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A CLÍNICA COM CRIANÇAS AULA 6 Profª Marianne Bonilha 2 CONVERSA INICIAL O processo psicanalítico da criança Nesta etapa vamos aprofundar nos conhecimentos dos aspectos do processo psicanalítico com a criança. Abordaremos a primeira entrevista com o paciente; as sessões de avaliação; discutiremos sobre a função diagnóstica e terapêutica da transferência da criança com o analista; conheceremos a devolutiva a ser dada para a criança após a avaliação; e refletiremos sobre o andamento do tratamento do paciente até a alta. Com esta etapa, objetivamos que você consiga: • compreender as fases do processo de tratamento com a criança; • entender a estrutura e a importância da primeira entrevista com a criança; • compreender a avaliação da criança (o que pode ser avaliado e como pode ser avaliado); • conhecer a importância da transferência para o diagnóstico e o tratamento da criança; • entender o processo analítico até a alta do paciente. TEMA 1 – A PRIMEIRA ENTREVISTA A clínica com crianças traz uma primeira peculiaridade: normalmente, a primeira entrevista não ocorre com o paciente. Entrevista-se os pais, antes de entrevistar a criança. O objetivo é conhecer os pais, ter as informações relacionadas à problemática da criança, conhecer a percepção destes, de modo abrangente. Investiga-se a queixa e se trabalha a demanda. Após a entrevista ou as entrevistas com os pais, realiza-se o primeiro contato com a criança. Nas entrevistas que foram realizadas com os pais, deve-se combinar que eles conversem com a criança a respeito do motivo pelo qual ela é levada ao psicanalista – o que é retomado pelo próprio analista, na primeira sessão com a criança (Werlang, 2000). Esse pode ser o início do diálogo com a criança, dentro da sala de jogo, sendo importante, então, perguntar se sabe o que está fazendo ali, porque veio ou o que os pais falaram da sua vinda ao psicólogo. Esclarecendo esse aspecto, compreender-se-ão as fantasias da criança a respeito do processo de avaliação, e, se a resposta for negativa, deve- se fazer um breve relato do que foi falado com os pais, sem detalhes muitos profundos, mas sempre explicitando a verdade. As instruções 3 específicas para uma entrevista lúdica consistem em oferecer à criança a oportunidade de brincar, como deseje. (Werlang, 2000). Na primeira entrevista com a criança, realiza-se um plano de acolhimento dela e suas manifestações espontâneas no espaço analítico (Berardino, 2011). O psicanalista deve mergulhar nas representações reveladas por ela, montadas pelas cenas lúdicas e/ou verbalizadas, sob o pano de fundo dos referenciais familiares trazidos pelos pais. Trata-se de apresentar para a criança a especificidade do setting psicanalítico, lugar de livre expressão verbal e lúdico. As entrevistas com crianças são o momento de se deixar enredar pela rede significante em que ela está imersa, para, em um segundo momento, interpretar de tal modo que os significantes da interpretação possam ser recebidos e articulados por ela (Berardino, 2011). Nesse primeiro contato, abre-se um convite para a criança falar, produzir seus significantes, falar de seu sintoma, de sua história, possibilitando-lhe articular suas relações primordiais. Convoca-se a criança, na transferência, a fazer-se sujeito, sujeito responsável pelo sintoma. Se, por um lado, o sintoma da criança responde a uma demanda inconsciente dos pais, por outro, há sua própria escolha enquanto sujeito. Sua resposta sintomática tem a marca das suas construções enquanto sujeito, com as suas respectivas responsabilidades e implicações. É na entrevista inicial que se desencadeia (ou se pretende que desencadeie) a implicação da criança quanto ao próprio sintoma. No primeiro encontro com a criança, além de questionar sobre o prévio conhecimento dela a respeito da ida ao consultório e qual percepção tem acerca disso, o psicanalista, em linguagem simples e adequada à idade da criança, pode conduzir a conversa com o paciente sobre: • a função daquele espaço, qual é o trabalho feito e para que serve; • o fato do sigilo das sessões (esclarecendo que, nos contatos ou na devolutiva, são comunicados aos pais um parecer acerca das condições psíquicas e não o conteúdo das sessões); • o motivo da consulta, dando ao paciente a oportunidade de se posicionar sobre a queixa trazida pelos pais; • a duração e a frequência das sessões; • os combinados quanto à utilização de brinquedos e o direito de escolher livremente as atividades lúdicas ou gráficas; • a regra fundamental de dizer livremente o que lhe vier na cabeça (Dolto, 4 1991). As perguntas feitas para o paciente devem circunscrever as falas e as brincadeiras que a criança produz. Dessa forma, permite-se à criança uma maior aproximação e expressão dos sentimentos e vivências do dia a dia que a incomoda. Deve-se ter à disposição, para uso do paciente, caixa ou armário de brinquedos, com materiais diversificados para idades e interesses diversos. Como meio facilitador para as expressões infantis, pode-se selecionar: família de bonecos, casinha de bonecas mobiliada, fantoches, carrinhos (incluindo de bombeiro, de polícia, ambulância, corrida), aviões, navios, revólveres e espadas (para facilitar o jogo agressivo da criança), panelinhas, pratos, xícaras, diferentes tipos de lego, soldados, mamadeira, argila, areia, massa de modelar, tintas, cola, pincéis, cordão, fita adesiva, tesoura sem ponta (materiais não estruturados são importantes, pois possibilitam a expressão sem que a experiência se torne invasora), telefone, papéis para desenhar, lápis preto e de cor, lápis de cera, borracha, apontador, animais selvagens e domésticos, bola, jogos de competição, jogos de montar. O uso das entrevistas preliminares com a criança e seus pais permite ao analista não cair no erro de conduzir a análise da criança no sentido de responder à demanda inicial dos pais. O cuidado com a singularidade da criança requer endereçar-se a ela, trata-se de proporcionar que esta diga o que pensa, que brinque, que possa comunicar o que habita, pois, somente assim, é possível para a criança a apreensão da própria posição subjetiva. TEMA 2 – ENTREVISTAS PRELIMINARES COM A CRIANÇA As sessões de avaliação, desde a primeira entrevista, embora possam produzir um efeito terapêutico, pela possibilidade de nomeação do sofrimento no brincar e no desenhar, mantêm-se como um período voltado para o conhecimento/reconhecimento do paciente, muito mais do que para intervenção. Esse conhecimento sobre o paciente refere-se ao psicodiagnóstico, que é necessário para o estabelecimento da direção do tratamento da criança. O psicodiagnóstico pode fornecer uma perspectiva acerca da personalidade e do desenvolvimento do paciente. O período avaliativo permite conhecer as características estruturais, os aspectos psicodinâmicos, ao mesmo tempo que possibilita o estabelecimento do vínculo, da transferência do paciente com o 5 analista. A sequência dessas primeiras sessões revela atitudes, ideias, verbalizações, brincadeiras, desenhos e conteúdos que se repetem. Todas as manifestações da criança, no setting terapêutico, sinalizam as condições de personalidade e demonstram os traumas, conflitos, ansiedades e medos que precisam ser elaborados. As manifestações espontâneas, pelo método da livre expressão, apresentam pontos de conflito, de angústia, na medida da suportabilidade da estrutura de personalidade naquele momento. O que se avalia? Avalia-se o encaminhamento estrutural da personalidade da criança, as condições de funcionamento dessa estrutura, as condições do eu em suas funções emocionais, adaptativas, cognitivas, sociais e psicomotoras. Na avaliação observa-se: • o modo de interagir; • o tipo do vínculo estabelecido; • a linguagem; • a motricidade;• a dinâmica intrafamiliar; • os afetos manifestados; • a capacidade de adaptação; • o curso de ideias; o conflito central.A avaliação é o período no qual se faz necessário compreender dados globais do paciente, os quais incluem elementos do funcionamento e organização da família em termos de hábitos, rotinas, valores, assim como elementos do funcionamento psíquico da criança, no que diz respeito à fase de desenvolvimento em que se encontra, mecanismos de defesas predominantes, recursos egoicos, fantasias e integração ou não das instâncias psíquicas. Essa etapa não pode ser apenas considerada uma coleta de dados da história e do contexto da criança, o que empobreceria o vínculo, mas se constitui em um verdadeiro encontro com ela, sua família e seus sofrimentos. (Kern; Campezatto; Saraiva, 2009) Ainda que as crianças estejam em um momento de estrutura não decidido em função do desfecho edípico (as maneiras de lidar com a castração), que será reeditado e confirmado na adolescência, pode-se analisar sua posição quanto ao estabelecimento dos laços e reações às perdas, pois denotam um encaminhamento neurótico, psicótico ou perverso. A infância é o tempo das inscrições e da confirmação dessas inscrições, por isso, afirma-se que a estrutura na infância é não decidida (Berardino, 2017). “Na constituição do sujeito psíquico são determinantes os processos fantasmáticos, sem que, por isso, deixem de ter 6 importância os aspectos instrumentais do sujeito (incluídos nas funções do eu) que, no entanto, encontram-se determinados desde esta posição” (Jerusalinky, 1983). Para além da verificação do desenvolvimento, da socialização, da aprendizagem, da psicomotricidade, da constituição de hábitos, da comunicação, é importante verificar o processo de constituição da criança como sujeito psíquico, se sua entrada no campo erógeno e da linguagem está em curso, ou seja, se a criança está se estruturando psiquicamente, para que se organize e se encaminhe o desenvolvimento global. Ressalta-se que o que se desenvolve são as funções e não o sujeito. Isto é, as funções instrumentais (as diferentes áreas do desenvolvimento), necessárias para a adaptação ao meio, evoluem de acordo com a maturação e o crescimento, dando origem aos diferentes esquemas de ação. Mas o que dá sentido a essas funções, o que move o processo de desenvolvimento é o sujeito que começa a surgir, sustentado pelo campo da linguagem ao qual está submetido e referenciado. Jerusalinsky (1988) coloca que “o maturativo se mantém simplesmente como limite, mas não como causa”. A existência do adulto enquanto resultado de separação definitiva de uma posição ocupada na infância não existe. A queixa que mobiliza a procura por análise traz encoberta fantasias infantis, sendo estas produtoras de angústia e sofrimento. A psicanálise nos mostra que o mais importante não é a idade do paciente, mas a escuta do sujeito inconsciente por meio da associação livre. Contudo, há a especificidade do emprego da regra fundamental da psicanálise com crianças. Estas exigem uma delicadeza específica no manejo, pois não dispõem da mesma capacidade racional do relato verbal que os adultos, sendo por meio da ludicidade e do brincar que se comunicam dentro do setting analítico (Vasconcelos et al., 2017). TEMA 3 – A DEVOLUTIVA COM A CRIANÇA Concluído o diagnóstico, realiza-se uma devolutiva acerca do parecer, uma com o paciente e outra com a família. Antes mesmo da entrevista devolutiva com os pais, deve-se fornecer o parecer ao próprio paciente. A devolutiva com a criança trata-se da comunicação verbal sobre o parecer elaborado, após o término do período avaliativo contratado com ela e com sua família. Segundo Cunha (1986), “para o paciente representa uma resposta às próprias dificuldades, um momento de entendimento dos problemas e uma perspectiva de solução dos 7 mesmos, por meio das indicações terapêuticas”. Tais apontamentos terão para o paciente efeito de interpretação, podendo proporcionar para ele revisão, reflexão e transformação, ou seja, pode possibilitar retificação subjetiva. Esta, por sua vez, é o movimento de reconhecimento e implicação no próprio sintoma, necessário ao tratamento psicanalítico. As crianças, em entrevista preliminares, vão retomando, relembrando, repetindo, e, nesse processo, situando-se em relação às amarras particulares e familiares que a aprisionam em determinado sintoma. Ainda que essa sequência ocorra no gerúndio, o instante da devolutiva promove um instante de corte, de parada e reflexão para a criança. A formulação psicodinâmica deverá englobar uma descrição das principais defesas, a apresentação dos conflitos centrais do paciente e, como resultado, uma apreciação do modelo de funcionamento mental predominante e a forma de estabelecimento das relações de objeto. Deverá, também, enfocar aspectos preditivos das respostas do paciente em relação à situação terapêutica (prognóstico), bem como seus recursos de ego e sua motivação para o tratamento (Kern; Campezatto; Saraiva, 2009). A comunicação deve ser clara, simples, adequada à idade, facilitando a comunicação analista/paciente, proporcionando uma posição ativa e participativa da criança, para que esta possa trazer as próprias percepções e entendimentos, se assim desejar. TEMA 4 – OBSERVAÇÕES SOBRE A TRANSFERÊNCIA DA CRIANÇA Assim como na análise de adultos, o que sustenta a análise da criança é a transferência. A transferência é a relação que se estabelece, de maneira espontânea e atual, entre o analisando e o analista. Ela presentifica, no setting terapêutico, os significantes que fazem parte da constituição psíquica, é testemunha da atemporalidade do inconsciente e sua caracterização enquanto infantil, ainda que o paciente seja adulto. É a partir da transferência que o analista escuta o inconsciente do analisando, sem se deixar cair no equívoco dos elementos imaginários que permeiam as relações interpessoais comuns (Vasconcelos et al., 2017). Na clínica com crianças, trabalha-se com a transferência em duplo aspecto: a transferência dos pais, que estão envolvidos desde o princípio, já que são eles que demandam o trabalho e a transferência da criança. O psicanalista possibilita o despertar, na criança, do desejo de participar do setting analítico, permitindo que se dê a transferência da criança à medida que o vínculo de confiança cresce. A 8 condição da infância, de dependência com relação ao adulto, para suprir a ineficiência de atos que ainda não pode/consegue realizar, faz com que a criança se sustente em um outro real (Jerusalinsky, 2005). O psicanalista, em sua relação com o paciente, coloca-se como agente real, pela própria necessidade de que a criança tem de personificar o Outro como Outro encarnado (Jerusalinky, 1999). A transferência é, também, transferência de saber. Este aspecto refere-se ao fato do analisando atribuir ao analista um saber que este tem acerca dele. Trata-se de condição fundamental para que se inicie uma análise. As crianças costumam supor um saber por parte dos adultos, especialmente dos que delas cuidam. Portanto, para que se constitua a transferência entre a criança e o analista, é necessário que primeiro se constitua a transferência de quem lhe trouxe para a análise (Leitão, 2020). A criança detém a própria capacidade de supor um saber no analista, podendo endossar ou recusar a transferência realizada pelos pais, o que revela que a transferência não é apenas uma continuidade da transferência dos pais, ainda que possa ser influenciada por ela (Leitão, 2020). No vínculo entre paciente e psicanalista não existe a reciprocidade que encontramos em outras formas de relacionamento. Ela é assimétrica, com papéis e funções diferenciadas para o paciente e para o analista (Stürmer; Kern, 2009). Este estará disponível para ouvir e interagir com a criança,resguardando a própria vida e opiniões pessoais, mantendo a privacidade do profissional. Essa abstinência pessoal do psicanalista dá espaço para a subjetividade da criança. No entanto, sabe-se que, sempre evidenciaremos aspectos de nossa personalidade que estarão sendo mostrados nas maneiras de trabalhar com o paciente, ou seja, é impossível manter a ficção, uma “neutralidade” total. Crianças e adolescentes tendem a captar os aspectos da personalidade do analista e, a partir disso, também poderão agir. Importante é estarmos atentos ao jogo de identificações projetivas e introjetivas que moldam os fenômenos transferenciais/contratransferenciais. (Stürmer; Kern, 2009). O laço transferencial pode apresentar nuances de variação de acordo com o momento do tratamento, a partir de aspectos conscientes e inconscientes. O vínculo de confiança se intensifica, se fortalece com o tempo. No entanto, ela pode não estar presente no início do tratamento, transformando-se ao longo das sessões, em um vínculo positivo para o trabalho (Stürmer; Kern, 2009). No processo analítico, o brincar está sempre presente na relação entre paciente e analista. A fantasia, frequente recurso do universo infantil, é transposta na transferência, revelando conflitos, laços e lugares ocupados. 9 TEMA 5 – O PROCESSO DE TRATAMENTO Dolto (1991) dizia que nenhuma sessão é igual a outra, que nenhum tratamento é igual ao outro. De fato, variam as idades, as personalidades, as famílias, as problemáticas, diferenças que constelam um universo e um tratamento particular em cada caso. O que então se replica nesta ciência do particular? Neste sentido, “o processo é sempre o mesmo, qualquer que seja o analista. Este fala pouco, às vezes, não fala nada ou o que for preciso para relançar o discurso e permitir à criança continuar” (Dolto, 1991). Pode-se dizer que se repete os conhecimentos para avaliar/diagnosticar, para projetar a direção do tratamento, para sustentar a ética profissional, para conduzir a cura do paciente. Para tanto, o brincar é um meio facilitador do processo de tratamento, seja para o período diagnóstico, seja para o atendimento da criança, por ser a forma primordial de expressão desta. O brincar permite compreender a realidade psíquica e auxiliar na resolução de conflitos daquele que se submete ao processo terapêutico. Nessa perspectiva, o brincar é visto como forma de relação e possibilita a expressão das angústias. O brincar da criança, em seu processo de crescimento, acompanha as nuances de estruturação psíquica, desenvolvimento cognitivo/motor e crescimento pôndero-estatural. Em cada uma dessas fases o recurso lúdico está constantemente relacionado à etapa mental vigente e o desenvolvimento psicomotor. O psicanalista, ao longo dos atendimentos, utiliza objetos lúdicos; participa de brincadeiras, quando for convidado a participar; e desenha junto ou acompanha desenhos feitos pelo paciente. Toda essa interação está permeada pelas nuances transferenciais, a cena lúdica ou gráfica, possibilita a manifestação das representações que a criança habita. É o que Vorcaro (1999) aponta sobre o trabalho com a criança “se tratar de tomar o tecido significante articulado pelos sentidos, ressaltar as incidências e fisgar as insistências, para buscar a montagem que o estrutura”. O inconsciente se revela pelo lúdico articulado com o verbo, demonstrando o universo de significações, que são intrínsecas ao paciente. O brincar está para a criança assim como a poesia está para o poeta. Em outras palavras, a criança é capaz de criar metáforas com o intuito de ordenar seu mundo de um modo prazeroso, como o artista habitualmente faz. A arte, ainda que capte um fragmento de uma realidade tenebrosa, consegue abstrair a beleza e a emoção do momento. E ela o faz pela via da estética artística. Do mesmo modo, o brincar é a invenção da criança para transformar sua realidade, tratando prazerosamente do que foi perdido e do real que não se inscreve. 10 (Souza, 2021). A observação freudiana acerca do jogo do carretel é paradigmática sobre o brincar, pois demonstra o movimento da criança de se apropriar dos significantes que a marcaram. A dinâmica implicada neste exemplo elucida a possibilidade de que o ato lúdico traz à criança de operar no nível simbólico, nível em que o sujeito se faz representar por representações, ou seja, fazer uso dos significantes. Tal movimento promove à criança uma organização particular, organização de si próprio. Por meio do brincar, a criança pode tomar uma posição ativa. Pela obra lúdica ou gráfica produzida, reposiciona-se diante do discurso que foi capturada, alienada, restituindo-se em nova posição subjetiva. Um trabalho interpretativo de aspectos do inconsciente da criança será possível quando este for traduzível, ou seja, quando algo do aparelho psíquico já se constituiu a partir do trabalho do recalque. Se a criança manifesta verbalmente ou através do brinquedo sua capacidade simbólica, poderemos auxiliá-la na tradução deste material, sempre fazendo uso de palavras adequadas para cada faixa etária. (Falcão, 2016). Porém, em determinadas situações, em que a criança não tem capacidade simbólica, é necessário o movimento ativo em direção a ela no auxílio de construções, de laço, de amarração das palavras, justamente por não haver material inconsciente a ser interpretado. Ou seja, trata-se de um trabalho, junto ao paciente, de construção de recalque. 5.1 Período intermediário A fase intermediária do tratamento caracteriza-se por sessões que costumam apresentar encadeamento e continuidade. O vínculo entre paciente e psicanalista se intensifica, os sintomas da criança revelam sua origem psíquica e o responsável pelo atendimento interpreta o material trazido pela criança durante as sessões com o propósito de tornar consciente a maneira pela qual a criança vivencia as dificuldades. A tomada de consciência ajuda em sua posterior elaboração, a qual requer determinado período para que se torne fato (Coppolillo, 1990). Essa etapa do processo analítico é o período que se estende desde o momento em que se consolida a aliança terapêutica até o momento em que se propõe o término do tratamento do paciente. É, em geral, a etapa mais longa do tratamento e visa examinar, analisar, explorar e resolver os sintomas e as 11 dificuldades emocionais do paciente. O objetivo dessa etapa é a essência do tratamento: recordar, repetir e elaborar (Freud, 1969). Ao longo desta fase, o paciente, de forma não linear, lembra-se de situações, memoriza acontecimentos e descreve vivências. Repete nas brincadeiras ou desenhos, várias e várias vezes, recontando cada vez de forma mais amplificada e complexificada, aspectos que o marcaram e marcam, em um movimento de ir e vir em torno de pontos que se assemelham e convergem para a apropriação de uma temática central. Neste momento, existe uma continuidade nos temas trazidos pelo paciente entre as sessões. A criança resgata assuntos ou brincadeiras ocorridas em momentos anteriores ao tratamento. Os indícios do momento propício para interpretações/intervenções são quando o paciente brinca com o mesmo brinquedo, repete o mesmo material, mesmo que sob diferentes formas, ou mesmo pela repetição de olhares, posturas, que apresenta na interação com o terapeuta. 5.2 Período final Na fase final ocorre o término do tratamento, na forma de término terapêutico, considerado como alta, cuja indicação pode vir do psicanalista, por intermédio da avaliação constante que se mantém ao longo do tratamento. O estado psíquico da criança, observado pelo analista, somado às observações da família ou do ambiente que a cerca, oferecem informações sobre as mudanças produzidas na criança. Tais mudanças estão relacionadas às diretrizes do tratamento proposto. À luz da direção de cura pretendida,verifica-se o alcance da resolução de conflitos e ressignificações identificatórias, podendo estar associadas a mudanças estruturais da personalidade. Alcançada a resolução de conflitos diante de um reposicionamento subjetivo, sinalizando o desaparecimento do sintoma, vislumbra-se a possibilidade da alta. Alguns critérios indicam a possibilidade do término do tratamento: • mudanças no vínculo transferencial entre paciente/analista; • aumento do interesse no campo de exploração do mundo; • diminuição de sintomas de ansiedade; • diminuição de temores e pavores da criança; • aumento da autoconfiança e espontaneidade; • melhoria na capacidade de socialização; 12 • autopercepção quanto às dificuldades e melhora na desenvoltura de atividades condizentes à idade (Coppolillo, 1990). Cada psicanalista tem critérios de alta embasados em suas experiências e características singulares com cada paciente, porém ao se aproximar do término do processo terapêutico a criança pode começar a demonstrar algumas características como: desaparecimento de sintomas, plasticidade aos modos de responder ou adaptar-se ao meio, adequação de comportamentos a sua idade, produzir associações, observações e conclusões sozinha, maior utilização da expressão verbal como meio de comunicação, diminuição de atitudes agressivas, diminuição de angústias e culpabilidade, utilização de defesas mais flexíveis, a relação consigo mesma e com seu meio. Nessa etapa demonstra um sentimento ambivalente referente ao término do tratamento, estando triste pelo rompimento do vínculo, porém, feliz pelas conquistas alcançadas durante o período de análise (Silva, 2017). É necessário ter clareza que nenhum processo psicanalítico torna o paciente imunizado para o enfrentamento de impasses subjetivos. Se isso é um fato mesmo para os adultos, quem dirá para a criança, que se encontra ainda em um período de indefinições estruturais; estão à mercê da influência que se acomete pelo meio e o futuro enfrentamento da crise adolescente. NA PRÁTICA Exemplifico com uma cena, um trecho de situação clínica que, por meio do brincar, observa-se uma repetição no ato lúdico acerca dos cuidados maternos vivenciado pela criança e um aspecto na perspectiva transferencial. Trata-se de uma menina de 9 anos, durante uma sessão, em meio a uma dramatização escolhida pela própria paciente. A brincadeira era que ela (a paciente e a psicóloga brincariam cada uma com uma boneca/bebê no colo, ambas seriam mãe e teriam uma filha), realizando cuidados de higiene, alimentação e sono. A paciente ninava a boneca/filha no colo com movimentos duros, batia no bumbum com força ao mesmo tempo que observava a psicóloga ninar a boneca no colo e comentava: “Essa mãezinha aí tá muito boazinha!”, comentando a atitude da profissional com a boneca/bebê. Neste trecho conseguimos perceber a percepção de cuidado materno que ela tinha tanto pelas ações que fazia com a boneca que representava a própria filha na brincadeira (projeção da vivência), como no comentário (que revela um aspecto transferencial) que faz à terapeuta esperando uma mãe que não fosse tão boazinha, tinha que ser mais agressiva. 13 FINALIZANDO Recapitulando! Conhecemos o formato da primeira entrevista com a criança, o manejo clinico, o estabelecimento do setting e do contrato de trabalho. Abordamos a importância das sessões de avaliação com o paciente, quais aspectos podem ser avaliados, diferenciando as funções de personalidade e estruturação subjetiva. Compreendemos a forma de dar a devolutiva da avaliação para a criança. Refletimos sobre a importância da transferência no processo de tratamento. Conhecemos o processo, o encaminhamento e o final da análise até a alta. 14 REFERÊNCIAS BERARDINO, L. As entrevistas preliminares na psicanálise com crianças. Revista, Associação Psicanalítica de Curitiba, n. 23, 2011. BERARDINO, L. Psicanálise: educação especial e formação de professores: construções em rasuras. Carla K. Vasques; Simone Zanon Moschen (Org.). SEAD/UFRGS. (Coord.). 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2017. CAMPOS, R. C. Do processo de avaliação da personalidade em contextos clínicos ao diagnóstico psicodinâmico: contributos para uma avaliação psicológica psicodinâmica CIEP - Publicações - Artigos em Revistas Internacionais Com Arbitragem Científica, 2017. COPPOLILLO, H. P. Psicoterapia psicodinâmica de crianças. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. CUNHA, J. A. Fundamentos do psicodiagnóstico. In: CUNHA, J. A. 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