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A crônica no Brasil Apresentação Dentro do contexto da narração, a crônica brasileira tem uma natureza híbrida, mesclando elementos literários e jornalísticos. Aliás, é um fato único no mundo. Porém, nem sempre foi assim. Desde que foi trazida pelos portugueses no séc. XVI, ela passou por diversas transformações até chegar no formato atual, além de evidenciar vários cronistas, como Clarice Lispector, Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade e Martha Medeiros. Nesta Unidade de Aprendizagem, você vai estudar a forma como a crônica brasileira se transformou ao longo do tempo. Para isso, vai entender como se deu a sua criação em terras brasileiras e compreender como foi a sua transformação desde as primeiras manifestações na época das grandes navegações até o séc. XXI. Por fim, você vai analisar as principais características literárias do gênero a partir de crônicas selecionadas. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Descrever como o gênero crônica nasceu no Brasil.• Identificar as transformações da crônica no Brasil ao longo do tempo.• Analisar as particularidades das crônicas brasileiras.• Desafio O gênero literário crônica feita no Brasil tem características próprias, as quais a tornaram um fenômeno literário e jornalístico único no mundo. Ela é tradicionalmente publicada em jornais, porém, atualmente, também há livros e sites de crônicas, conquistando leitores fiéis. Sabendo disso, imagine que você, como professor, vai iniciar a aula sobre o gênero literário crônica aos estudantes do 8º ano do Ensino Fundamental. Para a introdução desse tema em aula, você pede à turma para que leiam estes dois textos: Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. https://statics-marketplace.plataforma.grupoa.education/sagah/945b8679-086b-45cc-9fa0-8f6addc153d4/52569e29-1158-440e-9811-5b4a0276f58e.jpg Assim, depois da leitura e tomando como base os textos I e II, suas semelhanças e diferenças, como você apresentaria o conceito de crônica aos estudantes do 8º ano do Ensino Fundamental, chamando atenção para as particularidades desse gênero? Infográfico A crônica é um dos gêneros literários mais populares entre leitores brasileiros. Embora seja feita por inúmeros cronistas atualmente, nem sempre ela teve essa face por conta de eventos sociais, políticos e culturais ocorridos ao longo da nossa história. Assim, no Infográfico, você verá uma linha do tempo evidenciando sucintamente o surgimento da crônica no Brasil. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Conteúdo do livro A crônica é um dos gêneros literários mais famosos e lidos por leitores e leitoras do Brasil. Embora tenha sido criada fora do País, ao chegar aqui, ela ganhou temperos e sabores nacionais, tornando- se muito lida em solo nacional. No capítulo A crônica no Brasil, da obra Estudos de Literatura: análise da narrativa em suas diversas manifestações, base teórica desta Unidade de Aprendizagem, você vai compreender como ela surgiu e se desenvolveu no Brasil, além de analisar suas particularidades literárias a partir de autores de destaque. Boa leitura. ESTUDOS DE LITERATURA: ANÁLISE DA NARRATIVA EM SUAS DIVERSAS MANIFESTAÇÕES Leonardo Teixeira de Freitas Ribeiro Vilhagra A crônica no Brasil Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Descrever como o gênero crônica nasceu no Brasil. Identificar as transformações da crônica no Brasil ao longo do tempo. Analisar as particularidades das crônicas brasileiras. Introdução A crônica moderna poderia ser considerada um gênero literário espe- cífico do Brasil, segundo alguns críticos, como Antonio Candido et al. (1992), caindo no gosto popular e sendo publicada e consumida até hoje. Em formato de prosa, nela o jornalismo e a literatura são misturados, tornando-a um gênero literário híbrido, fenômeno, inclusive, do que se considera jornalismo literário. A crônica trata de assuntos do cotidiano, frequentemente com um toque de humor, e fala do que nos parece familiar, a partir de diálogos, anedotas e reflexões. Faz isso por meio de uma composição mais próxima ao discurso coloquial, ou informal, mas por trás dessa aparente simplicidade há um acabamento da sua forma que demonstra o requinte de escritores que ficaram muito conhecidos como cronistas, como Rubem Braga, Clarice Lispector, João do Rio e Fernando Sabino. Neste capítulo, você vai entender a maneira pela qual a crônica surgiu no Brasil, no século XVI, ainda sob a forma de crônica histórica e de viagem, passando para a forma moderna no século XX. Além disso, você vai acompanhar suas transformações ao longo do tempo, principalmente em relação às suas características literárias. Por fim, você vai analisar as singularidades das crônicas brasileiras a partir de autores de destaque. 1 O surgimento da crônica no Brasil Para iniciarmos a abordagem do surgimento da crônica no Brasil, é importante que retornarmos antes a Portugal do século XV. De acordo com Moisés (2006), houve uma preocupação do Estado monárquico português da transição da Idade Medieval para a Moderna em desenvolver a cultura letrada nacional. Em função disso, uma das diversas medidas do então rei Dom João I foi nomear o escritor Fernão Lopes com o título de guarda-mor da Torre do Tombo. Logo, uma das suas atribuições era ser cronista ofi cial da corte. É relevante que você entenda que “cronista” naquele tempo tinha um signifi cado atribuído a alguém que registra eventos da época, como se fosse um historiador. No século seguinte, a partir das Grandes Navegações e da chegada dos portugueses ao Brasil em 1500, Pero Vaz de Caminha, que tinha a função de cronista de viagens das embarcações portuguesas, redigiu a primeira crônica feita no país, em sua famosa carta (Figura 1). Figura 1. A Carta do Descobrimento, redigida por Pero Vaz de Caminha. Fonte: Curado (2019, documento on-line). A crônica no Brasil2 Aliás, a carta de Pero Vaz de Caminha foi arquivada na Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal, e existe lá até hoje. Sendo assim, em um primeiro momento a crônica começa no Brasil possuindo uma feição de crônica enquanto relato, ou então de crônica de viagem. Na carta do Descobrimento, Caminha narra eventos históricos, como o desaparecimento de uma nau da frota portuguesa e a viagem marítima que rumava para as Índias, mas acabou chegando a terras brasileiras. Vale destacar que nessas crônicas de viagem é descrita a paisagem exótica e tropical do Brasil, bem como a relação entre os portugueses e os povos indí- genas da região, detalhando os interesses políticos econômicos dos europeus, além do escambo feito por eles. Em virtude disso, tal documento ganha um status de importante vestígio histórico tanto para Portugal quanto para o Brasil. No entanto, esse cenário mudaria no início do século XIX. Com a chegada da Família Real ao Rio de Janeiro em 1808, trazendo consigo a Imprensa Régia, deu-se início às primeiras publicações em solo brasileiro. Tal fato gerou, mais tarde, a criação da imprensa brasileira (Figura 2), a qual teve como marco “[...] 2 de dezembro de 1852. Foi nesta data que Francisco Otaviano inaugurou o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro” (SIEBERT, 2014, documento on-line). Figura 2. Capa de uma edição do Jornal do Commercio. Fonte: Jornal... (2019, documento on-line). A partir de então, a crônica passou a ser escrita e publicada nos jornais da época, em especial nos folhetins, espaços desse veículos destinados a diversas produções literárias, dentre elas a crônica. Sobre isso, Neiva (2005, documento 3A crônica no Brasil on-line) afirma que: “[...] qualquer texto que [...] naquela época não preenchesse as exigências jornalísticas era publicado no espaço folhetinesco. Por isso, o conto, a crônica, a novela e o romance eram considerados folhetins, uma vez que ocuparamo rodapé dos jornais”. Assim, o espaço cedido pelo jornal fez com que a crônica caísse no gosto popular, como também pudesse crescer ainda mais. Nesse sentido, Candido et al. (1992, p. 15) comentam que a crônica “[...] não nasceu propriamente com o jornal, mas só quando este se tornou cotidiano, de tiragem relativamente grande e teor acessível, isto é, há uns 150 anos mais ou menos”. Nesse período, a crônica largou sua roupagem de histórias de viagem e passou a ter um laço estreito com a imprensa, além de exibir uma natureza mais literária. Sobre isso, Arnt e Brasil (2002, documento on-line) comentam que a maioria dos escritores de crônicas da época estavam envolvidos com o jornal: “Quer como edi- tores, quer como cronistas ou escritores de folhetins, eles vão interferir na maneira de se fazer e conceber o jornal. A influência dos escritores foi de tal ordem que podemos qualificar esse período da história da imprensa de jornalismo literário”. Outro detalhe importante, segundo Amato (2009), é que os primeiros cronistas brasileiros começaram a despontar a partir dessa época, a exemplo de Francisco Otaviano, Maria Firmina dos Reis, Lima Barreto, Machado de Assis, Carmen Dolores, Júlia Almeida e João do Rio. Em especial, Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar (Figura 3) merecem destaque, porque, segundo Costa (2005, p. 247), “[...] deram início a uma raça de cães vadios, livres farejadores do cotidiano, batizados com outro nome vale-tudo: crônica”. Figura 3. Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar. Fonte: Academia Brasileira de Letras ([201-?]a; [201-?]b, documento on-line). A crônica no Brasil4 Com o século XX, a relação entre crônica e jornal foi afetada, por causa da modificação sofrida pela imprensa. De acordo com Beltrão (1992), os periódicos gradativamente se inclinaram ao big business, tornando-se empresas. Assim, deixaram de ser uma propriedade privada individual e passaram a pertencer a grandes grupos econômicos. Devido a disso, a obtenção de lucro foi priorizada, fazendo com que as publicações das crônicas minguassem. Complementando, Neiva (2005, documento on-line) afirma: “Nessas condições, podemos observar que as colaborações dos literatos passaram a ocupar um espaço separado, pois o jornal não pretendia manter o predomínio do caráter literário em suas páginas”. Todavia, não vá se pensar que a crônica foi esquecida. Nesse mesmo cenário, com o crescimento do público leitor, aliado ao fortalecimento das editoras nacionais, a crônica ganhou novos meios de circular: os livros impressos. Inclusive, é nesse momento que grandes cronistas aparecem, como é o caso de Rachel de Queiroz, Cecília Meireles, Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Alves, Fernando Sabino, Luis Fernando Verissimo, Nelson Rodrigues, Eneida de Moraes, Vinícius de Moraes, Clarice Lispector e Carlos Heitor Cony. Você sabia que a cronista cearense Rachel de Queiroz foi a primeira mulher a se tornar uma imortal da Academia Brasileira de Letras? No site oficial da entidade (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2017) você encontra um informativo verbete sobre sua biografia e obra. Por fim, na transição do século XX para o XXI, o advento das mídias digitais ofereceu uma nova possibilidade de publicação de crônicas, coexistindo não só com os livros impressos, mas também com os velhos jornais. Acerca disso, Siebert comenta (2014, documento on-line): Assim, no final do século XX e início do século XXI as crônicas são adaptadas para os meios audiovisuais, publicadas em blogs, dando continuidade ao que lhes é constitutivo: permanecer em movimento, confrontando a história, o jornalismo e a literatura. Talvez o sentido da crônica brasileira seja este: causar o estranhamento, desestabilizar, fazer do incerto seu tempero mais genuíno e, em sua errância, buscando outros discursos para participar de sua trama. Agora sem o descarte do papel, na perenidade do mundo digital. 5A crônica no Brasil Esse contexto também proporcionou a consolidação de novos cronistas, a exemplo de Antonio Prata, Martha Medeiros, Daniel Galera, Luiz Ruffato e Gregorio Duvivier. 2 Transformações da crônica brasileira ao longo do tempo Como já mencionado, o surgimento da crônica no Brasil se deu por infl uência lusitana, sobretudo com a nomeação de Fernão Lopes como guarda-mor da Torre do Tombo e cronista ofi cial da corte portuguesa. Por conta disso, gerou- -se uma tradição de registrar feitos históricos, as denominadas crônicas de viagem. Um grande exemplo disso foi a Carta de Pero Vaz de Caminha, a primeira crônica escrita em território nacional, seguida de outros relatos de vários cronistas, como “O Tratado da Terra”, de Pero Magalhães Gandavo e “Tratado Descritivo do Brasil”, de Gabriel Soares de Souza (RINALDI, 2007). Tais relatos assumem vários formatos, como cartas, tratados, etc., constituindo o que se entende por crônica histórica. De acordo com Siebert (2014, documento on-line): No início do século XVI, o funcionamento da crônica tem relação estreita com a narrativa de viagem, com os testemunhos das conquistas ‘além-mar’; nesse caso, os registros traziam a descrição pormenorizada do cenário e dos sujeitos encontrados em suas viagens. Todavia, no século XIX esse gênero crônica é modificado, ganhando características próximas das que se conhece hoje. Um fator responsável por essa modificação da crônica foi o narrador nativo. Nesse aspecto, Siebert (2014) comenta que as crônicas de viagem eram feitas predominantemente por colonizadores portugueses e europeus ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII. Porém, no século XIX isso mudou, pois “[...] a imprensa brasileira ganha novos escritores, além de novas formas de produção e circulação” (SIEBERT, 2014, documento on-line). Além disso, ocorre a Independência do Brasil em 1822 e, em 1889, a Proclamação da República. Em virtude de todas essas mudanças, os cronistas passaram a ser exclusivamente brasileiros. Sendo assim, esses elementos fizeram com que a crônica se constituísse tal qual “[...] uma nova forma de dizer, em textos que tratavam dos hábitos e costumes dos brasileiros” (SIEBERT, 2014, documento on-line). Foi então que esse gênero literário passou a ter um semblante parecido com as crônicas A crônica no Brasil6 atuais, isto é, de narrativas as quais buscam retratar “[...] a essência humana reencontrada, que nos chega através de um texto bem elaborado, artisticamente recriando um momento belo da nossa vulgaridade diária” (SÁ, 1985, p. 22). Além disso, outras duas características das crônicas produzidas durante o século XIX podem ser ressaltadas. Uma é a abordagem de temáticas predomi- nantemente urbanas, envolvendo elementos das cidades em seus enredos. A outra característica diz respeito ao diálogo que os cronistas estabeleciam com seus leitores. Siebert (2014, documento on-line) comenta isso, exemplificando o caso dos textos de José de Alencar: Na crônica brasileira, Alencar e o/a leitor(a) estabelecem uma relação de proximidade, quase íntima, conversando tanto com as mulheres como com os homens, o que provoca um deslocamento ainda maior nas posições dialógicas, tanto de escritura como de leitura do gênero. Ao falar da mocinha, do pai e do pretendente, Alencar atrai a atenção dos diferentes leitores, colocando- -os como protagonistas na cena enunciativa central da crônica. O/A leitor(a) consegue se ver nesse lugar criado, lhe é familiar. Em seguida, a crônica brasileira produzida no século XX passou a ser um gênero bastante lido por vários públicos. Isso se deveu não apenas ao longo período em que tal gênero circulou nos jornais, mas também à expansão das editoras nacionais e à criação tardia das mídias digitais (que apareceram na última década desse século). Esse crescimento não ocorreu somente no aspecto de consumo do público leitor. As maneiras de se escrever a crônica também se diversificaram, enri- quecendo ainda mais o próprio ofício do cronista. Como exemplos, podemos citaralguns tipos diferentes em que esse gênero se manifesta, a partir de Tuzino (2009), Thomé e Rodrigues (2017), Moura (2007) e Coutinho (1984). Assim, no século XX passaram a existir: as crônicas sentimentais, que possuem um alto teor intimista e psico- lógico em suas páginas — uma autora que exemplifica bem esse tipo é Clarice Lispector; as crônicas satírico-humorísticas, que buscam criticar, ironizar e extrair humor de fatos ou pessoas, a fim de entreter os leitores — podemos citar as obras de Luis Fernando Verissimo e Fernando Sabino; as crônicas argumentativas, que almejam, por meio da narrativa, en- volver os leitores em algum posicionamento do autor, com uma fina- lidade persuasiva — dois exemplos que podemos destacar são Nelson Rodrigues e Luiz Ruffato; 7A crônica no Brasil as crônicas-reportagem, que procuram imprimir lirismo, isto é, a no- tícia lírica; por meio do fato noticiado, o cronista busca transcender o cotidiano e transformá-lo em literário — um exemplo disso é o escritor Caê Guimarães; as crônicas-poema, que imprimem um tom poético ao cotidiano — um bom exemplo disso é o autor Rubem Braga. 3 As singularidades da crônica brasileira Como vimos, o gênero crônica no Brasil sofreu transformações contínuas desde o século XVI, fazendo com que assumisse várias feições e roupagens. Em função disso, vários autores atestam que a crônica feita no Brasil é única e difere de outros países. Em relação a isso, Flora Bender e Ilka Laurito (1999, p. 45) empregam uma metáfora culinária: Se fôssemos comparar o gênero a um prato de comida, não seria, certamente, uma sofisticada iguaria da culinária francesa e sim a comidinha trivial, o arroz e feijão com picadinho e batata. Embora de origem estrangeira, aclimatou-se bem à nossa terra, assim como a cana-de-açúcar e o café. Não se pode dizer que seja um gênero exclusivamente brasileiro, mas tem o nosso sotaque e encontrou, aqui, nos nossos leitores e jornais, seu habitat ideal. Dialogando com as autoras, Candido (1989, p. 6–7) também atesta a ori- ginalidade desse gênero literário: “No Brasil ela [a crônica] tem uma boa história, e até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu”. Considerando isso, nos próximos subtópicos você analisará um pouco mais sobre a originalidade da crônica brasileira, a partir dos seus variados tipos, tomando como exemplo trechos de autores de maior destaque. As crônicas satírico-humorísticas de Fernando Sabino Mineiro de Belo Horizonte, Fernando Sabino é um autor popular não apenas em Minas Gerais como no Brasil todo. Mesmo jornalista de profi ssão, conseguiu ganhar a vida com as letras. Publicou vários romances e contos, mas foi com a crônica que se consagrou. Assim, a que analisaremos aqui será “Conversinha mineira”, a qual está na obra A mulher do vizinho. A crônica no Brasil8 A obra em si é composta por um diálogo entre um viajante e o dono de uma leiteria em uma cidade de Minas. Desde o início, é estabelecida uma relação de desconfiança em relação ao forasteiro por parte do dono: — É bom mesmo o cafezinho daqui, amigo? — Sei dizer não senhor: não tomo café. — Você é dono do café, não sabe dizer? — Ninguém tem reclamado dele não senhor. — Então me dá café com leite, pão e manteiga. — Café com leite só se for sem leite. — Não tem leite? — Hoje, não senhor (SABINO, 1962, p. 144). Com o desenrolar da crônica, o viajante pergunta ao dono da leiteria como está a política do município, pois era período de campanha para a prefeitura. O proprietário desconversa, dizendo que não sabe de nada, que não conhece os candidatos. Assim, para fechar a narrativa, o viajante faz um questionamento ao dono: — Você, certamente, já tem candidato. — Quem, eu? Estou esperando as plataformas. — Mas tem ali o retrato de um candidato dependurado na parede, que his- tória é essa? — Aonde, ali? Ué, gente: penduraram isso aí… (SABINO, 1962, p. 145). De maneira leve e descontraída, o autor produz crônicas engraçadas e despretensiosas, mas, conforme Amato (2009, documento on-line): “Sabino fica à vontade para explorar o humor das situações tragicômicas da realidade brasileira, compondo um texto cuja característica básica é a leveza, mas sempre com visão crítica, de forma a ser tornar uma denúncia social”. Em relação ao trecho anterior, a denúncia social pode ser observada no quadro do candidato a prefeito no estabelecimento e a surpresa do dono do lugar. Por se tratar de uma figura pública e em um cargo de representação social, em tese todos da cidade deveriam ao menos conhecê-lo, mas isso não ocorre por parte do proprietário. As crônicas reportagens de Caê Guimarães Carlos Eduardo Guimarães, mais conhecido como Caê Guimarães, é um jornalista capixaba e também escritor. Já publicou romances e contos, 9A crônica no Brasil mas também é um cronista no jornal A Gazeta, além de ter publicado um livro voltado para a crônica, intitulado De quando a minha rua tinha borboletas. Dessa obra, vamos analisar o texto “Todas as areias da ampulheta II”. Nessa crônica, o autor busca ir além de um fato noticiado na época da publicação da obra, em 2008, a ativação do Large Hadron Collider (LHC), o maior acelerador de partículas do mundo, construído em Gene- bra. Na época, muitos boatos foram criados a partir de sua inauguração, dizendo que isso causaria um novo Big Bang, ocasionando a destruição do mundo. Sabendo disso, ele relembra da notícia, mas imprime uma subjetividade nela: O acelerador de partículas não detonou o mundo. Ao menos por enquanto. Mas foi tema de especulações e conversas à toa sobre possíveis efeitos colaterais. Creio que as respostas surgidas do choque das partículas nervosas derivarão em invenções — convertidas em produtos — que mudarão as nossas vidas. Como foi com a telefonia móvel e a internet. Não somos os mesmos depois dos celulares e do Google (GUIMARÃES, 2010, p. 13). Com base nisso, o autor imprime uma reflexão profunda a respeito do tempo e da insignificância humana frente ao poder de eventos minúsculos a olho nu, bem como a brevidade da vida. Esse tipo de crônica é muito instigante, uma vez que proporciona ao leitor uma visão além da objetividade das notícias, neste caso a ativação do LHC em 2008, fragmentando a barreira entre o fato e a ficção. Dessa forma, você pode notar a riqueza literária da crônica brasileira. Embora ela tivesse no início do século XVI uma feição historiográfico com um viés literário, ela não apenas passou por transformações em solo brasileiro, como também caiu no gosto popular, sendo muito consumida até hoje. Assim, a partir das análises anteriores, você pode notar as maneiras pelas quais um evento do cotidiano pode ser ressignificado nas crônicas modernas e contem- porâneas com base na subjetividade de cada cronista, imprimindo-se um tom poético ou crítico, por exemplo, e tornando-se um instigante e interessante relato e reflexão sobre a vida que nos cerca. A crônica no Brasil10 ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Joaquim Manuel de Macedo: biografia. Rio de Janeiro, [201-?]a. Disponível em: https://www.academia.org.br/academicos/joaquim-manuel- -de-macedo/biografia. Acesso em: 26 jul. 2020. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. José de Alencar: biografia. Rio de Janeiro, [201-?]b. Disponível em: https://www.academia.org.br/academicos/jose-de-alencar. Acesso em: 26 jul. 2020. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Rachel de Queiroz: biografia. Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: http://www.academia.org.br/academicos/rachel-de-queiroz/biografia. Acesso em: 26 jul. 2020. AMATO, S. Uma leitura do cotidiano do brasileiro no gênero crônica: Fernando Sabino, o poeta que nasceu velho e morreu menino. 2009. 36 f. Monografia (Pós-Graduação em Língua Portuguesa, Compreensão e Produção de Textos) — Faculdade de Educação de São Luís, Jaboticabal, SP, 2009. Disponível em: https://www2.jf.jus.br/pergamumweb/vinculos/00001e/00001e1d.pdf. Acesso em: 26 jul. 2020. ARNT, H.; BRASIL, A. (org.). Telejornalismo online em debate. Rio de Janeiro: E-papers, 2002. Disponível em: https://www.e-papers.com.br/autor.asp?codigo_autor=72&codigo_pro- duto=654. Acesso em: 26 jul. 2020. BELTRÃO, L. Iniciação à filosofia do jornalismo. Rio de Janeiro: Agir, 1992. BENDER, F. C.; LAURITO, I. B. Crônica: história, teoria e prática. São Paulo: Scipone, 1999. (Coleção Margens do texto). CANDIDO, A. A vida ao rés-do-chão. São Paulo: Ática, 1989. (Para Gostar de ler, 5). CANDIDO, A. et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. 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No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. MOISÉS, M. Literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2006. MOURA, E. S. Novos olhares, novas leituras das crô nicas de Machado de Assis e de Carlos Drummond de Andrade. 2007. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura) — Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007. Disponível em: https:// tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/2072/1/387988.pdf. Acesso em: 26 jul. 2020. NEIVA, É. M. C. A crônica no jornal impresso brasileiro. Revista PJ:BR: Jornalismo Bra- sileiro, n. 5, 2005. Disponível em: http://www2.eca.usp.br/pjbr/arquivos/ensaios5_b. htm. Acesso em: 26 jul. 2020. RINALDI, L. Cronistas de viagem e viajantes cronistas: o pêndulo da representação no Brasil colonial. 2007. 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Isso talvez se deva a sua forma híbrida, que mistura um relato histórico ou de eventos do cotidiano a um formato ou estilo literário, tornando-a um fenômeno especificamente nacional. Assim, considerando a evolução desse gênero literário, julgue as afirmações a seguir: I - A primeira crônica brasileira, segundo a crítica literária, foi feita por Pero Vaz de Caminha, em formato de Crônicas de Viagens. Inclusive, esse modelo de crônica surgiu justamente por conta da colonização brasileira. II - No século XIX, a crônica ganhou uma nova roupagem em função da sua publicação nos jornais da época. III - Esse gênero literário perdeu espaço na imprensa nacional devido à comercialização das notícias. No entanto, com as mídias sociais, essa redução foi compensada, proporcionando novos meios de divulgações. Marque a opção correta: A) Somente a afirmação I é verdadeira. B) As afirmações II e III são verdadeiras. C) A afirmação II é verdadeira. D) As afirmativas I e III são verdadeiras. E) A afirmativa III é verdadeira. 2) Veja a citação a seguir sobre o gênero crônica: “[...] tanto em relação ao sentido tradicional do termo quanto em relação ao sentido moderno, é que a crônica, pela sua própria origem, está sempre ligada à ideia contida no radical do termo que a designa: assim, seja um registro do passado, seja um flagrante do presente, a crônica é sempre um resgate do tempo.” (BENDER; LAURITO, 1999, p. 11). Assim, pode-se afirmar que o trecho da citação ressalta a capacidade de: A) narrar qualquer situação do cotidiano brasileiro urbano e rural. B) elaborar narrativas a partir de um recorte temporal específico. C) criar vários personagens de épocas diferentes. D) gerar histórias ligadas ao passado brasileiro e suas origens. E) recortar um fato do presente ou do passado e narrá-lo objetivamente. 3) A crôica brasileira é muito rica e multifacetada, tendo se aprimorado a partir de cada cronista brasileiro, o qual imprime um olhar singular nos diversos fatos do cotidiano. Considerando isso, leia um trecho da crônica Inimigos, de Luís Fernando Veríssimo: "O apelido de Maria Teresa, para Norberto, era 'Quequinha'. Depois do casamento, sempre que queria contar para os outros uma da sua mulher, o Norberto pegava sua mão, carinhosamente, e começava: – Pois a Quequinha... [...] Com o tempo, Norberto passou a tratar a mulher por “Ela”. – Ela odeia o Charles Bronson. [...] Hoje, quando quer contar alguma coisa da mulher, o Noberto nem olha na direção. Faz um meneio de lado com a cabeça e diz: – Aquilo." Logo, analisando a crônica, pode-se afirmar que o cronista ressaltou, por meio da narrativa: A) o perecimento da relação do casal. Como um passa a não gostar mais do outro, eles ficam se engalfinhando por meio de apelidos pejorativos, os quais se acentuam ao longo da narrativa. B) a transformação gradativa do sentimento de amor que o marido tem pela esposa para um sentimento de hostilidade. Em vez de ser companheiro, acaba se tornando inimigo dela. C) o contraste de idade do casal. Por ser ele mais velho do que a mulher, não consegue lidar com as diferenças de geração; inclusive, isso se agrava com o passar do tempo. D) o fato de se tratar de dois personagens de classe média brasileira; o autor utiliza os conflitos e desafios do dia a dia desse grupo social a fim de retratar a maneira como eles vivem. E) o desdém que a mulher tem pelo marido, demonstrado pelo modo como ela se refere a ele a fim de retratar a deteriorização da relação dos dois com o tempo. 4) A crônica argumentativa teve, em Nelson Rodrigues,um de seus principais expoentes. Um exemplo disso é o texto intitulado Complexo de vira-latas, o qual está na obra À sombra das chuteiras imortais. Publicada às vésperas do embarque da seleção brasileira de futebol masculino rumo ao mundial de futebol na Suécia em 1958, o autor utiliza-se de um fato do cotidiano, isto é, a perda da Copa do Mundo de 1950, realizada no Brasil, para criticar um conjunto de comportamentos autodepreciativos por parte de alguns jogadores da seleção, mas que acaba se estendendo ao povo brasileiro de uma maneira geral. Em relação a isso, assinale o trecho em que o posicionamento do autor é melhor explicado: A) "Em suma: - temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de 'complexo de vira-latas'. Estou a imaginar o espanto do leitor: - 'O que vem a ser isso?'." B) "Mas vejamos: - o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, 'não'. Mas eis a verdade: - eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: - sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo." C) "Tenho visto jogadores de outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado Flamengo. Pois bem: - não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Falase num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho." D) "Eis a verdade, amigos: a derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar." E) "Eu vos digo: - o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia." A Carta de Pero Vaz de Caminha, feita no século XVI durante o período das Grandes Navegações, é considerada pela crítica literária nacional como a primeira crônica brasileira. Analise as afirmações a seguir acerca dela: I - Segundo a crítica literária brasileira, não é possível limitar a Carta de Pero Vaz de Caminha ao aspecto literário. PORQUE 5) II - Ela também tem um aspecto historiográfico, uma vez que se trata de um dos primeiros vestígios históricos sobre o Brasil do séc. XVI. Marque a opção certa: A) As afirmações I e II são verdadeiras e a II é justificativa da I. B) A afirmação I é verdadeira e a II é falsa. C) As afirmações I e II são verdadeiras e a II não é justificativa da I. D) As afirmações I e II são falsas. E) A afirmação I é falsa e a II é verdadeira. Na prática A crônica, ainda que tenha origem fora do Brasil, se desenvolveu de maneira singular desde o séc. XVI até os dias atuais. Conforme você viu nesta Unidade de Aprendizagem, ela adquiriu várias formas, desenvolvendo características singulares nas narrativas. Sabendo disso, neste Na Prática, você verá o caso da professora Liliane, que aborda, em sua turma de Ensino Médio, a crônica argumentativa. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. https://statics-marketplace.plataforma.grupoa.education/sagah/7c4ab12c-fe1a-483b-b717-c9a2f2dac379/0d4986c0-4626-4b14-b755-26518c3d811f.jpg Saiba + Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: Quando adivinhar é ser: o intercâmbio eu-outro-outro-eu na escrita de Clarice Lispector Neste artigo, Marília Malavolta investiga a maneira como a autora constrói a sua expressão intimista em suas crônicas. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. A crônica brasileira contemporânea Neste vídeo, o professor João Amálio Ribas comenta esse gênero literário nos dias atuais. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. Crônica, uma mania nacional No vídeo, o escritor Ignácio de Loyola Brandão fala, de modo descontraído, sobre as principais características da crônica feita no Brasil. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. https://periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/9696 https://www.youtube.com/embed/CvK7ibOyMeg https://www.youtube.com/embed/AKHKsHlbeno