudos Avançados, v. 30,</p><p>n. 78, maio/ago. 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artt</p><p>ext&pid=S0103-40142016000200197. Acesso em: 15 maio 2019.</p><p>9A geografia clássica</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>AOS ESTUDOS</p><p>GEOGRÁFICOS</p><p>Anna Paula Lombardi</p><p>Geografia como ciência</p><p>Objetivos de aprendizagem</p><p>Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:</p><p> Apontar as características que definem a geografia como ciência.</p><p> Identificar os elementos do pensamento científico geográfico.</p><p> Reconhecer o espaço geográfico como objeto científico da geografia.</p><p>Introdução</p><p>Atualmente, a geografia é uma ciência consolidada. Ela pode ser definida</p><p>como o estudo das relações entre os seres humanos e o espaço onde</p><p>vivem. Foi no século XIX que a geografia passou a ser considerada uma</p><p>ciência. Nas universidades da Europa, ela ganhou importância e se tornou</p><p>uma disciplina principalmente devido aos estudos dos geógrafos alemães</p><p>Alexander Von Humboldt e Karl Ritter e dos geógrafos franceses Eliseé</p><p>Reclus e Vidal de La Blache. O principal objeto de estudo da geografia</p><p>é o espaço geográfico.</p><p>Neste capítulo, você vai conhecer mais sobre a geografia e ver como</p><p>ela se efetivou como ciência. Como você vai verificar, é por meio das ações</p><p>do homem no espaço que se podem analisar as categorias da geografia:</p><p>paisagem, território, lugar, região e escalas. São esses elementos que a</p><p>consagram como uma ciência.</p><p>A gênese da ciência geográfica</p><p>A geografi a pode ser compreendida como uma ciência da Terra, ou seja,</p><p>que descreve a Terra. Além disso, a geografi a se apresenta como um ramo</p><p>do conhecimento científi co. A sua gênese ocorreu na Antiguidade Clássica.</p><p>Assim, a geografi a nasceu com os gregos, que foram os primeiros a registrar a</p><p>sistematização do conhecimento dessa ciência. Desde a Antiguidade, os gregos</p><p>começaram a qualifi car as informações da superfície terrestre. Contudo, o</p><p>saber geográfi co é mais antigo ainda do que os fi lósofos da Grécia Antiga: as</p><p>sociedades primitivas já se preocupavam com o conhecimento da superfície</p><p>terrestre. Nas pinturas rupestres, havia uma compreensão da vida que levava</p><p>em conta aspectos geográfi cos.</p><p>Moreira (2010) esclarece que a geografia é uma forma particular de conheci-</p><p>mento. Estrabão (64 a.C.– 24 d.C.) foi um dos primeiros pensadores da geografia</p><p>e se dedicou a refletir sobre os ocupantes da Terra, os oceanos, a vegetação e o</p><p>homem que a cultiva. Para ele, o homem, a terra, a vida e a felicidade se articulam</p><p>na totalidade, no tempo e no espaço. Os estudos produzidos por Estrabão foram</p><p>fundantes e essenciais para o desenvolvimento do saber geográfico.</p><p>Você ainda deve considerar Immanuel Kant (1724–1804), que organiza o</p><p>seu pensamento a partir da filosofia grega. Assim, com Sócrates, a “unidade</p><p>de natureza” incorporava as atividades humanas no conhecimento de mundo.</p><p>Já com Xenófanes, as atividades econômicas foram essenciais, e com Platão</p><p>as questões políticas foram marcadas. Porém, para Kant, o auge do pensa-</p><p>mento geográfico ocorreu com os filósofos modernos, como Francis Bacon</p><p>(1521–1626), René Descartes (1596–1650) e Carolus Linnaeus (1707–1778).</p><p>Esses filósofos fizeram com que Kant desenvolvesse as suas ideias sobre o</p><p>conhecimento geográfico, ou a geografia física, precisamente pela perspectiva</p><p>das ciências naturais (SALES, 2013).</p><p>Kant foi professor de geografia física na Universidade de Konigsberg, na</p><p>Prússia, atual Alemanha. Em 1770, ele já considerava o aspecto racional na</p><p>questão do método. Kant compreendia que a razão era dada pela razão pura</p><p>e que o conhecimento era dado pela experiência, pelos sentidos e sensações.</p><p>A discussão sobre o método em Kant influenciou o desenvolvimento da ciên-</p><p>cia. Assim, Kant dividiu as ciências em empíricas e racionais (teóricas). Ele</p><p>considerava a geografia como uma ciência, de acordo com as distinções entre</p><p>ela e ciências como a antropologia, a história e a física.</p><p>Para Kant, a geografia física é a primeira parte do conhecimento do mundo,</p><p>ou seja, um conhecimento útil em todas as circunstâncias da vida. É importante</p><p>você considerar que “[...] o curso de geografia física dado por Kant influenciou,</p><p>de forma direta e indireta, diversos viajantes que catalogaram o novo mundo,</p><p>entre eles Humboldt” (SALES, 2013, p. 187).</p><p>Geografia como ciência2</p><p>Existem dois tipos de conhecimento: a priori e a posteriori. O conhecimento a posteriori</p><p>é dado na experiência, e o conhecimento a priori não se funda na experiência, mas dá</p><p>suporte a ela. Assim, todo conhecimento começa com a experiência, mas nem todo</p><p>conhecimento se funda (se desenvolve) nela (SALES, 2013).</p><p>Pereira (1988) esclarece que, mesmo com o desenvolvimento da cartografia</p><p>durante as grandes descobertas dos séculos XV e XVI, até o século XVIII, os</p><p>trabalhos geográficos seguiam muitos dispersos, sem qualquer padronização</p><p>ou sistematização das ideias. A abundância de temas e a descontinuidade</p><p>(1983);</p><p> Josué de Castro, com A Estratégia do Desenvolvimento (1971);</p><p> Roberto Lobato Corrêa, com Região e Organização Espacial (1987);</p><p> Edward Soja, com Geografias Pós-Modernas: a reafirmação do espaço</p><p>na teoria social (1993).</p><p>15O papel do docente no ensino da geografia</p><p>Como você viu ao longo deste capítulo, por muito tempo o ensino da</p><p>geografia no Brasil se restringiu à geografia tradicional, com metodologias</p><p>relacionadas basicamente à memorização de temas (hidrografia, relevo, vege-</p><p>tação, clima, dados populacionais, etc.). Contudo, a geografia é a ciência que</p><p>ensina a compreender o espaço geográfico. Assim, com o passar do tempo,</p><p>os geógrafos, tanto os ligados à pesquisa quanto os vinculados ao ensino,</p><p>perceberam que era necessário trabalhar o conhecimento geográfico de forma</p><p>reflexiva. Portanto, hoje a tendência é que os temas da geografia escolar se</p><p>associem cada vez mais com os fenômenos que ocorrem no cotidiano. Além</p><p>disso, os professores devem trabalhar de forma interdisciplinar, sempre rela-</p><p>cionando o tempo (histórico e presente) ao espaço (lugares e escalas).</p><p>BARBOSA, T. A influência da geografia teorética quantitativa na transformação teórica</p><p>do conceito de natureza em recursos naturais nos livros didáticos de geografia do en-</p><p>sino fundamental. Geografia em Atos, Presidente Prudente, v. 1, n. 6, p. 76-89, dez. 2006.</p><p>BRASIL. Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as Diretrizes e Bases da Educação</p><p>Nacional. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4024-</p><p>-20-dezembro-1961-353722-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 17 maio 2019.</p><p>Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros cur-</p><p>riculares nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC,</p><p>1997. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf. Acesso</p><p>em: 19 maio 2019.</p><p>CALLAI, H. C. Aprendendo a ler o mundo: a geografia nos anos iniciais do ensino fun-</p><p>damental. Cadernos CEDES, Campinas, v. 25, n. 66, p. 227-247, maio/ago. 2005.</p><p>CARLOS, A. F. A. A geografia na sala de aula. 8. ed. São Paulo: Contexto, 2006.</p><p>CASTROGIOVANNI, A. C. (org.). Ensino de geografia: práticas e textualizações no cotidiano.</p><p>Porto Alegre: Mediação, 2000.</p><p>COLTRINARI, L. A geografia física e as mudanças ambientais. In: CARLOS, A. F. A. Novos</p><p>caminhos da geografia. São Paulo: Contexto, 2007.</p><p>FOUCHER, M. Lecionar a geografia apesar de tudo. In: VESENTINI, J. W. (org.). Geografia</p><p>e ensino: textos críticos. Campinas: Papirus, 1995.</p><p>KAERCHER, N. A. A geografia escolar: gigante de pés de barro comendo pastel de vento</p><p>num fast food? Terra Livre, Presidente Prudente, ano 23, v. 1, n. 28, p. 27-44, jan./jun. 2007.</p><p>O papel do docente no ensino da geografia16</p><p>OCDE. – Programme for International Student Assesment (PISA): results from PISA 2015.</p><p>Disponível em: http://download.inep.gov.br/acoes_internacionais/pisa/resultados/2015/</p><p>pisa_2015_brazil_prt.pdf. Acesso em: 17 maio 2019.</p><p>PONTUSCHKA, N. N. A geografia: pesquisa e ensino. In: CARLOS, A. F. A. Novos caminhos</p><p>da geografia. São Paulo: Contexto, 2007.</p><p>TENREIRO, M. O. V. et al. Licenciatura em pedagogia: psicologia da educação. Ponta</p><p>Grossa: UEPG/UAB, 2009.</p><p>VESENTINI. J. W. O ensino da geografia no século XXI. São Paulo: Papirus, 2011.</p><p>Leituras recomendadas</p><p>DAMIANI, A. L. A geografia e a construção da cidadania. In: CARLOS, A. F. A. A geografia</p><p>na sala de aula. 8. ed. São Paulo: Contexto, 2006.</p><p>VESENTINI, J. W. Educação e ensino de geografia: instrumentos de dominação e/ou de</p><p>libertação. In: CARLOS, A. F. A. A geografia na sala de aula. 8. ed. São Paulo: Contexto, 2006.</p><p>17O papel do docente no ensino da geografia</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>AOS ESTUDOS</p><p>GEOGRÁFICOS</p><p>Silvana Kloster dos Santos</p><p>Geografia marxista</p><p>e as agendas culturais</p><p>Objetivos de aprendizagem</p><p>Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:</p><p> Descrever as teorias da filosofia e do marxismo para examinar as</p><p>relações espaciais da geografia humana.</p><p> Apontar os elementos da geografia marxista em pautas sociais.</p><p> Identificar a necessidade de engajamento político dos geógrafos na</p><p>defesa da diminuição das disparidades socioeconômicas e regionais.</p><p>Introdução</p><p>Neste capítulo, você aprenderá sobre a geografia crítica inspirada no</p><p>marxismo, em que as relações sociais estão diretamente ligadas às forças</p><p>produtivas dos meios de produção, inspirada no pensamento do filósofo</p><p>alemão Karl Marx, ícone do pensamento crítico, político, filosófico e eco-</p><p>nômico presente à sua época.</p><p>Abordaremos a dialética do pensamento econômico contemporâneo,</p><p>de modo a compreender a corrente liberal que antecedeu o marxismo</p><p>durante a Revolução Industrial, para, então, compreendermos a teoria</p><p>social crítica inspirada no próprio marxismo. Posteriormente, nos anos de</p><p>1970, o marxismo será introduzido aos estudos geográficos mais atuais,</p><p>incorporando o conceito de espaço como uma função dinâmica tão</p><p>importante quanto os demais setores da produção e da reprodução social.</p><p>Do liberalismo clássico à teoria</p><p>econômica de Marx</p><p>Para a compreensão do pensamento da geografi a marxista, é necessário entender</p><p>a dialética do pensamento político contemporâneo, dividida entre a corrente</p><p>liberal, que tem raízes no pensamento dos fi lósofos iluministas do século XVII</p><p>e dos economistas da escola clássica do século XVIII, tendo como referência o</p><p>fi lósofo e economista britânico Adam Smith (1723-1790), e a corrente marxista,</p><p>que se inspira no pensamento do fi lósofo alemão Karl Marx (1818-1883), ícone</p><p>do pensamento crítico, político, fi losófi co e econômico presente à sua época.</p><p>O liberalismo clássico e o capitalismo</p><p>Até o advento da Primeira Revolução Industrial, ocorrida entre 1760 e 1870,</p><p>na Inglaterra, o mundo era um conjunto de realidades espaciais das mais</p><p>diversas, e as sociedades se distribuíam na infi nita diversidade espacial dos</p><p>gêneros de vida das civilizações. A tecnologia industrial passa, então, a intervir</p><p>na distribuição, unifi cando-se em sua expansão área a área, um após outro,</p><p>nesses antigos espaços (MOREIRA, 2007).</p><p>A Revolução Industrial foi um conjunto de alterações socioeconômicas</p><p>que se iniciou na Europa. É nesse período que se estabelece efetivamente</p><p>o capitalismo, por meio da troca do trabalho artesanal pelo assalariado nas</p><p>fábricas. Até o fim do século XVIII, a maior parte da população europeia</p><p>residia no campo e produzia o que consumia. Uma nova estrutura social é</p><p>formada no campo por elementos econômicos e sociais. Com a queda do</p><p>feudalismo, os proprietários das terras comunais passam a cercar suas terras,</p><p>impedindo o acesso da população camponesa. O trabalho no campo passa a</p><p>ser assalariado, a burguesia rural se consolida e a produção agrícola passa a</p><p>ser voltada para o mercado, e não mais para a subsistência. Os camponeses</p><p>desprovidos de recursos financeiros deixam de residir no campo e passam</p><p>a buscar trabalho nas cidades que despontavam para a industrialização, ao</p><p>mesmo tempo em que a indústria necessitava de mão de obra para operar nas</p><p>máquinas. Segundo Oliveira (2017, p. 91):</p><p>Com base em intensos estudos e pesquisas, pode-se acrescentar que, a Revo-</p><p>lução Industrial na Inglaterra foi um processo revolucionário no período da</p><p>Idade Moderna, a qual oportunizou um crescimento acelerado, tanto no meio</p><p>urbano, como no meio industrial. A revolução restaurou a economia inglesa,</p><p>sendo que essa restauração foi um dos pontos positivos da industrialização.</p><p>Por outro lado, a mão de obra do proletariado foi substituída pelas máquinas,</p><p>onde a classe trabalhadora perdeu totalmente a independência que tinha em</p><p>sua produção no sistema doméstico, e passaram a trabalhar fora de suas casas,</p><p>e ser vigiados nas grandes indústrias, assim como, explorados e oprimidos,</p><p>onde crianças e adultos trabalham apenas para obter seu sustento, o pão de</p><p>cada dia. A classe do proletariado não era mais dona do seu trabalho, mas</p><p>sim, tinham que seguir as inovações, e a produção</p><p>acelerada das máquinas,</p><p>sem saber o resultado final do produto.</p><p>Geografia marxista e as agendas culturais2</p><p>Junto à Revolução Industrial, ocorre, respectivamente, a ideologia do capitalismo e o</p><p>êxito do liberalismo clássico. O liberalismo proporcionou as bases filosóficas do sistema</p><p>capitalista industrial. Dessa maneira, são introduzidas inovações, destacando o desen-</p><p>volvimento da máquina à vapor como fonte de energia manufatureira, ocasionando</p><p>intensas mudanças sociais e econômicas (HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>Com o advento da Segunda Revolução Industrial (1860 a 1900), na Ale-</p><p>manha, na França, na Itália, no Reino Unido e nos Estados Unidos, essa inter-</p><p>venção das máquinas é levada à escala planetária na forma da uniformização</p><p>dos modos de vida e processamentos produtivos, envolvendo uma série de</p><p>desenvolvimentos dentro das indústrias química, elétrica, de petróleo e de</p><p>aço. Os espaços são globalizados em menos de um século sob um só modo de</p><p>produção, que unifica os mercados e os valores, suprime a identidade cultural</p><p>das antigas civilizações e traz, com a uniformidade técnica, uma desarrumação</p><p>socioambiental em escala inusitada (MOREIRA, 2007).</p><p>Segundo Hunt e Sherman (1977), é no transcorrer do processo de indus-</p><p>trialização que a visão de mundo individualista subjacente ao liberalismo</p><p>clássico tornou-se a ideologia influente do capitalismo.</p><p>Muitas das ideias do liberalismo clássico haviam deitado raízes e mesmo</p><p>conquistado ampla aceitação no período mercantilista, mas foi somente no</p><p>final do século XVIII e no século XIX que o liberalismo clássico dominou</p><p>definitivamente o pensamento político, econômico e social na Inglaterra</p><p>(HUNT; SHERMAN, 1977, p. 57).</p><p>Contudo, o que é o liberalismo clássico que antecede o marxismo? Vamos</p><p>entender. De acordo com Hunt e Sherman (1977), a doutrina psicológica dos</p><p>ideológicos do liberalismo clássico assegurava quatro pressupostos sobre a</p><p>natureza humana: todo homem é egoísta, frio e calculista, basicamente inerte e</p><p>atomista. Segundo Bentham (1955 apud HUNT; SHERMAN, 1977), a natureza</p><p>expôs a espécie humana ao domínio de duas autoridades imperantes: a dor</p><p>e o prazer. Segundo o autor, somos por elas governados em todas as nossas</p><p>atividades, em tudo o que falamos e em tudo o que pensamos.</p><p>Além da dor e do prazer, os pensadores do liberalismo conferiram também</p><p>o intelecto humano uma função bastante importante.</p><p>3Geografia marxista e as agendas culturais</p><p>Aí está a vertente calculista e intelectual da teoria psicológica do liberalismo</p><p>clássico: a ênfase que confere à avaliação racional dos prazeres e dores e, em</p><p>contrapartida, o menosprezo pelo capricho, o instinto, o hábito, o costume e</p><p>as convenções (HUNT; SHERMAN, 1977, p. 58).</p><p>A visão que o indivíduo tem sobre si perante a sociedade é uma visão</p><p>individualista, ou seja, cabe a cada cidadão esforçar-se individualmente para</p><p>conquistar seu capital, sua renda e seu status social. Se os menos favorecidos</p><p>economicamente estão em estado de penúria, é porque são preguiçosos, não</p><p>se esforçaram o necessário.</p><p>Outra característica importante que deve ser destacada sobre os liberais</p><p>clássicos é a sua visão sobre a sociedade. Para eles, é importante que os homens</p><p>estejam organizados em sociedade devido à necessidade de segurança coletiva</p><p>e das vantagens econômicas da distribuição do trabalho, sendo a divisão do</p><p>trabalho a base fundamental da doutrina econômica do liberalismo clássico.</p><p>Um dos fundamentos básicos do liberalismo clássico era de que os homens, em</p><p>particular os de negócio, deveriam possuir liberdade para dar vazão a seus im-</p><p>pulsos egoístas, o que sugeria a anulação dos mecanismos de controle e repressão</p><p>impostos pela sociedade, exceto os indispensáveis (HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>Os economistas liberais afirmavam que as relações de competição junto</p><p>às economias de mercado eram favoráveis tanto para os indivíduos como para</p><p>toda a sociedade. Essa visão é exposta na obra considerada a mais importante</p><p>consumação intelectual do liberalismo clássico, a obra de Adam Smith, “A</p><p>Riqueza das Nações”, publicada em 1776 (HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>A obra de Adam Smith é considerada um marco na história da Economia</p><p>Política. Nela, Smith toma o trabalho como problema econômico central, entendido</p><p>como atividade produtiva, como fonte de riqueza, reagindo contrariamente à</p><p>concepção elitista mercantilista agrária dos fisiocratas da época. O trabalho, para</p><p>ele, servirá como base para a explicação sobre a riqueza das diferentes nações. A</p><p>proporção, segundo Smith, sobre a qual o produto desse trabalho se reparte entre</p><p>um número maior ou menor de consumidores é que torna a nação mais ou menos</p><p>rica. Destaca-se na sua obra a teoria da produtividade do trabalho (HUGON, 1980).</p><p>Para Smith, os indivíduos esforçam-se sucessivamente para encontrar o</p><p>emprego que seja mais vantajoso para o capital, o qual detém o comando.</p><p>Aqueles que são desprovidos de capital estão sempre em busca de um em-</p><p>prego que lhes ofereça melhor rendimento em troca do seu trabalho. A falta</p><p>de uma autoridade ou lei que determine onde o capital deve ser empregado</p><p>torna o trabalho mais produtivo, pois o interesse no lucro faz a escolha recair</p><p>naturalmente sobre a produção de um bem que corresponde à necessidade das</p><p>pessoas e que elas estejam dispostas a adquirir (HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>Geografia marxista e as agendas culturais4</p><p>Smith era a favor do mercado livre, onde os produtores, movidos pelo desejo egoísta</p><p>de obter maiores lucros, concorreriam entre si para atrair o dinheiro dos consumidores.</p><p>Assim, o mercado e o trabalho seriam investidos na produção de bens mais desejados</p><p>pelos consumidores. Era o livre jogo da oferta e da procura, e o mercado agiria como</p><p>uma “mão invisível”, direcionando as motivações egoístas e interesseiras dos homens</p><p>para atividades reciprocamente complementares que promoveriam, de forma har-</p><p>moniosa, o bem-estar de toda a sociedade, eliminando qualquer ação paternalista</p><p>sobre a população mais pobre. Qualquer intervenção governamental na economia,</p><p>impondo restrições, provocaria um efeito de retração da procura e interromperia o</p><p>processo de acumulação de capital. Não era admissível a intromissão paternalista do</p><p>governo nos assuntos econômicos (HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>Sobre a ética paternalista cristã, caberia aos ricos promover a segurança e o</p><p>bem-estar dos pobres, por meio de medidas paternalistas e atos de caridade. O</p><p>industrial Robert Owen (1771-1858), sobre o qual você estudará mais à frente,</p><p>defendeu essa ideia e considerava injusta a sociedade em que uma classe,</p><p>aproveitando-se do poder que possuía, explorava as classes inferiores. “A</p><p>propriedade privada dos meios de produção (fábricas, máquinas, ferramentas)</p><p>possibilitava a uma classe minoritária explorar economicamente a grande</p><p>massa de agricultores e operários.” (HUNT; SHERMAN, 1977, p. 79). Adam</p><p>Smith opunha-se a essa noção. Ao contrário, para ele, o capitalista que agir</p><p>para o seu próprio interesse estará proferindo naturalmente investimentos</p><p>para a própria sociedade (HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>É no liberalismo clássico que surge a teoria populacional de Thomas Robert</p><p>Malthus. Segundo a teoria malthusiana, a população, quando não está submetida</p><p>ao controle, tende a crescer naturalmente em cada geração em proporção geo-</p><p>métrica (1, 2, 4, 8, 16, ...), ao passo que que a produção de alimentos cresceria</p><p>em proporção aritmética (1, 2, 3, 4, 5, 6, ...), tornando necessário submeter a</p><p>população a algum mecanismo de controle, pois a produção de alimentos não</p><p>seria suficiente para alimentá-la. Como solução, Malthus propõe duas formas</p><p>de controle do crescimento populacional: os controles preventivos e repressivos.</p><p>Os preventivos consistem na limitação voluntária da natalidade, pela limitação</p><p>do número de filhos, principalmente pelos mais pobres. Os pobres deveriam</p><p>pôr no mundo apenas os filhos que pudessem sustentar. Já os repressivos são os</p><p>que atuam com o máximo rigor, ou seja, com o aumento da mortalidade.</p><p>São</p><p>compostos por epidemias, mortes resultantes de uma alimentação insuficiente,</p><p>pelas guerras, as disputas pelos meios de produção, como a terra (HUGON, 1980).</p><p>5Geografia marxista e as agendas culturais</p><p>Caberia aos governos, segundo a obra “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith,</p><p>três funções genéricas: proteger o país contra invasões de estrangeiros, proteger</p><p>os cidadãos contra “injustiças” cometidas por cidadãos e o dever de construir e</p><p>manter a instituições e obras públicas, que, mesmo sendo vantajosas para toda a</p><p>sociedade, seus gastos não superariam o lucro se essas instituições estivessem a</p><p>cargo de um pequeno grupo de indivíduos (HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>A teoria de Malthus, juntamente com as teorias econômicas liberais, se-</p><p>gundo Hunt e Sherman (1977), teria por finalidade a renúncia de qualquer</p><p>tentativa de intervenção dos governos paternalistas em favor dos pobres na</p><p>economia. Os mesmos liberais apoiariam um governo paternalista se este</p><p>beneficiasse os capitalistas.</p><p>No fim do século XIX, a função de proteger o país de ameaças externas</p><p>foi desdobrada para a proteção e a ampliação dos mercados externos por meio</p><p>de repressão militar. A função de proteger os cidadãos contra as “injustiças”</p><p>recebeu outro sentido, o da proteção à propriedade privada, à propriedade</p><p>de fábricas e equipamentos, garantir o cumprimento de contratos e garantir</p><p>a ordem interna. Os capitalistas detinham o poder político e econômico por</p><p>serem os donos dos meios de produção. A atribuição do governo na função de</p><p>protetor da fonte de se provinha o poder fazia dos capitalistas a classe política</p><p>e economicamente dominante (HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>Com a Revolução Industrial, os níveis de produtividade do trabalho foram</p><p>elevados aos mais altos níveis pelo homem. Cresceram o número de fábricas e</p><p>a utilização de máquinas para o rendimento da produção. Grande parte dessa</p><p>produção destinava-se à criação de bens de capital, e muito pouco para bens</p><p>de consumo. Esse investimento em bens de capital causou um custo social</p><p>elevado, ocasionando enormes carências para as massas. “A experiência his-</p><p>tórica demonstra que sempre que as sociedades precisam obrigar parte de seus</p><p>membros a apertar os cintos e a viver ao nível de subsistência, foram os de</p><p>menor poder econômico e político que tiveram que arcar com os sacrifícios”</p><p>(HUNT; SHERMAN, 1977, p. 71).</p><p>As fábricas concentravam os trabalhadores em um ponto sob a autoridade</p><p>capitalista burguesa. Assim, era possível para o patrão dirigir o processo</p><p>produtivo de acordo com seus interesses, determinar a carga horária por</p><p>meio da tirania do relógio e controlar a dedicação do produtor ao trabalho.</p><p>Com a concentração de trabalhadores, era possível também regular o padrão</p><p>tecnológico utilizado na produção, controlar fraudes ou sabotagens e criar um</p><p>modelo disciplinar e hierárquico na administração da fábrica.</p><p>Geografia marxista e as agendas culturais6</p><p>Enquanto os donos do sistema de produção enriqueciam, a classe de tra-</p><p>balhadores não sofria melhora alguma. De acordo com muitos pesquisadores,</p><p>nesse período, a classe de operários sofreu todo tipo de exploração. Era comum</p><p>o emprego de mulheres e crianças, mesmo despreparadas, para trabalhar nas</p><p>máquinas, recebendo salários bem inferiores aos salários recebidos pelos homens</p><p>(ver Figura 1). Famílias inteiras eram obrigadas a trabalhar para sobrevivência.</p><p>Crianças eram negociadas como mera mercadoria, muitas trabalhavam de 14</p><p>a 18 horas por dia, com uma única refeição. Muitas dormiam no trabalho por</p><p>exaustão ou sofriam acidentes de trabalho. As mulheres eram submissas e muitas</p><p>tinham de ceder aos desejos dos seus empregadores ou capatazes. Os operários</p><p>eram expostos a todo tipo de doenças (HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>Figura 1. Meninos e meninas trabalhando na sala de giro do moinho de Cornell,</p><p>em Fall River, Massachusetts – janeiro de 1912. Foto de Lewis Hine.</p><p>Fonte: Everett Historical/Shutterstock.com.</p><p>No novo contexto, enquanto as cidades cresciam rapidamente, acom-</p><p>panhando o processo de industrialização, os camponeses não conseguiam</p><p>sobreviver à exploração dos seus pequenos lotes, e, como não havia emprego</p><p>nas fazendas, só restava o abandono do campo e a busca por novas formas de</p><p>sobrevivência. Esse deslocamento de um grande número de pessoas para as</p><p>cidades tornou-se um problema.</p><p>7Geografia marxista e as agendas culturais</p><p>Para controlar as massas, a Inglaterra e, depois, outros países da Europa</p><p>estabeleceram a Lei dos Pobres (séc. XV até o séc. XIX). Essa lei buscava o</p><p>controle sobre as multidões de excluídos por meio de repressão pura e simples,</p><p>com execução de mendigos e criminosos. Atribuía às autoridades a posse para</p><p>entregarem sob contrato para as fábricas os filhos dos indigentes. Essas crianças</p><p>eram submetidas às mais severas servidões, ficando à mercê dos seus patrões.</p><p>Os operários não viam essa situação sem reagir, ao contrário, desde a intro-</p><p>dução das indústrias têxteis, os operários já buscavam organizar-se na defesa</p><p>coletiva dos seus interesses. As resistências dos trabalhadores acabavam em</p><p>motim e tiroteio. O fortalecimento dos sindicatos e o intenso descontentamento</p><p>econômico e social que dominava a época intimidou as classes dominantes</p><p>(HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>Insensíveis com as condições de vida dos mais carentes, os liberais clássicos</p><p>combatiam as iniciativas que pudessem melhorar as condições de vida dos</p><p>trabalhadores. Eram contrários a Spenhamland, estabelecida na legislação</p><p>social liberal. Era um auxílio aos pobres, criado em 1795, que assegurava aos</p><p>desamparados condições mínimas de sobrevivência, estando ou não emprega-</p><p>dos. O auxílio deveria ser bem inferior ao menor salário oferecido no mercado</p><p>de trabalho, para que o indivíduo buscasse melhor emprego por medo de ser</p><p>estigmatizado. Para os liberais clássicos, os trabalhadores deveriam aceitar</p><p>qualquer tipo de emprego que lhes fosse oferecido, independentemente do</p><p>salário e das condições de trabalho (HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>A insatisfação e os graves problemas sociais estabelecidos após a Revolução</p><p>Industrial e a consolidação do capitalismo fizeram surgir um movimento</p><p>contrário ao pensamento liberal clássico. Entre os abastados proprietários de</p><p>terras e os aristocratas, havia uma parte que apoiava a ideia de que as classes</p><p>superiores deveriam proteger e velar pela sorte dos pobres. Algumas das denún-</p><p>cias de exploração vinham justamente dos conservadores radicais. Atribuíam</p><p>às classes médias, insaciáveis por lucros, a responsabilidade pelos problemas</p><p>sociais gerados com a industrialização. Entre os capitalistas, o mais conhecido</p><p>é Robert Owen. Owen foi operário desde os 10 anos de idade e, aos 20 anos,</p><p>já era gerente de fábrica. Graças ao seu tino para os negócios, acumulou uma</p><p>fortuna apreciável. Era a favor de condições decentes de trabalho, salários</p><p>razoáveis e educação para os filhos de seus operários. Considerava injusta</p><p>a exploração de uma classe sobre a outra (HUNT; SHERMAN, 1977). “A</p><p>Geografia marxista e as agendas culturais8</p><p>propriedade privada dos meios de produção (fábricas, máquinas, ferramentas)</p><p>possibilitava a uma classe minoritária explorar economicamente a grande massa</p><p>de agricultores e operários” (HUNT; SHERMAN, 1977, p. 79).</p><p>Na época, houve também um grupo de socialistas que protestavam contra</p><p>as desigualdades cometidas pelo capitalismo. Defendiam a extinção da pro-</p><p>priedade privada do capital e a criação de uma sociedade industrial justa, em</p><p>que homens e mulheres fossem tratados com dignidade e que os lucros da</p><p>produção fossem divididos de forma justa.</p><p>No liberalismo clássico, o cidadão é representado de maneira individualista,</p><p>e esse sistema se mostra egoísta e insensível com os trabalhadores que tiveram</p><p>de suportar os custos sociais da industrialização.</p><p>Surgiram, então, movimentos contrários, os quais criticavam o sistema capi-</p><p>talista vigente e defendiam o fim da propriedade privada do capital e a criação</p><p>de uma sociedade industrial mais justa e digna</p><p>para homens e mulheres. Esses</p><p>movimentos contrários serviram como precursores para o estabelecimento de</p><p>uma nova corrente, o marxismo, como veremos a seguir.</p><p>Socialismo marxista</p><p>Karl Marx (1818-1883) é considerado o mais importante de todos os socialistas.</p><p>Suas obras infl uenciaram não apenas no campo da sociologia, mas principal-</p><p>mente nas questões políticas que conduzem os destinos de uma grande parte</p><p>da humanidade. Marx foi inspirado pelos socialistas do fi m do século XVIII</p><p>e início do século XIX, porém ele refutava as utopias idealistas e sentimentais</p><p>dos sociólogos, os quais qualifi cava como “socialistas utópicos”, pois creditava</p><p>que era ingênua a ideia de que sensibilidade moral e a racionalidade da classe</p><p>educada transformaria a realidade social. Para ele, os homens educados faziam</p><p>parte das classes dominantes, e suas posições e privilégios eram consequências</p><p>do capitalismo, e, dessa forma, eles defenderiam suas posições dentro desse</p><p>sistema (HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>Karl Marx escreveu, juntamente com Friedrich Engels (1820-1895), obras</p><p>de destaque, como Manifesto comunista (1848) e O capital (1867). Foram os</p><p>fundadores e principais teóricos do marxismo, ou socialismo “científico”,</p><p>e organizadores e líderes ativos de um movimento revolucionário que ima-</p><p>ginavam poder destruir os sustentáculos do capitalismo durante suas vidas</p><p>(OSER; BLANCHFIELD, 1983).</p><p>9Geografia marxista e as agendas culturais</p><p>O capital afirma a necessidade histórica de uma revolução socialista, a partir de uma</p><p>análise da sociedade e da história, baseada na ideia da luta de classes. A luta de classes</p><p>foi sempre o motor da história. O antagonismo que opõe a burguesia e o proletariado</p><p>é, pois, a sua forma moderna. Esse antagonismo será concretizado por meio da vitória</p><p>do proletariado, da abolição da propriedade privada e da exploração do trabalho e com</p><p>a chegada de uma sociedade não antagônica: o comunismo (CLÉMENT et al., 1994).</p><p>Do Manifesto comunista, apenas o primeiro livro foi publicado enquanto Marx era vivo</p><p>(1867), o qual analisa o “desenvolvimento da produção capitalista”. Os livros II – O processo</p><p>da circulação da produção do capital e III – Processo de conjunto da produção capitalista foram</p><p>redigidos por Engels, a partir das notas deixadas por Marx, e publicados em 1885 e 1894.</p><p>A quarta parte da obra, As teorias da mais valia foi obra (1904-1910) de Kautsky, baseada na</p><p>documentação fornecida por Marx; no seu primeiro capítulo, Marx faz críticas aos modos</p><p>de produção capitalista e da “imoralidade de um intercâmbio capitalista ao termo do qual</p><p>o dinheiro deve sempre render mais”: “[...] o patrão não compra o produto da trabalho,</p><p>mas a ‘capacidade de trabalho’ de seus operários, o que acarreta uma nova forma de</p><p>escravidão, a exploração do homem pelo homem” (DUROZOI; ROUSSEL, 1996, p. 325).</p><p>Os estudos de Marx sobre a sociedade capitalista estão baseados em uma</p><p>abordagem histórica conhecida como materialismo histórico. Ele elaborou</p><p>estudos sobre as causas e os efeitos que se conectam entre as relações dos</p><p>sistemas sociais, ideias, leis, costumes, crenças religiosas, ética e moral,</p><p>instituições econômicas e sociais presentes dentro dos sistemas sociais. Para</p><p>ele, a base econômica da sociedade e os modos de produção exerciam uma</p><p>forte influência sobre as demais instituições sociais e as especialidades de</p><p>pensamento, inclusive a religiosa (HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>O que é, então, o materialismo histórico? Consiste na tese na qual as trans-</p><p>formações de ordem material determinarão todas as transformações de ordem</p><p>ideológica. Tais transformações dependem das que operam na técnica de produção.</p><p>A infraestrutura econômica da sociedade, a forma de se produzir, determina a</p><p>superestrutura, ou seja, a moral, a arte, a literatura, a religião. Significa que as</p><p>relações sociais estão diretamente ligadas às forças produtivas. O materialismo</p><p>histórico constitui não só um método de interpretação dos fatos passados, mas</p><p>também auxilia na dedução como um instrumento de previsão (HUGON, 1980).</p><p>Segundo Gomes (1996, p. 282):</p><p>A perspectiva marxista encontra no método materialista-histórico o instru-</p><p>mento capaz de projetar a percepção para além do fenomenológico, fazendo</p><p>sobressair as verdadeiras essências escondidas atrás das aparências. A reali-</p><p>Geografia marxista e as agendas culturais10</p><p>dade última é, portanto, revelada por intermédio da razão, que reconhece, no</p><p>movimento caótico da sociedade, os fatores fundamentais de sua organização</p><p>e de seu desenvolvimento [...].</p><p>Antes individual, como as formas de se produzir e o regime da propriedade,</p><p>hoje, a produção tornou-se coletiva, devido à concentração do trabalho nas</p><p>fábricas e à imposição e à utilização das técnicas (maquinários). O trabalhador</p><p>operário vende a sua força de trabalho ao empregador, detentor do capital e</p><p>proprietário dos meios de produção, que continua sob o regime individualista,</p><p>ao passo que que os meios de produção são coletivizados. A infraestrutura e a</p><p>superestrutura atuam em uma relação mútua de causa e efeito (HUGON, 1980).</p><p>O materialismo histórico evidencia o resultado dessa interação, ou seja,</p><p>o antagonismo entre as classes, a divisão entre os detentores dos meios de</p><p>produção e os fornecedores da força de trabalho. No sistema feudal, eram os</p><p>senhores e os servos, no sistema capitalista, são os proprietários e o proleta-</p><p>riado (operários). Os primeiros se empenham para manter seus privilégios, e</p><p>os últimos lutarão contra esse poder dominador ou buscarão tornar-se também</p><p>beneficiários (HUGON, 1980).</p><p>O proletariado é, portanto, uma classe social que se define objetivamente pela</p><p>ausência de posse dos meios de produção e, subjetivamente, por uma tomada</p><p>de consciência de que não somente pertence a uma classe, mas também do</p><p>papel histórico de que está incumbido (HUGON, 1980, p. 212).</p><p>Marx classificou quatro sistemas econômicos ou modos de produção emi-</p><p>nentes, cuja sucessão marcou a evolução da civilização europeia: o comunismo</p><p>primitivo, o escravismo, o feudalismo e o capitalismo. Em todos eles dominava</p><p>um único modo de produção, caracterizado pela força de trabalho coletivo e</p><p>uma estrutura particular de dominação. De acordo com Marx, a imposição de</p><p>se ampliar a produção via exploração, visando a satisfazer à crescente demanda</p><p>social, gera, inevitavelmente, conflitos, tensões e contradições entre as forças</p><p>produtivas e as relações sociais de produção, alterando todo o sistema. Quando</p><p>as tensões e os conflitos crescem, colocam abaixo o antigo sistema e dão origem</p><p>a um novo sistema, com novas relações de classe, compatíveis, por um tempo,</p><p>com as forças produtivas transformadas (HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>11Geografia marxista e as agendas culturais</p><p>Concepção econômica de Marx</p><p>Marx formula a tese da exploração por meio de dois aspectos complementares:</p><p>o econômico, em o trabalho compõe o valor dos produtos; e o social, o valor</p><p>do que foi produzido cabe a quem fornece o trabalho, ou seja, o operário. O</p><p>empregador e o capitalista guardam para si uma parte do valor produzido,</p><p>o operário não recebe o valor integral do seu trabalho, ao qual tem direito.</p><p>Duas teorias foram geradas por Marx para explicar o aspecto econômico dessa</p><p>exploração: a teoria do valor-trabalho e a teoria da mais-valia.</p><p>Teoria do valor-trabalho: concordando com as teorias aceitas pelos liberais</p><p>clássicos, como Adam Smith e David Ricardo, Marx considerava que o valor de</p><p>troca de uma mercadoria era determinado pelo tempo de trabalho necessário</p><p>para produzi-la. Os trabalhadores se diferenciam quanto às suas habilidades</p><p>e quanto ao trabalho simples e o trabalho qualificado. O trabalho qualificado</p><p>representa um múltiplo do trabalho simples. Além disso, o tempo de trabalho</p><p>utilizado em uma mercadoria inútil (sem procura) instituiria uma mercadoria</p><p>cujo valor de troca não corresponderia ao valor de trabalho imposto nela. Dessa</p><p>forma, o desejo de lucro faria os capitalistas produzirem somente produtos</p><p>que cobrissem,</p><p>aos menos, os custos de produção. A procura no mercado</p><p>determina a oferta do produto e as suas quantidades. O trabalhador não recebe</p><p>o valor integral pelo seu trabalho, sendo considerado uma vítima do sistema de</p><p>trocas da sociedade capitalista (HUNT; SHERMAN, 1977; HUGON, 1980).</p><p>Teoria da mais-valia: quando os trabalhadores acabavam o processo de</p><p>produção, o capitalista vendia as mercadorias por uma quantia superior à</p><p>quantia investida no início do processo. Essa diferença é a origem dos lucros</p><p>capitalistas, denominada mais-valia. Os capitalistas adquiriam uma mercadoria</p><p>por meio da força de trabalho, e vendiam uma mercadoria diferente: aquela</p><p>produzida com a força de trabalho no decorrer do processo de produção. O</p><p>valor da força de trabalho é inferior ao valor do produto final, ou seja, das</p><p>mercadorias produzidas com o emprego dela. Essa diferença é o lucro. O</p><p>valor da força de trabalho é proporcional ao valor dos meios de subsistência</p><p>necessários para a manutenção do trabalhador a um padrão mínimo de vida</p><p>socialmente estabelecido (HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>Os capitalistas obtinham lucros por serem o proprietário do capital, rein-</p><p>vestindo a maior parte dos lucros para ampliar o seu capital e, assim, obter</p><p>maiores lucros. Era o processo de acumulação de capital. No entanto, como</p><p>Geografia marxista e as agendas culturais12</p><p>originou esse processo? Segundo os economistas da escola liberal, como</p><p>o inglês Nassau Senior (1790-1864), os capitalistas conseguiram acumular</p><p>capital à custa de muito trabalho, economizando inicialmente pequenas quan-</p><p>tias, que se transformaram em grandes fortunas, marcando o século XIX, ao</p><p>passo que os trabalhadores não tiveram o mesmo êxito, pois, em vez de terem</p><p>uma vida simples, esbanjavam e desperdiçavam as suas economias (HUNT;</p><p>SHERMAN, 1977).</p><p>Marx era totalmente contrário a essa percepção, acusando os métodos</p><p>de acumulação primitiva: o regime de cercamento dos campos e a expulsão</p><p>de trabalhadores rurais, a inflação dos preços, os monopólios comerciais, a</p><p>escravidão, a dizimação da população aborígene para exploração mineral, a</p><p>conquista das Índias e o saque das Índias Orientais e a exploração do continente</p><p>africano num campo de caça de escravos africanos (HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>Após a realização de uma acumulação inicial de capital, o desejo de acu-</p><p>mular cada vez mais é o propulsor e mantedor do sistema capitalista. O poder</p><p>e o prestígio social do capitalista dependerão do volume de capital acumulado,</p><p>não podendo se descuidar. O processo de concentração de riqueza e do poder</p><p>é mantido quando o que detém o poder menor é esmagado ou absorvido pelo</p><p>poder maior.</p><p>Enquanto crescia a concentração de capital de um lado, do outro, crescia a</p><p>miséria da classe operária. Para Marx, somente uma revolução por parte dos</p><p>trabalhadores colocaria um fim nessa situação. Os conflitos entre os sistemas</p><p>de classe resultariam na destruição do capitalismo e no estabelecimento de</p><p>uma sociedade sem classes (HUNT; SHERMAN, 1977).</p><p>A garantia da ascendência da classe dominante sobre a classe dominada</p><p>seria a principal razão do surgimento e da manutenção do Estado, segundo</p><p>Marx. O Estado serviria apenas para camuflar a dominação da classe domi-</p><p>nante (INNOCENTI, 2013).</p><p>Seja qual for a classe dominante, o governo sempre estará sob o comando de</p><p>uma ditadura. Se a ordem é capitalista, ela estará sob a “ditadura da burguesia”</p><p>sob as mais diversas formas assumidas pelo Estado burguês. Se o governo</p><p>estiver sob o comando do socialismo, conviverá sob a ditadura do proletariado.</p><p>A diferença entre ambas, segundo Innocenti (2013), é que, no capitalismo, a</p><p>sociedade viveria a ditadura da minoria, ou seja, a da burguesia, ao passo que,</p><p>no socialismo, viveria sob a ditadura da maioria, o proletariado.</p><p>13Geografia marxista e as agendas culturais</p><p>Quem foi Karl Marx?</p><p>Marx nasceu na Prússia e era descendente de família judia, porém se converteu ao</p><p>protestantismo durante sua infância. Estudou Direito, História e Filosofia nas Universida-</p><p>des de Bonn, Berlin e Jena, e recebeu o grau de doutor em Filosofia com 23 anos. Dois</p><p>anos depois, casou-se com Jenny von Westphalen (1814-1881), filha de um barão que</p><p>ocupava elevado cargo governamental. Jenny foi uma companheira muito devotada</p><p>a Marx durante todas as vicissitudes de sua carreira.</p><p>Os cargos universitários foram fechados para Marx em virtude de seu radicalismo.</p><p>Dedicou-se, então, ao jornalismo, foi exilado da Alemanha, estudou socialismo francês</p><p>e a economia política inglesa em Paris, foi exilado da França a pedido do governo</p><p>prussiano e, finalmente, estabeleceu-se em Londres. Exceto por breves visitas ao</p><p>continente, viveu o resto de sua vida na Inglaterra. Marx passou dias e anos na sala de</p><p>leitura do Museu Britânico, explorando “a complicada ramificação da economia política”.</p><p>Atormentado por doenças, pela extrema pobreza e pela morte de vários de seus filhos</p><p>na infância, continuou a estudar, a escrever e a organizar-se. Escreveu muitos artigos</p><p>e liderou a Associação Internacional dos Trabalhadores, a Primeira Internacional*, que</p><p>durou de 1864 a 1876. Em 1867, publicou o primeiro volume de sua grandiosa obra,</p><p>O capital. Após a sua morte, Engels editou seus manuscritos e também publicou os</p><p>volumes II e III de sua obra. Após a morte de Engels, os manuscritos remanescentes</p><p>foram deixados para o principal marxista da época, Karl Kautsky (1854-1938), que</p><p>publicou outros três volumes sob o título de Teorias do valor excedente (ou mais-valia).</p><p>Friedrich Engels, amigo íntimo, contribuinte e arrimo financeiro de Marx, era filho de</p><p>um próspero fabricante de algodão alemão. Seguiu carreira dupla: de 1842 até sua apo-</p><p>sentadoria, em 1869, cuidou dos interesses manufatureiros da família em Manchester, na</p><p>Inglaterra; ao mesmo tempo, foi estudioso, escritor e revolucionário. Durante uma breve</p><p>visita a Paris, em 1844, encontrou Marx (que havia conhecido em 1842); tornaram-se amigos</p><p>e colaboradores por toda a vida. Juntos, os dois jovens escreveram o Manifesto comunista,</p><p>em 1848. Engels escreveu, certa vez, que estava feliz por permanecer em posição secundária</p><p>em relação a Marx, ao que Marx respondeu: “Você sabe que sou sempre muito lento para</p><p>captar as coisas e que sempre sigo seus passos” (OSER; BLANCHFIELD, 1983, p. 167-168).</p><p>A geografia marxista e a teoria social crítica</p><p>No fi m da década de 1960 e início da década de 1970, o marxismo exerceu</p><p>intensa infl uência na geografi a e nas ciências sociais. Essa infl uência se deu pela</p><p>necessidade de ajustar os trabalhos acadêmicos à uma visão mais profunda e</p><p>racional da realidade política e da sociedade. Nos estudos geográfi cos, houve</p><p>a adoção da teoria e do método marxistas ocidentais no centralizado grupo</p><p>Geografia marxista e as agendas culturais14</p><p>de geógrafos modernos ingleses. É o nascimento da geografi a humana crítica</p><p>que vem a contrapor o positivismo pretensioso e reducionista da corrente</p><p>geográfi ca presente nesse período (GOMES, 1996; SOJA, 1993).</p><p>O positivismo foi uma doutrina criada por August Comte (1798-1857), que</p><p>afirmava que o espírito científico (positivo) substitui por lei intransponível do</p><p>progresso do espírito humano as crenças teológicas ou as explicações meta-</p><p>físicas. Cinco ciências são beneficiadas: a astronomia, a física, a química, a</p><p>fisiologia e a física social (sociologia). O período marcado pela era industrial e</p><p>das ciências deve obedecer a uma política voltada à uma organização racional</p><p>da sociedade, tendo uma religião sem Deus, ligada à humanidade (CLÉMENT</p><p>et al., 1994; DOROZOI; ROUSSEL, 1996).</p><p>A crítica ao positivismo se dá pelo isolamento da geografia focada numa visão</p><p>mais técnica e matematizada em relação à história e às ciências sociais. Apesar</p><p>de sua abordagem humana norteada pela fenomenologia, a geografia da época</p><p>necessitava de novas ligações fora do seu campo geográfico. As cidades, as regiões</p><p>e os Estados estavam crescendo, assim como os conflitos e as crises do mundo</p><p>moderno. O meio</p><p>acadêmico estava se tornando mais politizado e crítico, e o dis-</p><p>curso teórico voltou-se contra o positivismo em direção a alternativas mais críticas,</p><p>extraídas das correntes do pensamento da teoria social da Europa Continental.</p><p>Surge a corrente da geografia radical, composta por dois grupos, de um lado,</p><p>os geógrafos, sobretudo franceses que trabalharam para repensar o papel das</p><p>tradições geográficas e para impor um ponto de vista sobre o uso político do</p><p>espaço. Do outro lado, a geografia crítica absolutamente inspirada no marxismo</p><p>e que foi muito desenvolvida nos Estados Unidos. O papel desses geógrafos</p><p>foi adaptar os instrumentos dessa doutrina à análise espacial (GOMES, 1996).</p><p>O segundo grupo teve maior destaque.</p><p>Surgiram os debates críticos que reformularam e aprofundaram algumas</p><p>expressões, sendo a mais evidente a do materialismo histórico profundamente</p><p>especializado. David Harvey, geógrafo britânico, foi um dos destaques na</p><p>evolução da geografia marxista desde o início. Para ele, a geografia marxista é</p><p>um método de investigação, ao passo que a geografia histórica do capitalismo</p><p>é objeto de teorização (SOJA, 1993).</p><p>De acordo com Soja (1993, p. 58):</p><p>Esse materialismo histórico-geográfico é muito mais do que um levantamento</p><p>de resultados empíricos através do espaço ou do que a descrição das restrições</p><p>e limitações espaciais da ação social ao longo do tempo. É uma convocação</p><p>irresistível para uma reformulação radical da teoria social crítica como um</p><p>15Geografia marxista e as agendas culturais</p><p>todo, do marxismo ocidental em particular, e das muitas maneiras diferentes</p><p>como encararmos, conceituarmos e interpretarmos não apenas o espaço em</p><p>si, mas toda a gama de relações fundamentais entre o espaço, o tempo e o ser</p><p>social, em todos os níveis de abstração.</p><p>Esses novos debates envolvendo a teorização da geografia, do espaço,</p><p>do tempo e da história ultrapassou o campo da teoria social e influenciou os</p><p>discursos críticos em outras áreas, como literatura, artes, arquitetura, cinema,</p><p>cultura e política. Entretanto, acabaram envolvendo críticos de tantas áreas</p><p>que, hoje, não se enquadram mais no estereótipo de “geógrafo” ou “marxista”</p><p>(SOJA, 1993).</p><p>A geografia marxista e o uso político do espaço</p><p>A geografi a marxista originou-se primeiramente nos países de língua inglesa,</p><p>e, a partir dos anos de 1970, tomou corpo junto aos geógrafos franceses. Sua</p><p>contribuição ocorre, necessariamente, do estudo da relação entre o espaço e os</p><p>processos sociais, na busca de explicar os efeitos práticos do desenvolvimento</p><p>geográfi co desigual (diferenciação de área), observando a estrutura, as práticas</p><p>e as relações organizacionais que compõem a vida social (SOJA, 1993).</p><p>Um dos símbolos de difusão do pensamento crítico na França é a revista</p><p>Hérodote, publicada em 1976 por Yves Lacoste (1929-). Seu texto, devido</p><p>à crítica à geografia tradicional, abre caminho para a nova geografia, que</p><p>alertava o atraso histórico e a ineficiência da ciência em não acrescentar uma</p><p>dimensão política para a sua funcionalidade. Não que a geografia tradicional</p><p>seja ultrapassada, ao contrário, deve-se reconhecer a sua utilidade ideológica.</p><p>A nova geografia marca a transição para o moderno ao integrar a natureza</p><p>política intrínseca à reflexão espacial. Segundo Gomes (1996, p. 290-291):</p><p>Uma nova ciência não pode ser definida somente em termos teóricos na</p><p>concepção de Lacoste, a prática geográfica é também um elemento primeiro</p><p>do problema epistemológico. Poder-se-ia dizer que uma revolução científica</p><p>não se configura somente pela substituição de parâmetros, uma revolução</p><p>epistemológica deve se desenvolver em consonância com a sociedade. A nova</p><p>geografia proposta por Lacoste é, ao mesmo tempo, um saber sem disfarce</p><p>e uma pedagogia militante.</p><p>Em resumo, o esforço epistemológico de Lacoste repousa sobre uma relação</p><p>entre espaço e poder político, através de elementos didáticos como a análise</p><p>de mapas e a consideração dos fenômenos em diferentes escalas. O valor</p><p>de verdade, segundo a proposição de Lacoste, é função da interação entre a</p><p>prática científica e a transformação social.</p><p>Geografia marxista e as agendas culturais16</p><p>A geografia tradicional era vista como uma ciência conservadora que ten-</p><p>cionava afirmar a natureza imutável das relações entre o homem e a Terra. Já a</p><p>geografia radical, sob a influência direta do marxismo, sugere um novo modelo</p><p>de análise espacial, que objetiva ser rigorosamente científico e revolucionário.</p><p>No campo marxista, o espaço deve ser considerado como um produto social,</p><p>ou seja, ele só pode ser explicado valendo-se dos aspectos fundamentais que</p><p>organizam a sociedade. O espaço tem uma função tão dinâmica quanto os</p><p>outros elementos dos setores da produção e da reprodução social. O conceito</p><p>de “modo de produção” é, então, adotado para a compreensão das condições</p><p>materiais de existência social, levando em consideração a divisão territorial</p><p>do trabalho (GOMES, 1996).</p><p>O conceito de região, em sua forma tradicional, que, por um tempo, foi</p><p>deixado de lado pelos geógrafos ou foi relacionado ao conceito de formação</p><p>socioeconômica, volta a ter importância graças ao conceito de desenvolvimento</p><p>espacial desigual (GOMES, 1996).</p><p>De acordo com Corrêa (1987, p. 45): “A região pode ser vista como um</p><p>resultado da lei do desenvolvimento desigual e combinado, caracterizada pela</p><p>sua inserção na divisão nacional e internacional do trabalho e pela associação</p><p>de relações de produção distintas”. As formas de representação do conceito</p><p>de região são diversas e estão em constante movimento. A região não possui</p><p>limites rígidos e está em constante construção e reconstrução, visto que nela</p><p>está contida a sociedade em constante transformação, relacionando-se com o</p><p>global e o local, considerando interesses que podem ser tanto políticos como</p><p>econômicos, sociais, culturais e de interesse do próprio espaço.</p><p>No Brasil, o debate sobre a geografia crítica marxista ganha destaque na</p><p>obra de Milton Santos, “Por uma Geografia Nova”, escrita em 1978. Nela, o</p><p>autor faz críticas ao modo como era feita a geografia tradicional clássica e</p><p>divide em geografia, sociedade e espaço. Santos (1978, p. 153) define o espaço</p><p>da seguinte forma:</p><p>O espaço deve ser considerado coo um conjunto de relações realizadas atra-</p><p>vés de funções e de formas que se apresentam como testemunho de uma</p><p>história escrita por processos do passado e do presente. Isto é, o espaço se</p><p>define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do</p><p>passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais</p><p>que estão acontecendo diante dos nossos olhos e que se manifestam através</p><p>de processos e funções. O espaço é, então, um verdadeiro campo de forças</p><p>cuja aceleração é desigual. Daí porque a evolução espacial não se faz de forma</p><p>idêntica em todos os lugares.</p><p>17Geografia marxista e as agendas culturais</p><p>O importante na geografia crítica marxista é lembrar que ela renovou a</p><p>carga do cientificismo que, antes, dava ênfase primordial às leis e ao rigor</p><p>metodológico. O novo olhar da geografia marxista mostra que o importante</p><p>não é chegar a observações gerais fundadas em regras que regulam e organi-</p><p>zam o espaço, e sim enfatizar a concepção pela qual o marxismo distingue os</p><p>oprimidos dos opressores, os dominados dos dominadores, os trabalhadores</p><p>dos operários, etc. Refere-se ao humanismo moral, alinhado ao senso de justiça</p><p>e de direito, valorizando os temas voltados à cultura e à cidadania.</p><p>Geografia marxista: o estudo da desigualdade</p><p>e da pobreza</p><p>Segundo o princípio marxista, a desigualdade e a pobreza são produzidas</p><p>pelas sociedades capitalistas, e a concepção geográfi co-social acrescenta que</p><p>a desigualdade pode ser transmitida de uma geração para outra, por meio do</p><p>ambiente de oportunidades no espaço geográfi co em que o indivíduo está</p><p>inserido (PEET, 1982).</p><p>Essa desigualdade não pode ser extinta sem alterar de modo essencial os</p><p>mecanismos do capitalismo.</p><p>Na verdade, a desigualdade faz parte do sistema,</p><p>ou seja, os detentores do capital têm interesse em manter a desigualdade social.</p><p>Segundo o marxismo, buscar soluções políticas para amenizar os sintomas da</p><p>desigualdade não farão efeito sem avançar contra as forças geradoras básicas.</p><p>Daí a necessidade de uma revolução social e econômica para a queda do capi-</p><p>talismo e, consequentemente, a sua substituição por um método de produção</p><p>e modos de vida organizados, com base nos princípios de igualdade e justiça</p><p>social (PEET, 1982).</p><p>A diferença de renda entre os trabalhadores é um dos alicerces da desi-</p><p>gualdade social. O salário, segundo Marx, deve cobrir as despesas do sustento</p><p>básico para a manutenção do corpo, mas também algumas necessidades sociais</p><p>que causem satisfação e ampliem o crescimento econômico. Os salários devem</p><p>cobrir os custos de substituição dos trabalhadores “desgastados” por novos</p><p>trabalhadores e garantir a criação e a educação das crianças, ou seja, assegurar</p><p>o desenvolvimento da força de trabalho por meio da educação (PEET, 1982).</p><p>Dessa maneira, a desigualdade dos salários é importante para manter a</p><p>diferença entre os níveis de educação e o conhecimento das camadas sociais</p><p>da população. Dentro da própria classe operária, existe a hierarquia, que faz</p><p>cada grupo de trabalhadores promover a sua substituição. A desigualdade</p><p>Geografia marxista e as agendas culturais18</p><p>possui a sua utilidade, pois estimula os assalariados a se esforçarem cada vez</p><p>mais, principalmente nos países de alto poder aquisitivo e consumistas, como</p><p>os Estados Unidos (PEET, 1982).</p><p>A desigualdade gera a alienação, pois o mercado sempre lança novas tendên-</p><p>cias de consumo que se iniciam nas camadas superiores da hierarquia social e vão</p><p>se propagando para as camadas de base, por meio dos sistemas de comunicação</p><p>orientados para o consumo. As pessoas pertencentes à camada mais pobre são</p><p>persuadidas a adquirir um produto novo, e, assim, a grande maioria das pessoas</p><p>está numa luta diária para ganhar o suficiente para consumir, de alguma forma,</p><p>um produto ou uma parte do consumo da camada superior. Dessa forma, a</p><p>desigualdade é altamente funcional, visto que faz as pessoas se submeterem</p><p>aos trabalhos, muitas vezes degradantes, desagradáveis e pesados, para o seu</p><p>sustento e, consequentemente, para o consumo (PEET, 1982).</p><p>O desejo de lucro faz o capitalista reduzir regularmente os seus custos de</p><p>produção, introduzindo e aperfeiçoando suas máquinas e equipamentos de</p><p>trabalho. A mecanização, somada aos salários de subsistência, produzirá um</p><p>excedente de trabalhadores, uma massa de desempregados que formarão o que</p><p>Marx chamou de “exército industrial de reserva”, formado por trabalhadores</p><p>vivendo abaixo do nível de subsistência e dispostos a aceitar qualquer emprego</p><p>que lhes proporcionem um salário (GOMES, 1996).</p><p>A luta de cada indivíduo para sobreviver ocorre no seu espaço físico,</p><p>social e econômico. Esse espaço pode conter uma série de recursos, serviços,</p><p>contatos, oportunidades com os quais ele se relaciona, são as relações sociais</p><p>entre os indivíduos. O resultado dessa relação é a produção de bens e serviços</p><p>para a sociedade e de salários para os indivíduos.</p><p>Numa visão sociogeográfica, a desigualdade pode ser justificada pelo alcance</p><p>ou a ausência da relação do indivíduo com esses aspectos físicos e abstratos,</p><p>ou seja, das oportunidades que o indivíduo tem dentro do seu espaço, pois,</p><p>ao preparar-se para o mercado de trabalho, o indivíduo só pode aproveitar os</p><p>recursos sociais de uma área limitada do espaço. A ampliação ou não dessa</p><p>área dependerá do grupo social ao qual o indivíduo está inserido (PEET, 1982).</p><p>O espaço geográfico é uma soma de aspectos físicos: a casa, a escola, a</p><p>universidade, as fábricas, o comércio em geral e abstratos: o conhecimento,</p><p>a interação social, as redes de relações sociais, redes de informação, etc., que</p><p>estão à disposição dos indivíduos. Por meio do espaço é possível compreender</p><p>os problemas sociais, que são gerados, em grande parte, pelas crises econômicas</p><p>globais, não estando diretamente ligados ao local, mas que refletem diretamente</p><p>nas camadas sociais mais desfavorecidas economicamente.</p><p>19Geografia marxista e as agendas culturais</p><p>Nesse capítulo, você viu que, de acordo com o princípio marxista, a de-</p><p>sigualdade e a pobreza são produzidas pelas sociedades capitalistas, e essa</p><p>desigualdade não pode ser extinta sem alterar, de modo ativo, os mecanismos</p><p>do capitalismo. Na verdade, a desigualdade de salários e, consequentemente,</p><p>social, é necessária para manter o sistema funcionando, pois é por meio da</p><p>alienação provocada pelos canais de comunicação, que trabalham a favor do</p><p>capitalismo, que se mantém o estímulo ao consumo e, dessa forma, a submissão</p><p>dos indivíduos ao trabalho.</p><p>A fim de enriquecer ainda mais os seus conhecimentos, sugerimos a leitura do texto</p><p>“Mudanças paradigmáticas: a geografia crítica e o momento histórico de seu surgi-</p><p>mento”, que apresenta uma compreensão do conhecimento da ciência geográfica,</p><p>analisando a fase da geografia crítica. Para acessá-lo, clique no link a seguir.</p><p>https://qrgo.page.link/t5Wq</p><p>CLÉMENT, E. et al. Dicionário prático de filosofia. Lisboa: Terramar, 1994.</p><p>CORRÊA. R. L. Região e organização espacial. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987.</p><p>DUROZOI. G.; ROUSSEL, A. Dicionário de filosofia. Campinas: Papirus, 1996.</p><p>GOMES, P. C. da C. Geografia e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.</p><p>HUGON, P. História das doutrinas econômicas. São Paulo: Atlas, 1980.</p><p>HUNT. E. K.; SHERMAN, H. J. História do pensamento econômico. Petrópolis: Vozes, 1977.</p><p>INNOCENTI, A. A. F. Segurança nacional: uma discussão conceitual. Revista Cadernos</p><p>de História, v. 8, n. 1, jul. 2013. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/che/.</p><p>Acesso em: 6 abr. 2019.</p><p>MOREIRA, R. Da região à rede e ao lugar: a nova realidade e o novo olhar geográfico</p><p>sobre o mundo. Etc... Revista Eletrônica de Ciências Humanas e Sociais e outras coisas, v.</p><p>1, n. 3, 2007. Disponível em: http://www2.fct.unesp.br/docentes/geo/raul/cartogra-</p><p>fia_ensinoGeografia2016/racioc%EDnio%20geogr%E1fico%20-%20ruy%20moreira.</p><p>pdf/. Acesso em: 6 abr. 2019.</p><p>Geografia marxista e as agendas culturais20</p><p>OLIVEIRA, R. M. de. Revolução industrial na Inglaterra: um novo cenário na idade</p><p>moderna. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento, v. 1, n. 2, p. 89-</p><p>116, out. 2017. Disponível em: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/historia/</p><p>revolucao-industrial-na-inglaterra. Acesso em: 6 abr. 2019.</p><p>OSER, J.; BLANCHFIELD, W. C. História do pensamento econômico. São Paulo: Atlas, 1983.</p><p>PEET, R. Desigualdade e pobreza: uma teoria geográfico-marxista. In: CHRISTOFOLETTI,</p><p>A. Perspectivas da geografia. São Paulo: DIFEL, 1982.</p><p>SANTOS, M. Por uma geografia nova. São Paulo: Edusp, 1978.</p><p>SOJA, E. W. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social. Rio de</p><p>Janeiro: Zahar, 1993.</p><p>Leituras recomendadas</p><p>BATISTA, E. E.; SALVI, R. F. Mudanças paradigmáticas: a geografia crítica e o momento</p><p>histórico de seu surgimento. Geografia, v. 11, n. 2, 2002. Disponível em: http://www.</p><p>uel.br/revistas/uel/index.php/geografia/article/view/6735/0. Acesso em: 6 abr. 2019.</p><p>SANTOS. M. Por uma nova geografia: da crítica à geografia a uma geografia crítica. São</p><p>Paulo: USP, 2004.</p><p>21Geografia marxista e as agendas culturais</p><p>GEOGRAFIA</p><p>URBANA</p><p>Mait Bertollo</p><p>A geografia urbana e o</p><p>pensamento geográfico</p><p>Objetivos de aprendizagem</p><p>Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:</p><p> Identificar as principais abordagens teórico-metodológicas da geo-</p><p>grafia urbana.</p><p> Descrever a evolução do pensamento geográfico urbano.</p><p> Demonstrar as teorias espaciais na organização do espaço urbano.</p><p>Introdução</p><p>No estudo da urbanização na geografia, os principais enfoques partem</p><p>das abordagens teórico-metodológicas. Nessa subdivisão da literatura, as</p><p>teorias partem do espaço para compreender e sistematizar o desenvolvi-</p><p>mento, as dinâmicas e os agentes presentes nas cidades e seus arredores,</p><p>analisando os movimentos populacionais e as características produtivas</p><p>e econômicas na área urbana em suas diversas relações hierárquicas.</p><p>Neste capítulo, você vai conhecer algumas abordagens teórico-me-</p><p>todológicas sobre a urbanização e as principais teorias espaciais que</p><p>visam compreender a hierarquia urbana e os processos de distribuição</p><p>espacial desigual das suas infraestruturas e processos sociais e produtivos.</p><p>1 Abordagens teórico-metodológicas</p><p>da geografia urbana</p><p>Para compreender as principais abordagens da geografi a urbana, é importante</p><p>saber que esse é um ramo da geografi a que estuda e busca entender as dinâmi-</p><p>cas do chamado espaço urbano e identifi car seus agentes e os processos que</p><p>constituem esse âmbito da sociedade. Ressaltamos que a geografi a urbana é</p><p>uma área interdisciplinar, abrangendo ramos do conhecimento como sociologia,</p><p>economia, política, arquitetura, urbanismo e saúde pública.</p><p>Nesse contexto, o espaço urbano é o arranjo das variadas atividades hu-</p><p>manas sobrepostas espacialmente, o que resulta na composição e constituição</p><p>das cidades e suas funções, assim como na organização socioespacial das</p><p>infraestruturas, das práticas humanas e das condições do meio ambiente.</p><p>Há, portanto, uma diversidade de entendimentos sobre a urbanização e, no</p><p>âmbito cientifico, sua compreensã o e aplicação só é possí vel sob abordagens</p><p>teórico-metodológicas.</p><p>Ao adotar a geografia urbana sob uma visã o demográ fica, Laborde (1994)</p><p>aborda a dinâ mica da urbanizaç ã o pelo aumento da populaç ã o urbana no</p><p>conjunto total da populaç ã o e pelas causas e consequências desse processo.</p><p>Outra maneira de abordar teoricamente a geografia urbana é definindo o que</p><p>vem a ser uma cidade, como destaca Beaujeu-Garnier (1980), que entende a</p><p>urbanizaç ã o como um movimento de desenvolvimento citadino, simultanea-</p><p>mente em número de habitantes e em infraestruturas e tamanho de sua área,</p><p>transformando também seus arredores. Para Johnston (1994), a urbanizaç ã o é</p><p>um processo estrutural definido por uma populaç ã o acima de certo tamanho</p><p>ou densidade demográfica, com funç õ es econô micas características na divisã o</p><p>espacial do trabalho.</p><p>Alguns autores partem da ideia de uma economia polí tica da urbanizaç ã o,</p><p>isto é, um desenvolvimento da urbanização simultâneo às mudanças tecno-</p><p>lógicas e à globalização, mais potencializadas no fim do século XX e nas</p><p>primeiras décadas do século XXI. Tais transformações incidem no âmbito</p><p>financeiro, principalmente nas grandes cidades e metrópoles, que ganham</p><p>crescente importâ ncia e se ligam cada vez mais à economia, às finanças e à</p><p>política global, com a ação dos Estados e das grandes corporações.</p><p>Para Roberts (2014), a urbanizaç ã o se dá pela concentraç ã o populacional</p><p>em diferentes contextos sociais, com implicaç õ es nas relaç õ es sociais. Já</p><p>Castells (2000) parte da ideia de formato espacial da organizaç ã o social em</p><p>constante mutaç ã o, expressa pelas modificaç õ es no meio ambiente edificado.</p><p>Cabe ressaltar que a urbanizaç ã o é um processo que deve ser entendido</p><p>como movimento espaç o-temporal. Segundo Sposito (1992), é importante</p><p>buscar a unicidade tempo/espaç o, considerando, por exemplo, Pierre George</p><p>(1969; 1990), que destaca a unidade entre geografia e histó ria. O geógrafo</p><p>Milton Santos (1978a; 1978b; 1985; 1996), bem como Giddens (1991), Harvey</p><p>(1992), Abreu (1998), Vasconcelos (1999) e Haesbaert (2002) também enfati-</p><p>zam a necessidade de se articular a dimensã o temporal à dimensã o espacial</p><p>da realidade.</p><p>A geografia urbana e o pensamento geográfico2</p><p>Para entender o processo complexo de urbanizaç ã o, as abordagens teórico-</p><p>-metodológicas devem analisar as mú ltiplas conexõ es entre o tempo e o espaç o</p><p>ao ponderar sucessã o de eventos, sua sincronia e o descompasso dos movimen-</p><p>tos. Assim, é preciso considerar as relaç õ es entre diferentes temporalidades,</p><p>entre as distintas escalas e a urbanizaç ã o como um processo de longa duraç ã o,</p><p>que começa com o surgimento das primeiras cidades, segundo diferentes</p><p>modos de produç ã o e pelas diversas formas que pode assumir.</p><p>Há, assim, na geografia urbana vertentes que analisam a urbanizaç ã o</p><p>como resultado de uma divisã o social do trabalho entre o campo e a cidade,</p><p>já que conté m e também expressa a ideia de processo, partindo da aná lise da</p><p>origem e evoluç ã o histó rica das cidades e passando pelo desenvolvimento das</p><p>forç as produtivas e pelas transformaç õ es de ordem polí tica, social, cultural</p><p>e esté tica, bem como pelas revoluç õ es e contra-revoluç õ es ideoló gicas e do</p><p>cotidiano (SPOSITO, 1992).</p><p>Outro termo importante nesse contexto das abordagens teórico-metodo-</p><p>lógicos da geografia urbana é a cidade. Para Remy e Voyé (1992), trata-se de</p><p>um conceito que possibilita captar uma realidade e diversas funç õ es sociais,</p><p>havendo uma variedade de formas de assentamento que recebem a denominaç ã o</p><p>de cidade, devido a sua situaç ã o, tamanho, arquitetura, organizaç ã o e/ou</p><p>papel na região e país em que está inserida. Para Lé vy (1994), esse conceito</p><p>é de natureza espacial, com elementos que interagem, como as dimensõ es</p><p>econô mica, socioló gica e polí tica, material e cultural, coletiva e individual,</p><p>sendo a cidade o espaço da sociedade em aç ã o.</p><p>Ao pesquisar os assentamentos humanos em diversas sociedades e épocas,</p><p>percebem-se realidades históricas bem diferentes, considerando que os pri-</p><p>meiros assentamentos concentrados remontam a 3.000 a.C. na Mesopotâ mia</p><p>e que, passados 5.000 anos, a questã o urbana segue no centro das inquietudes</p><p>contemporâ neas (RONCAYOLO, 1990).</p><p>O desenvolvimento das formas das cidades no tempo e no espaç o, e os</p><p>termos usados para designar essas aglomeraç õ es humanas, indica as mudanç as</p><p>nos papé is exercidos pelas cidades. Ao analisar as nomenclaturas recebidas por</p><p>elas, pode-se notar mudanç as dos papé is urbanos. Para Le Goff (1998, p. 12) o</p><p>termo ville é recente e proveniente da expressã o villa, que aludia ao “[...] centro</p><p>de um grande domí nio sobre as terras ao redor”. A adaptação do termo villa</p><p>para ville sinaliza a passagem do poder polí tico e econô mico do campo para a</p><p>cidade. Segundo Le Goff (1998), até os sé culos XI e XII, utilizava-se os termos</p><p>em latim civitas, cité ou urbs, que denominavam os papé is polí ticos exercidos</p><p>pelas cidades desde a Antiguidade como centros da civilizaç ã o.</p><p>3A geografia urbana e o pensamento geográfico</p><p>Dessa forma, segundo as várias abordagens teórico-metodológicas, a</p><p>urbanizaç ã o é um processo e movimento de transformaç ã o, em que a cidade</p><p>deve ser compreendida pelo seu espaç o e pelo tempo, bem como pela existência</p><p>do espaço rural e urbano, o que resulta em transformações na divisã o social e</p><p>territorial do trabalho. Assim, a cidade pode ser entendida como a expressão</p><p>de cada período num contínuo movimento (SPOSITO, 1992).</p><p>Para Santos (1981, p. 118), é importante considerar a urbanizaç ã o como uma</p><p>“[...] dimensã o do processo de humanizaç ã o e desumanizaç ã o da sociedade”,</p><p>dentro da esfera de uma economia polí tica citadina, que deve associar os efeitos</p><p>da divisã o do trabalho sobre as condiç õ es locais do mercado em todos seus</p><p>aspectos para compreender o espaç o construí do e suas caracterí sticas como</p><p>dados sociais e econô micos numa realidade em transformaç ã o.</p><p>A divisão espacial do trabalho refere-se à especialização da produção de bens e serviços</p><p>de empresas numa região específica de uma cidade pequena, de um distrito industrial</p><p>ou de um país, relacionando os pontos fixos de localização com a população e com</p><p>os recursos materiais e naturais, as indústrias, as vias de transporte e os fluxos de bens</p><p>e serviços que fluem no espaço entre os pontos fixos.</p><p>2 A evolução do pensamento</p><p>geográfico urbano</p><p>Os estudos sobre o desenvolvimento das cidades pela geografi a urbana come-</p><p>çam a se intensifi car a partir do século XIX, com refl exões sobre</p><p>como esse</p><p>processo condiciona mudanças decisivas na sociedade. A partir daí, também</p><p>passa a ser considerada a expansão da rede urbana, determinando uma evolução</p><p>no pensamento geográfi co sobre o tema. As análises partem da produção, da</p><p>circulação e do consumo que se realizam na cidade por meio da rede urbana e</p><p>da expansão da rede de comunicações a ela vinculada, num contexto em que</p><p>as distantes regiões podem ser articuladas, estabelecendo-se, com o passar</p><p>do tempo, uma economia mundial estruturada, tendo como base as cidades.</p><p>O pensamento geográfico, assim, se desenvolve considerando análises</p><p>dos processos sociais ligados à criação de centros e à transformação da rede</p><p>urbana, principalmente no final do século XX. A rede urbana é entendida</p><p>A geografia urbana e o pensamento geográfico4</p><p>como o conjunto de centros urbanos funcionalmente articulados entre si e são</p><p>a expressão de como o pensamento geográfico urbano tem se desenvolvido</p><p>ao longo do tempo.</p><p>Primeiramente, um ponto importante da evolução desse pensamento é</p><p>a classificação das cidades segundo suas funções e dimensões, segundo as</p><p>relações entre seu tamanho demográfico e seu desenvolvimento e segundo</p><p>sua hierarquia urbana e as relações entre cidade e região. A hierarquia urbana</p><p>nada mais é do que o modo como as cidades de uma região ou país podem</p><p>se organizar numa escala de subordinação, seja por seu tamanho ou por suas</p><p>funções e importância para influenciar aquelas que estão ao seu redor. Esses</p><p>temas podem convergir de diferentes modos.</p><p>Estudos sobre a distinção de cidades segundo suas funções, por exem-</p><p>plo, partem das ideias do australiano Marcel Aurousseau, que na década de</p><p>1920 propôs uma classificação de cidades em oito tipos, segundo sua função</p><p>dominante: cidades de administração, de defesa, de atividades culturais, de</p><p>produção, de coleta, transferência, distribuição e recreação. Na década de</p><p>1940, o americano Chauncy Harris conduziu um estudo sobre as cidades dos</p><p>Estados Unidos utilizando precisão estatística na categorização das cidades</p><p>em dez tipos, em que cada cidade podia ser definida por combinações de duas</p><p>ou três funções (VASCONCELOS, 2012).</p><p>Além disso, vários autores tipificaram as atividades da cidade de acordo</p><p>com a divisão territorial do trabalho no âmbito da rede urbana, cujas categorias</p><p>podem variar de acordo com o tempo, dadas as transformações ininterruptas</p><p>das cidades. A partir das classificações funcionais de cidades, as pesquisas se</p><p>atêm aos sistemas urbanos, considerando sistematicamente as características</p><p>demográficas e sociais entre cidades com distintas especializações funcionais.</p><p>Nesse sentido, são considerados o ritmo de crescimento da população, sua</p><p>estrutura etária, nível de escolaridade, proporção de homens e mulheres, taxas</p><p>de desemprego e renda per capita, considerando também a evolução das pes-</p><p>quisas estatísticas e matemáticas sobre a demografia (VASCONCELOS, 2012).</p><p>Os autores Moser e Scott (1961) iniciaram a sistematização das dimensões</p><p>básicas das variáveis dos sistemas urbanos ao empregar técnicas estatísticas,</p><p>como análise fatorial, para entender variáveis econômicas, demográficas e</p><p>sociais, chegando à conclusão de que cada cidade apresenta um escore que</p><p>representa sua posição ao longo dessa linha de variação em comparação com</p><p>as demais cidades. Dadas essas evoluções, foram realizados inúmeros estudos</p><p>sobre cidades de vários países, como Estados Unidos, Canadá, Índia e a antiga</p><p>União Soviética. O objetivo era descobrir dimensões básicas de variação de</p><p>um determinado sistema urbano, se havia uma certa estabilidade ao longo</p><p>5A geografia urbana e o pensamento geográfico</p><p>de determinado período e quais tipos de variação se manifestavam. Entre</p><p>as distintas dimensões básicas estavam tamanho, especialização funcional,</p><p>particularidades sociais e tipo de crescimento demográfico.</p><p>Para selecionar as variáveis, um dos principais referenciais teóricos foi o</p><p>modelo centro–periferia de John Friedmann, cuja concepção é da cidade como</p><p>centro propagador do desenvolvimento. Outro referencial que demonstra a</p><p>evolução do pensamento da geografia para entender a urbanização é de Fre-</p><p>drich e Davidovich, que se baseia em três dimensões de variação do sistema</p><p>urbano, como a estrutura socioeconômica, os tipos de ritmos de crescimento</p><p>e as formas de concentração espacial urbana.</p><p>Os estudos sobre hierarquia urbana colocaram em evidência simultanea-</p><p>mente uma série de regularidades empíricas e de características diferenciadoras</p><p>das redes urbanas. A existência de uma hierarquia urbana em qualquer orga-</p><p>nização socioespacial estruturada por mecanismos de mercado é a principal</p><p>regularidade verificada. Porém, as diversas formas que essa hierarquia assume</p><p>representam a característica mais importante e diferenciadora encontrada.</p><p>No Brasil, os estudos sobre a hierarquia das cidades são numerosos e</p><p>tradicionais, desenvolvidos principalmente pelo geógrafo Roberto Lobato</p><p>Corrêa (1989). Os estudos de Pedro Pinchas Geiger sobre a evolução da rede</p><p>urbana nacional também influenciaram os estudos realizados pelo Instituto</p><p>Brasileiro de Geografia e Estatística relativos à hierarquia e à área de influ-</p><p>ência das cidades brasileiras. Esses estudos induziram o desenvolvimento de</p><p>um importante aparato operacional que enriqueceu os estudos sobre redes</p><p>urbanas e ciência geográfica.</p><p>Outro autor importante no desenvolvimento do pensamento geográfico</p><p>urbano é o francês Pierre George, que, ao verificar a rede urbana, buscou en-</p><p>tender o conjunto das relações cidade–região, indicando as relações de atração</p><p>da população rural pela cidade, a renda fundiária urbana, a comercialização</p><p>da produção agrícola na cidade, os investimentos e a geração de trabalho pela</p><p>cidade e a distribuição de bens e de serviços em sua área.</p><p>Os estudos sob essa abordagem destacam as mudanças ocorridas na orga-</p><p>nização socioespacial da cidade e da região estudadas. Os resultados obtidos</p><p>indicam que a cidade é um reflexo da região onde está inserida e um resultado</p><p>das ações da burguesia urbana. A produç ã o de pesquisas nesse âmbito têm</p><p>influê ncia de vários geó grafos, soció logos, filó sofos, economistas, arquitetos</p><p>e urbanistas, realçando a interdisciplinaridade inerente à ciê ncia geográ fica.</p><p>Podemos destacar o geógrafo Milton Santos, que participou por 30 anos como</p><p>precursor e renovador dessa ciência, centrado em princí pios do materialismo</p><p>histó rico e dialé tico como mé todo de interpretaç ã o espacial. Ele propôs um</p><p>A geografia urbana e o pensamento geográfico6</p><p>movimento de renovaç ã o da geografia entre os anos 1960 e 1980, por meio</p><p>de elaborações sobre a relaç ã o tempo–espaç o na dialé tica só cio-espacial.</p><p>Na Franç a, onde estudou e manteve ligações acadê micas, Milton Santos</p><p>sofreu grande influência dos pesquisadores Pierre Deffontaines, Pierre George,</p><p>Yves Lacoste, Henri Lefebvre, David Harvey, Edward Soja, Manuel Castells,</p><p>Francesco Indovina, Paul Claval e Massimo Quaini. Nos anos 1980 e 1990,</p><p>ocorreu uma reelaboração da geografia humana, centrada no conceito de</p><p>espaç o geográ fico como grande categoria de explicaç ã o nessa ciê ncia, com</p><p>participação de Milton Santos, Manuel Correia de Andrade, Ruy Moreira,</p><p>Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Carlos Walter Porto-Gonç alves, Antônio</p><p>Carlos Robert Moraes, Armando Corrê a da Silva, Armen Mamigonian, Roberto</p><p>Lobato Corrê a, entre outros.</p><p>Santos, por suas relaç õ es acadê micas e cientí ficas com pesquisadores</p><p>brasileiros e estrangeiros e pelas inúmeras publicaç õ es, orientaç õ es de pes-</p><p>quisa, consultorias, conferê ncias, cursos, palestras e também atuaç ã o polí tica,</p><p>tornou-se um representante da geografia brasileira. Ele atuou também como</p><p>professor, pesquisador e pensador de temas e processos do mundo recente,</p><p>principalmente na evolução do pensamento sobre urbanizaç ã o, cidades e</p><p>globalizaç ã o, com o objetivo de construir uma teoria social para compreender</p><p>o mundo contemporâ neo e contribuir na sua transformaç</p><p>ã o.</p><p>3 Teorias espaciais na organização</p><p>do espaço urbano</p><p>Para compreender a organização e arranjo espacial das cidades e o desenvol-</p><p>vimento acelerado da urbanização, foram desenvolvidas com mais intensidade</p><p>no fi m do século XX teorias para dar conta das análises necessárias desse</p><p>período em que o processo de globalização se acentuava. Nesse contexto, as</p><p>abordagens teórico-metodológicas baseadas no marxismo se sistematizavam</p><p>a partir da década de 1960, para explicar os processos de aumento das desi-</p><p>gualdades sociais nas áreas urbanas que se formavam de forma intensa no</p><p>pós-Segunda Guerra Mundial.</p><p>Segundo Gottdiener (1993), essas teorias espaciais visavam substituir os</p><p>arranjos urbanos meramente descritivos por uma síntese que pudesse revelar</p><p>os processos presentes do espaço urbano e esclarecer as características da</p><p>distribuição espacial desigual, bem como as crises sociais relacionadas a ela.</p><p>Tal perspectiva se interessava pelos processos que poderiam desencadear uma</p><p>7A geografia urbana e o pensamento geográfico</p><p>maior justiça social, bem como pelas formas das cidades, como suas estruturas</p><p>“desumanizadoras” resultantes de um planejamento urbano inadequado.</p><p>Essa análise urbana marxista permite uma noção polí tica e social sobre</p><p>os eventos urbanos e as configurações da cidade, considerando a produç ã o</p><p>social e a formaç ã o das paisagens em que o ser social, o indivíduo, está po-</p><p>sicionado no espaç o e no tempo, numa contextualizaç ã o histó rica e também</p><p>geográ fica. As pesquisas sob esse viés têm o objetivo de esclarecer a relaç ã o</p><p>entre a estrutura social e a estrutura espacial, ao considerar as relaç õ es entre</p><p>sociedade e Estado para compreender o processo de produç ã o das formas</p><p>espaciais nas cidades.</p><p>Lefebvre (1972) desenvolveu teorias espaciais sob a concepç ã o de produç ã o</p><p>do espaç o embasando-se no conceito de produç ã o proposto por Marx, referente</p><p>ao desenvolvimento das forç as produtivas e das relaç õ es de produç ã o. Para</p><p>Lefebvre, esse conceito se relaciona com a produç ã o de coisas, isto é, produtos,</p><p>infraestruturas, ideias, ideologias, conhecimento, ilusões e verdades.</p><p>A unidade desses tipos de produção decorre do fato de que a cidade é a</p><p>manifestação da produç ã o no sentido amplo. Assim, a cidade materializa o</p><p>processo de urbanizaç ã o e sua pró pria histó ria, em dado período, já que ela é o</p><p>somató rio desses diferentes momentos e, assim, sí ntese entre o velho e o novo</p><p>(LEFEBVRE, 1972). Nessa teoria espacial sobre a organização do espaço, o</p><p>chamado “novo” é entendido como o velho reconstruí do, refuncionalizado,</p><p>revelando-se a cada momento da histó ria pelos processos de transformação social.</p><p>Ao tratar a cidade sob a ótica dos processos produtivos propostos por Lefeb-</p><p>vre, e também como meio pelo qual se realiza a pró pria produç ã o, distribuiç ã o,</p><p>circulaç ã o e consumo individual e coletivo, é imperativo refletir sobre o que</p><p>são os processos de produç ã o nesse contexto. Santos (1978b, p. 163) destaca</p><p>que, por intermédio da produç ã o, o ser humano modifica a chamada “[...]</p><p>natureza primitiva, isto é, a natureza bruta, socializando-a. Assim, o espaç o é</p><p>criado como ‘natureza segunda’, e assim a natureza é transformada e entendida</p><p>como ‘natureza social’ ou socializada”. Dessa maneira, o ato de produzir é</p><p>simultaneamente o ato de produzir espaç o.</p><p>Lefebvre (1986) considera que há uma dimensã o trí plice desse pro-</p><p>cesso, como, primeiramente, a “prá tica espacial”, que engloba a produç ã o e</p><p>reproduç ã o, formando lugares especí ficos e conjuntos espaciais pró prios a</p><p>cada formaç ã o social. Também há as “representaç õ es do espaç o”, ligadas à s</p><p>relaç õ es de produç ã o, isto é, a ordem imposta ligada aos conhecimentos, aos</p><p>significados, aos có digos e à s relaç õ es. Por último, Lefebvre (19869 indica</p><p>os “espaç os de representaç ã o”, apresentando simbolismos ligados às facetas</p><p>mais íntimas da vida social, como a arte e espaç os de representaç ã o.</p><p>A geografia urbana e o pensamento geográfico8</p><p>Sob esse enfoque, o autor ressalta que o espaç o social unifica os atos</p><p>sociais dos indivíduos e dos coletivos. Dessa forma, a produç ã o do espaç o</p><p>urbano envolve um conjunto de aç õ es, interesses, valores e ideias que, no plano</p><p>material e simbó lico, movimenta a sociedade e gera e transforma o espaço</p><p>das cidades (LAFEBVRE, 1986).</p><p>Atualmente, são incessantes as criações de novas formas de produç ã o</p><p>territorial do espaç o urbano, com novos modos de vida e novas prá ticas so-</p><p>cioespaciais, que determinam esse conjunto de mudanç as. No caso do Brasil,</p><p>ao se urbanizar intensamente, sobretudo a partir da segunda metade do sé culo</p><p>XX, produziu-se novas formas de meios urbano, novos modos de viver na</p><p>cidade e também de consumir.</p><p>Cabe ressaltar o papel dos interesses econô micos e polí ticos das corpo-</p><p>rações e do Estado, que definem os eixos condutores dessa nova produç ã o</p><p>do espaç o urbano e que induzem o movimento da sociedade ao se urbanizar,</p><p>dada a inserção da maior parte da população no mercado de consumo global</p><p>e suas consequentes alterações nas prá ticas socioespaciais.</p><p>Além disso, notam-se mudanças mais banais, como os modos de se vestir</p><p>ou falar e se expressar nas ruas, bem como mais profundos, como o modo de</p><p>se relacionar com o espaç o e as maneiras de se apropriar. Ao tornar a sociedade</p><p>mais urbanizada, o Brasil vivenciou e vivencia a formaç ã o do pró prio mercado</p><p>consumidor nacional, principalmente pela origem e influência do complexo</p><p>cafeeiro, tendo como base territorial o estado de Sã o Paulo, que desenvolveu</p><p>uma urbanizaç ã o influenciando outras regiões do país.</p><p>Assim, as teorias espaciais sobre a organização do espaço urbano devem</p><p>servir de alicerce para compreender os processos que ocorrem nas cidades</p><p>brasileiras que, desde a passagem da economia agrá ria e exportadora para a</p><p>economia industrial, na primeira metade do sé culo XX, constituem-se em</p><p>espaç os de consumo para a produç ã o capitalista global de bens e serviç os,</p><p>sendo elas mesmas um tipo de mercadoria a ser consumida.</p><p>Tal processo pode ser exemplificado pelos pedaç os da cidade que sã o com-</p><p>prados e vendidos, como os terrenos e edificações que tê m valor diferenciado</p><p>de acordo com o imaginá rio social sobre cada região, geralmente orientado</p><p>pelo marketing e pelas incorporadoras imobiliá rias.</p><p>Assim, para Santos (1994), a cidade constitui o lugar de um processo de</p><p>valorizaç ã o seletivo, cuja materialidade é formada pela sobreposição de áreas</p><p>aptas aos usos mais eficazes de atividades modernas, incluindo o que resta do</p><p>passado mais remoto, onde se instalam usos menos rentáveis, portadores de</p><p>té cnicas e de capitais menos exigentes. Dessa forma, ainda segundo Santos, cada</p><p>lugar dentro da cidade tem uma vocação diferente do ponto de vista capitalista.</p><p>9A geografia urbana e o pensamento geográfico</p><p>As teorias espaciais sobre a organização espacial urbana permitem entender</p><p>como sã o selecionados distintos lugares de cada cidade para realizar diferen-</p><p>tes funções e usos, quais aç õ es definem os agentes ou grupos de agentes na</p><p>estruturaç ã o do espaç o urbano em cada período tempo e como essas aç õ es</p><p>sã o motivadas por processos globais da divisã o social e territorial do trabalho.</p><p>Conforme Santos (1994, p. 118), uma forma operacional de analisar esses pro-</p><p>cessos é partir da economia polí tica da cidade, compreendida como “[...] a forma</p><p>como a cidade se organiza, em face da produç ã o e como os diversos atores</p><p>da vida urbana encontram seu lugar, em cada momento, dentro da cidade”.</p><p>ABREU, M. A. Sobre a memória das cidades. Revista da Faculdade de Letras — Geografia,</p><p>v. 14, p. 77–97, 1998.</p><p>BEAUJEU-GARNIER, J. Geografia da população. São Paulo: Companhia Editora Nacional,</p><p>1980.</p><p>CASTELLS, M. A ideologia urbana In: CASTELLS, M. A questã o urbana. Rio de Janeiro:</p><p>Paz & Terra, 2000.</p><p>CORRÊ A, R. L. O espaç o urbano. Sã o Paulo: Á tica, 1989.</p><p>GEORGE, P. Geografia dos Estados Unidos. Campinas:</p><p>das</p><p>informações tornava impossível tratar a geografia como uma ciência, como</p><p>um saber autônomo. Somente no final do século XVIII chegou ao fim o longo</p><p>período inicial e preparatório da geografia e a sua pré-história. No século XIX,</p><p>a geografia buscou status científico, especialmente na Alemanha. Entretanto,</p><p>só recentemente ela encontrou elementos para o seu nascimento como ciência.</p><p>A relação entre a cartografia e a geografia é bastante complexa. De um lado, há as</p><p>atividades e os registros dos lugares que receberam a denominação de geografia na</p><p>Grécia Antiga e que não se distinguem da cartografia. Esse tipo de relação deu origem,</p><p>por exemplo, ao mapa-múndi do filósofo Anaximandro de Mileto (610–546 a.C.). De</p><p>outro lado, no século XIX, a geografia e a cartografia se separaram, esta se tornando</p><p>uma disciplina específica, considerada uma ciência.</p><p>Atualmente, a cartografia, como a geografia, é considerada uma ciência responsável</p><p>pela representação da realidade e pela compreensão do mundo. A cartografia está</p><p>ligada ao campo do conhecimento da geografia e embasada por modelos matemá-</p><p>ticos, estatísticos, com técnicas que permitem a produção de um mapa. Portanto, a</p><p>geografia e a cartografia são duas ciências distintas entre si, mas uma precisa da outra</p><p>para organizar as informações distribuídas em determinado espaço e representadas</p><p>em mapas (PRADO FILHO; TETI, 2013).</p><p>3Geografia como ciência</p><p>Elementos do pensamento científico geográfico</p><p>Na Idade Moderna, com as mudanças econômicas, sociais e culturais, a ma-</p><p>neira de explicar as relações entre a natureza e a sociedade foi afetada. Logo,</p><p>também foi alterado o conceito de geografi a. Nesse período, eram buscadas</p><p>explicações mais profundas para as relações entre a Terra e os astros, entre</p><p>as condições naturais e as sociedades capitalistas.</p><p>Antes, na Idade Média, a geografia era utilizada especialmente para dese-</p><p>nhar roteiros, direcionando a análise de astros, a cartografia e a astronomia.</p><p>Como você pode notar, havia confusão entre a geografia, a cartografia e a</p><p>astronomia. Além disso, quase não se traçavam relações com a sociedade. No</p><p>período contemporâneo, a geografia está ligada às explicações dos fenômenos</p><p>físicos e políticos na sociedade capitalista. Assim, houve uma evolução e hoje</p><p>não se consideram apenas as descrições, mas as explicações dos fenômenos</p><p>e a sua distribuição (PEREIRA, 1988).</p><p>No final do século XIX e início do século XX, surgiram inúmeras pu-</p><p>blicações produzidas por geógrafos. Com a institucionalização da geografia</p><p>acadêmica nas universidades europeias, houve uma evolução da ciência, que</p><p>passou a estudar “a distribuição, na superfície do globo, dos fenômenos físicos,</p><p>biológicos e humanos, [bem como] a causa dessas distribuições e as relações</p><p>locais destes fenômenos”. Não se tratava mais de apenas descrever, mas de</p><p>explicar os fenômenos. Com essas características, a geografia ficou conhecida</p><p>como uma ciência de síntese. Nesse sentido, trabalhava com os elementos das</p><p>demais ciências (antropologia, biologia, história, física), aprofundando o seu</p><p>próprio desenvolvimento como ciência. Atualmente, a geografia se define</p><p>como o ramo do saber científico que se dedica ao estudo das relações entre a</p><p>sociedade e a natureza, ou ao estudo do modo como a sociedade organiza o</p><p>espaço terrestre (PEREIRA, 1988).</p><p>Segundo Mormul e Rocha (2013), no final do século XIX, a ciência ge-</p><p>ográfica se originou na Alemanha, com Von Humboldt (1769–1859) e Karl</p><p>Ritter (1779–1859). A partir deles, se estabeleceu a base científica da geografia.</p><p>Humboldt não tinha formação em geografia; ele era botânico. Logo, a sua con-</p><p>tribuição foi importante para a consolidação da ciência. As disciplinas que hoje</p><p>compõem a geografia, como a biogeografia, a climatologia e geologia, foram</p><p>criadas a partir de Humboldt. Já Ritter (Figura 1), com formação em ciências</p><p>humanas e história, procurou explicar a evolução da humanidade relacionado</p><p>os povos aos aspectos naturais. Ele descrevia sobretudo a sociedade, mas já</p><p>fazia certas relações com os aspectos políticos e econômicos. Foi assim que</p><p>a geografia passou a se consolidar como uma ciência.</p><p>Geografia como ciência4</p><p>Figura 1. Ritter, um dos grandes nomes</p><p>da ciência geográfica.</p><p>Fonte: Marzolino/Shutterstock.com.</p><p>Em meados do século XIX, a geografia estava ligada às explicações dos fenô-</p><p>menos físicos e políticos, todavia centrada nas filiações das sociedades geográficas</p><p>e nas universidades. As filiações das sociedades geográficas foram importantes</p><p>e entre elas se destacam: a Sociedade Geográfica de Paris (1821), a Sociedade</p><p>Geográfica de Berlim (1928), a Real Sociedade de Geografia de Londres (1830), a</p><p>Sociedade Russa de São Petersburgo (1845), a Sociedade Americana de Geografia</p><p>de Nova Iorque (1852), a Sociedade Geográfica de Genebra (1858) e a Sociedade</p><p>Geográfica de Madri (1876).</p><p>A finalidade dessas sociedades estava relacionada com a entrada do capi-</p><p>talismo em uma nova fase. Nesse contexto, havia a necessidade de conhecer</p><p>melhor os povos, territórios, recursos naturais e riquezas das nações. Para</p><p>isso, eram financiadas viagens com exploradores naturalistas, com o objetivo</p><p>de realizar e divulgar pesquisas. A divulgação ocorria por meio das revistas</p><p>da época (MOREIRA, 2010).</p><p>No link a seguir, acesse o site da Real Sociedade de Geografia de Londres, criada em 1830.</p><p>https://qrgo.page.link/hmUN</p><p>5Geografia como ciência</p><p>Na época, as sociedades geográficas eram encaradas como instituições</p><p>de utilidade pública e também como incentivadoras da ciência geográfica.</p><p>A Sociedade Geográfica de Paris foi a primeira a realizar expedições. A</p><p>cartografia e a questão militar foram aspectos que mobilizaram as viagens.</p><p>Afinal, as informações trazidas pelos exploradores e naturalistas poderiam</p><p>ser usadas para campanhas políticas francesas. Um dos maiores desejos dos</p><p>franceses era criar um memorial geográfico, sobretudo com informações</p><p>sobre a África e a Ásia. Por trás disso, estava a intenção de partilhar esses</p><p>dois continentes para explorá-los (BIAGGI, 2013).</p><p>As sociedades geográficas foram instituições surgidas nas primeiras décadas do</p><p>século XIX, evoluindo em duas fases distintas. O período que se estendeu de 1820</p><p>a 1870 foi o mais importante, marcado pelas atividades dos viajantes e naturalistas</p><p>exploradores. Eles tinham o objetivo de cartografar ou mapear as informações</p><p>das regiões do mundo desconhecidas pelos europeus. O conhecimento foi sendo</p><p>acumulado pelos naturalistas para mais tarde ser analisado. O intuito dominante</p><p>era a conquista: a sociedade tinha o interesse de dominação imperialista. A outra</p><p>fase se estendeu de 1890 a 1920. Nela, as sociedades geográficas já não eram tão</p><p>importantes e entraram em decadência.</p><p>O desenvolvimento da geografia universitária coincide com o surgimento</p><p>das sociedades geográficas. Ambos contribuíram para os elementos fun-</p><p>dantes do pensamento geográfico e a consolidação da ciência. A geografia</p><p>universitária acompanha as sociedades geográficas em sua evolução e</p><p>em seus caminhos. Desse modo, em relação à geografia universitária,</p><p>destacam-se: a geografia ou escola alemã e a geografia ou escola francesa</p><p>(MOREIRA, 2010).</p><p>Na geografia ou escola alemã, como você viu, foram importantes as</p><p>contribuições de Alexander Humboldt e de Karl Ritter. Além disso, se</p><p>destaca a contribuição do alemão Friedrich Ratzel (1844–1904). Ratzel</p><p>ficou conhecido por dar enfoque maior ao homem em seus estudos. O</p><p>interesse pelos aspectos expansionistas da Alemanha foi o que consolidou</p><p>Ratzel na época. O alemão encarou a nova ciência a partir de motivações</p><p>de natureza política.</p><p>Geografia como ciência6</p><p>Ratzel não era geógrafo de formação. Como zoólogo e etnógrafo, ele in-</p><p>troduziu o homem no campo geográfico. Ele considerava que o homem pouco</p><p>podia fazer diante das condições naturais, originando a teoria do determinismo</p><p>geográfico. Isso levou os geógrafos alemães a racionalizar uma geografia que</p><p>valorizava o determinismo geográfico juntamente</p><p>Papirus Editora, 1990.</p><p>GEORGE, P. Sociologia e geografia. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1969.</p><p>GIDDENS, A. As consequências da modernidade. Sã o Paulo: Editora Unesp, 1991.</p><p>GOTTDIENER, M. A produç ã o social do espaç o urbano. Sã o Paulo: Edusp, 1993.</p><p>HAESBERT, R. Fim dos territó rios ou novas territorialidades? In: LOPES, L.; BASTOS, L.</p><p>(org.). Identidades: recortes multi e interdisciplinares. Campinas: Mercado de Letras, 2002.</p><p>HARVEY, D. Condiç ã o pó s-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudanç a cultural.</p><p>Sã o Paulo: Edições Loyola, 1992.</p><p>JOHNSTON, R. J. Geography journals for political scientists. Political Studies, v. 42, n. 2,</p><p>p. 310–317, 1994.</p><p>LABORDE, P. Les espaces urbains dans le monde. Paris: Nathan, 1994.</p><p>LE GOFF, J. Por amor às cidades. Sã o Paulo: Editora Unesp, 1998.</p><p>LEFEBVRE, H. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 1986.</p><p>LEFEBVRE, H. Le droit à la ville. Paris: Anthropos, 1972.</p><p>A geografia urbana e o pensamento geográfico10</p><p>LÉ VY, J. L’espace lé gitime: sur la dimension gé ographique de la fonction politique. Paris:</p><p>Presses de La Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1994.</p><p>MOSER, C. A.; SCOTT, W. Brithish towns: a statistical study of their social and economic</p><p>differences. Edinburgh: Oliver and Boyd, 1961.</p><p>REMY, J.; VOYÉ, L. La ville: vers une nouvelle définition? Paris: L’Harmattan, 1992.</p><p>ROBERTS, B. H. Managing systems of secondary cities: policy responses in international</p><p>development. Brussels: Cities Alliance, 2014.</p><p>RONCAYOLO, M. La ville et ses territoires. Paris: Galimard, 1990.</p><p>SANTOS, M. A natureza do espaç o: té cnica e tempo, razã o e emoç ã o. Sã o Paulo: Hu-</p><p>citec, 1996.</p><p>SANTOS, M. Espaç o e mé todo. Sã o Paulo: Nobel, 1985.</p><p>SANTOS, M. Manual de geografia urbana. Sã o Paulo: Hucitec, 1981.</p><p>SANTOS, M. Pobreza urbana. Sã o Paulo: Hucitec, 1978a.</p><p>SANTOS, M. Por uma geografia nova. Sã o Paulo: Hucitec, 1978b.</p><p>SANTOS, M. Tendê ncias da urbanizaç ã o brasileira no fim do sé culo XX. In: CARLOS, A.</p><p>F. A. (org.). Os caminhos da reflexã o sobre a cidade e o urbano. Sã o Paulo: Edusp, 1994.</p><p>SPOSITO, M. E. B. Espacialidade, cotidiano e poder: perspectivas da geografia no final</p><p>do século. Geosul, v. 7, n. 4, p. 60–65, 1992.</p><p>VASCONCELOS, P. A. Dois séculos de pensamento sobre a cidade. 2. ed. Salvador:</p><p>EDUFBA: EDITUS, 2012. E-book. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/</p><p>ri/16838/1/dois-seculos-de-pensamento-sobre-a-cidade.pdf. Acesso em: 7 fev. 2020.</p><p>VASCONCELOS, P. A. Dois séculos de pensamento sobre a cidade. Ilhéus: Editus, 1999.</p><p>Leituras recomendadas</p><p>BONDUKI, R.; BONDUKI, N. Periferia da Grande Sã o Paulo. Reproduç ã o do espaç o como</p><p>expediente de reproduç ã o da forç a de trabalho. In: MARICATO, E. (org.). A produç ã o</p><p>capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. Sã o Paulo: Alfa-Omega, 1982.</p><p>CALDEIRA, T. P. R. Cidade de muros: crime, segregaç ã o e cidadania em Sã o Paulo. Sã o</p><p>Paulo: Editora 34: EDUSP, 2000.</p><p>HARVEY, D. On the history and present condition of geography: an historical materialist</p><p>manifesto. The Professional Geographer, v. 36, n. 1, 1984.</p><p>KOWARICK, L. Escritos urbanos. Sã o Paulo: Editora 34, 2000.</p><p>ROLNIK, R. A cidade e a lei. Sã o Paulo: Studio Nobel: FAPESP, 1997.</p><p>SANTOS, M. O trabalho do geó grafo no terceiro mundo. Sã o Paulo: Hucitec, 1978.</p><p>11A geografia urbana e o pensamento geográfico</p><p>Os links para sites da Web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun-</p><p>cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a</p><p>rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de</p><p>local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade</p><p>sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links.</p><p>A geografia urbana e o pensamento geográfico12</p><p>GEOGRAFIA</p><p>DA</p><p>POPULAÇÃO</p><p>Gabriela Rodrigues Gois</p><p>A população e sua</p><p>historicidade</p><p>Objetivos de aprendizagem</p><p>Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:</p><p> Descrever historicamente as fases do crescimento populacional.</p><p> Reconhecer as motivações para o aumento populacional na história.</p><p> Relacionar a geografia econômica e a geografia da população.</p><p>Introdução</p><p>Projeções da Organização das Nações Unidas (ONU) para o crescimento</p><p>populacional indicam um aumento significativo nos próximos 80 anos,</p><p>com estimativa média de 11 bilhões de habitantes em escala mundial. No</p><p>entanto, sabemos que o crescimento demográfico global não é contínuo</p><p>e apresenta oscilações ao longo do tempo, que ocorrem de acordo com</p><p>os aspectos ambientais socioeconômicos e culturais de distintas realidades</p><p>geográficas. Em uma perspectiva histórico-geográfica, algumas dessas</p><p>variações foram traduzidas, com fins analíticos, como fases do crescimento</p><p>populacional, nas quais são consideradas as condições sociais, produtivas,</p><p>políticas, econômicas e culturais dos distintos momentos históricos da</p><p>humanidade.</p><p>Neste capítulo, você aprofundará seus conhecimentos sobre as dife-</p><p>rentes fases e motivações para o crescimento populacional ao longo do</p><p>tempo, estabelecendo as relações teóricas e empíricas entre a geografia</p><p>populacional e geografia econômica.</p><p>1 Fases do crescimento populacional</p><p>A partir da segunda metade do século XX, a população mundial aumentou</p><p>exponencialmente, alcançando os atuais 7,7 bilhões de pessoas (Figura 1). No</p><p>entanto, esse cenário nem sempre foi assim, considerando que o crescimento</p><p>populacional passou, ao longo do tempo, por diferentes fases marcadas por</p><p>aspectos produtivos, sociais e econômicos ligados a saúde, alimentação, con-</p><p>dições sanitárias, entre outros fatores que afetam a qualidade e expectativa</p><p>de vida de uma população.</p><p>Figura 1. Trajetória de crescimento da população mundial.</p><p>Fonte: Instituto Humanitas Unisinos (2017, documento on-line).</p><p>Além disso, é importante considerar que as dinâmicas demográficas em</p><p>escala mundial são bastante diversificadas, variando de contexto nacional ou</p><p>regional. Isso significa, por exemplo, que as fases de crescimento demográ-</p><p>fico de países economicamente desenvolvidos não são idênticas às fases de</p><p>crescimento dos países de economias emergentes, isto é, latino-americanos,</p><p>africanos e alguns asiáticos.</p><p>Nesta seção do capítulo, examinaremos as fases do crescimento popu-</p><p>lacional em sua perspectiva histórica, estabelecendo uma distinção entre</p><p>os países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Para começar, no contexto</p><p>europeu, percebemos uma influência significativa da Revolução Indus-</p><p>trial, e consequentemente da urbanização, no processo de crescimento</p><p>populacional.</p><p>A população e sua historicidade2</p><p>As dinâmicas populacionais anteriores ao processo de industrialização na Europa eram</p><p>marcadas por alta taxa de natalidade (número de nascimentos em relação à população</p><p>total) — definida pela grande taxa de fecundidade (número de filhos que uma mulher</p><p>pode ter em sua vida reprodutiva) — e por alta taxa de mortalidade (número de óbitos</p><p>em relação à população total) — devido à pobreza extrema e precárias condições</p><p>sanitárias da época, que resultavam em baixa expectativa de vida. Por essa razão, o</p><p>crescimento populacional nas civilizações pré-industriais era baixo (DANTAS; MORAIS;</p><p>FERNANDES, 2011).</p><p>A primeira fase do crescimento populacional é marcada pela Revolução</p><p>Industrial na Europa, durante os séculos XVIII e XIX, o que contribuiu para</p><p>a intensificação da urbanização. O crescimento urbano é definido não ape-</p><p>nas pelo aumento de edificações nas cidades, mas pelo próprio crescimento</p><p>demográfico, que pode ocorrer pelo aumento da taxa de natalidade e pela</p><p>migração. O papel desempenhado pela industrialização neste sentido foi fun-</p><p>damental, visto que a produção industrial nos séculos XVIII e XIX costumava</p><p>utilizar todo o núcleo familiar como força de trabalho (DANTAS; MORAIS;</p><p>FERNANDES, 2011). Ou seja, mulheres e crianças (a partir de determinada</p><p>idade) também constituíam a mão-de-obra fabril. Esse foi um dos estímulos</p><p>para o</p><p>crescimento das famílias, considerando que mais crianças significavam</p><p>mais mão-de-obra, o que, por sua vez, significava mais ingresso de renda na</p><p>unidade familiar (DANTAS; MORAIS; FERNANDES, 2011).</p><p>Ainda entre os séculos XVIII e XIX, a industrialização também colaborou</p><p>com o fenômeno de êxodo rural, quando as populações campesinas se deslo-</p><p>caram para as cidades em busca de trabalho e melhor qualidade de vida. Esses</p><p>fatores, somados à redução nas taxas de mortalidade em função da melhoria</p><p>das condições sanitárias, provocaram um aumento exponencial dos índices</p><p>populacionais no contexto europeu.</p><p>Essa primeira fase nos contextos latino-americanos, africanos e asiáticos</p><p>primeiramente não corresponde ao mesmo período que na Europa, América</p><p>Anglo-saxônica e Oceania. A motivação para o crescimento demográfico</p><p>acelerado em países como Brasil, Índia, Colômbia e China foi, além da indus-</p><p>trialização e urbanização, o avanço da medicina a partir da segunda metade</p><p>do século XX, ampliando a expectativa de vida em países que já apresentavam</p><p>altos índices populacionais e elevada taxa de natalidade. Entre as décadas de</p><p>3A população e sua historicidade</p><p>1950 e 1990, a população em regiões como América Latina e Ásia ultrapas-</p><p>sou os índices da Europa quando o este continente se encontrava em fase de</p><p>expansão demográfica (DANTAS; MORAIS; FERNANDES, 2011).</p><p>A segunda fase do crescimento populacional na Europa também foi afetada</p><p>pela industrialização e urbanização, ao final do século XIX e início do século</p><p>XX. Entretanto, essa fase é marcada pela redução nas taxas de natalidade e</p><p>mortalidade, devido às transformações socioeconômicas e produtivas envol-</p><p>vidas na produção industrial. Um exemplo dessas transformações foram os</p><p>direitos trabalhistas — como a abolição do trabalho infantil e a redução das</p><p>excessivas horas de trabalho —, juntamente com inovações tecnológicas que</p><p>implicaram no desenvolvimento e adoção de equipamentos que substituíram</p><p>o trabalho humano em atividades exaustivas, elementos que contribuíram</p><p>para redução da mortalidade entre os trabalhadores operários, causando um</p><p>impacto no crescimento populacional da Europa de forma geral.</p><p>A abolição do trabalho infantil também afetou a dinâmica familiar, pois pro-</p><p>vocou uma redução no número de filhos, já que as crianças passaram de produ-</p><p>toras ativas de renda para meras consumidoras no seio das famílias(DANTAS;</p><p>MORAIS; FERNANDES, 2011). Além disso, a ampliação dos direitos civis</p><p>às mulheres, que se inseriram no mercado de trabalho e passaram a reivin-</p><p>dicar direitos do ponto de vista reprodutivo, afetou significativamente a taxa</p><p>de fecundidade e natalidade. De forma complementar, o desenvolvimento</p><p>urbano da época, associado a melhorias nas condições sanitárias, contribuiu</p><p>para uma melhor qualidade de vida da população, aumentando obviamente</p><p>a expectativa de vida.</p><p>A terceira fase do crescimento populacional no contexto europeu foi carac-</p><p>terizada por uma estabilização e posterior redução demográfica, em virtude</p><p>do declínio na taxa de fecundidade, redução da taxa de mortalidade e conse-</p><p>quente aumento na expectativa de vida da população (DANTAS; MORAIS;</p><p>FERNANDES, 2011).</p><p>A segunda e terceira fases do crescimento populacional em países subdesen-</p><p>volvidos, como Brasil, Índia e México, também foram marcadas pela redução</p><p>nas taxas de natalidade e mortalidade. Essas transformações na dinâmica</p><p>populacional ocorreram em virtude de fatores sociais, como o acesso aos</p><p>métodos contraceptivos e parciais conquistas de direitos reprodutivos pelas</p><p>mulheres; desenvolvimento urbano e melhoria nas condições sanitárias; acesso</p><p>à educação e saúde; e melhoria nas condições de moradia. Aspectos econômicos</p><p>também devem ser considerados, como o desenvolvimento socioeconômico</p><p>dos países, que resultou em melhoria na qualidade de vida das pessoas.</p><p>A população e sua historicidade4</p><p>No entanto, é importante levar em consideração que não estamos nos</p><p>referindo a realidades homogêneas, ainda que distintos países, ricos ou pobres,</p><p>compartilhem situações semelhantes em termos socioeconômicos. Em países</p><p>como Angola, Moçambique e Etiópia, por exemplo, as taxas de crescimento</p><p>populacional são elevadas, alcançando respectivamente 3,3%, 2,9% e 2,4%</p><p>para o ano de 2017 (THE WORLD BANK, 2019). É interessante notar que</p><p>essas taxas são típicas da primeira fase de crescimento populacional de países</p><p>como Brasil (2,3% em 1960), Colômbia (3% em 1963) e Chile (2,94% em 1963)</p><p>(THE WORLD BANK, 2019).</p><p>O acelerado crescimento populacional em países africanos pode estar</p><p>associado a questões socioprodutivas e culturais, como as estruturas agrárias</p><p>em que a mão-de-obra é essencialmente familiar e o casamento é uma forma</p><p>de ampliar o terreno cultivado; a valorização de famílias com muitos filhos;</p><p>a prática eventual da poligamia; e o escasso uso de métodos contraceptivos</p><p>por parte das mulheres.</p><p>Analisando o caso de Moçambique, Cardoso (2007) entende que existe uma</p><p>relação entre casamento precoce, nupcialidade e taxa de fecundidade que altera</p><p>toda a dinâmica populacional no país. A elevação da idade de casamento, por</p><p>exemplo, cada vez mais comum nos contextos urbanos, é considerada um dos</p><p>fatores que contribui para a redução das taxas de fecundidade. No entanto,</p><p>é interessante considerar que o continente africano é bastante diverso e sua</p><p>dinâmica populacional merece ser analisa com os devidos cuidados, conside-</p><p>rando suas especificidades histórico-geográficas, em constante diálogo com</p><p>as possíveis relações em escala global.</p><p>2 Motivações para o aumento populacional</p><p>na história</p><p>Na seção anterior, conhecemos as fases do crescimento populacional em uma</p><p>perspectiva histórica. Além disso, vimos brevemente que a industrialização,</p><p>urbanização, ampliação na produção de alimentos, melhorias nas condições</p><p>sanitárias e modernização da medicina foram essenciais para o aumento</p><p>populacional tanto em países subdesenvolvidos quanto desenvolvidos.</p><p>Por essa razão, aprofundaremos esses condicionantes sociais que impacta-</p><p>ram a dinâmica populacional em sua historicidade. Ao mesmo tempo, existem</p><p>diversos outros fatores que merecem ser estudados, como as especificidades</p><p>socioculturais e econômicas de realidades diversas, para que os aspectos de-</p><p>5A população e sua historicidade</p><p>mográficos sejam lidos com os devidos cuidados ao estabelecermos relações</p><p>causais. De forma complementar, reiteramos que o crescimento populacional</p><p>é interpretado e analisado por meio de elementos como a natalidade, fecundi-</p><p>dade, mortalidade e migração (DAMIANI, 1998). Dessa forma, estes estarão</p><p>diretamente relacionados com as motivações para o aumento populacional</p><p>abordadas neste capítulo.</p><p>Já nos familiarizamos com a noção de que a Revolução Industrial, que</p><p>teve início no século XVIII na Europa, transformou, em escala global, a</p><p>sociedade e sua dinâmica econômica, produtiva e até cultural. Em termos</p><p>demográficos, esse fenômeno social foi determinante tanto para o aumento e</p><p>posterior redução das taxas de natalidade quanto para o declínio na mortali-</p><p>dade. O trabalho infantil, comum na produção industrial nos séculos XVIII</p><p>e XIX, afetou a organização demográfica familiar, estimulando o aumento</p><p>no número de filhos nas unidades domésticas e consequentemente elevando a</p><p>taxa de natalidade em diversas regiões da Europa, sobretudo no Reino Unido</p><p>(DANTAS; MORAIS; FERNANDES, 2011).</p><p>Por sua vez, a industrialização levou a um aumento na oferta de alimentos</p><p>impulsionado pela modernização da agricultura, por meio da qual foram</p><p>introduzidos novos insumos agrícolas, assim como tecnologias logísticas</p><p>e produtivas que permitiram uma ampliação na oferta de produtos de pri-</p><p>meira necessidade, reduzindo, dessa forma, a mortalidade entre a população</p><p>(DAMIANI, 1998). Nesse contexto, a industrialização, em associação com a</p><p>modernização agrícola, também foi responsável pela intensificação da urba-</p><p>nização, como condição e resultado da migração no sentido campo–cidade,</p><p>que caracteriza o</p><p>fenômeno do êxodo rural. Ou seja, populações campesinas,</p><p>em algumas situações expropriadas de suas terras e com o objetivo de buscar</p><p>trabalho e melhor qualidade de vida, deslocaram-se para as cidades, infla-</p><p>cionando a população urbana.</p><p>Segundo outras considerações teóricas a respeito da dinâmica populacional,</p><p>a industrialização, assim como a urbanização, apesar de em um primeiro</p><p>momento ter estimulado o aumento populacional, de forma geral provocou</p><p>a redução da fecundidade (DAMIANI, 1998). Isso ocorreu devido à ampla</p><p>difusão e incorporação da lógica da racionalidade e individualidade, caracte-</p><p>rísticas do estilo de vida urbano-industrial nas sociedades ocidentais modernas,</p><p>resultando na primazia da família nuclear com poucos filhos, em detrimento</p><p>da família ampla (DAMIANI, 1998). Isso significa que, em virtude dos custos</p><p>envolvidos na criação e formação dos filhos, a taxa de fecundidade despencou</p><p>A população e sua historicidade6</p><p>entre as famílias europeias, que passaram a ser cada vez menores, almejando</p><p>com isso um melhor desenvolvimento econômico familiar. Esse período de</p><p>baixo crescimento populacional se insere na segunda fase do contexto europeu,</p><p>descrita na seção anterior.</p><p>Além das questões socioeconômicas, o avanço da medicina no tratamento,</p><p>controle e prevenção de doenças, assim como melhorias nas condições sani-</p><p>tárias, em nível individual e coletivo, foram fatores determinantes na redução</p><p>da mortalidade durante o século XIX e início do século XX, resultando em</p><p>forte aumento populacional.</p><p>Os progressos da medicina datam de meados do século XIX em diante, com</p><p>a introdução da noção de assepsia e a descoberta de anestésicos. No final do</p><p>século XIX, destacam-se os bactericidas e a imunologia, citando-se, entre</p><p>outros, os trabalhos de Pasteur. A pesquisa em quimioterapia, iniciada na</p><p>década de 1930, avança até nossos dias (DAMIANI, 1998, p. 32).</p><p>No entanto, consideramos importante entender que esses fatores não operam</p><p>de forma isolada na dinâmica populacional. Alguns autores mencionados por</p><p>Damiani (1998) entendem que aspectos sociais, como os direitos trabalhistas</p><p>durante o período da industrialização, foram fundamentais na redução das</p><p>taxas de mortalidade da população europeia:</p><p>[...] a mortalidade teria sofrido um descenso antes da socialização das grandes</p><p>conquistas médicas (vacinas, assepsia hospitalar, anestesia, descoberta de</p><p>grande número de vírus e bacilos, ou dos antibióticos às vésperas da Segunda</p><p>Guerra Mundial). [...] a redução da jornada de trabalho, a instituição das férias</p><p>e do seguro social para os trabalhadores e a revolução tecnológica nas formas</p><p>de produção, com as máquinas e equipamentos substituindo os homens em</p><p>certas atividades exaustivas, seriam as responsáveis iniciais pela redução da</p><p>mortalidade nos países desenvolvidos (DAMIANI, 1998, p. 32).</p><p>Isso também significa que as taxas de mortalidade, natalidade, fecundidade e</p><p>migração, em uma perspectiva histórica e contemporânea, são indicadores sensíveis</p><p>às condições sociais de uma população (DAMIANI, 1998). Ou seja, os elementos</p><p>da dinâmica populacional se relacionam diretamente com o desenvolvimento</p><p>socioeconômico de um país ou região. Por essa razão, devem ser mutuamente arti-</p><p>culados nos processos de análises, sempre considerando as condições de educação,</p><p>moradia, renda, desenvolvimento social e humano de uma realidade geográfica.</p><p>7A população e sua historicidade</p><p>3 Relação entre geografia populacional</p><p>e geografia econômica</p><p>Considerando as discussões das seções anteriores, em que as dinâmicas po-</p><p>pulacionais estão sempre relacionadas aos aspectos econômicos, produtivos</p><p>e políticos da sociedade, fi ca explícito que não podemos trabalhar o tema da</p><p>geografi a populacional de forma dissociada das questões econômicas. O objetivo</p><p>desta disciplina é analisar a dinâmica populacional em uma perspectiva espacial,</p><p>considerando fatores múltiplos, como a própria sociedade, técnica, tecnologia,</p><p>trabalho, sistema de produção, natureza, entre outros elementos socioespaciais.</p><p>Nesse sentido, a geografi a econômica desempenha um papel importante, na</p><p>medida em que busca compreender de que forma as relações econômicas — entre</p><p>fatores de produção (espaço, trabalho e capital) e agentes econômicos (produtores</p><p>e consumidores) — em diferentes escalas se materializam e se movem pelo</p><p>espaço, produzindo-o e transformando-o (CLAVAL, 2012).</p><p>A geografia, como sabemos, passou por distintas fases em sua base epis-</p><p>temológica, incorporando diferentes perspectivas teóricas, como a regional,</p><p>quantitativa, crítica e pós-moderna. Consequentemente, os estudos geográ-</p><p>ficos focados em problemáticas econômicas acompanharam a trajetória da</p><p>disciplina. Na segunda metade do século XIX, geografia econômica clássica</p><p>utilizava o método descritivo para retratar as áreas e fluxos de produção</p><p>(CLAVAL, 2012) e, do ponto de vista demográfico, preocupou-se em realizar</p><p>esboços quantitativos da distribuição da população sobre o espaço: “É comum</p><p>a utilização da representação cartográfica dessa repartição, dos mapas — por</p><p>pontos e signos volumétricos proporcionais —, e do cálculo das densidades de</p><p>população por quilômetro quadrado, em unidades de superfície de diferentes</p><p>tamanhos” (DAMIANI, 1998, p. 49).</p><p>Nesse sentido, os estudos populacionais em geografia apresentavam pouco</p><p>caráter analítico, da mesma forma que não consideravam a dimensão humana</p><p>e histórica do processo de distribuição populacional. Sendo assim, não expli-</p><p>cavam a diversidade socioprodutiva do espaço (por exemplo, a diversidade</p><p>cultural de uma população e o potencial econômico de um lugar) e sua relação</p><p>com as dinâmicas de concentração e dispersão populacional.</p><p>O paradigma clássico da geografia econômica também enfocou as potencia-</p><p>lidades econômicas dos recursos naturais e, partir disso, suas transformações</p><p>e uso pelas atividades humanas (CARVALHO; FILHO, 2017). Em sua relação</p><p>com a geografia populacional, passou a avaliar em que medida esse potencial</p><p>econômico poderia influenciar o nível de densidade de ocupação populacional</p><p>em determinada área. No entanto, a disciplina não considerava inúmeras</p><p>A população e sua historicidade8</p><p>variáveis — sobretudo as históricas, técnicas, sociais e produtivas — que</p><p>poderiam afetar as formas de ocupação e uso do solo, como as próprias técnicas</p><p>empregadas pelas pessoas para explorar o potencial produtivo e econômico</p><p>de um lugar (DAMIANI, 1998).</p><p>Posteriormente, orientada pelo paradigma da economia espacial, a ge-</p><p>ografia econômica se debruçou sobre o tema da localização das atividades</p><p>econômicas, especialmente as industriais, considerando o impacto destas</p><p>sobre o espaço em que vivemos (CLAVAL, 2005; 2012; CARVALHO; FILHO,</p><p>2017). Segundo Damiani (1998, p. 50), na antiga União Soviética da primeira</p><p>e segunda metade do século XX:</p><p>[...] a geografia da população é considerada como um ramo da geografia eco-</p><p>nômica, no estudo da interligação dos processos econômicos e demográficos.</p><p>O estudo da implantação das empresas e das unidades territoriais de produção</p><p>criadas liga-se estreitamente à análise da repartição dos habitantes no território</p><p>nacional, da composição e do dinamismo desses grupos.</p><p>No entanto, foi em sua vertente mais crítica que a geografia econômica</p><p>passou a dialogar com os estudos populacionais em uma perspectiva não</p><p>apenas quantitativa, mas também qualitativa, considerando aspectos históricos,</p><p>culturais, sociais e políticos.</p><p>Nessa fase, as pesquisas trataram da localização de atividades agrícolas e</p><p>industriais. Surgiu a divisão dos espaços urbanos, para funções produtivas</p><p>e funções residenciais. Essa nova perspectiva originou o desenvolvimento</p><p>de uma teoria das migrações humanas e contribuiu para a compreensão de</p><p>situações onde se buscava rendas mais altas e também atividades de lazer. A</p><p>geografia econômica passou a tratar de escolhas residenciais, de segregações</p><p>urbanas e do turismo (CARVALHO; FILHO, 2017, documento on-line).</p><p>Tal disciplina evidentemente não</p><p>se isolou das transformações sociais</p><p>ocorridas no mundo na segunda metade do século XX — crise econômica,</p><p>aumento populacional, urbanização, globalização — e tampouco deixou de</p><p>acompanhar as marés teóricas das ciências sociais e humanidades para dar</p><p>conta das novas problemáticas emergentes. Portanto, passou a incorporar</p><p>abordagens críticas diversas — economicista, marxista, alternativas (CLA-</p><p>VAL, 2005) — para interpretar um novo momento marcado pela mediação</p><p>tecnológica e informacional das relações econômicas e espaciais.Com isso,</p><p>as discussões sobre mobilidade — de informação, mercadorias, tecnologias,</p><p>pessoas — ganham força.</p><p>9A população e sua historicidade</p><p>O pensamento geográfico orientado pelo marxismo, por exemplo, parte da</p><p>premissa de que as relações econômicas e de produção incidem profundamente</p><p>no espaço. De acordo com autores como David Harvey (1980) e Neil Smith</p><p>(1988), o espaço geográfico é gerado a partir da produção de mercadorias e das</p><p>relações socioprodutivas dentro do sistema capitalista que produz e reproduz</p><p>desigualdades sociais, econômicas e espaciais.</p><p>Em uma perspectiva demográfica, sabemos que a população se configura</p><p>também como força de trabalho, produtora e consumidora de bens e serviços,</p><p>contribuindo para a reprodução do sistema de produção capitalista e sua lógica</p><p>espacial, ao mesmo tempo em que é atingida por essa estrutura. Fenômenos como</p><p>a migração, por exemplo, podem ser motivados por questões econômicas, como</p><p>crise de desemprego e declínio de um estado de bem-estar social. A mortalidade,</p><p>por sua vez, encontra-se diretamente relacionada às condições socioeconômicas</p><p>da população, tanto que autores como Damiani (1998) preferem tratá-la de</p><p>forma diferencial, visto que atinge predominantemente a população mais pobre.</p><p>Além disso, a geografia é capaz de explicar — tanto de uma perspectiva</p><p>econômica quanto espacial — fenômenos como o êxodo rural e a urbanização.</p><p>Esses são fenômenos complexos impulsionados pelo processo de modernização</p><p>da agricultura, caracterizada pela transformação fundiária e da base técnica</p><p>da produção agrícola, e também pela industrialização, que, como vimos, con-</p><p>tribuiu para o crescimento populacional nas cidades, por meio da natalidade</p><p>e migração. Essa realidade, embora tenha afetado diversos países, é a marca</p><p>das realidades condicionadas pelo que entendemos por subdesenvolvimento:</p><p>Se no discurso sobre o subdesenvolvimento a migração era um elemento</p><p>secundário de análise, e era ressaltado o crescimento vegetativo, natural,</p><p>segundo a literatura em ciências sociais, especialmente a partir dos anos</p><p>60, houve uma inversão: o crescimento natural aparece como subordinado</p><p>à análise da migração. Neste momento, a migração rural-urbana definia-se</p><p>como fundamental (DAMIANI, 1998, p. 41).</p><p>Em suma, entendemos que a relação empírica entre as dinâmicas popula-</p><p>cionais e econômicas é notória e necessita ser trabalhada interdisciplinarmente</p><p>e com a devida seriedade. De modo similar, a trajetória de construção do</p><p>conhecimento na geografia demonstra que os fenômenos espaciais estão</p><p>interrelacionados e que nenhuma disciplina geográfica deve ser desenvolvida</p><p>e abordada de forma isolada.</p><p>Neste capítulo, vimos as diferentes fases e motivações para o crescimento</p><p>populacional ao longo do tempo, considerando as diferenciações geográficas</p><p>entre países e regiões globais. Historicamente, todas as fases de aceleração e</p><p>A população e sua historicidade10</p><p>redução do crescimento populacional foram afetadas por questões sociais e</p><p>econômicas, como a Revolução Industrial nos séculos XVIII e XIX, avanços</p><p>na medicina e melhorias nas condições sanitárias no século XX e avanços no</p><p>desenvolvimento socioeconômico em nível mundial.</p><p>Nesse sentido, percebemos que essa relação direta entre aspectos socioeco-</p><p>nômicos e dinâmica populacional tem sido abordada pela geografia econômica,</p><p>a partir de enfoques regionais, quantitativos e críticos, desde o século XIX,</p><p>época da sistematização e consolidação da geografia enquanto ciência. Essa</p><p>trajetória epistemológica também é marcada pela fundação da disciplina de</p><p>geografia populacional na metade do século XX, que tem incorporado novos</p><p>enfoques teóricos (como os estudos críticos e culturais), a fim de dar conta</p><p>do caráter multidimensional das dinâmicas populacionais.</p><p>Você pode aprender mais sobre a relação entre estudos populacionais e econômicos</p><p>com o professor Larry Harris e sua pesquisa sobre mudanças demográficas e aposen-</p><p>tadorias. Para isso, leia a entrevista que ela concedeu ao Nexo Jornal em janeiro de</p><p>2017, buscando pelo título da matéria: “Como mudanças demográficas impactam a</p><p>taxa de juros e as aposentadorias”.</p><p>CARDOSO, S. Demografia africana: o caso da fecundidade em Moçambique. Análise</p><p>Social, v. 42, nº. 183, p. 485–514, abr. 2007. Disponível em: https://www.researchgate.</p><p>net/publication/262700265_Demografia_africana_O_caso_da_fecundidade_em_Mo-</p><p>cambique/fulltext/559cc8aa08ae898ed6520828/Demografia-africana-O-caso-da-</p><p>-fecundidade-em-Mocambique.pdf. Acesso em: 19 mar. 2020.</p><p>CARVALHO, D. dos R. P.; FILHO, F. de A. V. Geografia econômica: origem, perspectivas</p><p>e temas relevantes. Caderno de Geografia, v. 27, nº. 50, p. 573–588, jul./set. 2017. Dis-</p><p>ponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/geografia/article/view/p.2318-</p><p>2962.2017v27n50p573/11911. Acesso em: 19 mar. 2020.</p><p>CLAVAL, P. A diversidade das geografias econômicas. Geographia, v. 14, nº. 27, p.7–</p><p>20, 2012. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/geotextos/article/</p><p>view/3028/2132. Acesso em: 19 mar. 2020.</p><p>11A população e sua historicidade</p><p>Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun-</p><p>cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a</p><p>rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de</p><p>local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade</p><p>sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links.</p><p>CLAVAL, P. Geografia econômica e economia. Geotextos, v. 1, nº.1, p. 11–27, 2005. Dis-</p><p>ponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/geotextos/article/view/3028/2132.</p><p>Acesso em: 19 mar. 2020.</p><p>DAMIANI, A. População e geografia. São Paulo: Contexto, 1998.</p><p>DANTAS, E. M.; MORAIS, I. R. D.; FERNANDES, M. J. da C. Geografia da população. 2. ed.</p><p>Natal: EDUFRN, 2011.</p><p>HARVEY, D. A justiça social e a cidade. São Paulo: Hucitec Editora, 1980.</p><p>INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. O impressionante crescimento da população humana</p><p>através da história. 2017. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/566517-</p><p>-o-impressionante-crescimento-da-populacao-humana-atraves-da-historia. Acesso</p><p>em: 19 mar. 2020.</p><p>SMITH, N. Desenvolvimento desigual: natureza, capital e a produção de espaço. Rio de</p><p>Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.</p><p>THE WORLD BANK. Population growth (annual %). 2019. Disponível em: https://data.</p><p>worldbank.org/indicator/sp.pop.grow. Acesso em: 19 mar. 2020.</p><p>A população e sua historicidade12</p><p>GEOGRAFIA DA</p><p>POPULAÇÃO</p><p>Aline Carneiro Silverol</p><p>Expectativa e qualidade</p><p>de vida (IDH)</p><p>Objetivos de aprendizagem</p><p>Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:</p><p> Analisar as taxas de natalidade e mortalidade nas diferentes regiões</p><p>do mundo.</p><p> Explicar a estruturação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)</p><p>e seus objetivos.</p><p> Comparar o IDH nas diferentes regiões do planeta.</p><p>Introdução</p><p>O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é um indicador usado para</p><p>avaliar o grau de desenvolvimento de uma determinada sociedade,</p><p>utilizando como parâmetros os dados relacionados a educação, saúde e</p><p>renda de um país. O índice é um indicador de grande importância, pois</p><p>torna possível mensurar e comparar, ao longo do tempo, a evolução dos</p><p>países no sentido de melhorar a qualidade de vida das pessoas e o acesso</p><p>às oportunidades para todos de forma mais igualitária.</p><p>Neste capítulo, você vai aprender sobre alguns indicadores utilizados</p><p>tanto</p><p>pela geografia da população quanto pela demografia, com o objetivo</p><p>de analisar e descrever as características de um grupo de indivíduos em rela-</p><p>ção ao seu crescimento, estrutura, distribuição e mobilidade espacial. Como</p><p>você vai perceber, esses dados são de grande importância para a compre-</p><p>ensão e a implementação de ações governamentais para a população.</p><p>1 A natalidade e a mortalidade no mundo</p><p>Nosso planeta possui uma dinâmica de crescimento populacional que oscila</p><p>ao longo da história, mas se mantém em uma tendência crescente e contí-</p><p>nua. Em 2019, a população mundial era de aproximadamente 7,7 bilhões</p><p>de pessoas. Você já imaginou se todos os países do mundo apresentassem</p><p>as mesmas taxas de crescimento populacional, como o nosso planeta su-</p><p>portaria? Para compreender um pouco melhor o incremento populacional,</p><p>observe a Figura 1.</p><p>Figura 1. Evolução da população mundial.</p><p>Fonte: Adaptada de United Nations (2019, documento on-line).</p><p>Se fizermos uma retrospectiva histórica utilizando como base os dados</p><p>do ano de 1500, em que a população era de aproximadamente 425 milhões</p><p>de pessoas, perceberemos que o crescimento populacional sofreu um grande</p><p>incremento nos últimos 300 anos. A partir de 1800, a população passou de</p><p>900 milhões para 1,6 bilhão de pessoas em 100 anos. Entretanto, esse cres-</p><p>cimento não foi uniforme em todas as regiões do planeta, o que se reflete na</p><p>espacialização da população sobre a superfície terrestre.</p><p>O crescimento populacional, de forma geral, é avaliado a partir das taxas</p><p>de natalidade e de mortalidade, ou seja, a diferença entre o número de nas-</p><p>cimentos e o número de mortes, e também pelas taxas de migração. Esses</p><p>indicadores são muito importantes para a entender a dinâmica populacional,</p><p>ou seja, o quanto a população cresceu, diminuiu ou se estabilizou e quais são</p><p>os fatores envolvidos nessas oscilações.</p><p>Por isso, as taxas de natalidade e as taxas de mortalidade representam</p><p>parâmetros numéricos para avaliar o crescimento da população no decorrer</p><p>do tempo, bem como os padrões de crescimento e análises como longevidade</p><p>da população, da população economicamente ativa, entre outras avaliações.</p><p>Expectativa e qualidade de vida (IDH)2</p><p>Taxa de natalidade</p><p>Um dos primeiros elementos que devem ser avaliados nos estudos rela-</p><p>cionados ao crescimento populacional é a taxa de natalidade. Esse índice</p><p>refere-se ao número de crianças que nascem anualmente em determinada</p><p>região para cada grupo de mil indivíduos presentes nessa porção do espaço</p><p>geográfi co.</p><p>A taxa de natalidade pode ser obtida pela equação matemática:</p><p>onde n é o número de crianças nascidas em um ano e p é o número total da</p><p>população.</p><p>Suponhamos que uma cidade hipotética apresenta uma população total de 20 milhões</p><p>de habitantes e que nasceram em um ano aproximadamente 600 mil pessoas. Então:</p><p> Taxa de natalidade = n/p × 1.000</p><p> Taxa de natalidade = 600.000 × 1.000/20.000.000</p><p> Taxa de natalidade = 30‰</p><p>A taxa de natalidade da cidade hipotética é de 30‰ (30 por mil), ou seja, para cada</p><p>grupo de mil habitantes nasceram 30 crianças vivas em um ano.</p><p>É importante salientar que a taxa de natalidade expressa um número</p><p>relativo, pois o tamanho absoluto da população, ou seja, o número total de</p><p>habitantes, e o tamanho do território são elementos cruciais para compreen-</p><p>der a dinâmica populacional. Se considerarmos, por exemplo, uma criança</p><p>nascida viva no Brasil por ano, isso representaria uma taxa muito reduzida</p><p>em decorrência da proporção entre número de nascidos (um) e o tamanho</p><p>do território. Porém, quando reduzimos a escala de análise e consideramos</p><p>a mesma criança nascida viva, mas dessa vez tomando como referência</p><p>3Expectativa e qualidade de vida (IDH)</p><p>territorial apenas a residência em que nasceu, ela representa uma taxa muito</p><p>alta, devido à dimensão do espaço geográfico e à concentração de pessoas</p><p>na residência.</p><p>Diversos fatores podem influenciar a taxa de fecundidade da mulher e</p><p>do homem, dentre eles os aspectos socioculturais e econômicos. Os aspectos</p><p>socioculturais envolvem os costumes e os valores de uma sociedade, além</p><p>dos religiosos. Existem culturas e religiões que não permitem o uso de con-</p><p>traceptivos, ou ainda que incentivam o casamento juvenil e a manutenção da</p><p>mulher em tarefas domésticas e familiares, o que aumenta a probabilidade de</p><p>altas taxas de natalidade em alguns países.</p><p>Procure no YouTube pelo vídeo “As crianças são flores que nunca murcham: a história</p><p>do casamento prematuro da Mariamo”, produzido pela Unicef Moçambique. Nele</p><p>você poderá entender um pouco mais sobre a cultura dos casamentos prematuros,</p><p>que promove a inserção da mulher de forma precoce na vida sexual, aumentando as</p><p>taxas de natalidade desses países.</p><p>Além disso, há também certos aspectos econômicos e políticos que con-</p><p>tribuem em muito para a manutenção de altas taxas de natalidade, como um</p><p>sistema de saúde precário, que não oferece orientações acerca do planeja-</p><p>mento familiar e medicamentos contraceptivos, um baixo nível educacional,</p><p>que limita a capacidade de reflexão e interpretação da própria realidade,</p><p>entre outros.</p><p>Por outro lado, existem países que apresentam baixas taxas de natalidade,</p><p>o que pode ser atribuído à existência de bons sistemas de saúde e planejamento</p><p>familiar, maior inserção da mulher no mercado de trabalho, um nível educa-</p><p>cional mais elevado e também o envelhecimento da população. Observe no</p><p>Quadro 1 as taxas de natalidade de alguns países do mundo.</p><p>Expectativa e qualidade de vida (IDH)4</p><p>Fonte: Adaptado de Index Mundi (2019, documento on-line).</p><p>País</p><p>Taxa de natalidade (nascimentos/1.000</p><p>habitantes — 2018)</p><p>Angola (maior taxa) 44</p><p>Somália 39</p><p>Afeganistão 38</p><p>Egit 29</p><p>Bolívi 22</p><p>Índia 19</p><p>Brasil 14</p><p>Irlanda 14</p><p>França 12</p><p>Canadá 10</p><p>Japão 8</p><p>Mônaco (menor taxa) 7</p><p>Quadro 1. Taxas de natalidade de alguns países do mundo</p><p>Conforme os dados apresentados no quadro, os países em desenvolvimento</p><p>ou subdesenvolvidos apresentam maiores taxas de natalidade em função</p><p>de fatores como a saúde, que envolve o planejamento familiar, as tradições</p><p>culturais e religiosas e o próprio contexto econômico.</p><p>Nos países desenvolvidos e em alguns países em desenvolvimento,</p><p>a taxa de natalidade tende a ser mais baixa em decorrência do acesso à</p><p>saúde, a métodos contraceptivos e a planejamento familiar, além do avanço</p><p>econômico, que repercutiu no aumento da inserção da mulher no mercado</p><p>de trabalho.</p><p>5Expectativa e qualidade de vida (IDH)</p><p>Taxa de mortalidade</p><p>Outro elemento importante para os estudos demográfi cos é a taxa de morta-</p><p>lidade, que consiste no número de óbitos ou mortes registrados ofi cialmente.</p><p>A taxa de mortalidade é calculada a cada grupo de mil indivíduos em uma</p><p>determinada região, obedecendo à expressão matemática:</p><p>onde m é o número de óbitos em um ano e p é o número total da população.</p><p>Uma cidade hipotética apresenta uma população total de 20 milhões de habitantes;</p><p>nela morreram, em um ano, aproximadamente 300 mil pessoas. Então:</p><p> Taxa de mortalidade = m/p × 1.000</p><p> Taxa de mortalidade = 300.000 × 1.000/20.000.000</p><p> Taxa de mortalidade = 15‰</p><p>A taxa de natalidade da cidade hipotética é de 15‰ (15 por mil), ou seja, para cada</p><p>grupo de mil habitantes morreram, em um ano, 15 indivíduos.</p><p>A taxa de mortalidade, de maneira geral, é considerada um indicador social,</p><p>pois está relacionada com as condições de vida da população de um território.</p><p>Ou seja, a faixa etária predominante dos óbitos indica a média de idade que a</p><p>população vem a falecer, e essa informação está associada a outras variáveis</p><p>que contribuem para esses índices.</p><p>Em países desenvolvidos, as taxas de mortalidade tendem a ser mais baixas</p><p>em função das condições de vida, pois suas populações têm acesso a saúde,</p><p>educação, boas condições de moradia e de alimentação, entre outros. Já nos</p><p>países subdesenvolvidos, as taxas tendem a ser mais elevadas em virtude do</p><p>sistema de saúde e educacional precários, das condições mais degradantes de</p><p>trabalho, especialmente</p><p>nos países de base primária. Nesse contexto, a taxa</p><p>de mortalidade também constitui um importante indicador da expectativa de</p><p>vida de uma população (Figura 2).</p><p>Expectativa e qualidade de vida (IDH)6</p><p>Figura 2. O trabalho infantil e a falta de acesso a saúde, alimentação</p><p>adequada e educação de qualidade diminuem as oportunidades e a</p><p>expectativa de vida de habitantes de regiões subdesenvolvidas.</p><p>Fonte: Tinnakorn jorruang/Shutterstock.com.</p><p>Crescimento vegetativo</p><p>A relação entre a taxa de natalidade e a taxa de mortalidade representa o</p><p>crescimento vegetativo. Assim, a diferença entre o número de nascimentos</p><p>e o número de mortes demonstra a dinâmica populacional de determinado</p><p>território. O crescimento vegetativo é expresso para cada grupo de cem pes-</p><p>soas em uma dada porção do espaço geográfi co, e pode ser representado pela</p><p>equação abaixo:</p><p>onde TN é a taxa de natalidade e a TM é a taxa de mortalidade.</p><p>O crescimento vegetativo pode ser positivo, negativo ou nulo. O cres-</p><p>cimento positivo ocorre quando o número de nascimentos é superior ao</p><p>número de óbitos. Já o crescimento negativo ocorre quando o número de</p><p>óbitos é superior ao número de nascimentos. E o crescimento nulo ocorre</p><p>quando o número de nascimentos é igual ao número de mortes. Além disso,</p><p>o crescimento vegetativo é maior quanto menor for o IDH. No Brasil, por</p><p>7Expectativa e qualidade de vida (IDH)</p><p>exemplo, o crescimento vegetativo é 1,2, com um IDH de 0,79, enquanto na</p><p>Holanda o crescimento vegetativo é de 0,2, com um IDH de 0,933.</p><p>Para que o crescimento vegetativo seja considerado positivo, a taxa de fecundidade</p><p>deve ser superior a dois filhos por mulher. Ou seja, quando um casal gera dois filhos,</p><p>ele apenas repõe o mesmo número de indivíduos. Dessa forma, para que ocorra</p><p>um crescimento natural positivo, é necessário que este número seja superior a dois</p><p>indivíduos.</p><p>Assim, a dinâmica populacional pode compreendida pelas taxas de natali-</p><p>dade e de mortalidade. Entretanto, há também outros indicadores que, aliados</p><p>a esses, podem oferecer análises mais amplas sobre as condições de vida e o</p><p>atendimento de questões básicas que podem refletir na melhor qualidade de</p><p>vida das pessoas. Um desses indicadores é o IDH.</p><p>2 Estruturação do IDH e seus objetivos</p><p>O desenvolvimento humano representa um processo que possibilita a ampliação</p><p>da liberdade das pessoas com relação às suas capacidades e às oportunidades</p><p>que lhes são disponibilizadas, para que possam escolher a maneira como</p><p>almejam e preferem viver. Ou seja, a partir do momento em que todas as</p><p>condições necessárias ao desenvolvimento das pessoas são oferecidas, todos</p><p>têm a mesma chance de ampliar suas capacidades e habilidades.</p><p>A ampliação da liberdade, que permite a escolha do modo de vida, está</p><p>associada às dinâmicas sociais, econômicas, políticas e ambientais que devem</p><p>ser asseguradas para garantir que as oportunidades possam ser criadas, levando</p><p>os indivíduos a encontrar o ambiente propício para que exerçam, cada qual a</p><p>seu modo, seu potencial de forma plena.</p><p>Dessa forma, o desenvolvimento humano deve ser centrado nas pessoas e</p><p>no seu bem-estar, que não está relacionado somente à acumulação de capital,</p><p>mas também à maior quantidade de oportunidades para escolher seu modo de</p><p>Expectativa e qualidade de vida (IDH)8</p><p>vida. Nesse sentido, o capital é o meio para que os indivíduos possam viver</p><p>a vida que almejam, e essas oportunidades só chegam mediante algumas</p><p>mudanças na sociedade.</p><p>É importante salientar que o crescimento econômico de uma sociedade</p><p>refere-se a elementos quantitativos, ou seja, à elevação da produção de riquezas</p><p>de uma região, medida pelo Produto Interno Bruto (PIB). O PIB é calculado</p><p>pela soma de todos os produtos e serviços finais de uma região para um deter-</p><p>minado período. Por sua vez, o desenvolvimento econômico está relacionado</p><p>à melhoria do bem-estar da população, mediante indicadores como educação,</p><p>saúde, distribuição de renda, níveis de pobreza, entre outros.</p><p>Entretanto, o crescimento econômico de uma sociedade não se reflete</p><p>necessariamente em qualidade de vida para todos e, certas vezes, pode reforçar</p><p>as desigualdades. Assim, é necessário que o crescimento econômico também</p><p>se materialize em melhores condições de vida para as pessoas em geral, pro-</p><p>movendo melhorias de saúde e educação, a ampliação da participação política</p><p>dos cidadãos, a preservação ambiental, o equilíbrio das oportunidades e de</p><p>renda, maior liberdade de expressão, etc.</p><p>Dessa forma, quando estipulamos os indivíduos como o centro da análise do</p><p>bem-estar e da qualidade de vida, a abordagem do desenvolvimento humano é</p><p>redefinida em todas as escalas, locais, nacionais e globais. Assim, quando a ca-</p><p>pacidade individual e coletiva é restringida, as oportunidades são menores para</p><p>quem sofreu essa restrição. Isso ocorre porque o desempenho dos indivíduos</p><p>ao longo da vida está associado aos parâmetros de saúde, educação e renda;</p><p>quanto mais restritos esses parâmetros, menos oportunidade de progressão</p><p>em todos os setores da vida, tanto de forma individual quanto coletiva.</p><p>Quando um indivíduo tem acesso limitado a uma educação de qualidade, ele deixa</p><p>de aprender a ler e escrever com qualidade e, assim, pouco participa dos processos</p><p>decisórios por falta de entendimento, levando-o a reivindicar menos os seus direitos.</p><p>Além disso, não conhece a sua total realidade e encontra poucas oportunidades</p><p>de trabalho. Em função da pouca oferta de oportunidades básicas, suas escolhas</p><p>são limitadas e, consequentemente, suas capacidades não podem ser exercidas na</p><p>plenitude. De modo similar, quando um indivíduo não possui acesso a um sistema</p><p>de saúde adequado, as consequências podem atravancar sua capacidade produtiva</p><p>e limitar seus anos de vida e as suas oportunidades.</p><p>9Expectativa e qualidade de vida (IDH)</p><p>Considerando a importância de analisar o indivíduo de forma integrada para</p><p>compreender os elementos que interferem nas oportunidades e na qualidade</p><p>de vida como um todo, foi necessária a criação de uma medida para o conceito</p><p>de desenvolvimento humano, e dessa iniciativa nasceu o IDH.</p><p>O conceito de desenvolvimento humano e sua materialização em forma</p><p>de dados inclusos no IDH foram apresentados pela primeira vez em 1990, no</p><p>primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações</p><p>Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O objetivo da criação desse índice</p><p>foi oferecer um contraponto a outro indicador muito utilizado, o PIB per</p><p>capita, que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento.</p><p>Desde o ano de 1993, o IDH passou a ser utilizado pelo PNUD com o objetivo</p><p>de comparar e classificar os territórios nacionais em países desenvolvidos, em</p><p>desenvolvimento e subdesenvolvidos.</p><p>O IDH é calculado por meio de três variáveis: saúde, educação e o PIB per</p><p>capita de cada país, cujos dados são recolhidos anualmente em cada nação.</p><p>Portanto, o IDH reúne três dos elementos mais importantes e que interferem na</p><p>qualidade de vida e nas condições necessárias para a expansão das liberdades:</p><p>a oportunidade de se levar uma vida longa e saudável, relacionada a saúde; a</p><p>oportunidade de ter acesso ao conhecimento, ou seja, educação; e, por fim, a</p><p>oportunidade de usufruir de um padrão de vida digno, ou seja, a oportunidade</p><p>de geração de renda que permita atingir este objetivo.</p><p>As três dimensões do IDH</p><p>O IDH é composto, portanto, por três indicadores, que asseguram aos indivíduos as</p><p>diversas oportunidades que contribuem para o pleno desenvolvimento humano: a</p><p>chance de uma vida mais longa e com saúde, a garantia de acesso ao conheci-</p><p>mento e a geração de recursos que possam garantir um padrão de vida digno.</p><p>A dimensão da saúde refere-se à expectativa de vida de uma população.</p><p>Ou seja, após seu nascimento, quanto tempo de vida, em média, um novo</p><p>cidadão terá pela frente. Uma vida longa está associada às oportunidades</p><p>que os indivíduos possuem de evitar a morte prematura, além da garantia</p><p>de um ambiente saudável e acesso a</p><p>saúde de qualidade. Esses elementos</p><p>promovem o aumento do padrão de vida, promovendo mais saúde física e</p><p>mental e estendendo a expectativa de vida.</p><p>A dimensão da educação representa a combinação de duas variáveis: a</p><p>média de anos de estudo da população com 25 anos ou mais e os anos</p><p>esperados de escolaridade. O acesso à educação e ao conhecimento é um</p><p>dos elementos mais cruciais do IDH, pois é bastante relevante na formação</p><p>Expectativa e qualidade de vida (IDH)10</p><p>de indivíduos críticos e autônomos. É pela educação que as habilidades e</p><p>competências individuais são expandidas, ampliando as oportunidades e as</p><p>perspectivas de vida. Além disso, a formação aumenta a capacidade do indi-</p><p>víduo de gerar renda, mediante a atuação de profissionais bem qualificados</p><p>no mercado de trabalho.</p><p>A dimensão da renda é medida por meio da Renda Nacional Bruta per</p><p>capita, que é obtida por meio da divisão do coeficiente da renda nacional,</p><p>ou seja, o PIB — subtraídos gastos de depreciação do capital e impostos</p><p>indiretos — pela sua população. Essa operação resulta em uma renda média</p><p>por pessoa, de acordo com as riquezas produzidas pelo país.</p><p>Embora esse coeficiente seja utilizado como parâmetro para calcular o IDH, devemos</p><p>lembrar que essa variável também esconde uma série de desigualdades na distribuição</p><p>de renda. Um país pode apresentar uma renda per capita considerada alta, quando</p><p>comparada a de outros países, mas com grande concentração de renda e disparidades</p><p>sociais. Por outro lado, também podemos ter países com renda per capita mais baixa,</p><p>mas com pouca concentração de renda e baixas diferenças entre as camadas ricas e</p><p>pobres da sociedade.</p><p>A renda é um parâmetro primordial, pois é com dinheiro que os indivíduos</p><p>têm acesso a recursos como água, moradia e alimentação, além de outros bens</p><p>e serviços que podemos adquirir. Nesse sentido, a renda é um meio para se</p><p>alcançar diversas finalidades, e a disponibilidade de renda de cada indivíduo</p><p>é o que vai determinar quais oportunidades ele poderá ou não usufruir.</p><p>3 IDH nas diferentes regiões do planeta</p><p>A partir das três dimensões do IDH — saúde, educação e renda nacional</p><p>bruta — são atribuídos valores de mesmo peso, e efetua-se uma ponderação</p><p>média entre esses três fatores, obtendo-se um índice. Esse índice varia entre</p><p>um intervalo de 0 a 1, sendo dividido da seguinte forma:</p><p> menor que 0,550: baixo desenvolvimento humano;</p><p> entre 0,551 e 0,699: médio desenvolvimento humano;</p><p>11Expectativa e qualidade de vida (IDH)</p><p> entre 0,700 e 0,799: alto desenvolvimento humano;</p><p> acima de 0,800: muito alto desenvolvimento humano.</p><p>É importante salientar que alguns países podem estar alocados em uma</p><p>boa classificação, mas cujo resultado não se reflete na realidade local.</p><p>Países com baixo e médio desenvolvimento humano</p><p>Segundo o ranking de 2017 do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) com-</p><p>pilado pela Organização das Nações Unidas (ONU) (BERMÚDEZ; REZENDE,</p><p>2019), 35 países encontram-se no nível de baixo desenvolvimento humano, e</p><p>outros 36 países apresentam índice de médio desenvolvimento humano.</p><p>Os países categorizados como de baixo desenvolvimento humano apresen-</p><p>tam baixa expectativa de vida, baixa escolaridade e poucos anos de estudo</p><p>para boa parte da população. Além disso, apresentam uma renda per capita</p><p>baixa, indicando o pouco poder aquisitivo da população, além concentração</p><p>de renda e desigualdades sociais. Os países categorizados com baixo IDH</p><p>localizam-se principalmente na África, Ásia e Oriente Médio, com índices</p><p>entre 0,377, que corresponde ao Níger (Figura 3), país com o menor IDH do</p><p>mundo, e a Síria, com índice de 0,549 (BERMÚDEZ; REZENDE, 2019).</p><p>Figura 3. Típica vila no Níger, África, revelando sua pobreza e simplicidade.</p><p>Fonte: Torsten Pursche/Shutterstock.com.</p><p>Expectativa e qualidade de vida (IDH)12</p><p>Os países classificados com médio IDH também apresentam características</p><p>similares às dos países de baixo IDH, como pouco acesso a saúde e educação,</p><p>o que afeta a qualidade e a expectativa de vida, além da baixa renda per capita.</p><p>Entre os países categorizados com médio IDH, podemos destacar as Ilhas</p><p>Salomão (0,557), a Nicarágua (0,651) e as Ilhas Marshall (0,698).</p><p>Países com alto IDH</p><p>Os países classifi cados com alto IDH apresentam melhores sistemas de saúde</p><p>e maior qualidade de vida, o que se refl ete em uma boa expectativa de vida.</p><p>Além disso, apresentam maior acesso à educação e maior índice de escolari-</p><p>dade, bem como alta renda per capita. Nesta classifi cação, encontram-se 53</p><p>países, dentre eles o Egito (0,700), o Peru (0,759), o Brasil (0,761) e a Sérvia</p><p>(0,799) (BERMÚDEZ; REZENDE, 2019).</p><p>A presença do Brasil em uma lista com alto IDH demonstra como os índices,</p><p>muitas vezes, não conseguem refletir a realidade de um país. Sabemos que o</p><p>Brasil apresenta fortes desigualdades sociais, cujos grupos mais pobres, que</p><p>compõem a maioria da população, têm acesso à educação e à saúde de forma</p><p>precária. Além disso, a renda per capita não reflete a realidade da população,</p><p>pois o Brasil apresenta uma grande concentração de renda.</p><p>Países com muito alto IDH</p><p>Os países categorizados com um IDH muito alto são aqueles que apresentam</p><p>uma excelente expectativa de vida, com um amplo sistema de saúde e de</p><p>educação, o que permite oportunizar a todos o acesso aos bens e serviços.</p><p>Também apresentam uma elevada renda per capita, que também possibilita o</p><p>acesso às oportunidades que resultam em uma boa qualidade de vida. Entre</p><p>os principais representantes, podemos destacar Seychelles (0,801), Argentina</p><p>(0,830), Arábia Saudita (0,857), Nova Zelândia (0,921) e Noruega (0,954 — o</p><p>maior IDH do mundo) (BERMÚDEZ; REZENDE, 2019).</p><p>Mediante esses exemplos, também podemos perceber que os números mas-</p><p>caram algumas desigualdades sociais, como na Argentina e na Arábia Saudita,</p><p>que possui elevada renda per capita em função da exploração de petróleo.</p><p>O IDH colocou em evidência as condições de vida de vários países do mundo,</p><p>permitindo visualizar o quão próximo ou distante as nossas realidades encontram-</p><p>-se do que é considerado ideal. Para equacionar essas diferenças, foram propostos</p><p>pela Organização das Nações Unidas (ONU), nos anos 2000, as metas do milênio,</p><p>também conhecidas como os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM).</p><p>13Expectativa e qualidade de vida (IDH)</p><p>O IDH e os ODM</p><p>Os ODM tinham como intuito a melhoria de alguns indicadores mundiais,</p><p>de forma a eliminar ou minimizar a extrema pobreza e a fome, que eram os</p><p>principais elementos que afetavam a vida da população das áreas mais pobres</p><p>e dos países menos desenvolvidos do mundo.</p><p>Quando da implantação dos ODM, nos anos 2000, um dos principais</p><p>desafios a serem enfrentados era criar mecanismos que tornassem o processo</p><p>de globalização algo positivo, no sentido de oferecer oportunidades a todos</p><p>os cidadãos do mundo, especialmente os mais pobres.</p><p>Os ODM são divididos em oito e abrangem ações específicas de com-</p><p>bate à fome e à pobreza, associadas à implementação de políticas de saúde,</p><p>saneamento, educação, habitação, promoção da igualdade de gênero e meio</p><p>ambiente, além de medidas para o estabelecimento de uma parceria global</p><p>para o desenvolvimento sustentável. Cada um dos oito objetivos abrange em</p><p>si um conjunto de metas globais, que totalizam 21, cujo progresso deve ser</p><p>acompanhado por meio de 60 indicadores.</p><p>Os oito objetivos são:</p><p>1. erradicação da fome e da miséria;</p><p>2. universalização da educação primária;</p><p>3. promoção da igualdade de gênero e autonomia das mulheres;</p><p>4. redução da mortalidade infantil;</p><p>5. melhorias da saúde materna;</p><p>6. combate a doenças como o HIV/AIDS, malária, entre outras;</p><p>7. garantia da sustentabilidade ambiental;</p><p>8. estabelecimento de uma parceria mundial para o desenvolvimento.</p><p>Apesar da globalização oferecer grandes oportunidades, os benefícios</p><p>gerados por ela nem sempre eram compartilhados de maneira uniforme. Isso</p><p>ocasionava muitas dificuldades para os países em desenvolvimento e para as</p><p>economias em</p><p>transição conseguirem cumprir os ODM e diminuir desigual-</p><p>dades, em decorrência dos altos custos para ingressarem no sistema global.</p><p>Enfim, os indicadores de expectativa e de qualidade de vida têm por objetivo</p><p>materializar as condições que a população apresenta, com as especificidades</p><p>de cada território, no intuito de aferir as desigualdades sociais pelo mundo.</p><p>Além disso, por meio de índices como o IDH, é possível cruzar informações</p><p>relacionadas a saúde, educação e renda, e, dessa maneira, classificar os países</p><p>em diferentes níveis de desenvolvimento.</p><p>Expectativa e qualidade de vida (IDH)14</p><p>Ao utilizar o IDH para analisar a qualidade de vida de um país, é impor-</p><p>tante avaliar os parâmetros sendo usados, como saúde, educação e renda</p><p>per capita, e interpretá-los de maneira a evidenciar as grandes discrepân-</p><p>cias entre os dados. Essas diferenças, como as observadas em países com</p><p>alto PIB ou qualquer outro indicador com grande destaque, promovem um</p><p>desequilíbrio na análise, mostrando uma realidade em descompasso com o</p><p>que se observa in loco.</p><p>Dessa forma, as interpretações acerca de um determinado país devem</p><p>ser feitas com um sólido conjunto de dados e indicadores, para que os erros</p><p>sejam minimizados e as situações mais próximas possíveis da realidade sejam</p><p>evidenciadas.</p><p>BERMÚDEZ, A. C.; REZENDE, C. Melhor IDH do mundo é da Noruega, e o pior é de Níger.</p><p>UOL Notícias, 09 dez. 2019. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/</p><p>ultimas-noticias/2019/12/09/melhor-idh-do-mundo-e-da-noruega-e-o-pior-e-de-</p><p>-niger-veja-o-ranking.htm. Acesso em: 25 mar. 2020.</p><p>INDEX MUNDI. Mapa Comparativo entre Países > Taxa de nascimento — Mundo.</p><p>2019. Disponível em: https://www.indexmundi.com/map/?v=25&r=xx&l=pt. Acesso</p><p>em: 25 mar. 2020.</p><p>UNITED NATIONS. Population Division: World Population Prospects 2019. Disponível</p><p>em: https://population.un.org/wpp/. Acesso em: 25 mar. 2020.</p><p>Leituras recomendadas</p><p>CAMARANO, A. A. (Org.). Um novo regime demográfico: uma nova relação entre popu-</p><p>lação e desenvolvimento? Rio de Janeiro: IPEA, 2014.</p><p>DAMIANI, A. L. População e geografia. São Paulo: Contexto, 2011.</p><p>MERRICK, T.; GRAHAM, D. H. População e desenvolvimento econômico no Brasil. Rio de</p><p>Janeiro: Zahar, 1981.</p><p>RIOS NETO, E. L. G. (Org.). A população nas políticas públicas: gênero, geração e raça.</p><p>Brasília: CNPD; UNFPA, 2006.</p><p>UNICEF. As crianças são flores que nunca murcham: A história do casamento prematuro</p><p>da Mariamo. UNICEF Moçambique, 06 set. 2018. Disponível em: https://www.youtube.</p><p>com/watch?v=o12RWpCA8w0. Acesso em: 25 mar. 2020.</p><p>VERRIERE, J. As políticas de população. Rio de Janeiro: Bertrand, 1991.</p><p>15Expectativa e qualidade de vida (IDH)</p><p>Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun-</p><p>cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a</p><p>rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de</p><p>local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade</p><p>sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links.</p><p>Expectativa e qualidade de vida (IDH)16</p><p>GEOGRAFIA DA</p><p>POPULAÇÃO</p><p>Gabriela Rodrigues Gois</p><p>A geografia da população:</p><p>enfoques contemporâneos</p><p>Objetivos de aprendizagem</p><p>Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:</p><p> Reconhecer o papel dos estudos populacionais.</p><p> Analisar os componentes importantes para o estudo de populações.</p><p> Justificar a importância da diversidade de gênero, de etnia e de cultura.</p><p>Introdução</p><p>Os estudos populacionais passaram, ao longo do tempo, por diferentes</p><p>transformações em suas bases teóricas e metodológicas. Essas mudanças</p><p>estão relacionadas aos enfoques das diferentes áreas do conhecimento,</p><p>como ciências sociais, geografia, história, demografia, economia, bem</p><p>como às problemáticas demográficas identificadas na sociedade em</p><p>nível mundial. Com isso, percebemos uma diversidade de temas, variá-</p><p>veis, indicadores, análises e interpretações mobilizados para dar conta</p><p>da complexidade que marca a dinâmica populacional contemporânea.</p><p>Neste capítulo, você aprofundará seus conhecimentos sobre o papel e</p><p>os componentes dos estudos populacionais. Para isso, examinaremos as</p><p>atribuições dos estudos demográficos na geografia e em outras ciências;</p><p>em seguida, identificaremos os aspectos considerados relevantes para</p><p>os estudos populacionais; por fim, discorreremos sobre a relevância das</p><p>dimensões gênero, étnico-racial, classe e cultura para o aprofundamento</p><p>dos estudos demográficos.</p><p>1 O papel dos estudos populacionais</p><p>Os estudos populacionais compreendem diversas áreas do conhecimento que</p><p>possuem a população como objeto de estudo. Mas o que é a população? Para</p><p>responder essa pergunta, precisamos estabelecer uma distinção entre o que</p><p>entendemos por pessoas e por população. De acordo com estudos realizados</p><p>por Dantas, Morais e Fernandes (2011), quando falamos em pessoas estamos</p><p>nos referindo ao âmbito individual e quando falamos em população estamos</p><p>nos referindo ao coletivo, ou melhor dizendo, à sociedade. Desse modo, o</p><p>que vincula o indivíduo à população ou à sociedade são questões estruturais</p><p>e institucionais, como as práticas sociais, classes sociais, as leis, o trabalho,</p><p>entre outros fatores (DANTAS; MORAIS; FERNANDES, 2011).</p><p>É importante termos em mente como esta relação indivíduo–sociedade é interde-</p><p>pendente e complexa, sendo cuidadosamente trabalhada pelas ciências sociais. A</p><p>geografia, por sua vez, também se preocupa com essa dinâmica, empregando, para</p><p>isso, seus instrumentos teóricos e conceituais.</p><p>Historicamente, a população sempre foi tema de discussão política ou</p><p>intelectual. No campo da geografia, ao longo dos séculos XIX e XX ela foi</p><p>considerada a primeira forma de abordagem a fenômenos humanos complexos</p><p>(DAMIANI, 1998). Nesse sentido, além de uma categoria analítica, a população</p><p>é compreendida como um conjunto de relações sociais e espaciais, mediada</p><p>por fatores diversos, como as estruturas, as instituições, os valores humanos e</p><p>culturais, a economia, a natureza e o próprio espaço. Sua dinâmica complexa</p><p>e sua permanência nos estudos geográficos possibilitaram a consolidação</p><p>da disciplina de geografia da população na segunda metade do século XX</p><p>(SILVA; FERNANDES, 2016), definida, na época, como:</p><p>[...] a ciência que trata dos modos pelos quais o caráter geográfico dos lugares</p><p>é formado por um conjunto de fenômenos de população que varia no interior</p><p>deles através do tempo e do espaço, na medida em que seguem suas próprias</p><p>leis de comportamento, agindo uns sobre os outros e relacionando-se com</p><p>numerosos fenômenos não demográficos (ZELINSKY, 1974, p. 17)</p><p>No entanto, entendemos que a geografia não possui exclusividade nos estu-</p><p>dos populacionais. A população, como categoria de análise, é abordada a partir</p><p>de distintas perspectivas que variam de acordo com a área de estudo, assim</p><p>como as ferramentas teóricas e metodológicas em jogo (DAMIANI, 1998).</p><p>Por essa razão, o papel que os estudos populacionais desempenham vai variar</p><p>segundo o interesse de cada disciplina. Na geografia, por exemplo, sabemos</p><p>A geografia da população: enfoques contemporâneos2</p><p>que o estudo populacional busca explicar espacialmente os fenômenos demo-</p><p>gráficos; nas ciências sociais, porém, os estudos populacionais giram em torno</p><p>da compreensão das relações sociais em determinados contextos históricos,</p><p>econômicos e políticos e como estas podem afetar a dinâmica demográfica. A</p><p>antropologia, por sua vez, vai se preocupar com o tema da cultura, dos hábitos</p><p>e das relações que as populações estabelecem com o meio em que vivem e</p><p>transformam (MORMUL, 2013). Por fim, a demografia dedica-se às análises</p><p>tanto quantitativas quanto qualitativas da dinâmica populacional, constituindo</p><p>uma disciplina fundamental para o desenvolvimento dos estudos populacio-</p><p>nais em outras áreas. Com isso, embora existam componentes básicos que</p><p>são transversais aos estudos populacionais em diferentes</p><p>ciências — número</p><p>de nascimentos, mortes, migração, estrutura etária —, eles são utilizados e</p><p>interpretados para alcançar o objetivo do campo de estudo em questão.</p><p>Confira a seção “Grupos de Trabalho” (GT’s) no site oficial da Associação Brasileira de</p><p>Estudos Populacionais (Abep), e perceba a diversidade de temas trabalhados que</p><p>variam de acordo com as áreas de pesquisa.</p><p>Além disso, devemos entender que a função dos estudos populacionais varia</p><p>não apenas de acordo com o campo de estudo, mas é afetado e transformado</p><p>pelas circunstâncias históricas e políticas. Para entender essa relação, tomemos</p><p>a ciência geográfica como exemplo. Percebemos que a trajetória da geografia</p><p>é marcada por diferentes paradigmas que se consolidam por razões tanto</p><p>científicas quanto políticas. Um exemplo claro disso é a geografia regional, que</p><p>se forma em um contexto político e ideológico marcado acima de tudo pelos</p><p>conflitos territoriais protagonizados por autoridades francesas e germânicas</p><p>no século XIX (DOMINGUES, 1985). Assim, os estudos populacionais em</p><p>geografia regional se dedicavam a temas como a relação entre a população</p><p>e recursos, população e produtividade, assim como número de pessoas que</p><p>constituíam uma nação (GEORGE, 1955 apud DAMIANI, 1998). A geografia</p><p>teorética, por sua vez, direcionava seus estudos populacionais à compreensão</p><p>quantitativa da distribuição populacional.</p><p>Após a Segunda Guerra Mundial, os estudos populacionais adquiriram</p><p>maior relevância em virtude do aumento das taxas de natalidade, o que, asso-</p><p>3A geografia da população: enfoques contemporâneos</p><p>ciado às reduções na mortalidade, provocou um crescimento demográfico em</p><p>escala mundial. “Tanto os capitalistas queriam entender a dinâmica popula-</p><p>cional para identificar as potencialidades e vulnerabilidades para a economia</p><p>quanto os socialistas queriam fundamentar os seus planos econômicos” (SILVA;</p><p>FERNANDES, 2016, p. 2). Ademais, como as ciências — a exemplo da própria</p><p>geografia e das ciências sociais — eram financiadas principalmente pelas</p><p>autoridades estatais, seus estudos (entre esses os demográficos) objetivavam</p><p>atender aos interesses políticos e territoriais do Estado.</p><p>Durante a década de 1950, geógrafos como Glenn Trewartha, Jacqueline</p><p>Beaujeu-Garnier e Wilbur Zelinsky se dispuseram a argumentar sobre o papel</p><p>que os estudos populacionais deveriam desempenhar na geografia, defendendo,</p><p>é claro, suas afiliações teóricas e metodológicas; Trewartha e Beaujeu-Garnier</p><p>vinculados à geografia regional e Zelinsky à quantitativa, corrente teórica mais</p><p>apreciada nas décadas de 1950 e 1960 (SILVA; FERNANDES, 2016). Para</p><p>Zelinsky (1974), os estudos populacionais na geografia deveriam priorizar a</p><p>compreensão da relação entre a dinâmica populacional e o espaço geográfico,</p><p>em seus aspectos sociais, econômicos, políticos, técnicos, tecnológicos.</p><p>Ao final do século XX, com o fortalecimento das correntes críticas da</p><p>geografia, as atribuições associadas aos estudos populacionais passaram a</p><p>adquirir maior complexidade, dando conta de questões históricas, políticas,</p><p>econômicas e socioculturais. Em defesa de um maior comprometimento com</p><p>os fenômenos socioespaciais, Damiani (1998) argumenta que os estudos de-</p><p>mográficos não devem se limitar aos aspectos quantitativos, também buscando</p><p>compreender as relações estabelecidas entre os diferentes elementos que</p><p>compõem o comportamento populacional sobre o espaço. Além disso, devem</p><p>entender quais são os resultados dessas relações na produção e transformação</p><p>do espaço e como a própria dinâmica espacial pode influenciar as práticas</p><p>sociais das populações.</p><p>Mormul (2013), ao estabelecer uma relação entre a geografia da população e</p><p>a geografia humana, defende que os estudos populacionais precisam considerar</p><p>o contexto histórico no qual as relações humanas e socioespaciais são produ-</p><p>toras e produtos (MORMUL, 2013). Os estudos populacionais, neste sentido,</p><p>possuem a responsabilidade não apenas de apresentar os dados demográficos</p><p>vinculados a crescimento vegetativo, mortes, nascimentos e estrutura etária,</p><p>mas também de investigar e problematizar o que está por trás desses dados e</p><p>quais são suas explicações do ponto de vista histórico-geográfico.</p><p>Agora, quando tomamos como exemplo os anais do Encontro Nacional de</p><p>Estudos Populacionais de 2018 (CAMPOS et al., 2018), percebemos que não</p><p>A geografia da população: enfoques contemporâneos4</p><p>se trata exclusivamente de estudos estatísticos, mas de trabalhos dedicados</p><p>a estudar realidades marcadas por aspectos sociais, econômicos, políticos e</p><p>culturais. Sendo assim, as informações referentes a natalidade, mortalidade,</p><p>migração, crescimento vegetativo e estrutura etária não são estáticas, mas</p><p>relacionais, retratando conjunturas complexas. Por essa razão, entendemos que</p><p>no contexto atual o papel dos estudos populacionais tem sido de investigar,</p><p>analisar e interpretar a relação população–espaço em sua heterogeneidade e, no</p><p>limite, de fornecer subsídios para a elaboração de projetos de desenvolvimento</p><p>social em diferentes escalas — local, regional e nacional.</p><p>2 Componentes importantes para o estudo</p><p>de populações</p><p>Compreendemos que a população é um objeto de estudo bastante complexo que</p><p>movimenta questões materiais, simbólicas, objetivas, subjetivas, estruturais,</p><p>espaciais, entre outras, e que para compreendê-la a partir de suas múltiplas</p><p>dimensões temos de percorrer um caminho analítico que parta de categorias</p><p>de análises mais básicas rumo às mais complexas (DAMIANI, 1998). Ao</p><p>afi rmarmos, por exemplo, que atualmente a população no Brasil diminuiu em</p><p>virtude de melhorias nas condições socioeconômicas das famílias, precisa-</p><p>remos deixar claro em que consistem essas condições socioeconômicas e de</p><p>que forma ocorreram essas melhorias, para, fi nalmente, entender seu impacto</p><p>na vida das famílias e no baixo crescimento demográfi co.</p><p>Isso também significa que os estudos populacionais são multidisciplinares</p><p>e realizam-se a partir de conceitos já desenvolvidos em estudos urbanos,</p><p>políticos, econômicos, sociais, territoriais, entre outros, como os conceitos</p><p>de “segregação” (qual é o nível educacional de uma população residente em</p><p>um bairro de baixa renda?), “desenvolvimento” (quais características socio-</p><p>econômicas a demografia de um país deve apresentar para alcançar um alto</p><p>nível de desenvolvimento humano?) e “desigualdade” (qual é o impacto das</p><p>desigualdades socioeconômicas na expectativa de vida de uma população?).</p><p>Com base nessas considerações, para que os estudos populacionais, inde-</p><p>pendentemente da área de estudo, possam cumprir seu papel, é necessário</p><p>considerar alguns aspectos básicos (analíticos e empíricos). Mas que aspectos</p><p>são esses? Neste capítulo, destacamos os aspectos sociais, socioeconômicos</p><p>e políticos. Com isso, vamos especificar quais são os impactos desses fatores</p><p>na dinâmica e estrutura populacional, bem como nos estudos demográficos.</p><p>5A geografia da população: enfoques contemporâneos</p><p>Aspectos sociais</p><p>A estrutura social pode ser compreendida como um sistema de organização</p><p>social, constituído pelas relações sociais, políticas, institucionais e econômicas</p><p>que estabelecemos uns com os outros. Essas relações são mediadas por normas</p><p>e recursos (regras, leis, meios de produção, tecnologias) que são mobilizados</p><p>e corroborados em nossas ações sociais repetitivas. O entrelaçamento dessas</p><p>relações constitui o que o sociólogo Giddens (1984) chama de sistema social.</p><p>Para o autor, a sociedade, em suas relações e práticas recursivas, legitimam</p><p>as dinâmicas institucionais, reforçando as estruturas. As estruturas são si-</p><p>multaneamente potencializadoras e limitadoras da ação humana. Em outras</p><p>palavras, nós, como atores sociais, reforçamos as estruturas, ao mesmo tempo</p><p>em que temos nossas ações determinadas por elas. Mas afi nal, qual é a relação</p><p>disso tudo com as dinâmicas e os estudos populacionais?</p><p>A estrutura social é um componente importante para os estudos popula-</p><p>cionais, pois permite</p><p>investigar qualitativamente como as relações sociais, as</p><p>instituições e as práticas recursivas da sociedade afetam e são afetadas pela</p><p>dinâmica e estrutura populacional. Podemos avaliar o impacto dos aspectos</p><p>estruturais (políticos, institucionais e econômicos) de um Estado na dinâmica</p><p>populacional por meio de uma diferenciação de gênero entre a população</p><p>ocupada (que está trabalhando) e a população desocupada (que não está traba-</p><p>lhando, mas encontra-se disposta a trabalhar) (INSTITUTO BRASILEIRO DE</p><p>GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2014). A partir disso, poderemos questionar:</p><p>existe uma discrepância entre homens e mulheres quando examinamos o</p><p>percentual de população ocupada no país? Caso exista, como ela pode ser</p><p>descrita, analisada e explicada?</p><p>Independentemente da área de estudo, os aspectos sociais estão sempre</p><p>presentes nos estudos populacionais, seja de forma explícita nos estudos de</p><p>natureza qualitativa — os quais geralmente realizam uma análise da estrutura</p><p>social em questão —, seja de forma implícita, a exemplo dos estudos quanti-</p><p>tativos, em que os dados numéricos são priorizados na análise, mas retratam</p><p>uma realidade social que pode ser examinada. Além disso, ainda que existam</p><p>características transversais entre as sociedades, ou seja, elas são organizadas</p><p>por Estados, instituições, leis e normas, e cada sociedade também apresenta</p><p>suas especificidades históricas, políticas, culturais e geográficas que não</p><p>devem ser desconsideradas nos estudos demográficos.</p><p>A geografia da população: enfoques contemporâneos6</p><p>Aspectos socioeconômicos</p><p>Os aspectos socioeconômicos também estão vinculados à estrutura social,</p><p>mas, de uma forma mais precisa, correspondem às questões sociais e econô-</p><p>micas que infl uenciam a qualidade de vida da população, além de revelar a</p><p>dinâmica de desenvolvimento de um país. Vamos iniciar com um exemplo:</p><p>se a média da população brasileira tiver amplas possibilidades de reprodução</p><p>social e econômica, possuindo boa renda, trabalho com segurança, acesso à</p><p>educação e saúde de qualidade, sua qualidade de vida aumenta. Em termos</p><p>demográfi cos, essa realidade é refl etida no aumento da expectativa de vida no</p><p>Brasil e, consequentemente, no seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).</p><p>O IDH foi desenvolvimento a partir do conceito de desenvolvimento hu-</p><p>mano, preconizado pelo economista Amartya Sen. Esse conceito se constrói</p><p>com o objetivo de questionar a perspectiva de desenvolvimento voltada apenas</p><p>para o crescimento econômico de um país. Com isso, o desenvolvimento</p><p>humano corresponde à ampliação das capacidades e oportunidades que as</p><p>pessoas têm e podem adquirir ao longo de sua vida para se realizarem de acordo</p><p>com os seus desejos, considerando outros aspectos além do econômico, como</p><p>culturais, políticos e sociais (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA</p><p>O DESENVOLVIMENTO, 2020). Podemos nos perguntar novamente: o que</p><p>isso tem a ver com os estudos populacionais?</p><p>O IDH considera múltiplas variáveis demográficas, como a população</p><p>total, urbana, rural, residente masculina e residente feminina, estrutura etária</p><p>da população (número de jovens, adultos e idosos), taxa de envelhecimento,</p><p>taxa de longevidade, mortalidade, fecundidade, entre outros elementos capa-</p><p>zes de explicar a estrutura e a dinâmica de uma população. A partir disso,</p><p>busca analisar a evolução desses dados ao longo do tempo — se diminuíram,</p><p>se aumentaram, assim como as causas e efeitos dessas transformações. Em</p><p>termos quantitativos/qualitativos, o IDH também avalia a educação de um</p><p>país, considerando o fluxo escolar por faixa etária, além das expectativas de</p><p>anos de estudo, bem como renda per capita, concentração de renda, taxa de</p><p>atividade, desocupação, habitação e vulnerabilidade social, além de considerar</p><p>todos esses aspectos a partir dos diferenciais raciais e de gênero.</p><p>Em suma, trata-se de um índice bastante denso, que contém distintos</p><p>indicadores e dados oriundos de profundas pesquisas demográficas. A partir</p><p>disso, também podemos considerar que o componente socioeconômico é</p><p>importante para os estudos populacionais, pois mobiliza variáveis — como</p><p>7A geografia da população: enfoques contemporâneos</p><p>educação, trabalho, renda per capita, escolaridade e moradia — que são</p><p>comumente trabalhadas em áreas de economia, economia política, ciências</p><p>sociais, geografia e saúde coletiva, que, por sua vez, permitem avaliar de</p><p>forma mais circunstanciada a dinâmica demográfica de dada realidade social.</p><p>Aspectos políticos</p><p>As questões políticas também estão estreitamente vinculadas aos aspectos</p><p>mencionados anteriormente, pois é por meio das instituições governamentais</p><p>que são pensadas as estratégias de desenvolvimento social para garantir melhor</p><p>qualidade de vida à população. Programas habitacionais, de transferência de</p><p>renda e de erradicação da fome e extrema pobreza, entre outras políticas públi-</p><p>cas, podem, futuramente, contribuir para o desenvolvimento humano em nível</p><p>nacional. Agora, como isso pode infl uenciar a dinâmica populacional do país?</p><p>Para responder essa pergunta, podemos considerar o seguinte exemplo:</p><p>um sistema de saúde de determinado país consegue elaborar uma política de</p><p>prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e de acessibilidade e uso de</p><p>métodos contraceptivos. O questionamento que um estudo populacional pode</p><p>realizar a partir disso é: que impacto essa política exercerá sobre as taxas de</p><p>fecundidade, natalidade e mortalidade? O crescimento populacional cairia?</p><p>Entraria em estabilidade? De que forma essa política afetaria a qualidade de</p><p>vida da população?</p><p>Também sabemos da existência de autoridades estatais que realizam práticas</p><p>de intervenção direta na dinâmica populacional, no sentido de pensar políticas</p><p>de planejamento familiar, visando o controle de natalidade, como foi o caso</p><p>da China entre o final da década de 1970 e 2015. O país conseguiu exercer,</p><p>por 36 anos, um rigoroso controle do crescimento populacional impondo a</p><p>política do filho único. O resultado dessa política, somado, é claro, a outros</p><p>aspectos socioeconômicos e sociais — como a ascensão do estilo de vida</p><p>urbano, melhorias nas condições econômicas das famílias, acesso à educação</p><p>de qualidade, autonomia financeira e conquistas de direitos reprodutivos</p><p>pelas mulheres, etc. —, foi o baixo crescimento populacional já a partir da</p><p>década de 1970 (YANG; WANG, 2016). Com isso, as projeções futuras têm</p><p>indicado redução da população jovem, aumento da população idosa e redução</p><p>da população economicamente ativa (YANG; WANG, 2016). Com este cenário,</p><p>o Estado chinês resolveu finalizar a política do filho único, estimulando a</p><p>ampliação das famílias com quantos filhos queiram ter.</p><p>Nesse contexto, os questionamentos produzidos pelos estudos populacio-</p><p>nais podem ser: quais são os fatores envolvidos nos processos de tomada de</p><p>A geografia da população: enfoques contemporâneos8</p><p>decisão das famílias em relação a ter um ou mais filhos? Em que medida é</p><p>aceitável política ou moralmente intervenções governamentais sobre as esco-</p><p>lhas que afetam a dinâmica econômica, social e emocional de uma família?</p><p>Qual será o impacto econômico na China caso as projeções demográficas se</p><p>confirmem? Enfim, são diversas e pertinentes as interrogações que podem</p><p>surgir ao considerarmos os componentes políticos nos estudos populacionais.</p><p>3 A importância da diversidade de gênero,</p><p>de etnia e de cultura</p><p>Do ponto de vista antropológico, a cultura pode ser concebida como “[...] uma</p><p>teia de signifi cados tecida pelo homem. Essa teia orienta a existência humana.</p><p>Trata-se de um sistema de símbolos que interage com os sistemas de símbolos</p><p>de cada indivíduo numa interação recíproca” (GEERTZ, 2003, p. 39). Nesse</p><p>sentido, nossas ações individuais e sociais também são práticas culturais, que</p><p>transformam o espaço que produzimos e vivemos.</p><p>No âmbito geográfico, o giro cultural emergiu a partir da corrente crítica</p><p>da geografia e direcionou sua crítica à modernidade e seu determinismo</p><p>econômico para explicar</p><p>ao pensamento filosófico</p><p>e político alemão. Deve-se ressaltar que nesse momento se realizava a uni-</p><p>dade política das várias Alemanhas em um império, sob o reino da Prússia</p><p>(ANDRADE, 1987).</p><p>A geografia ou escola francesa deu maior importância aos estudos geográficos</p><p>após 1871, quando os franceses foram derrotados pelo exército alemão. Antes</p><p>disso, a geografia fazia parte da disciplina de história. Com uma teoria própria,</p><p>porém com muitas das características da escola alemã, os franceses tiveram dois</p><p>grandes geógrafos na época, Eliseé Reclus (1830–1905) e Vidal de La Blache</p><p>(1845–1918). No Brasil, o pensamento geográfico de ambos já era difundido.</p><p>Reclus tinha posições políticas anarquistas e compartilhava dos ideais</p><p>propostos na Comuna de Paris. Foi exiliado, porém contribuiu para a ciência</p><p>geográfica moderna. Ele trouxe um novo olhar para a geografia social. A</p><p>partir dele, surgiram novos temas e abordagens relativas à questão social,</p><p>contribuindo para o campo específico da ciência geográfica.</p><p>Por sua vez, Vidal de La Blache realizou diversos estudos regionais, com</p><p>ênfase nos estudos de áreas pequenas e homogêneas. Foi o primeiro professor</p><p>de geografia da Universidade de Sorbonne, em Paris. Ele se dedicou a estu-</p><p>dar a relação entre o homem e o meio, construída historicamente de forma</p><p>diferenciada. Logo, procurou demostrar que o meio exercia influência sobre o</p><p>homem, mas os homens tinham capacidade de modificar o meio. Foi daí que</p><p>surgiu a teoria do possibilismo geográfico, em contradição ao determinismo</p><p>geográfico (ANDRADE, 1987).</p><p>Segundo Andrade (1987), o possibilismo geográfico foi importante por</p><p>orientar a política de recursos naturais do espaço francês. Essa teoria tinha</p><p>como característica o fato de enfatizar a superioridade da raça branca em</p><p>relação às raças dos nativos da África e da Ásia. Mormul e Rocha (2013)</p><p>esclarecem que tanto o determinismo quanto o possibilismo geográfico, junto</p><p>à ciência geográfica, foram ideologicamente influenciados pelos interesses</p><p>burgueses. O principal interesse, na maior parte das vezes, era produzir ele-</p><p>mentos indispensáveis à expansão do capitalismo e à formação de cidadãos</p><p>adaptados às exigências do momento.</p><p>Segundo Suertegary (2003), no decorrer da história da geografia, diversos</p><p>autores refletiram sobre o determinismo e o possibilismo. No caso do deter-</p><p>7Geografia como ciência</p><p>minismo geográfico, a natureza é entendida como a causa da organização</p><p>social. Já no caso do possibilismo geográfico, o homem tem possibilidades</p><p>de transformar a natureza. Essa transformação é realizada por meio do de-</p><p>senvolvimento técnico, e a relação entre a natureza e a sociedade é mediada</p><p>pelo trabalho.</p><p>As últimas décadas do século XIX foram marcadas por dois processos</p><p>essenciais para a história do homem e da geografia. Um deles decorre do</p><p>sistema capitalista, que gera uma intensa concentração de capital, gerando os</p><p>grandes monopólios e a expansão territorial pelo imperialismo, que recebeu a</p><p>contribuição das sociedades geográficas da época. O outro é a fragmentação</p><p>do saber universal, ou seja, surgem novas disciplinas, entre elas a geografia.</p><p>Os departamentos de geografia são criados nas universidades da Europa e,</p><p>décadas mais tarde, nos Estados Unidos. Naturalmente, o primeiro processo</p><p>não pode ser desvinculado do segundo.</p><p>O espaço geográfico como elemento</p><p>fundante da ciência</p><p>Como você viu, a geografi a se tornou uma ciência no fi m do século XIX e</p><p>no início do século XX. Primeiro, a geografi a surgiu como disciplina nas</p><p>universidades da Europa e depois ocorreu a constituição das sociedades ge-</p><p>ográfi cas, com os exploradores naturalistas que cooperaram com a ciência.</p><p>O espaço sempre teve uma participação importante nos estudos geográfi cos,</p><p>porém nem sempre as análises eram realizadas na sua totalidade. A dicotomia</p><p>entre a geografi a física e a geografi a humana são entraves desde o início da</p><p>ciência, e a relação entre sociedade e natureza jamais pode ser compreendida</p><p>como algo fragmentado.</p><p>O espaço geográfico é uma porção específica da superfície da Terra iden-</p><p>tificada pela natureza, mas o homem também deixa as suas marcas nele. O</p><p>homem transforma o espaço natural devido às suas necessidades. Assim, a</p><p>geografia como ciência social tem como objeto de estudo a sociedade, que</p><p>se refere à ação humana modelando a superfície terrestre. Além da categoria</p><p>espaço, há outras outras categorias em jogo, como: paisagem, região, lugar e</p><p>território (CORRÊA, 2003). Veja o Quadro 1, a seguir.</p><p>Geografia como ciência8</p><p>Fonte: Adaptado de Santos (2008).</p><p>Categoria Definição</p><p>Lugar O lugar se relaciona à vivência e à identidade. É o</p><p>espaço que pode ser sentido, onde se vivenciam as</p><p>experiências.</p><p>Paisagem A paisagem é um instrumento de análise do espaço ge-</p><p>ográfico e mobiliza as relações humanas. Os sentimen-</p><p>tos e as questão subjetivas são expressas diretamente</p><p>no espaço geográfico, transformando a paisagem.</p><p>Ela pode ser classificada como natural e humanizada,</p><p>considerando os aspectos culturais.</p><p>Território O território tem como características o espaço delimi-</p><p>tado por relações de poder.</p><p>Região A região expressa uma particularidade de determinado</p><p>espaço ou apresenta características específicas. A</p><p>região é classificada em região natural e região geográ-</p><p>fica. Ela pode ser compreendida como uma porção do</p><p>espaço que apresenta uma combinação de elementos</p><p>da natureza.</p><p>Quadro 1. As categorias de análise da ciência geográfica e as suas características</p><p>O espaço e as correntes do pensamento geográfico são divididos em quatro</p><p>momentos: a geografia tradicional, a geografia teorético-quantitativa, a ge-</p><p>ografia crítica e a geografia humanista/cultural. A seguir, você vai conhecer</p><p>melhor cada uma dessas corrrentes.</p><p>A geografia tradicional (1870–1950) antecede as mudanças das décadas</p><p>de 1950 e 1970. Ela substitui a geografia clássica descritiva. Nesse período,</p><p>o espaço não se constitui como um conceito-chave na geografia tradicional,</p><p>por mais que estivesse presente nas obras de Ratzel de modo implícito. Nessa</p><p>vertente da geografia, os conceitos de paisagem e região foram privilegiados</p><p>e se estabeleceu a discussão sobre o objeto de estudo da geografia e a sua</p><p>identidade em relação às demais ciências. Os conceitos de paisagem, região</p><p>natural, região-paisagem e paisagem cultural foram alvos de debates e estavam</p><p>9Geografia como ciência</p><p>presentes na maioria dos estudos da época. Ratzel utilizou dois conceitos</p><p>geográficos: o de espaço vital e o de território, também fundante em seus</p><p>trabalhos e com fortes raízes na ecologia (CORRÊA, 2003).</p><p>Não se pode deixar de mencionar a população e os recursos naturais cons-</p><p>tituídos em determinado território. Portanto, “[...] o espaço transforma-se,</p><p>através da política, em território, em conceito-chave da geografia” (CORRÊA,</p><p>2003, p. 18).</p><p>O geógrafo Milton Santos se destacou no Brasil e no mundo por suas pesquisas relativas</p><p>às categorias de análise da geografia. Ele foi um dos grandes nomes da renovação da</p><p>geografia ocorrida em meados de 1970.</p><p>A vertente teorético-quantitativa é baseada no positivismo lógico e pro-</p><p>moveu profundas modificações na geografia em meados de 1950. A partir do</p><p>raciocínio hipotético-dedutivo, adotou-se uma visão de ciência pela perspectiva</p><p>das ciências da natureza. Assim, o “[...] espaço aparece, pela primeira vez</p><p>na história do pensamento geográfico, como o conceito-chave da disciplina,</p><p>os outros conceitos de lugar e território não são conceitos significativos na</p><p>geografia teorético-quantitativa” (CORRÊA, 2003, p. 20).</p><p>Nessa corrente geográfica, o espaço é considerado de duas formas não</p><p>excludentes: as planícies isotrópicas e a representação matricial. A planície</p><p>isotrópica se constitui na concepção de espaço derivada de um paradigma</p><p>racionalista e hipotético-dedutivo. Todavia, utiliza modelos matemáticos</p><p>para conhecer dados quantitativos como densidade demográfica, de renda e</p><p>de padrão cultural. A ideia é adotar uma racionalidade econômica</p><p>os processos sociais e espaciais. Com isso, o giro</p><p>cultural defende que os processos socioespaciais (entre eles os demográficos)</p><p>estão estreitamente relacionados à cultura, que também atravessa as relações de</p><p>classe, raça e gênero (NARVÁEZ MONTOYA, 2014). Os estudos de Campos</p><p>et al. (2018), por exemplo, buscam compreender os padrões de mobilidade</p><p>(migração) entre os grupos indígenas no Brasil, considerando tanto aspectos</p><p>culturais (práticas sociais e de relação com a terra) quanto socioeconômicos</p><p>(renda, região de domicílio, etc.).</p><p>Além disso, a partir da perspectiva cultural na geografia, a cultura tam-</p><p>bém passa a desempenhar um papel relevante na compreensão das formas</p><p>de reprodução do capitalismo na sociedade (ÁLVAREZ GALLEGO, 2014).</p><p>Nessa linha, busca compreender, por exemplo, como nos relacionamos com</p><p>o trabalho produtivo e com o consumo.</p><p>Considerando os estudos populacionais, a relação entre os aspectos cultu-</p><p>rais, de gênero e etnia é fundamental, pois, por meio de análises de variáveis</p><p>comuns como renda, trabalho, mortalidade e expectativa de vida, é possível</p><p>compreender que a população não é homogênea, apresentando diferenciações</p><p>socioeconômicas, orientadas pelas questões raciais, culturais, de gênero e</p><p>classe. Nesse sentido, se nos dedicarmos a compreender a população em</p><p>um nível pormenorizado, perceberemos que as pessoas estão inseridas em</p><p>9A geografia da população: enfoques contemporâneos</p><p>contextos econômicos, sociais e culturais específicos, comportando-se de</p><p>distintas formas ou afetadas em diferentes graus pelos mesmos problemas</p><p>sociais. Por essa razão, são necessárias abordagens teóricas e metodológicas</p><p>sensíveis a essas realidades e que forneçam subsídios para pensar, no debate</p><p>público, projetos de desenvolvimento social, a fim de atenuar as desigualdades</p><p>que podem ser agravadas e reforçadas pelas já mencionadas estruturas sociais.</p><p>Retomando nossos exemplos, sabemos que o indicador renda, comumente</p><p>utilizado para avaliar o índice de desenvolvimento humano em diversos países,</p><p>varia conforme o grupo social, considerando que a população é compartimen-</p><p>tada de acordo com as condições socioeconômicas das pessoas (estratificação</p><p>social). Mas você sabia que existe no Brasil uma diferença significativa de</p><p>renda entre homens e mulheres? Considerando o caso do Rio Grande do Sul,</p><p>a renda per capita para o ano de 2010 entre as mulheres foi de R$704,32,</p><p>enquanto para os homens foi de R$711,98 (PROGRAMA DAS NAÇÕES</p><p>UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020). Também é possível notar</p><p>uma diferença em relação ao rendimento médio por pessoas ocupadas, que</p><p>para as mulheres foi de R$1.055 e para homens, de R$1.555,29 (PROGRAMA</p><p>DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020).</p><p>A diferença na taxa de desocupação e grau de formalização das pessoas</p><p>ocupadas também é evidente: mulheres com 6,33% e homens com 3,08% (taxa</p><p>de desocupação para o ano de 2010); e 65,44% para mulheres e 67,13% para</p><p>homens (grau de formalização para o ano de 2010), respectivamente. Outra</p><p>informação interessante e que dialoga com os dados apresentados é o nível</p><p>educacional das pessoas ocupadas: 49,57% das mulheres ocupadas têm ensino</p><p>médio completo (12,9% superior completo) e 38,88% dos homens ocupados</p><p>têm ensino médio completo (9,5% superior completo) (PROGRAMA DAS</p><p>NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020).</p><p>Mas como os dados referentes ao nível educacional dialogam com essa</p><p>discrepância de renda? É exatamente essa pergunta que os estudos populacio-</p><p>nais em diversas áreas tentam responder. Nas ciências sociais, são discutidos</p><p>os impactos que as estruturas sociais exercem sobre essa dinâmica, com seus</p><p>valores culturais herdados de uma época recente em que, segundo as teorias</p><p>neoclássicas do trabalho, as mulheres eram pouco aptas para as atividades</p><p>produtivas, em virtude da maternidade e de sua aptidão “natural” ao cuidado</p><p>da família (DEGRAFF; ANKER, 2004). De acordo com a teoria neoclássica,</p><p>a racionalidade dos trabalhadores faz com que eles busquem trabalhos de</p><p>acordo com suas capacidades e interesses. No caso das mulheres, essa teoria</p><p>aponta para a preferência por cargos com salários iniciais altos, com baixo</p><p>retorno de experiência e com flexibilidade nos horários de trabalho, de forma</p><p>A geografia da população: enfoques contemporâneos10</p><p>que sejam permitidas saídas temporárias, pois as mulheres são consideradas</p><p>responsáveis pelo trabalho de reprodução social na casa (atividades domésticas</p><p>e de cuidado familiar) (DEGRAFF; ANKER, 2004).</p><p>Igualmente, os empregadores esperam que as mulheres gerem maiores cus-</p><p>tos empregatícios (o que muitas vezes é incorreto), devido a uma percepção</p><p>generalizada de que, devido às responsabilidades familiares, as mulheres</p><p>apresentam maior absenteísmo, maior impontualidade e maior rotatividade.</p><p>Desta maneira, cria-se um círculo vicioso intergeracional no qual a partici-</p><p>pação na força de trabalho diferenciada por sexo e a segregação ocupacional</p><p>por sexo são, ao mesmo tempo, os principais determinantes e as principais</p><p>consequências da desigualdade no mercado de trabalho baseada no gênero</p><p>(DEGRAFF; ANKER, 2004, p. 166).</p><p>Esses valores, que são culturais, relacionais, socialmente construídos e</p><p>adquiridos, se perpetuam e se transformam ao longo do tempo, com algumas</p><p>rupturas — hoje em dia, um número cada vez maior de mulheres tem ensino</p><p>superior e ocupa cargos de autoridades — e algumas continuidades — a</p><p>população feminina ainda recebe salários menores em comparação à mascu-</p><p>lina, e as donas de casa, responsáveis pelo trabalho de reprodução social, são</p><p>categorizadas como “População Economicamente Inativa”.</p><p>Como se não bastasse, considerando a dimensão étnico-racial, se tomamos</p><p>as mesmas variáveis que utilizamos para interpretar a desigualdade de gênero,</p><p>veremos que a situação não apenas permanece, como se agrava.</p><p>Vale ressaltar que, sempre que falamos de desigualdades raciais no Brasil, estamos</p><p>nos referindo a um problema estrutural, oriundo de um longo processo histórico,</p><p>cujo início remonta ao período do escravismo colonial, que moldou e transformou</p><p>econômica e socialmente o país até os dias de hoje (GORENDER, 2001; ALMEIDA 2019).</p><p>Ainda considerando o recorte espacial do Rio Grande do Sul, no ano de 2010</p><p>a renda per capita entre a população negra gaúcha foi de R$558,81 e entre a po-</p><p>pulação branca, R$1.038,03; os rendimentos médios entre a população ocupada</p><p>foi de R$875,06 (população negra) e de R$1.414,51 (população branca). A taxa</p><p>de desocupação foi de 6,43% para negros e 4,22% para brancos; e o grau de</p><p>11A geografia da população: enfoques contemporâneos</p><p>formalização foi de 64,21% (negros) e 66,84% (brancos). As informações mais</p><p>impressionantes são relacionadas à longevidade e à mortalidade: a expectativa</p><p>de vida ao nascer é de 74,2 anos para negros e de 75,8 anos para brancos; já a</p><p>mortalidade infantil é de 14,3% (negros) e de 11,8% (brancos) (PROGRAMA</p><p>DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020).</p><p>Ademais, o Atlas da Violência dos anos de 2017, 2018 e 2019, elaborado</p><p>pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), revela que, em escala</p><p>nacional, a população jovem negra é a principal vítima de homicídios no Bra-</p><p>sil. Ou seja, a taxa mortalidade, componente básico para avaliar a dinâmica</p><p>populacional, é maior para essa categoria social. A realidade das mulheres</p><p>negras — considerando uma intersecção entre os componentes étnico-raciais</p><p>e de gênero — é bastante semelhante:</p><p>A desigualdade racial pode ser vista também quando verificamos a proporção</p><p>de mulheres negras entre as vítimas da violência letal: 66% de todas as mulhe-</p><p>res assassinadas no país em 2017. O crescimento muito superior da violência</p><p>letal entre mulheres negras em comparação com as não negras evidencia a</p><p>enorme dificuldade que o Estado brasileiro tem de garantir a universalida-</p><p>de de suas políticas públicas (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA</p><p>APLICADA, 2019, p. 39)</p><p>Outro estudo, realizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências</p><p>fundada</p><p>na minimização dos custos e na maximização dos lucros ou da satisfação.</p><p>Por sua vez, as representações matriciais podem ser compreendidas em re-</p><p>lação aos meios operacionais que permitem extrair um conhecimento sobre</p><p>localizações e fluxos, hierarquias e especializações funcionais, por exemplo</p><p>(CORRÊA, 2003).</p><p>A geografia crítica surge em 1970, fundamentada no materialismo histórico</p><p>e na dialética. Logo, essa vertente procura romper com a geografia tradicional</p><p>e com a geografia teorético-quantitativa. Nessa perspectiva, o espaço aparece</p><p>Geografia como ciência10</p><p>como conceito-chave da geografia. A teoria marxista era discutida e rela-</p><p>cionada às contradições dos países centrais e periféricos e às desigualdades</p><p>entre esses grupos de países. O sistema capitalista é o objeto de análise dessa</p><p>vertente. Por fim, a geografia humanista/cultural surge em meados de 1970.</p><p>Essa perspectiva retoma os aspectos culturais e da história. Essa vertente,</p><p>semelhante à geografia crítica, tem suas bases filosóficas especialmente na</p><p>fenomenologia e no existencialismo (CORRÊA, 2003).</p><p>A seguir, veja os principais autores que escreveram sobre o pensamento geográfico</p><p>e a consolidação da geografia como ciência.</p><p> Geografia tradicional: Richard Hartshorne, com Propósitos e Natureza da Geografia</p><p>(1978).</p><p> Geografia teorético-quantitativa: Antônio Christofoletti, com Perspectivas da geo-</p><p>grafia (1982).</p><p> Geografia crítica: Henri Lefebvre, com O direito à cidade (2008), e Milton Santos, com</p><p>Por uma outra globalização (1996).</p><p> Geografia humanista/cultural: Yi-Fu Tuan, com Espaço e o lugar: a perspectiva da</p><p>experiência (1983), e Paul Claval, com A geografia cultural (1999).</p><p>ANDRADE, M. C. Ciência e sociedade: uma introdução à análise do pensamento geo-</p><p>gráfico. São Paulo: Atlas, 1987.</p><p>BIAGGI, E. M. de. Os acervos cartográficos das sociedades de geografia: mapas e redes: o</p><p>exemplo de Lyon. [s.l.: s.n., 2013]. Disponível em: http://www.cartografia.org.br/vslbch/</p><p>trabalhos/74/93/vslbch_debiaggi_1380554589.pdf. Acesso em: 24 abr. 2019.</p><p>CORRÊA, R. L. Espaço: um conceito-chave da geografia. In: CASTRO, I. et al. (org.).</p><p>Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.</p><p>MOREIRA, R. O que é a geografia. Brasília: editora brasiliense, 2010.</p><p>MORMUL, N. M.; ROCHA, M. M. Breves consideração acerca do pensamento geográfico.</p><p>Geografia ensino & Pesquisa, v.17, n. 3, p. 64–78, 2013. Disponível em: https://periodicos.</p><p>ufsm.br/geografia/article/view/7916. Acesso em: 24 abr. 2019.</p><p>11Geografia como ciência</p><p>PEREIRA, R. M. F. A. Da geografia que se ensina à gênese da geografia moderna. 1988.</p><p>120 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Santa Catarina,</p><p>Florianópolis, 1988. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/75444.</p><p>Acesso em: 24 abr. 2019.</p><p>PRADO FILHO, K.; TETI, M. M. A cartografia como método para as ciências humanas</p><p>e sociais. Barbarói, v.2, n.38, p. 45–59, 2013. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/</p><p>pdf/barbaroi/n38/n38a04.pdf. Acesso em: 24 abr. 2019.</p><p>SALES, A. L. P. Conceitos de geografia de Kant: e sua relação com o pensamento</p><p>geográfico recente. Revista OKARA, v. 7, n. 1, p. 186–188, 2013. Disponível em: http://</p><p>www.periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/okara/article/view/14497/9130. Acesso em:</p><p>24 abr. 2019.</p><p>SANTOS, M. A natureza e os espaço. São Paulo: USP, 2008.</p><p>SUERTEGARY, D. M. A. Espaço geográfico: interface natureza e sociedade. GEOSUL, v.</p><p>18, n. 35, p. 43–53, 2003. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/geosul/</p><p>article/view/13601. Acesso em: 24 abr. 2019.</p><p>Leituras recomendadas</p><p>MILTON Santos: 12 livros em pdf para download. In: FAROFA filosófica. [S. l.: s. n.], 2018.</p><p>Disponível em: https://farofafilosofica.com/2018/01/21/milton-santos-12-livros-em-</p><p>-pdf-para-download/. Acesso em: 25 abr. 2019.</p><p>SANTOS, M. Por uma geografia nova. São Paulo: Hucitec, Edusp, 1978.</p><p>Geografia como ciência12</p><p>GEOGRAFIA</p><p>DA</p><p>POPULAÇÃO</p><p>Aline Carneiro Silverol</p><p>Migrações internacionais</p><p>no mundo contemporâneo</p><p>Objetivos de aprendizagem</p><p>Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:</p><p> Descrever as migrações ambientais e suas motivações.</p><p> Identificar as migrações por conflitos em diferentes regiões do mundo</p><p>e suas consequências.</p><p> Avaliar a influência econômica e a descapitalização no processo migratório.</p><p>Introdução</p><p>As migrações, na maioria das vezes, são explicadas à luz dos elementos</p><p>econômicos e pela busca dos indivíduos por uma melhor qualidade de</p><p>vida. Os movimentos migratórios atuais também compartilham da mesma</p><p>prerrogativa, mas sua motivação inicial, além de ser diferente, na maioria</p><p>das vezes tem a ver com deslocamentos forçados. Já a migração ambiental</p><p>é motivada pelas condições do meio ambiente, sejam elas relacionadas a</p><p>catástrofes naturais, como terremotos, tufões e vulcanismo, mas também</p><p>por fenômenos potencializados pelas mudanças climáticas de causas</p><p>antrópicas, como os eventos extremos de secas e chuvas.</p><p>Neste capítulo, você vai analisar os movimentos migratórios contem-</p><p>porâneos relacionados às questões ambientais e aos conflitos, bem como</p><p>a influência da economia nesses deslocamentos.</p><p>1 Migrações ambientais e suas motivações</p><p>As migrações foram fenômenos presentes na vida dos nossos antepassados, pois</p><p>desde os tempos mais remotos os hominídeos permaneciam em constante movi-</p><p>mento pelo continente africano, em decorrência de seu comportamento nômade.</p><p>A busca por alimentos para caçar e coletar e a busca por novas terras cultiváveis</p><p>foram grandes motivadores da movimentação migratória, pois à medida que</p><p>eram exauridos os recursos de uma determinada região, era necessário migrar</p><p>para outra. Entretanto, quando o ser humano dominou as primeiras técnicas</p><p>agrícolas e pastoris, o Período Paleolítico foi substituído pelo Período Neolítico,</p><p>quando o nomadismo foi praticamente abandonado em favor do sedentarismo.</p><p>Os humanos, desde os nossos mais antigos ancestrais, eram nômades, ou seja, de</p><p>tempos em tempos migravam de um lugar para outro em busca de locais mais seguros,</p><p>maior oferta de comida, espaço, entre outros. O sedentarismo, ou o ato de permanecer</p><p>fixo em um determinado lugar, é considerado um evento relativamente recente, que</p><p>ocorreu nos últimos 12 mil anos.</p><p>As primeiras áreas com vida sedentária estavam localizadas às margens de</p><p>rios, devido à necessidade de irrigação. Assim, iniciou-se nos vales do rio Nilo,</p><p>no Egito; dos rios Tigre e Eufrates, no Iraque; do Indo, no Paquistão, Afeganistão</p><p>e Índia; e do rio Amarelo, na China. O estabelecimento de grupos humanos nos</p><p>vales dos rios foi responsável pela estruturação das cidades e, consequentemente,</p><p>pela adoção da vida sedentária nessas áreas. Além disso, a fixação dos grupos de</p><p>diversas etnias contribuiu para a invenção e o avanço da escrita, bem como para</p><p>surgimento das ciências exatas, como a matemática e a astronomia, para entender</p><p>os ciclos de cheias e secas dos rios (DANTAS; MORAIS; FERNANDES, 2011).</p><p>A movimentação de indivíduos entre os territórios, portanto, pode ser mo-</p><p>tivada por diversos fatores, como satisfação de necessidades básicas, conflitos,</p><p>invasões e desastres naturais e antrópicos. Essas motivações estão associadas</p><p>aos fatos e fenômenos que ocorrem no decorrer da história da humanidade,</p><p>como a própria evolução humana, aumento das demandas relacionadas à</p><p>sobrevivência e as expansões territoriais.</p><p>As forças da natureza sempre desafiaram o ser humano, como os terremotos,</p><p>tsunamis e vulcanismo, que estão associados à dinâmica interna da Terra. Há</p><p>também os fenômenos meteorológicos e climáticos, que podem atuar de forma</p><p>independente, como furacões, tufões, etc., ou que podem interferir e intensificar</p><p>alguns processos relacionados à dinâmica externa ou intemperismo, como erosão,</p><p>movimentos de massa, inundações, entre outros. Historicamente, a ocorrência desses</p><p>fenômenos e a consequente devastação promovida por eles estimulou, muitas vezes</p><p>de maneira compulsória,</p><p>a migração humana para outros locais mais seguros.</p><p>Migrações internacionais no mundo contemporâneo2</p><p>Os movimentos de massa referem-se aos movimentos de descida de solos e rochas</p><p>sob o efeito da gravidade, geralmente potencializado pela ação da água. Podem ser</p><p>classificados como deslizamentos, escorregamentos, ruptura de taludes, queda de</p><p>barreiras, queda de blocos rochosos, entre outros. As atividades humanas, como cortes</p><p>em taludes, aterros, desmatamentos, ocupações irregulares em encostas vulneráveis,</p><p>associadas às condições geológicas, geomorfológicas e climáticas intensificam a</p><p>ocorrência desses fenômenos.</p><p>Em épocas mais recentes, são os aspectos econômicos e políticos constituem um</p><p>dos principais motivadores para as migrações populacionais. Entretanto, as causas</p><p>naturais ou ambientais também continuaram a existir, mas como novos elementos.</p><p>Os maias, cuja sociedade era uma das mais avançadas na América Pré-Colombiana,</p><p>também foram vítimas de colapsos ambientais, que ocorreram por volta de 150 d.C. e,</p><p>mais tarde, no final do século VI e início do século VII. Por meio de estudos, foi possível</p><p>identificar nas crises ambientais mais alguns aspectos, como os danos ao sistema natural</p><p>pelo desmatamento e erosão, as secas da época, que potencializaram a degradação</p><p>ambiental e também fatores políticos e culturais, que envolviam a competição entre</p><p>reis e nobres, que priorizaram as guerras e a construção de monumentos, deixando</p><p>os problemas ambientais em segundo plano (LEUZINGER; RAFFOUL, 2018).</p><p>Acontecimentos como a Revolução Industrial e a Segunda Revolução</p><p>Agrícola, que ocorreram de maneira independente a partir do século XVIII,</p><p>promoveram um grande progresso técnico e científico nas áreas industriais</p><p>e agrícolas, com o aumento da produção em todos os setores. Por outro lado,</p><p>também recrudesceram os problemas ambientais. Embora o ser humano já</p><p>viesse há milênios exercendo grandes impactos sobre a natureza — e a extinção</p><p>em massa da megafauna americana é um bom exemplo —, a partir dessa época</p><p>ele passou a atuar de maneira mais predatória, alterando o funcionamento e o</p><p>ponto de equilíbrio dos sistemas naturais. A partir de então, para encontrarem</p><p>um novo ponto de equilíbrio, tais sistemas passaram a reagir às interferências,</p><p>de forma que as consequências também são sentidas pela sociedade.</p><p>3Migrações internacionais no mundo contemporâneo</p><p>Os movimentos migratórios ocasionados por mudanças ou catástrofes</p><p>ambientais naturais ou provocadas pelo homem, de caráter temporário ou</p><p>permanente, foram intensificados. Grupos de pessoas ou mesmo populações</p><p>são obrigados a abandonar seu local de origem para encontrar refúgio ou abrigo</p><p>em outras regiões. Devido a essa peculiaridade, os migrantes que se deslocam</p><p>de maneira compulsória em função de problemas ambientais são também cha-</p><p>mados de refugiados ambientais (DANTAS; MORAIS; FERNANDES, 2011).</p><p>O termo refugiado ambiental foi usado pela primeira vez em uma publicação do</p><p>professor Essam El-Hinnawi, do National Research Centre no Egito, em 1985. Nessa</p><p>publicação, os refugiados ambientais foram definidos como indivíduos que foram</p><p>forçados a deixarem seus locais de origem, em caráter temporário ou permanente,</p><p>devido a perturbação ambiental de ordem natural ou antrópica, que tenha colocado</p><p>em risco sua existência e sua qualidade de vida (LEUZINGER; RAFFOUL, 2018).</p><p>Apesar dos deslocamentos meio ambientais serem antigos, a sua discussão</p><p>ainda é recente, pois embora os afetados sejam tratados como refugiados, as</p><p>normas internacionais que regulamentam o status de refugiado ainda não</p><p>contemplam essa modalidade, sendo objeto de intensa discussão jurídica.</p><p>As diversas alterações no meio ambiente, sejam de ordem natural ou an-</p><p>trópica, atuam, portanto, como motivadores dos deslocamentos populacionais.</p><p>Alterações ambientais e migração</p><p>As alterações ambientais podem ser de duas ordens, naturais ou antrópicas,</p><p>e envolvem as dinâmicas interna e externa da Terra, que são responsáveis</p><p>por todos os fenômenos superfi ciais, subsuperfi ciais e de profundidade que</p><p>ocorrem em nosso planeta.</p><p>A dinâmica interna da Terra consiste nos processos que acontecem em</p><p>profundidade, e estão relacionados ao comportamento geofísico e geoquímico</p><p>das camadas terrestres (ERNESTO et al., 2009). Essa dinâmica é responsável</p><p>pela movimentação das placas tectônicas, cujo deslocamento pode promover os</p><p>abalos sísmicos, responsáveis pelos terremotos. Quando esses abalos ocorrem</p><p>na crosta oceânica, podem ocasionar maremotos ou tsunamis. Além disso,</p><p>Migrações internacionais no mundo contemporâneo4</p><p>temos também os processos vulcânicos, que tornam ativos de tempos em</p><p>tempos os diversos vulcões espalhados pelo mundo. Todos esses fenômenos,</p><p>quando acontecem e dependendo de sua magnitude, promovem um grande</p><p>deslocamento populacional em função dos danos causados (Figura 1).</p><p>Figura 1. Cenário de destruição causada por tsunami na Indo-</p><p>nésia, em 2004.</p><p>Fonte: AusAID (2018, documento on-line).</p><p>A dinâmica externa da Terra refere-se aos processos que ocorrem em su-</p><p>perfície, e estão relacionados à interação entre atmosfera, hidrosfera, litosfera,</p><p>biosfera e pedosfera. São fenômenos potencializados pelo ser humano, pois</p><p>o uso dos recursos naturais, a manipulação dos solos, o desmatamento, as</p><p>construções e os aterramentos alteram o equilíbrio dos sistemas. Com isso, e</p><p>associado às mudanças climáticas, eventos como chuvas extremas ou períodos</p><p>prolongados de chuvas podem provocar movimentos de massa, processos</p><p>erosivos, assoreamento dos rios e inundações.</p><p>Além disso, há também o impacto das mudanças climáticas e sua atuação</p><p>como um fator de expulsão, já que essas alterações, provocadas pela elevação</p><p>geral da temperatura global em função do aumento da emissão dos gases do</p><p>efeito estufa, modificam os fenômenos meteorológicos. Nesse sentido, essas</p><p>mudanças podem provocar eventos mais extremos, como chuvas e secas, bem</p><p>como o aumento da incidência de tufões, ciclones e tempestades tropicais</p><p>(ANDRADE; ANGELUCCI, 2016) (Figura 2).</p><p>5Migrações internacionais no mundo contemporâneo</p><p>Figura 2. Eventos extremos, com excesso de chuva, são responsáveis pelas</p><p>inundações.</p><p>Fonte: KATE_HANUMAN/Shutterstock.com.</p><p>Todos esses problemas geram impactos na economia, com a redução da</p><p>produção agrícola, destruição de infraestrutura e desalojamento, como também</p><p>os perigos inerentes a esses eventos, que obrigam milhares de pessoas, todos</p><p>os anos, a buscarem novos lugares para recomeçar suas vidas.</p><p>2 Migrações por conflitos</p><p>As migrações humanas são fenômenos presentes desde mais de 10 mil anos atrás,</p><p>quando nossos ancestrais migravam para locais em que suas necessidades básicas</p><p>fossem atendidas. Mesmo quando o motivo era a busca por áreas seguras e que aten-</p><p>dessem à demanda por alimentos para todos, as relações entre os grupos e no próprio</p><p>grupo não eram sempre de cooperação e troca. Muitas vezes, também apresentavam</p><p>confl itos, fosse pela liderança, por discordância de opiniões ou disputas diversas.</p><p>As grandes migrações provocadas por conflitos e invasões remontam</p><p>a no mínimo 3.000 a.C. no Oriente, quando os semitas invadiram as ci-</p><p>dades sumérias e estabeleceram o Império dos Acádios (FUNARI, 2018).</p><p>A partir daí, em busca de novos territórios, seguiu-se uma série de invasões</p><p>Migrações internacionais no mundo contemporâneo6</p><p>à Mesopotâmia por povos persas e gregos, e ao Egito, por vários povos e</p><p>de todas as direções, sendo depois finalmente conquistado pelos gregos</p><p>e persas, entre outros.</p><p>No mundo ocidental, as migrações pacíficas existiram em alguns momen-</p><p>tos, especialmente quando eram realizadas por vontade própria, na busca por</p><p>lugares novos e mais seguros e com maior oferta de suprimentos para todos.</p><p>Entretanto, as migrações em decorrência de conflitos e invasões eram fre-</p><p>quentes, devido à necessidade de expansão dos territórios. Na Antiguidade,</p><p>entre 264 a.C. e 146 a.C., durante as Guerras Púnicas entre Roma e Cartago,</p><p>houve</p><p>uma grande migração forçada dos cartagineses para outras regiões,</p><p>sobretudo para o norte da África (SILVA, 2017).</p><p>O ritmo das migrações forçadas aumentaram a partir do século V d. C., quando,</p><p>cada vez mais violentas, destruíram muitas províncias no Ocidente. Associadas</p><p>às conquistas e invasões mulçumanas, dos vikings e dos normandos, obrigaram</p><p>a migração dos povos para outras regiões na Europa (MOREIRA, 2004).</p><p>Os migrantes por conflitos são impulsionados a fugir da sua região de</p><p>origem devido a ameaças ou perseguições propriamente ditas, por razões</p><p>como raça, religião, nacionalidade, pertencimento a determinado grupo social</p><p>ou opiniões políticas. Além disso, esses grupos de indivíduos podem ter sua</p><p>vida, segurança e liberdade ameaçadas em função da violência generalizada,</p><p>agressão estrangeira, conflitos internos, violação massiva de direitos humanos</p><p>ou outros fatores que perturbem gravemente a ordem pública (MOREIRA,</p><p>2004). Esses migrantes, ao se deslocarem, buscam um refúgio, ou seja, um local</p><p>para se protegerem da perseguição. Dessa forma, os migrantes por conflitos</p><p>também são chamados de refugiados.</p><p>O termo refugiado, bem como seus direitos, é regulamentado pela Convenção Relativa</p><p>ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, e pelo Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados,</p><p>de 1966. Entretanto, a primeira referência histórica ao termo ocorreu na França, no</p><p>século XVII, durante a fuga dos huguenotes (pertencentes à religião protestante) devido</p><p>à revogação do Edito de Nantes em 1685, que, quando vigente, impedia a perseguição</p><p>religiosa e concedia liberdade para o culto religioso (SILVA, 2017).</p><p>7Migrações internacionais no mundo contemporâneo</p><p>Migrações na contemporaneidade</p><p>Em épocas recentes, as migrações por confl itos ganharam destaque a partir da</p><p>Primeira Guerra Mundial (1914–1918) e com a Revolução Russa (1917–1923),</p><p>quando houve um aumento signifi cativo no número de migrantes. A partir de</p><p>então, as primeiras discussões sobre os migrantes por confl itos, sua proteção</p><p>e seus impactos iniciaram-se no ano de 1921 (SILVA, 2017).</p><p>A Segunda Guerra Mundial, que ocorreu entre 1939 e 1945, representou um</p><p>marco importante para os problemas relacionados às migrações por conflitos, já</p><p>que foram registrados alguns dos maiores movimentos populacionais dos tempos</p><p>modernos, com mais de 40 milhões de migrantes provenientes dos mais diversos</p><p>países da Europa. Além disso, foram registradas aproximadamente 13 milhões</p><p>de pessoas de origem alemã expulsas de países como Polônia, Checoslováquia e</p><p>antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), além de 11,3 milhões</p><p>de trabalhadores forçados e pessoas deslocadas na Alemanha (MOREIRA, 2004).</p><p>Nas décadas de 1960 e 1970, uma onda de movimentos nacionalistas se</p><p>ergueu nas colônias africanas e asiáticas, que culminaram, respectivamente,</p><p>em sua descolonização e na criação de novos Estados independentes. A maioria</p><p>dessas colônias conseguiu realizar uma transição de forma pacífica, mas muitas</p><p>apresentaram processos violentos e guerras civis, como na Argélia, Ruanda</p><p>e Paquistão (MOREIRA, 2004).</p><p>Os movimentos nacionalistas que ocorreram na Argélia provocaram a migração de</p><p>argelinos para a Tunísia e o Marrocos, que são países fronteiriços. Esses movimentos</p><p>causaram na época um grande impacto nos países de destino, que não tinham estrutura</p><p>para receber de uma só vez cerca de 270 mil migrantes (MOREIRA, 2004).</p><p>Já nas décadas de 1970 e 1980, ocorreram vários conflitos armados em</p><p>alguns países da América Latina, principalmente em El Salvador, México,</p><p>Nicarágua, Guatemala e Chile, em decorrência de regimes ditatoriais que</p><p>passaram a ser questionados pelo povo. Esses conflitos resultaram em um fluxo</p><p>de mais de 2 milhões de migrantes, com destinos variados, como Honduras,</p><p>Belize, Estados Unidos e Canadá, cujo ponto de origem eram os países da</p><p>América Central (MOREIRA, 2004).</p><p>Migrações internacionais no mundo contemporâneo8</p><p>Ao mesmo tempo em que esses conflitos ocorriam no mundo, a Guerra</p><p>Fria iniciada em 1947, ao final da Segunda Guerra, com a doutrina Tru-</p><p>man (capitalismo contra comunismo), entre os Estados Unidos e a União</p><p>das Repúblicas Socialistas Soviéticas, também estava em andamento,</p><p>polarizando uma disputa ideológica entre o Leste–Oeste. As diferenças</p><p>ideológicas também promoveram movimentos populacionais ao longo</p><p>de várias décadas, e com o final da Guerra Fria, no início da década de</p><p>1990, novos movimentos migratórios se estabeleceram, como o retorno</p><p>aos países de origem.</p><p>Os conflitos atuais, a partir dos anos 2000, se caracterizam por serem de</p><p>caráter interno, ou seja, os conflitos acontecem dentro de um país ou território,</p><p>com guerras civis violentas que promovem a movimentação populacional.</p><p>Entretanto, os conflitos permaneceram, e nos dias atuais apresentam,</p><p>como objeto de disputa, questões étnicas e religiosas, políticas, econômicas,</p><p>recursos naturais e pontos estratégicos, que provocam conflitos separatistas,</p><p>invasões e atentados terroristas. Esses elementos comprometem a segurança</p><p>e a paz dos territórios, estimulando, seja de forma voluntária ou compulsória,</p><p>a migração de grandes massas populacionais.</p><p>Em 2018, os principais conflitos e tensões mundiais foram responsáveis por deslocar 25,4</p><p>milhões de pessoas em função de conflitos (UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER</p><p>FOR REFUGEES, 2018). Dentre eles, podemos destacar os conflitos na Síria; o Talibã no</p><p>Afeganistão; crise dos Rohingya em Mianmar; guerra civil no Sudão do Sul; conflito</p><p>curdo-turco; Al-Shabab na Somália; Guerra do Iêmen; conflito Israel–Palestina; Boko</p><p>Haram na Nigéria; Estado Islâmico no Iraque; guerra civil na Líbia; desestabilização no</p><p>Mali; crise política na Ucrânia; e crise política no Burundi.</p><p>As migrações por conflitos causam grandes consequências não só em</p><p>aspectos culturais, relacionadas ao abandono de seu território, mas também</p><p>econômicos, pois os migrantes deixam tudo para trás, necessitando de auxílio</p><p>para sua sobrevivência e para recomeçar uma nova vida. Ademais, há as ques-</p><p>tões sociais, políticas e jurídicas que envolvem os refugiados e sua inserção</p><p>em novo país, como a xenofobia, o impacto nas economias e o mercado de</p><p>trabalho no país anfitrião.</p><p>9Migrações internacionais no mundo contemporâneo</p><p>Consequências das migrações por conflitos</p><p>De maneira geral, para analisar as migrações internacionais na contempora-</p><p>neidade e entender seus impactos, é preciso levar em conta a diversidade dos</p><p>processos de redistribuição da população em âmbito global e assim entender</p><p>os fenômenos associados às migrações atuais. Esses fenômenos envolvem</p><p>fatores econômicos, como as condições econômicas e sociais e o bem-estar</p><p>social; questões culturais, como as relações entre tribos e grupos sociais rivais,</p><p>além das diferenças religiosas; e também elementos políticos, como os regimes</p><p>autoritários e ditatoriais, que promovem insatisfação, revolta e perseguição.</p><p>As teorias migratórias clássicas atribuem como motivação principal os</p><p>aspectos econômicos, que estão ligados ao mercado de trabalho e a melhores</p><p>condições de vida. A migração para lugares onde os migrantes conseguem</p><p>garantir a curto, médio ou longo prazo uma qualidade de vida melhor do que</p><p>em sua localidade de origem é uma importante perspectiva de atração, somada</p><p>a outros elementos associados ao movimento migratório, como família, rede</p><p>de apoio no país de destino, entre outros (SANTOS et al., 2010).</p><p>As dinâmicas associadas às migrações por conflitos diferem das motivações</p><p>econômicas, já que nessas os migrantes anseiam por um lugar específico para se</p><p>refugiar, preferencialmente próximo ao seu país de origem, em função de laços</p><p>afetivos que ainda mantêm. Além disso, os migrantes econômicos são estimulados</p><p>por fatores conjunturais, ou seja, por crises temporárias, mas que em alguns casos</p><p>podem atingir dimensões estruturais, como no caso da Síria, por exemplo (Figura 3).</p><p>Figura 3. Campo de refugiados sírios no Líbano, aguardando</p><p>o refúgio em outros</p><p>países.</p><p>Fonte: ahmad zikri/Shutterstock.com.</p><p>Migrações internacionais no mundo contemporâneo10</p><p>Nesse sentido, a absorção de grandes massas populacionais migrantes</p><p>por parte dos países tornou-se um grande problema, em função dos impactos</p><p>na economia de destino, bem como por atritos sociais ocasionadas pelas</p><p>diferenças culturais.</p><p>Com relação ao aspecto econômico, a recepção aos migrantes por parte</p><p>do país de destino não é algo simples, já que nem sempre esses migrantes</p><p>estão preparados, do ponto de vista educacional e mercadológico, para</p><p>serem inseridos de imediato no mercado de trabalho. Dessa forma, é ne-</p><p>cessário todo um amparo por parte do país anfitrião para o atendimento</p><p>das necessidades básicas, bem como de preparação para que esses grupos</p><p>possam se tornar economicamente ativos, o que pode causar impactos</p><p>na economia de forma geral. Além disso, existem também as diferenças</p><p>culturais, como o idioma e os hábitos, costumes e valores, que dificultam</p><p>a integração dos migrantes com a população residente, isolando-os ainda</p><p>mais do convívio social.</p><p>3 Influência econômica e a descapitalização</p><p>no processo migratório</p><p>Mesmo nas migrações por questões ambientais e por confl itos, apesar de</p><p>apresentarem fatores motivadores iniciais diferentes daqueles discutidos</p><p>pelas teorias migratórias clássicas, o elemento econômico permeia os fl uxos</p><p>populacionais de forma direta e indireta.</p><p>Os grandes fluxos migratórios tornaram-se muitos mais complexos após a</p><p>Segunda Guerra Mundial, pois todos os elementos motivadores estão relacio-</p><p>nados, de alguma forma, aos conflitos originados no período da Guerra Fria,</p><p>mesmo após o seu encerramento. As desigualdades sociais ainda presentes</p><p>nas nações fomentaram o desejo de uma vida melhor, e muitos indivíduos</p><p>encontram na migração a oportunidade para mudarem suas vidas e a de suas</p><p>famílias.</p><p>Devemos salientar que, grosso modo, as crises econômicas e as prioridades</p><p>políticas, econômicas e sociais de alguns países, como Brasil e outros da</p><p>América Latina, bem como diversos países do continente africano e asiático,</p><p>impedem o seu pleno desenvolvimento econômico e social. Isso afeta a oferta</p><p>de oportunidades para a sua população, de forma que nem todos conseguem</p><p>usufruir das mesmas chances de crescimento, o que também constitui elementos</p><p>motivadores de fuga.</p><p>11Migrações internacionais no mundo contemporâneo</p><p>Entre as décadas de 1980 até meados da década de 1990, o Brasil viveu um fenômeno</p><p>importante de emigração para os Estados Unidos. Nosso país, na década de 1980, vivia a</p><p>chamada “década perdida", com o fim do regime militar e os processos de redemocratização,</p><p>enquanto os Estados Unidos vivenciava a “era Reagan”, de intenso crescimento econômico.</p><p>Com o endurecimento das leis relacionadas aos migrantes e à migração em 1996 nos Estados</p><p>Unidos, tornou-se ainda mais difícil o fluxo migratório tanto legal quanto ilegal, reduzindo</p><p>as chances do sonho americano a muitos brasileiros (ANDRADE; ANGELUCCI, 2016).</p><p>As relações entre migrantes e países desenvolvidos foram se alterando com</p><p>o tempo, justamente em função dos aspectos econômicos e sociais. No início da</p><p>década de 1990, com o final da Guerra Fria, havia a esperança de que os conflitos</p><p>se reduzissem e que o mesmo acontecesse com a massa populacional migrante.</p><p>Entretanto, certos conflitos étnico-raciais e religiosos seguiram eclodindo, como</p><p>ocorre no Sudão, Afeganistão e Israel, gerando uma grande população refugiada.</p><p>Somado a isso, a má situação econômica de muitos países também motivou</p><p>mais migrantes a buscarem outras regiões para viver. A aceleração da economia</p><p>imposta pelo capitalismo e pela globalização aumentou as taxas de consumo da</p><p>população, que também trouxeram consequências do ponto de vista ambiental,</p><p>como a degradação dos solos e das águas e mudanças climáticas, que passaram</p><p>a ser fatores de expulsão de muitos grupos populacionais (ANDRADE; AN-</p><p>GELUCCI, 2016). A cultura globalizada de aquisição e consumo desenfreado,</p><p>bem como a descartabilidade dos produtos em função de modismos e incentivo</p><p>ao consumo, exacerbou a exploração dos recursos naturais, levando ao colapso</p><p>desses sistemas e, em alguns casos, até mesmo inutilizando-os.</p><p>Os sudaneses são reconhecidos como migrantes por conflitos e por problemas am-</p><p>bientais. Ainda que sua guerra civil, que durou 22 anos, entre 1983–2005, ser o motivo</p><p>mais debatido, os conflitos civis surgiram em função da degradação do meio ambiente.</p><p>O elevado índice populacional, o aumento da desertificação no norte do país e a</p><p>escassez de recursos naturais levou os indivíduos de maioria árabe e muçulmana</p><p>que habitavam a região a se deslocar para o sul, onde a maioria dos residentes eram</p><p>cristãos, ocasionando conflitos (ANDRADE; ANGELUCCI, 2016).</p><p>Migrações internacionais no mundo contemporâneo12</p><p>Entre 1950 e 1975, os países desenvolvidos acolheram muitos migrantes</p><p>por conflitos devido a interesses econômicos, culturais e políticos. Países</p><p>capitalistas como Alemanha Ocidental, Itália, França, Portugal e Espanha</p><p>aceitavam os migrantes de países comunistas, principalmente do leste europeu,</p><p>para compor a força de trabalho, além de diminuir a animosidade do mundo</p><p>em relação ao sistema econômico. Além de comporem a força de trabalho, eles</p><p>possuíam características similares à população local, como a fisionomia e os</p><p>hábitos culturais, diluindo-se no meio da sociedade capitalista (SILVA, 2017).</p><p>Porém, a partir da década de 1970, com a entrada de migrantes vindos da</p><p>Ásia e da África, os países capitalistas desenvolvidos alteraram a sua política</p><p>amistosa de imigração. Como a população asiática e africana não oferecia</p><p>qualquer vantagem geopolítica ou ideológica, pois estavam distantes da dis-</p><p>cussão entre o capitalismo e o socialismo, além de representarem um custo</p><p>de admissão maior em função de aspectos sociais e culturais, eles passaram</p><p>a ser vistos como problemas, aumentando a xenofobia.</p><p>Durante a recessão internacional entre os anos de 1975 e 1980 — que fomen-</p><p>tou discussões sobre a retomada do liberalismo econômico, que resultariam na</p><p>globalização — os migrantes eram vistos como um grande encargo econômico,</p><p>pois já não havia oportunidades para os que estavam ali, e também como um</p><p>fardo social, devido ao choque cultural entre imigrantes e residentes. Dessa</p><p>forma, como o recebimento de imigrantes não era mais vantajoso, desenvolveu-</p><p>-se até cero ponto uma percepção negativa a seu respeito (MOREIRA, 2004).</p><p>Como consequência, os países desenvolvidos passaram a adotar políticas mais</p><p>restritivas em relação aos migrantes. Taxados como refugiados ou não, o objetivo de</p><p>controlar o fluxo das fronteiras e de acolhimento de pessoas era necessário, já que</p><p>representavam grandes custos econômicos em seus países. Esses custos estariam</p><p>relacionados ao fornecimento de moradia, alimentação, acesso ao sistema de saúde e</p><p>educacional e treinamento para a inserção do migrante no mercado de trabalho, além</p><p>de auxílio financeiro, até que ele se inserisse no contexto da região (SILVA, 2017).</p><p>A globalização, como um processo de mundialização da economia, glo-</p><p>balizou não só as relações econômicas, como também as relações culturais,</p><p>demográficas, ambientais, políticas e sociais. Essas relações também se asso-</p><p>ciam aos movimentos migratórios, pois são motivados pelo conjunto dessas</p><p>questões, com mais ou menos relevância, de acordo com as condições e a</p><p>maneira como operam em seus países de origem.</p><p>As dinâmicas populacionais e migratórias são ditadas pela economia e pela</p><p>globalização. Elas mudam e se reorganizam a todo o tempo, de acordo com o</p><p>fluxo de migrantes, que alteram a sua direção em função das circunstâncias</p><p>conjunturais. Entretanto, os países e regiões de origem permanecem cada vez</p><p>13Migrações internacionais no mundo contemporâneo</p><p>mais à margem do desenvolvimento e do sistema econômico global, de forma que</p><p>os fluxos migratórios se mantêm ao longo dos anos, descapitalizando ainda mais</p><p>a economia e por fim, alimentando</p>os processos sociais e espaciais. Com isso, o giro cultural defende que os processos socioespaciais (entre eles os demográficos) estão estreitamente relacionados à cultura, que também atravessa as relações de classe, raça e gênero (NARVÁEZ MONTOYA, 2014). Os estudos de Campos et al. (2018), por exemplo, buscam compreender os padrões de mobilidade (migração) entre os grupos indígenas no Brasil, considerando tanto aspectos culturais (práticas sociais e de relação com a terra) quanto socioeconômicos (renda, região de domicílio, etc.). Além disso, a partir da perspectiva cultural na geografia, a cultura tam- bém passa a desempenhar um papel relevante na compreensão das formas de reprodução do capitalismo na sociedade (ÁLVAREZ GALLEGO, 2014). Nessa linha, busca compreender, por exemplo, como nos relacionamos com o trabalho produtivo e com o consumo. Considerando os estudos populacionais, a relação entre os aspectos cultu- rais, de gênero e etnia é fundamental, pois, por meio de análises de variáveis comuns como renda, trabalho, mortalidade e expectativa de vida, é possível compreender que a população não é homogênea, apresentando diferenciações socioeconômicas, orientadas pelas questões raciais, culturais, de gênero e classe. Nesse sentido, se nos dedicarmos a compreender a população em um nível pormenorizado, perceberemos que as pessoas estão inseridas em 9A geografia da população: enfoques contemporâneos contextos econômicos, sociais e culturais específicos, comportando-se de distintas formas ou afetadas em diferentes graus pelos mesmos problemas sociais. Por essa razão, são necessárias abordagens teóricas e metodológicas sensíveis a essas realidades e que forneçam subsídios para pensar, no debate público, projetos de desenvolvimento social, a fim de atenuar as desigualdades que podem ser agravadas e reforçadas pelas já mencionadas estruturas sociais. Retomando nossos exemplos, sabemos que o indicador renda, comumente utilizado para avaliar o índice de desenvolvimento humano em diversos países, varia conforme o grupo social, considerando que a população é compartimen- tada de acordo com as condições socioeconômicas das pessoas (estratificação social). Mas você sabia que existe no Brasil uma diferença significativa de renda entre homens e mulheres? Considerando o caso do Rio Grande do Sul, a renda per capita para o ano de 2010 entre as mulheres foi de R$704,32, enquanto para os homens foi de R$711,98 (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020). Também é possível notar uma diferença em relação ao rendimento médio por pessoas ocupadas, que para as mulheres foi de R$1.055 e para homens, de R$1.555,29 (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020). A diferença na taxa de desocupação e grau de formalização das pessoas ocupadas também é evidente: mulheres com 6,33% e homens com 3,08% (taxa de desocupação para o ano de 2010); e 65,44% para mulheres e 67,13% para homens (grau de formalização para o ano de 2010), respectivamente. Outra informação interessante e que dialoga com os dados apresentados é o nível educacional das pessoas ocupadas: 49,57% das mulheres ocupadas têm ensino médio completo (12,9% superior completo) e 38,88% dos homens ocupados têm ensino médio completo (9,5% superior completo) (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020). Mas como os dados referentes ao nível educacional dialogam com essa discrepância de renda? É exatamente essa pergunta que os estudos populacio- nais em diversas áreas tentam responder. Nas ciências sociais, são discutidos os impactos que as estruturas sociais exercem sobre essa dinâmica, com seus valores culturais herdados de uma época recente em que, segundo as teorias neoclássicas do trabalho, as mulheres eram pouco aptas para as atividades produtivas, em virtude da maternidade e de sua aptidão “natural” ao cuidado da família (DEGRAFF; ANKER, 2004). De acordo com a teoria neoclássica, a racionalidade dos trabalhadores faz com que eles busquem trabalhos de acordo com suas capacidades e interesses. No caso das mulheres, essa teoria aponta para a preferência por cargos com salários iniciais altos, com baixo retorno de experiência e com flexibilidade nos horários de trabalho, de forma A geografia da população: enfoques contemporâneos10 que sejam permitidas saídas temporárias, pois as mulheres são consideradas responsáveis pelo trabalho de reprodução social na casa (atividades domésticas e de cuidado familiar) (DEGRAFF; ANKER, 2004). Igualmente, os empregadores esperam que as mulheres gerem maiores cus- tos empregatícios (o que muitas vezes é incorreto), devido a uma percepção generalizada de que, devido às responsabilidades familiares, as mulheres apresentam maior absenteísmo, maior impontualidade e maior rotatividade. Desta maneira, cria-se um círculo vicioso intergeracional no qual a partici- pação na força de trabalho diferenciada por sexo e a segregação ocupacional por sexo são, ao mesmo tempo, os principais determinantes e as principais consequências da desigualdade no mercado de trabalho baseada no gênero (DEGRAFF; ANKER, 2004, p. 166). Esses valores, que são culturais, relacionais, socialmente construídos e adquiridos, se perpetuam e se transformam ao longo do tempo, com algumas rupturas — hoje em dia, um número cada vez maior de mulheres tem ensino superior e ocupa cargos de autoridades — e algumas continuidades — a população feminina ainda recebe salários menores em comparação à mascu- lina, e as donas de casa, responsáveis pelo trabalho de reprodução social, são categorizadas como “População Economicamente Inativa”. Como se não bastasse, considerando a dimensão étnico-racial, se tomamos as mesmas variáveis que utilizamos para interpretar a desigualdade de gênero, veremos que a situação não apenas permanece, como se agrava. Vale ressaltar que, sempre que falamos de desigualdades raciais no Brasil, estamos nos referindo a um problema estrutural, oriundo de um longo processo histórico, cujo início remonta ao período do escravismo colonial, que moldou e transformou econômica e socialmente o país até os dias de hoje (GORENDER, 2001; ALMEIDA 2019). Ainda considerando o recorte espacial do Rio Grande do Sul, no ano de 2010 a renda per capita entre a população negra gaúcha foi de R$558,81 e entre a po- pulação branca, R$1.038,03; os rendimentos médios entre a população ocupada foi de R$875,06 (população negra) e de R$1.414,51 (população branca). A taxa de desocupação foi de 6,43% para negros e 4,22% para brancos; e o grau de 11A geografia da população: enfoques contemporâneos formalização foi de 64,21% (negros) e 66,84% (brancos). As informações mais impressionantes são relacionadas à longevidade e à mortalidade: a expectativa de vida ao nascer é de 74,2 anos para negros e de 75,8 anos para brancos; já a mortalidade infantil é de 14,3% (negros) e de 11,8% (brancos) (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2020). Ademais, o Atlas da Violência dos anos de 2017, 2018 e 2019, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), revela que, em escala nacional, a população jovem negra é a principal vítima de homicídios no Bra- sil. Ou seja, a taxa mortalidade, componente básico para avaliar a dinâmica populacional, é maior para essa categoria social. A realidade das mulheres negras — considerando uma intersecção entre os componentes étnico-raciais e de gênero — é bastante semelhante: A desigualdade racial pode ser vista também quando verificamos a proporção de mulheres negras entre as vítimas da violência letal: 66% de todas as mulhe- res assassinadas no país em 2017. O crescimento muito superior da violência letal entre mulheres negras em comparação com as não negras evidencia a enorme dificuldade que o Estado brasileiro tem de garantir a universalida- de de suas políticas públicas (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2019, p. 39) Outro estudo, realizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências