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<p>DIREITO CIVIL III:</p><p>TEORIA GERAL DOS</p><p>CONTRATOS</p><p>Patricia Fernandes Fraga</p><p>Noções gerais de contrato</p><p>Objetivos de aprendizagem</p><p>Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:</p><p> Explicar a relevância do estudo dos contratos.</p><p> Analisar os elementos constitutivos dos contratos segundo a ótica</p><p>ponteana.</p><p> Identificar os princípios fundamentais aplicáveis aos contratos.</p><p>Introdução</p><p>Entendidas como os negócios em geral, as trocas realizadas entre os indi-</p><p>víduos são muito anteriores à regulamentação dos negócios pelo Direito,</p><p>uma vez que fazem parte da vida em sociedade e, consequentemente,</p><p>do desenvolvimento da civilização.</p><p>Com o passar dos séculos, esses negócios tornaram-se cada vez mais</p><p>diversos e complexos. De meros escambos e contratos sem qualquer</p><p>expressão escrita, a figura do contrato evoluiu para formas contratuais de</p><p>clausulado extenso e sofisticado. Da mesma maneira, para acompanhar</p><p>a dinâmica socioeconômica, os contratos desenvolvidos paritariamente</p><p>pelas partes pouco a pouco cederam lugar aos contratos de massa,</p><p>destinados a contratantes despersonalizados. Esses contratos eram desen-</p><p>volvidos por meio de instrumentos em que o aceitante não dispunha de</p><p>qualquer grau de liberdade ou poder para deliberar acerca das cláusulas</p><p>contratuais, de modo que apenas aderia aos termos predeterminados</p><p>pelo proponente se assim fosse a sua vontade. Caso contrário, desistia</p><p>da negociação sem a possibilidade de formular uma contraproposta.</p><p>Frente a esse novo cenário, o Direito precisou adaptar a sua concepção</p><p>tradicional de contrato às modificações trazidas pela contemporaneidade</p><p>para regular as relações negociais entre as partes, evitar a supremacia dos</p><p>interesses de um contratante sobre o outro e consolidar princípios com</p><p>vistas a guiar o bom andamento das trocas.</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 1 23/08/2018 09:01:07</p><p>Neste capítulo, estudaremos algumas noções gerais dos contratos,</p><p>examinando a importância, o conceito, os elementos característicos e os</p><p>princípios orientadores da disciplina contratual.</p><p>Relevância social dos contratos</p><p>É inegável que o contrato é a fi gura jurídica de maior relevância no estudo do</p><p>Direito Civil, pois se confi gura como a fonte principal das obrigações (GON-</p><p>ÇALVES, 2010). Afi nal, os contratos possibilitam as trocas, que permitem a</p><p>circulação de riquezas, sendo que essa circulação teoricamente possibilita que</p><p>um maior número de pessoas tenha acesso a bens e serviços. Por conseguinte,</p><p>aumentam as trocas e as riquezas, formando o que podemos chamar de um</p><p>círculo virtuoso.</p><p>Contratar faz parte da vida em sociedade.</p><p>Toda a sua vida é e provavelmente sempre será permeada por contratos,</p><p>desde os mais simples e automáticos até os mais complexos. Na vida con-</p><p>temporânea, contratar por vezes é uma contingência ou necessidade, como</p><p>podemos verificar nos contratos de fornecimento de água, gás e energia elétrica.</p><p>Contudo, eles também podem abarcar apenas uma forma de consumir lazer e</p><p>entretenimento, como no contexto dos contratos de prestação de serviços de</p><p>streaming (transmissão contínua) de vídeo e música, televisão por assinatura</p><p>ou, ainda, serviços gastronômicos ou artísticos.</p><p>Ainda no que se refere à importância da figura contratual, cumpre mencio-</p><p>narmos que o contrato é o instrumento que concretiza o direito de propriedade</p><p>(GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2008b), pois permite ao proprietário de</p><p>um bem-dispor sobre ele do modo que lhe aprouver em consonância e com</p><p>a proteção do ordenamento jurídico. Ademais, trata-se de um instituto de</p><p>conhecimento corrente, quase intuitivo, visto que ninguém vive em sociedade</p><p>sem contratar.</p><p>De modo geral, as relações de trabalho, a formação das empresas, a aquisi-</p><p>ção de bens e serviços ficariam sem regulação sem os contratos. Além disso, por</p><p>regulamentar os interesses das partes contratantes, eles estimulam os negócios,</p><p>uma vez que propiciam segurança jurídica quanto à execução da das vontades</p><p>manifestadas no instrumento contratual. Portanto, podemos concluir que os</p><p>contratos são instrumentos que reforçam a confiança e a colaboração entre</p><p>Noções gerais de contrato2</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 2 23/08/2018 09:01:07</p><p>as partes (COOTER; ULEN, 2010). Sendo assim, é evidente a necessidade de</p><p>compreender claramente o conceito, a natureza jurídica, as características, os</p><p>elementos e os princípios que norteiam as relações contratuais.</p><p>Conceito e natureza jurídica</p><p>O conceito de contrato modifi cou-se ao longo do tempo. Inicialmente conce-</p><p>bido como expressão do liberalismo econômico, da liberdade e da autonomia</p><p>das pessoas, aos poucos se tornou um instrumento de solidariedade e ética.</p><p>Antes de discutirmos as concepções de contrato propriamente ditas, cumpre</p><p>esclarecermos alguns aspectos acerca do fenômeno jurídico. Fato jurídico é</p><p>todo ato humano ou fato da natureza que tem relevância jurídica e, portanto,</p><p>passa a ser objeto de interesse e tutela pelo Direito. Inseridos nessa imensa</p><p>gama de fatos, encontram-se os atos executados pelo homem. Quando esses atos</p><p>são realizados de forma voluntária, lícita e de modo que os sujeitos envolvidos</p><p>possam escolher os efeitos que desejam produzir com a sua manifestação de</p><p>vontade, originam os negócios jurídicos, cujos exemplos mais notáveis para</p><p>o Direito Civil são justamente os contratos.</p><p>Conforme explica Gonçalves (2010), segundo a concepção clássica, con-</p><p>trato pode ser conceituado em sentido amplo como uma espécie de negócio</p><p>jurídico formado por, no mínimo, duas partes mediante mútuo consenso. Em</p><p>sentido estrito, por outro lado, pode ser entendido como um negócio jurídico</p><p>que cria, modifica ou extingue relações jurídicas patrimoniais. No mesmo</p><p>sentido, ao apresentar a influência do Direito francês na matéria contratual,</p><p>Almeida (2014, p. 25) ensina que contrato é um “[...] acordo projetado para</p><p>o futuro, que engendra, para um ou mais das pessoas que nele tomam parte,</p><p>obrigações de dar, de fazer ou de não fazer”.</p><p>Já Roppo (2009), com uma abordagem mais pragmática da figura contra-</p><p>tual, apresenta o contrato tanto como figura jurídica quanto como fenômeno</p><p>social. O autor demonstra que, antes de ser uma figura regulada pelo Direito,</p><p>o contrato representa uma operação econômica. Concretamente, refere a “[...]</p><p>aquisição ou a troca de bens e de serviços, o ‘negócio’ em suma, entendido,</p><p>por assim dizer, na sua materialidade, fora de toda a formalização legal, de</p><p>toda a mediação operada pelo direito ou pela ciência jurídica” (ROPPO, 2009,</p><p>p. 8). Diante disso, o autor expõe que o contrato “é a veste jurídico-formal de</p><p>operações econômicas. Donde se conclui que onde não há operação econômica,</p><p>não pode haver também contrato [...]” (ROPPO, 2009, p. 11). Ao considerarmos</p><p>o contrato como um instrumento jurídico para o fluxo das operações econô-</p><p>3Noções gerais de contrato</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 3 23/08/2018 09:01:07</p><p>micas, depreendemos que não existe contrato sem conteúdo patrimonial, dada</p><p>a concepção clássica de contrato, sendo necessário que ele crie, modifique ou</p><p>extinga uma relação jurídica de natureza econômica.</p><p>Além dessas, existem outras definições que compreendem o contrato como</p><p>inevitável e inafastável, configurando-se como uma figura jurídica de grande</p><p>relevância. Mediante a inclusão dos princípios jurídicos que regem a figura</p><p>dos contratos, podemos definir o contrato como um “[...] negócio jurídico por</p><p>meio do qual as partes declarantes, limitadas pelos princípios da função social</p><p>e da boa-fé objetiva, autodisciplinam os efeitos patrimoniais que pretendem</p><p>atingir, segundo a autonomia das suas próprias vontades” (GAGLIANO;</p><p>PAMPLONA FILHO, 2008b, p. 11). Em sentido análogo, contrato é:</p><p>Negócio jurídico bilateral, por meio do qual as partes, visando a atingir de-</p><p>terminados interesses patrimoniais, convergem as suas vontades, criando um</p><p>dever jurídico principal (de dar, fazer ou não fazer) e, bem assim, deveres</p><p>jurídicos anexos, decorrentes da boa-fé objetiva e do superior princípio</p><p>da</p><p>função social (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2008b, p. 14).</p><p>Por fim, devemos evidenciar a natureza jurídica dos contratos. Como</p><p>podemos deduzir a partir das considerações apresentadas até o momento,</p><p>dentre os fatos de relevância e interesse do Direito, os contratos podem ser</p><p>categorizados como atos jurídicos negociais, humanos, volitivos e lícitos. Em</p><p>outras palavras, eles possuem natureza de negócio jurídico, que é a mani-</p><p>festação de vontades direcionada aos efeitos escolhidos pelas partes e pode</p><p>ser unilateral, como os testamentos, ou bilateral, como os contratos. Dessa</p><p>forma, os contratos são classificados como bilaterais, pois para se configurarem</p><p>são necessárias manifestações de vontade contrapostas que alcançaram um</p><p>consenso acerca do ato negocial. Por conseguinte, entendemos como contrato</p><p>o negócio jurídico bilateral constituído por meio de manifestação de vontades</p><p>dirigida à criação, modificação ou extinção de obrigações, considerados os</p><p>limites do ordenamento jurídico.</p><p>Apresentados o conceito e a natureza jurídica, cumpre examinarmos, a</p><p>seguir, os elementos e os princípios que regem os contratos.</p><p>Noções gerais de contrato4</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 4 23/08/2018 09:01:08</p><p>Não podemos confundir o contrato com o meio pelo qual ele foi realizado.</p><p>Instrumento contratual — meio pelo qual o contrato é firmado. É o documento</p><p>composto por cláusulas contratuais que contém o conteúdo do negócio.</p><p> Preâmbulo: é a parte introdutória e contém a qualificação das partes, a descrição</p><p>do objeto, a forma de cumprimento, assim como as razões e as justificativas para</p><p>a existência do contrato.</p><p> Contexto: é o conjunto das cláusulas contratuais.</p><p>Será lícito e legítimo o contrato que respeitar o ordenamento jurídico na sua totali-</p><p>dade, ou seja, tanto os elementos exigidos pela lei quanto os princípios que validam</p><p>o seu conteúdo (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2008b).</p><p>Elementos constitutivos segundo</p><p>a ótica ponteana</p><p>Primeiramente, é importante esclarecermos que, a depender da doutrina,</p><p>os elementos que serão apresentados neste capítulo como constitutivos po-</p><p>dem ser referidos como pressupostos, requisitos (segundo Pereira [1997], por</p><p>exemplo) ou condições de validade dos contratos (segundo Gonçalves [2010],</p><p>por exemplo).</p><p>Para alcançarmos uma compreensão global do fenômeno contratual, ana-</p><p>lisaremos um esquema que, embora não tenha sido criado por Pontes de</p><p>Miranda, foi denominado escada ponteana, pois se fundamenta nas suas</p><p>teorias (TARTUCE, 2017). Veja esse esquema na Figura 1.</p><p>5Noções gerais de contrato</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 5 23/08/2018 09:01:08</p><p>Figura 1. Representação da escada ponteana.</p><p>Posto isso, necessitamos especificar o que são os elementos essenciais</p><p>dos negócios jurídicos mencionados na escada ponteana.</p><p>Elementos do plano da existência — são os pressupostos para o negócio</p><p>jurídico. “Nesse plano há apenas substantivos sem adjetivos, ou seja, sem</p><p>qualquer qualifi cação (elementos que formam o suporte fático)” (TARTUCE,</p><p>2017, p. 15). Sem estes elementos, o negócio é inexistente:</p><p> Agente ou parte — a vontade não se manifesta sozinha, de modo que</p><p>o sujeito ou o agente deve declará-la.</p><p> Manifestação de vontade — não há negócio jurídico sem a manifestação</p><p>da vontade humana.</p><p> Objeto — é a prestação da obrigação que foi acordada entre as partes e</p><p>subdivide-se em objeto imediato, que é a atividade requerida ao devedor</p><p>Noções gerais de contrato6</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 6 23/08/2018 09:01:08</p><p>da obrigação (dar, fazer ou não fazer), e objeto mediato, que compreende</p><p>o bem da vida transacionado (dinheiro, pintura, limpeza, aula, etc.).</p><p> Forma — é o instrumento de condução da vontade (oral, escrita, ges-</p><p>tual, etc.).</p><p>Caso contenha todos esses elementos, o negócio existe juridicamente.</p><p>Elementos do plano da validade — são os elementos do plano da existência</p><p>adjetivados.</p><p> Agente capaz e legitimado — o agente necessita de capacidade para</p><p>entabular negócios jurídicos. Nos termos do art. 166, I, do Código Civil</p><p>(BRASIL, 2002), se o agente for incapaz, o negócio é nulo. Conforme</p><p>o art. 171, I, do mesmo diploma legal, caso o agente seja relativamente</p><p>incapaz, o negócio é anulável se não for confirmado pelo representante</p><p>legal (pais, tutor, curador). Igualmente, quando a lei assim o exigir,</p><p>precisará estar legitimado para realizar determinados contratos.</p><p> Vontade livre (consciente) e de boa-fé — a vontade livre é aquela for-</p><p>mada sem vícios de consentimento, como erro, dolo, coação, lesão ou</p><p>estado de perigo. De acordo com Gagliano e Pamplona Filho (2008b),</p><p>também é necessária que as partes atentem aos deveres oriundos da</p><p>boa-fé em sentido objetivo, isto é, cuidado, sigilo, informação, lealdade</p><p>etc. Da mesma forma, a vontade não deve se destinar a prejudicar a con-</p><p>traparte, como nos casos de fraude e simulação, e deve buscar cumprir</p><p>com o que foi pactuado. Nesse sentido, o art. 110 do Código Civil assim</p><p>define: “A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja</p><p>feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o</p><p>destinatário tinha conhecimento” (BRASIL, 2002, documento on-line).</p><p>Portanto, quando o agente não deseja de fato aquilo que manifestou,</p><p>o negócio é desconstituído somente se a outra parte conhecia as reais</p><p>intenções do manifestante.</p><p> Objeto idôneo — o objeto do negócio deve ser: lícito, de modo que</p><p>não seja contrário ao Direito nem a moral; possível juridicamente e</p><p>fisicamente, uma vez que não é válido, por exemplo, um contrato de</p><p>compra e venda de terreno no céu ou de parte do oceano; determinado</p><p>ou determinável, ou seja, deve possuir requisitos mínimos de indivi-</p><p>duação, como espécie e quantidade. Ademais, atentemos ao art. 426</p><p>do Código Civil: “Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa</p><p>viva” (BRASIL, 2002).</p><p>7Noções gerais de contrato</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 7 23/08/2018 09:01:08</p><p> Forma prescrita ou não defesa em lei — a forma de exteriorização</p><p>da vontade em regra é livre. Entretanto, quando prescrita em lei, ela</p><p>pertence à substância do negócio e deve, portanto, ser respeitada, sob</p><p>pena de nulidade do negócio (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO,</p><p>2008b). A esse respeito, confira os arts. 108 e 166, IV e V, do Código</p><p>Civil (BRASIL, 2002).</p><p>Uma vez que existentes e válidos, os negócios tendem a produzir ime-</p><p>diatamente os seus efeitos no mundo dos fatos. Contudo, é possível que haja</p><p>elementos acidentais que limitam essa eficácia.</p><p>Elementos do plano da efi cácia — são elementos acidentais, uma vez que</p><p>a efi cácia dos negócios jurídicos contratuais tende a ser imediata. Contudo,</p><p>eventualmente os seguintes elementos podem limitar essa efi cácia:</p><p> Condição — evento futuro e incerto que, caso ocorra, inicia a produção</p><p>dos efeitos do negócio (condição suspensiva) ou faz cessá-los (condição</p><p>resolutiva).</p><p> Termo — evento futuro e certo que atrasa o começo da produção dos</p><p>efeitos do negócio (termo inicial) ou faz cessá-los (termo final).</p><p> Modo ou encargo — determinação acessória acidental de negócios</p><p>jurídicos gratuitos que impõe ao beneficiário do negócio um ônus a</p><p>ser cumprido em favor de uma liberalidade, como vantagens, bens e</p><p>direitos, maior (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2008b).</p><p>Considerados os elementos essenciais e acidentais dos negócios jurídi-</p><p>cos contratuais, cumpre examinarmos os princípios que guiam o processo</p><p>contratual.</p><p>Para aprender mais acerca da concepção de obrigação e contratos como processo,</p><p>sugerimos a leitura do livro A obrigação como processo, de Clóvis do Couto e Silva</p><p>(SILVA, 2007).</p><p>Noções gerais de contrato8</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 8 23/08/2018 09:01:08</p><p>Princípios fundamentais da relação contratual</p><p>Princípio da autonomia da vontade ou do consensualismo</p><p>Não há contrato se as vontades não forem autônomas. Essa autonomia da</p><p>vontade manifesta-se de duas formas diversas:</p><p> Liberdade para contratar — é a opção de realizar ou não determinado con-</p><p>trato e escolher com quem contratar. A liberdade</p><p>para contratar relaciona-se</p><p>ao consensualismo, que é o encontro de vontades livres e contrapostas.</p><p>Afinal, o consentimento é fundamental à realização de um contrato.</p><p> Liberdade contratual ou para estipular o conteúdo do contrato —</p><p>é a possibilidade de estabelecer o conteúdo do contrato. A liberdade</p><p>contratual é muito reduzida nos contratos realizados por adesão, nos</p><p>quais a liberdade de contratar ainda existe, mas a contratual, isto é, de</p><p>estipular as cláusulas, é praticamente nula.</p><p>Esquematicamente, podemos resumir as expressões do princípio da auto-</p><p>nomia da vontade ou do consensualismo da seguinte forma:</p><p> liberdade de contratar (de contratar ou não e de escolher com quem</p><p>contratar);</p><p> liberdade contratual (de estipular o conteúdo do contrato);</p><p>De maneira semelhante, Gagliano e Pamplona Filho (2008b) consideram</p><p>que o princípio da autonomia da vontade pode ser compreendido em três</p><p>liberdades diversas:</p><p> Liberdade para contratar — é preciso que haja a vontade de contratar e</p><p>que ela seja livre, pois ninguém deve ser obrigado a firmar um contrato,</p><p>sob pena de vício de consentimento. Se a vontade não é livre, sucede a</p><p>invalidade do negócio jurídico. Uma exceção a esse tipo de liberdade</p><p>é a contratação do seguro obrigatório de veículos, por exemplo.</p><p> Liberdade para escolher com quem contratar — os agentes devem</p><p>poder escolher com quem contratar. As exceções residem nas hipóteses</p><p>de monopólio da prestação de serviços, como nos casos de energia</p><p>elétrica e água, situações que normalmente são prejudiciais aos con-</p><p>tratantes, pois, sem concorrência, as prestadoras tendem a oferecer</p><p>serviços de mínima qualidade.</p><p>9Noções gerais de contrato</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 9 23/08/2018 09:01:08</p><p> Liberdade para estabelecer o conteúdo do contrato — na medida do</p><p>possível, as partes devem entrar em um consenso (contratos paritários) no</p><p>que tange ao conteúdo do contrato. Quanto mais liberdade houver para a</p><p>estipulação conjunta do seu conteúdo, mais forte será o vínculo das partes</p><p>com as obrigações firmadas. Como exceções a esse tipo de liberdade,</p><p>podemos citar o contrato de trabalho, cujas cláusulas atendem ao art. 7º da</p><p>Constituição Federal (BRASIL, 1988), à Consolidação das Leis do Trabalho</p><p>(BRASIL, 1943) e demais legislações complementares. Além do contrato</p><p>de trabalho, o contrato por adesão, cujas cláusulas são preestabelecidas</p><p>por uma das partes e a outra apenas adere, também se apresenta como</p><p>uma exceção. O instrumento contratual por adesão permite facilitar as</p><p>trocas, pois reduz os custos de uma estipulação contratual pormenorizada</p><p>e possibilita o tratamento isonômico entre os aderentes. Os abusos even-</p><p>tualmente cometidos nesses contratos são objeto de controle externo do</p><p>Estado (BRASIL, 2002, arts. 423 e 424 do Código Civil; BRASIL, 1990,</p><p>arts. 51 e 54 do Código de Defesa do Consumidor [CDC]).</p><p>Em benefício do bem comum, há limitações da autonomia da vontade ou</p><p>do consensualismo:</p><p> Dirigismo contratual — diz respeito ao intervencionismo do Estado</p><p>nos negócios privados. O Estado cria normas destinadas a proteger os</p><p>elementos economicamente mais fracos, como no caso dos contratos</p><p>de trabalho, locação, consumo, etc.</p><p> Autonomia privada — semelhante à autonomia da vontade, mas nesse</p><p>caso limitada ou exercida nos limites do ordenamento jurídico, que</p><p>podem ser dados pela própria lei para garantir direitos ou impedir abusos</p><p>(BRASIL, 1990, art. 51 do CDC), pela moral em função da avaliação</p><p>ética do negócio jurídico, pela ordem pública em relação a temas de</p><p>relevante interesse do Estado relacionados ao Direito, à política, à</p><p>economia, etc. Portanto, atualmente a expressão “autonomia privada”</p><p>passa a ser mais adequada na avaliação dos negócios jurídicos em geral.</p><p>Princípio da força obrigatória do contrato</p><p>ou da obrigatoriedade</p><p>Este é o princípio que mais corresponde ao ideal liberal e à concepção clássica</p><p>dos contratos, uma vez que o contrato deve ser lei entre as partes. Segundo</p><p>Pereira (2017, p. 14), o princípio da força obrigatória do contrato tem em si uma:</p><p>Noções gerais de contrato10</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 10 23/08/2018 09:01:08</p><p>[...] ideia que reflete o máximo de subjetivismo que a ordem legal oferece: a</p><p>palavra individual, enunciada na conformidade da lei, encerra uma centelha de</p><p>criação, tão forte e tão profunda, que não comporta retratação, e tão imperiosa</p><p>que, depois de adquirir vida, nem o Estado mesmo, a não ser excepcionalmente,</p><p>pode intervir, com o propósito de mudar o curso de seus efeitos.</p><p>Em virtude do princípio da obrigatoriedade dos contratos, o contrato deve</p><p>ser cumprido conforme o estipulado pelos sujeitos envolvidos, pois, uma vez</p><p>que contratam livre e conscientemente, devem honrar as obrigações assu-</p><p>midas. Contudo, nenhum princípio possui caráter absoluto e o Código Civil</p><p>de 2002 trouxe expressamente hipóteses de moderação do princípio da força</p><p>obrigatória (BRASIL, 2002).</p><p>O pacta sunt servanda era tido como absoluto quando ainda se pressupunha</p><p>que as partes eram formalmente iguais e deliberavam de forma equilibrada sobre</p><p>o conteúdo do contrato. Entretanto, hoje em dia esse princípio tem se tornado mais</p><p>discreto nos negócios jurídicos contratuais em razão da criação de mecanismos</p><p>jurídicos de regulação do equilíbrio contratual (nulidade de cláusulas abusivas,</p><p>teoria da imprevisão, etc.). Um desses mecanismos ou instrumentos é a teoria</p><p>da imprevisão, que une o brocardo pacta sunt servanda (“o contrato deve ser</p><p>cumprido”) com rebus sic stantibus (“estando as coisas assim”). Portanto, o contrato</p><p>estabelece uma lei entre as partes e deve ser cumprido, estando as coisas como</p><p>estavam no momento de fixação do negócio. Dessa forma, quando um aconteci-</p><p>mento imprevisível e superveniente torna a prestação muito onerosa para uma das</p><p>partes, pode ser necessária a modificação ou até mesmo a extinção do contrato.</p><p>A teoria da imprevisão pura, ou não qualificada, não exige como elemento</p><p>essencial para aplicação o enriquecimento da parte contrária, pois o seu objetivo</p><p>é socorrer o contratante que, em virtude de uma situação imprevista, será lesado</p><p>pelo desequilíbrio contratual (vedação da onerosidade excessiva). Todavia, para</p><p>a teoria da imprevisão qualificada é necessária a comprovação da onerosidade</p><p>excessiva, ou seja, da imprevisão, assim como da vantagem excessiva obtida</p><p>pela outra parte. Já para a teoria da quebra da base objetiva, ou da onerosidade</p><p>excessiva pura, é preciso apenas comprovar a onerosidade excessiva, dispensada</p><p>a imprevisibilidade ou a extraordinariedade do evento superveniente.</p><p>Princípio da equivalência das prestações ou da</p><p>equivalência material</p><p>O contrato obriga as partes nos limites do equilíbrio dos direitos e deveres</p><p>entre elas. Esse equilíbrio possui dois aspectos (LÔBO, 2011, p. 71):</p><p>11Noções gerais de contrato</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 11 23/08/2018 09:01:09</p><p> Aspecto subjetivo — considera a vulnerabilidade das partes contratan-</p><p>tes, de forma que há casos em que deve ser dado tratamento mais atento</p><p>às partes que estejam em notória desvantagem na relação contratual,</p><p>como aderentes, consumidores, trabalhadores, etc. Da mesma forma,</p><p>analisa o poder econômico dominante das partes e a sua influência na</p><p>relação contratual.</p><p> Aspecto objetivo — diz respeito à efetiva desigualdade de direitos e</p><p>deveres estipulados no contrato ou decorrentes de evento superveniente.</p><p>Nesse caso, o ordenamento jurídico deve primar pelo equilíbrio ou</p><p>reequilíbrio (BRASIL, 1990, art. 6º do CDC) entre as prestações das</p><p>partes, evitando o abuso do poder econômico e o enriquecimento sem</p><p>causa por parte do credor às custas do empobrecimento sem causa por</p><p>parte do devedor (BRASIL, 2002, art. 478 e seguintes do Código Civil).</p><p>Assim, podemos perceber nitidamente que o princípio da equivalência</p><p>material possui estreita relação com os princípios do pacta sunt servanda e</p><p>rebus sic stantibus.</p><p>Princípio da relatividade dos efeitos do contrato</p><p>Se o contrato estabelece uma lei</p><p>entre as partes, então os seus efeitos dizem respeito</p><p>apenas às partes e não a terceiros estranhos à relação jurídica originada (LÔBO,</p><p>2011, p. 64). Logo, o que foi contratado pelas partes não prejudica nem benefi cia</p><p>terceiros. Todavia, as exceções residem na estipulação em favor de terceiro,</p><p>quando A contrata B para executar algo em benefício de C, como nos casos de</p><p>seguro de vida, e no contrato com pessoa a declarar. Acerca do tema, vejamos o</p><p>art. 467 do Código Civil: “No momento da conclusão do contrato, pode uma das</p><p>partes reservar-se a faculdade de indicar a pessoa que deve adquirir os direitos</p><p>e assumir as obrigações dele decorrentes” (BRASIL, 2002, documento on-line).</p><p>Princípio da função social do contrato</p><p>Além de atender aos requisitos de validade do negócio jurídico, os contratos</p><p>também devem respeitar normas (regras e princípios) de conteúdo moral e social,</p><p>que são plenamente exigíveis por serem valoradas pelo ordenamento jurídico.</p><p>De acordo com Gagliano e Pamplona Filho (2008a), a origem do princípio</p><p>da função social do contrato está na função social da propriedade, momento</p><p>em que se percebeu que ela deveria ser digna de tutela somente se além dos</p><p>Noções gerais de contrato12</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 12 23/08/2018 09:01:09</p><p>interesses privados atendesse a uma finalidade social. Nesse contexto, o</p><p>contrato também passa a ser um meio de atender não só a interesses privados,</p><p>mas também a finalidades sociais, garantindo a dignidade dos contratantes.</p><p>Esse princípio expressa caráter dúplice (TARTUCE, 2017; GAGLIANO;</p><p>PAMPLONA FILHO, 2008b):</p><p>1. Intrínseco ou interno — diz respeito à análise do contrato em si, uma vez</p><p>que não pode ser vantajoso apenas para uma das partes. É o princípio da</p><p>função social que atua na relação entre as partes para manter o equilíbrio da</p><p>relação contratual, de modo que ela não seja um instrumento de submissão</p><p>de uma das partes à outra. Assim, abusos entre os contratantes são inibidos.</p><p>2. Extrínseco ou externo — o contrato não pode ser vantajoso apenas para</p><p>as partes. É o princípio da função social que atua na relação do negócio</p><p>jurídico frente à sociedade e atenta aos impactos que o contrato propi-</p><p>cia socialmente. Dessa maneira, as trocas devem ser úteis e justas e o</p><p>contrato deve colaborar com o desenvolvimento social, pois é um meio</p><p>fundamental para a circulação de riquezas e, portanto, tem implícito um</p><p>caráter de progresso, de acesso a bens e serviços, que são essenciais ao</p><p>desenvolvimento da sociedade. É por meio dos contratos que se alcança</p><p>maior segurança e colaboração no cumprimento das obrigações, de modo</p><p>a facilitar e incentivar as trocas. Além disso, em sentido socioeconômico,</p><p>é inegável a contribuição motivada pelos negócios jurídicos contratuais.</p><p>As relações jurídicas contratuais já não podem ser vistas apenas sob o prisma dos</p><p>princípios da força obrigatória e da autonomia da vontade, pois exigem uma análise</p><p>sistêmica, isto é, no contexto das demais normas jurídicas, atentando aos impactos que</p><p>os contratos acarretam a terceiros ou à coletividade. Assim, um grande empreendimento</p><p>imobiliário pode causar repercussões drásticas no meio ambiente, grandes indústrias</p><p>podem estar explorando em demasia o trabalho dos seus contratados, o que os leva à</p><p>exaustão, a aquisição de ofensivos agrícolas e a sua utilização, assim como a construção</p><p>de fossas e cemitérios, podem poluir lençóis freáticos, o que representa prejuízo coletivo.</p><p>Conforme o art. 421 do Código Civil: “A liberdade de contratar será exer-</p><p>cida em razão e nos limites da função social do contrato” (BRASIL, 2002,</p><p>documento on-line).</p><p>13Noções gerais de contrato</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 13 23/08/2018 09:01:09</p><p>O legislador determinou que a liberdade de contratar deve ser exercida em</p><p>razão da função social do contrato, fundamentada na diretriz de socialidade do</p><p>Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002). Tal afirmação — que a função social</p><p>deve ser a razão de contratar — severa e limitativa deve ser compreendida</p><p>mais no sentido intrínseco da função social do contrato do que no sentido</p><p>extrínseco, ou seja, no sentido de que as partes necessitam manter um equilíbrio</p><p>de direitos e deveres para que o contrato não seja objeto ou instrumento de</p><p>injustiças ou abusos que atentem contra a dignidade das partes.</p><p>Já no que tange aos limites que a função social impõe aos contratos, o</p><p>caráter exógeno aparece com mais ênfase, uma vez que a liberdade de con-</p><p>tratar deve encontrar justo limite no interesse social, nos valores garantidos</p><p>constitucionalmente. Desse modo, negócios jurídicos que acarretem prejuízos</p><p>sociais aos consumidores, ao meio ambiente ou à dignidade da pessoa devem</p><p>ser barrados em respeito à função social do contrato.</p><p>Função social e lesão</p><p>Ocorre lesão quando alguém se obriga à prestação manifestamente despropor-</p><p>cional em relação à contraprestação. O art. 157 do Código Civil (BRASIL, 2002)</p><p>veda a ocorrência de negócio jurídico cujas prestações são manifestamente</p><p>desiguais. A lesão se faz presente em situações de premente necessidade</p><p>patrimonial ou inexperiência da parte:</p><p> Necessidade patrimonial — o devedor é impelido a contratar para suprir</p><p>uma necessidade premente. A necessidade é patrimonial e, portanto,</p><p>não diz respeito a risco de morte ou grave lesão.</p><p> Inexperiência — falta de conhecimento acerca do negócio, do preço</p><p>ou das condições do objeto da transação.</p><p>O ordenamento jurídico não pode permitir que negócios jurídicos sejam</p><p>firmados em situação de lesão, visto que a vontade emitida está de algum</p><p>modo prejudicada (vício de consentimento).</p><p>Função social e estado de perigo</p><p>Quando alguém em uma situação de perigo conhecida pela outra parte emite</p><p>declaração de vontade contratual para salvar a si ou a alguém próximo de</p><p>morte ou grave lesão (dano), de forma a assumir obrigação excessivamente</p><p>onerosa. Segundo o art. 156 do Código Civil (BRASIL, 2002), o estado de</p><p>Noções gerais de contrato14</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 14 23/08/2018 09:01:09</p><p>perigo vicia o consentimento, de modo que a vontade não é plenamente livre,</p><p>e pode dar margem à anulação do negócio jurídico. Como exemplo, podemos</p><p>citar o termo de responsabilidade ou caução exigidos pelos hospitais antes de</p><p>procedimentos de urgência e o aumento do valor do seguro saúde enquanto a</p><p>vítima doente está hospitalizada. Assim como na lesão, o ordenamento jurídico</p><p>não pode permitir que os contratos sejam concluídos sob estado de perigo,</p><p>de modo que a função social, sobretudo no seu aspecto intrínseco, pode ser</p><p>invocada para tutelar eventuais abusos de uma parte sobre a outra.</p><p>Princípio da boa-fé contratual</p><p>Segundo Gagliano e Pamplona Filho (2008a), o princípio da boa-fé contratual</p><p>possui duas origens:</p><p> Direito romano ( fides ou bona fides) — fidelidade ao que foi pactuado</p><p>ou obediência, comprometimento. A expressão “boa-fé” teria como</p><p>significado honrar a palavra dada.</p><p> Direito alemão (Treu und Glauben) — lealdade e crença, confiança,</p><p>regras que deveriam ser observadas nas relações jurídicas em geral.</p><p>A boa-fé corresponderia a uma conduta pautada na lealdade, na</p><p>confiança e na ética, pois dela decorrem os deveres de conduta a serem</p><p>seguidos pelos contratantes.</p><p>Boa-fé subjetiva (norma-regra): corresponde ao caráter psicológico do sujeito</p><p>que age isento de malícia, bem-intencionado, assim como à suposição de agir em</p><p>conformidade com o Direito. É relativa ao desconhecimento da violação e à intenção</p><p>do sujeito; contrária à má fé. Contratualmente, apenas a boa-fé subjetiva não basta.</p><p>Boa-fé objetiva (norma-princípio): cláusula geral que impõe às partes o dever</p><p>de colaborar mutuamente, determinando um comportamento ativo (positivo) de</p><p>pautar-se com lealdade, de modo a evitar atos que causem prejuízo à outra parte.</p><p>É relativa à confiança, ao comportamento probo, pois é a ética que se espera nos</p><p>contratos e no comportamento das partes, fundamentada na diretriz de eticidade do</p><p>Código Civil de 2002 (BRASIL, 2002). O seu fundamento estaria</p><p>no dito processo de</p><p>constitucionalização do Direito Civil, ao passo que a sua finalidade seria flexibilizar o</p><p>sistema contratual para permitir soluções adequadas em casos concretos com fulcro</p><p>na diretriz da concretude ou operabilidade do Código Civil.</p><p>15Noções gerais de contrato</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 15 23/08/2018 09:01:09</p><p>A boa-fé objetiva é considerada uma cláusula geral, legislativamente hábil</p><p>para permitir o ingresso de princípios de natureza em regra constitucionais,</p><p>de padrões ou standards, de máximas de conduta, de modelos de compor-</p><p>tamento no ordenamento das relações privadas, facilitando a sua aplicação</p><p>no ordenamento jurídico. Essa cláusula geral impõe às partes a observância</p><p>de deveres laterais ou anexos durante todo o processo obrigacional, desde a</p><p>fase das tratativas até após a conclusão do contrato. Esses deveres anexos,</p><p>secundários, laterais ou de proteção encontram-se fora do âmbito da obrigação</p><p>principal assumida pelas partes (dar, fazer ou não fazer) e dizem respeito</p><p>aos deveres de lealdade, confiança, assistência, confidencialidade, sigilo,</p><p>informação, cooperação, cuidado, segurança, aviso, esclarecimento, etc. Os</p><p>deveres anexos são impostos a ambas as partes da relação contratual e balizam</p><p>a interpretação judicial.</p><p>Veja, a seguir, as funções da boa-fé objetiva (MARTINS-COSTA;</p><p>GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2008a).</p><p>Interpretação ou integração do cânone hermenêutico. Por meio da boa-fé,</p><p>o negócio jurídico deve obedecer aos usos e costumes do lugar em que foi</p><p>constituído, uma vez que as partes contratantes não são quaisquer sujeitos de</p><p>direito, senão pessoas situadas em um contexto de circunstâncias existenciais.</p><p>Assim, a boa-fé pode ser entendida como cláusula geral, técnica legislativa</p><p>que busca garantir a adequação do Direito, que é mais estático, à realidade</p><p>social, mais dinâmica.</p><p>Art. 113 do Código Civil: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados</p><p>conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração” (BRASIL, 2002,</p><p>documento on-line).</p><p>Nesse sentido, ao interpretar o propósito dos contratantes, o juiz deve ana-</p><p>lisar e priorizar as situações fundadas na boa-fé dos contratantes, buscando na</p><p>norma de conduta o sentido moralmente mais recomendável e mais proveitoso</p><p>para a sociedade, para resolver os casos concretos. Toda cláusula contratual</p><p>deve ter os seus sentido e alcance conforme a ética que se espera das partes.</p><p>Boa-fé objetiva = norma de conduta = modelo de comportamento</p><p>= impõe deveres além dos estipulados no contrato, orienta a ativi-</p><p>dade judicial e limita o exercício de direitos subjetivos</p><p>Noções gerais de contrato16</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 16 23/08/2018 09:01:09</p><p>Ética da situação. O conteúdo da boa-fé deve ser preenchido consoante os</p><p>usos do tráfi co ou as práticas do mercado. Assim, a interpretação dos negócios</p><p>jurídicos não observa apenas a lei, mas também as circunstâncias fáticas, os</p><p>usos, o contexto que envolve as partes.</p><p>Integração, criação de deveres jurídicos anexos ou de proteção. A boa-fé</p><p>objetiva é uma fonte autônoma de obrigações, pois determina o aumento de</p><p>deveres além dos que a avença explicitamente constituiu, isto é, independen-</p><p>temente da vontade das partes. É endereçada a todos os partícipes da relação</p><p>jurídica e pode, inclusive, criar deveres para o credor, que é tradicionalmente</p><p>considerado apenas titular de direitos. Ela estabelece entre os partícipes do</p><p>vínculo um elo cooperativo em favor do objetivo a que visam. São exemplos de</p><p>deveres laterais, anexos, de proteção ou instrumentais a lealdade, a confi ança,</p><p>a assistência, a informação, o sigilo, a confi dencialidade, a colaboração, etc.</p><p>Consequência da função integrativa. Infunde a noção de obrigação ou</p><p>contratação como processo, pois os deveres laterais estão presentes desde</p><p>a fase pré-contratual (tratativas) até a pós-contratual (post factum fi nitum).</p><p>Como exemplos, temos a pré-efi cácia da boa-fé objetiva no caso “Cica versus</p><p>plantadores de tomates” e a pós-efi cácia da boa-fé objetiva no “caso dos ca-</p><p>sacos de pele” e no “caso da vista para o monte” (veja o quadro “Exemplo” a</p><p>seguir). Cumpre apresentarmos detidamente alguns desses deveres a seguir.</p><p> Dever de lealdade. Impõe que os negócios sejam embasados na trans-</p><p>parência, de modo que a conduta das partes não se direcione ao oportu-</p><p>nismo ou à lesão dos interesses ou direitos alheios. Visar à proposição</p><p>de ação revisional de contrato antes mesmo de contrair a obrigação e</p><p>usar o contrato como meio de ganhar vantagem indevida, valendo-se</p><p>da inexperiência alheia, são exemplos de condutas desleais.</p><p> Proteção da confiança. A confiança depositada pelas partes na crença</p><p>da regular constituição do negócio jurídico deve ser objeto de atenção</p><p>do Direito. Desse modo, a frustração imotivada da confiança legítima</p><p>pode dar ensejo à reparação civil. A confiança é digna de tutela jurídica</p><p>quando coexistem quatro elementos (ALMEIDA, 2014):</p><p>1. situação de confiança efetiva e imputável a determinado sujeito;</p><p>2. confiança justificável por dados objetivos e críveis;</p><p>3. investimento de confiança;</p><p>4. boa-fé de quem confiou.</p><p>17Noções gerais de contrato</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 17 23/08/2018 09:01:09</p><p> Dever de assistência. É o dever de cooperação, uma vez que cabe aos</p><p>contratantes colaborar para o correto adimplemento da sua obrigação.</p><p>Portanto, é vedado às partes tornar custoso o cumprimento da obrigação,</p><p>dificultando o pagamento a ser realizado pelo devedor ou o recebimento</p><p>pelo credor.</p><p> Dever de informação. Trata-se de dever das partes de comunicar todas</p><p>as características e as circunstâncias do negócio, bem como o objeto</p><p>de interesse das partes. O dever de informação encontra-se no CDC</p><p>da seguinte forma:</p><p>Art. 6º São direitos básicos do consumidor:</p><p>[...]</p><p>III — a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços,</p><p>com especificação correta de quantidade, características, composição, quali-</p><p>dade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem</p><p>(BRASIL, 1990, documento on-line).</p><p>Esse dever de informação não é exigido apenas nas relações de consumo,</p><p>pois abrange todos os negócios jurídicos. No Código Civil, ele aparece no</p><p>art. 147 nos seguintes termos: “Nos negócios jurídicos bilaterais, o silêncio</p><p>intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte</p><p>haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela o negócio</p><p>não se teria celebrado” (BRASIL, 2002, documento on-line).</p><p> Dever de sigilo. Impõe às partes o dever de guardar confidencialidade</p><p>sobre os seus dados privados e sobre o próprio negócio realizado. Desse</p><p>modo, as partes não podem divulgar informações pessoais às quais</p><p>tiveram acesso em razão do contrato, pois feririam os deveres laterais</p><p>oriundos da boa-fé objetiva.</p><p>Delimitação do exercício de direitos subjetivos. Por essa função, a boa-fé</p><p>objetiva desempenha o papel de evitar o exercício inadmissível de direitos,</p><p>coibindo o abuso de direito (BRASIL, 2002, art. 187 do Código Civil). Afi -</p><p>nal, o abuso de direito vai de encontro à exigência de lealdade, confi ança e</p><p>colaboração entre as partes, preconizadas pela boa-fé objetiva, o que impede</p><p>que a parte que tenha violado deveres contratuais exija o cumprimento pela</p><p>outra parte ou se benefi cie do seu descumprimento.</p><p>Noções gerais de contrato18</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 18 23/08/2018 09:01:09</p><p>Art. 422 do Código Civil: “Os contratantes são obrigados a guardar, as-</p><p>sim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de</p><p>probidade e boa-fé” (BRASIL, 2002, documento on-line).</p><p>Como já referimos, embora haja omissão por parte do legislador, não</p><p>significa que as partes contratantes não devam observar os princípios da</p><p>probidade e da boa-fé nas demais fases da obrigação. Assim, em todas as fases</p><p>do processo contratual as partes devem se comportar com probidade e boa-fé.</p><p>Acerca da responsabilidade pelo descumprimento dos deveres laterais</p><p>ou pelo uso abusivo dos direitos, vejamos</p><p>o Enunciado nº. 24 do Conselho</p><p>de Justiça Federal: “Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art.</p><p>422, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento</p><p>independentemente de culpa”. Significa que é ônus do lesante comprovar a</p><p>sua inocência, de modo que basta que o lesado comprove o prejuízo e o nexo</p><p>de causalidade para a comprovação da responsabilidade objetiva (BRASIL,</p><p>2002, art. 927, parágrafo único, do Código Civil).</p><p>Responsabilidade pré-contratual, delitual ou aquiliana (culpa in contrahendo)</p><p>Caso dos plantadores de tomates: a empresa Cica distribuía sementes aos agricultores</p><p>gaúchos, o que gerava a expectativa de compra da futura safra sem que qualquer</p><p>contrato fosse celebrado. Os agricultores, que confiavam na empresa, investiram na</p><p>produção dos tomates e plantaram as sementes recebidas, uma vez que em outras</p><p>ocasiões a Cica havia comprado a safra decorrente das sementes doadas. Contudo,</p><p>em dado momento a empresa optou por não comprar mais a safra desses pequenos</p><p>agricultores. Frente a isso, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul responsabilizou</p><p>a empresa pelas expectativas geradas, como segue:</p><p>CONTRATO. TRATATIVAS. "CULPA IN CONTRAHENDO". RES-</p><p>PONSABILIDADE CIVIL. RESPONSABILIDADE DA EMPRESA</p><p>ALIMENTICIA, INDUSTRIALIZADORA DE TOMATES, QUE</p><p>DISTRIBUI SEMENTES, NO TEMPO DO PLANTIO, E ENTAO MA-</p><p>NIFESTA A INTENCAO DE ADQUIRIR O PRODUTO, MAS DEPOIS</p><p>RESOLVE, POR SUA CONVENIENCIA, NAO MAIS INDUSTRIA-</p><p>LIZA-LO, NAQUELE ANO, ASSIM CAUSANDO PREJUIZO AO</p><p>AGRICULTOR, QUE SOFRE A FRUSTRACAO DA EXPECTATIVA</p><p>DE VENDA DA SAFRA, UMA VEZ QUE O PRODUTO FICOU SEM</p><p>POSSIBILIDADE DE COLOCACAO. PROVIMENTO EM PARTE</p><p>19Noções gerais de contrato</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 19 23/08/2018 09:01:09</p><p>ALMEIDA, C. F. Contratos: conceito, fontes, formação. 5. ed. Coimbra: Edições Almedina,</p><p>2014. v. 1.</p><p>AZEVEDO, A. J. Insuficiências, deficiências e desatualização do projeto de código civil</p><p>na questão da boa-fé objetiva nos contratos. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 1, p.</p><p>3-12, 2000.</p><p>BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União,</p><p>Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: . Acesso em: 6 ago. 2018.</p><p>DO APELO, PARA REDUZIR A INDENIZACAO A METADE DA</p><p>PRODUCAO, POIS UMA PARTE DA COLHEITA FOI ABSORVIDA</p><p>POR EMPRESA CONGENERE, AS INSTANCIAS DA RE. VOTO</p><p>VENCIDO, JULGANDO IMPROCEDENTE A AÇÃO (12FLS — D.)</p><p>(BRASIL, 1991ª, documento on-line).</p><p>CONTRATO. TEORIA DA APARÊNCIA. INADIMPLEMENTO. O</p><p>trato, contido na intenção, configura contrato, porquanto os produtores,</p><p>nos anos anteriores, plantaram para a CICA e, não tinham por que</p><p>plantar, sem garantia da compra (BRASIL, 1991b, documento on-line).</p><p>Responsabilidade pós-contratual (post factum finitum)</p><p>Caso da vista para o monte: o proprietário de um imóvel o vendeu a uma compradora</p><p>e garantiu que a vista belíssima em direção a um monte jamais seria obstruída, pois o</p><p>plano diretor da cidade proibia a construção naquele local. Convencida, a compradora</p><p>fechou negócio. Posteriormente, o vendedor comprou o terreno em frente ao que havia</p><p>vendido e conseguiu uma alteração no plano diretor, o que lhe permitiu construir um</p><p>novo prédio, impedindo a visão da paisagem que dera motivo ao negócio anterior.</p><p>Lesada pelo empreendimento, a compradora conseguiu uma indenização pelos</p><p>prejuízos causados pelo descumprimento dos deveres laterais mesmo após a conclusão</p><p>do negócio entre as partes em função da afronta à boa-fé objetiva (AZEVEDO, 2000).</p><p>Caso dos casacos de pele: na Alemanha, a dona de uma loja encomendou 120</p><p>casacos de pele de uma confecção. Os casacos foram confeccionados e entregues à loja</p><p>mediante o pagamento do preço acertado. Depois de finalizada essa relação jurídica,</p><p>a mesma confecção vendeu a mesma quantidade de casacos idênticos à loja vizinha,</p><p>agindo de forma desleal e em prejuízo das duas lojas. A primeira compradora conseguiu</p><p>uma reparação pela deslealdade post factum finitum (pós-contratual) (AZEVEDO, 2000).</p><p>Noções gerais de contrato20</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 20 23/08/2018 09:01:10</p><p>BRASIL. Decreto-Lei nº. 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis</p><p>do Trabalho. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 ago. 1943. Disponível em: . Acesso em: 6 ago. 2018.</p><p>BRASIL. Lei Federal nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário</p><p>Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: . Acesso em: 6 ago. 2018.</p><p>BRASIL. Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor</p><p>e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível</p><p>em: . Acesso em: 6 ago. 2018.</p><p>BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Quinta Câmara Cível. Apelação Cível</p><p>nº. 591028295 RS. Relator: Ruy Rosado de Aguiar Júnior. TJRS, Porto Alegre, 6 jun. 1991a.</p><p>Disponível em: . Acesso em: 6 ago. 2018.</p><p>BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Terceiro grupo de Câmaras Cíveis.</p><p>Embargos Infringentes nº. 591083357 RS. Relator: Juiz Adalberto Libório barros. TJRS,</p><p>Porto Alegre, 1 nov. 1991b. Disponível em: . Acesso em: 6 ago. 2018.</p><p>COOTER, R.; ULEN, T. Direito e economia. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010.</p><p>GAGLIANO, P. S.; PAMPLONA FILHO, R. Novo curso de Direito Civil: parte geral. 10. ed.</p><p>São Paulo: Saraiva, 2008a. v. 1.</p><p>GAGLIANO, P. S.; PAMPLONA FILHO, R. Novo curso de Direito Civil: contratos. 4. ed. São</p><p>Paulo: Saraiva, 2008b. v. 4.</p><p>GONÇALVES, C. R. Direito Civil brasileiro: contratos e atos unilaterais. 7. ed. São Paulo:</p><p>Saraiva, 2010. v. 3.</p><p>LÔBO, P. Direito Civil: contratos. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.</p><p>MARTINS-COSTA, J. A boa-fé no Direito Privado: sistema e tópica no processo obrigacional.</p><p>São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.</p><p>PEREIRA, C. M. S. Instituições de Direito Civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. v. 1.</p><p>PEREIRA, C. M. S. Instituições de Direito Civil. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. v. 3.</p><p>ROPPO, E. O contrato. Coimbra: Almedina, 2009.</p><p>TARTUCE, F. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie.12. ed. São</p><p>Paulo: Forense, 2017. v. 3.</p><p>Leituras recomendadas</p><p>PENTEADO, L. C. Figuras parcelares da boa-fé objetiva e venire contra factum proprium.</p><p>THESIS São Paulo, v. 8, p. 39-70, 2007. Disponível em: . Acesso em: 6 ago. 2018.</p><p>21Noções gerais de contrato</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 21 23/08/2018 09:01:10</p><p>SCHREIBER, A. A proibição do comportamento contraditório: tutela da confiança e venire</p><p>contra factum proprium. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.</p><p>SILVA, C. V. C. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2007.</p><p>TEODORO JÚNIOR, H. Dos efeitos do negócio jurídico no novo código civil. Revista da</p><p>Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, n. 40, 2001. Disponível em:</p><p>. Acesso</p><p>em: 6 ago. 2018.</p><p>Noções gerais de contrato22</p><p>C01_Direito_Civil_III.indd 22 23/08/2018 09:01:10</p>