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1 Disciplina 6: Comércio de escravos e escravidão Carga horária: 30 horas aulas Profa.Dra. Maria do Carmo Ferraz Tedesco A ESCRAVIDÃO NAS ÁFRICAS E O COMÉRCIO DE ESCRAVOS PELO OCEANO ATLÂNTICO EMENTA Atlântico negro – trânsitos históricos e culturais, políticas e identidades nas diásporas negras nos séculos XVII e XX. A escravidão nas Áfricas e o comercio de escravos pelo oceano Atlântico. O processo de “roedura” das Áfricas com a colonização e o imperialismo europeu. A escravidão nas Áfricas e o comércio de escravos pelo oceano Atlântico. I – Introdução: Memória e História – O tráfico escravo. precisamos do passado e da história para orientar nossas ações no presente e futuro (Rüsen) O inventário das mudanças verificadas a partir do século XV nos leva a constatar que, além da nova cartografia quinhentista, além da criação de uma intensa complementaridade entre os grandes oceanos, intensificou-se a interação entre homens das mais longínquas regiões do globo inaugurando um processo que até hoje se mantém dinâmico. O trânsito de pessoas e culturas, além de espécies vegetais, animais e produtos por um longo período reconfigurou as regiões dando origem a uma nova paisagem humana e natural. No caso específico da África e da América foram criados laços que mobilizaram os mais diversos setores da existência humana desde a linguagem, o comportamento, o paladar, o gosto musical e estético, as representações do sagrado, além de inúmeros outros aspectos. O tráfico e a escravidão, processos de longa duração que transformaram tanto a vida das regiões de origem do escravo, como os locais de chegada daqueles contingentes humanos, foram os fatores fundadores do grande intercâmbio cultural. Entretanto, após a abolição do tráfico e da escravidão estes eventos passam a ser abordados com certo constrangimento. Tornam-se, com o advento do liberalismo e das campanhas antiescravistas, fenômenos históricos que devem ser evitados e, se possível, jogados nos subterrâneos do esquecimento, suprimidos da memória coletiva. Um episódio polêmico em torno da figura de Rui Barbosa é bastante ilustrativo da ação de silenciamento da memória coletiva sobre um acontecimento que constitui motivo de constrangimento ao ser rememorado. Segundo uma interpretação 2 freqüentemente reproduzida nas escolas, o Ministro da Fazenda, logo após a proclamação da Republica, teria mandado incinerar os documentos relativos às matrículas de escravos para anular “a mancha da escravidão do passado nacional”1. A origem desse mito foi a lei que determinava que fossem incinerados “todos os papeis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda, relativos ao elemento servil, matrículas dos escravos, dos ingênuos, filhos livres de mulheres escravas e libertos sexagenários.”2 Ora, segundo diversos estudos 3 a intenção de Rui Barbosa não foi “apagar” um episódio da história, mas evitar que proprietários viessem a pleitear indenizações pelos seus ex-escravos junto ao novo regime republicano, por isso, teria mandado queimar as referidas matrículas. Entretanto, a história contada e repetida diz que Rui Barbosa teria tido a intenção de anular a “mancha da escravidão”. Essa é uma demonstração de que para muitas pessoas falar do tráfico e da escravidão gera um constrangimento e seria, então, mais conveniente apagar da história os acontecimentos relacionados. Encerrada as discussões sobre o episódio, pesquisas têm demonstrado que muito se pode investigar sobre a escravidão a despeito dos documentos queimados. Entretanto, toda a polêmica construída em torno da atitude de Rui Barbosa chama a atenção, ainda hoje, para a existência de uma disputa da memória, de um conflito entre o que seria a história oficial, que encerra o evento da escravidão com a Lei Áurea de 13 de maio, e os setores que querem discutir os desdobramentos decorrentes daquele processo, criar novas narrativas e buscar compreender a discriminação sofrida pelos afrodescendentes e, até mesmo, compreender algumas manifestações contemporâneas da escravidão. O silenciamento 4 de aspectos da memória social não constitui fato inédito na historiografia, em particular as narrativas da constituição da nação calaram inúmeros episódios, tais como os genocídios indígenas no período colonial e em períodos posteriores e toda a violência decorrente da escravidão africana. Quanto à escravidão, uma vez oficialmente extinta, foi necessário colocar uma pedra sobre os acontecimentos para promover uma convivência harmoniosa entre algozes e vítimas, entre ex-escravos e senhores. 1 Confira http://pt.wikipedia.org/wiki/Ruy_Barbosa#cite_note-3 < acesso em 6/12/2013> 2 Apud SLENES, Robert. Escravos, cartórios, desburocratização o que Rui Barbosa não queimou será destruído agora? In Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. V, nº 10, p. 166-196, março-agosto, 1985. Disponível em: http://www.unicamp.br/cecult/pdf/slenes_r_escravoscartoriosdesburocratizacao.pdf <acesso em 24/11/2013> 3 SLENES, op.cit; Revista Afro.Com. http://www.revistaafro.com.br/mundo-afro/rui-barbosa-e-a-queima- de-arquivos-gesto-nobre-ou-condenavel/ <acesso em 09/12/2013>; BARBOSA, Francisco Assis Apresentação ao livro Rui Barbosa e a queima de arquivos. http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/a- j/FCRB_FranciscodeAssisBarbosa_Apresentacao_livro_RuiBarbosa_queima_arquivos.pdf <acesso em 24/11/2013>. 4 POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2 , nº 3, 1898, p. 3 – 15. 3 A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor. 5 A memória coletiva nacional constitui um fator de coesão, uma interpretação dos acontecimentos que fornece um quadro de referências comum a todos. As comemorações do “13 de maio” e as homenagens à Redentora Princesa Isabel têm essa conotação, estabelecem o encerramento de uma etapa, e pretendem inaugurar uma nova era de congraçamento. Entretanto, todos nós conhecemos os desdobramentos desse silenciamento cuja expressão mais acabada foi o mito da “democracia racial brasileira”. A escravidão de africanos deportados para a América foi acompanhada de um processo ideológico de reificação [coisificação], de inferiorização do negro e de racismo. A discriminação racial expressa, como o caso norte americano, ou dissimulada, como no caso brasileiro, exigiu a retomada dos acontecimentos indizíveis, o aprofundamento do conhecimento sobre aqueles fatos fundadores dos grupos excluídos, buscando a reconfiguração da memória coletiva. O estudo sobre o tráfico de escravos da África para o Brasil tem sido um dos campos mais revisitados nos últimos tempos reavaliando os números da diáspora e as características e transformações que o processo promoveu na África e nas Américas. O aprofundamento de seu estudo é um dos passos necessários para sabermos lidar tanto com os acontecimentos do passado, como as manifestações contemporâneas daquele evento. O objetivo deste estudo é compreender como o tráfico de escravos se desenvolveu no interior do continente africano antes e depois da chegada dos europeus, as características que essa atividade adquire nas diferentes regiões envolvidas e o papel dos diversos agentes no processo. ATIVIDADE OBS:Esta atividade tem por objetivo refletir sobre a permanência de formas de escravidão na contemporaneidade e como, muitas vezes, certas formas de trabalho consideradas inaceitáveis, dada a similaridade com a escravidão, se transvestem de outras características e acabam sendo toleradas pelas sociedades. 1. Leitura e discussão dos artigos e debate sobre o que são formas “análogas à escravidão”: O “Repórter Brasil”, de 11/03/2013, apresentou notícia sobre intervenção do Ministério Público em fazenda em Corumbá: Há 17 anos trabalhador e família vivem isolados no Pantanal. Ele chegou a ficar 4 anos sem receber salário. A denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra o proprietário da Fazenda Paraíso, em Corumbá (MS), foi aceita pela Justiça Federal 5 Idem: p.8. 4 em 4 de março de 2013. O fazendeiro é acusado de reduzir trabalhador rural à condição análoga à de escravos, sujeitando-o a situações degradantes de trabalho. A vítima trabalhava há 17 anos na Fazenda Paraíso e chegou a ficar 4 anos sem salário, recebendo apenas alimentos. A pena para este crime é de reclusão de dois a oito anos e multa. http://reporterbrasil.org.br/2013/03/mpf-denuncia-advogado-por-trabalho-escravo-em-fazenda- em-corumba/ <acesso em 03/12/2013> A presença dessa forma de exploração de trabalho exige uma constante fiscalização do Ministério do Trabalho que tem realizado resgates de trabalhadores em situações análogas ao trabalho escravo. Desde que foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), em 1995, foram realizadas 1.082 ações de fiscalização com 39.169 trabalhadores resgatados. Desse total, 905 operações foram realizadas entre 2003 e 2010, com aproximadamente 85% dos trabalhadores resgatados desde a criação do GEFM sendo libertados nesse período. "Essa intensificação da fiscalização ocorreu por dois motivos principais. O lançamento do primeiro Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, em 2003, deu mais legitimidade a nossa atuação. E, nesse mesmo ano, ocorreu a alteração do artigo 149 do Código Penal, que define o que é trabalho escravo. Antes dessa alteração o artigo tinha uma redação muito generalista e, a partir de então, passou a ter uma clara definição de quais seriam as quatro modalidades de submeter o trabalhador ao trabalho análogo ao de escravo: trabalho forçado, jornada exaustiva, servidão por dívida e condições degradantes de trabalho. E isso facilitou muito nosso trabalho", explica o coordenador do Grupo Móvel, Fernando Lima Júnior. http://www.protecao.com.br/noticias/estatisticas/numero_de_denuncias_de_trabalho_escravo_c aiu,_mas_de_resgatados_cresceu/JayJJay5 <acesso em 03/12/2013> 2. Reflexão sobre o conceito de trabalho escravo a partir da tentativa de modificação do entendimento do conceito pela bancada ruralista. Pesquisar no blog: Blog de Leonardo Sakamoto sobre trabalho escravo: tentativa da bancada ruralista de mudar conceito de trabalho escravo. http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/11/03/prepara-se-no-senado-um-golpe- contra-os-trabalhadores-do-pais/ <acesso em 24/11/2013.> Conclusão da Atividade A reflexão sobre a sujeição de inúmeros indivíduos à condições indignas de trabalho, ainda nos tempos atuais, como nos exemplos acima, deve nos sensibilizar para compreensão dos sofrimentos e das experiências vividas por milhares de africanos que 5 foram arrancados de suas terras e trazidos para o Brasil. Precisamos atentar, ainda, que processos dessa envergadura não ocorrem pela vontade de uns poucos indivíduos, mas pela concordância e colaboração de muitas pessoas e com diferentes graus de responsabilidade no processo. Esta é a importância de um estudo mais atento sobre o tráfico de escravos que alimentou por três séculos o processo produtivo na América e deixou marcas indeléveis no comportamento das sociedades. Antes de nos aprofundarmos em particularidades ligadas ao tráfico de escravos, vamos analisar uma experiência da diáspora e da escravidão, partindo de um documento bastante peculiar: a biografia de um ex-escravo. Parte II – A História de Baquaqua um exemplo dos destinos vividos pelos africanos na diáspora. O depoimento de Mahommah Gardo Baquaqua é a melhor forma de imergir na condição de escravo enquanto totalidade de experiências, sentimentos, medos, estranhamentos à que foram submetidos todos que como ele fizeram a travessia do Atlântico. Quem foi Mahommah Baquaqua? Foi um homem que viveu a experiência do tráfico de escravos no Atlântico e seu testemunho ilustra a dinâmica de violência, tanto física quanto moral, que foi necessária para manter o processo colonial funcionando e que promoveu a desumanização tanto das vítimas quanto dos algozes. Acompanhar o sofrimento de Baquaqua as humilhações, as constantes punições corporais muitas delas por capricho do patrão, da esposa do patrão, dos funcionários subalternos, nos dá a medida do desalento e da total ausência de perspectiva que a situação de escravidão impunha aos indivíduos. Parte desta biografia tornou-se conhecida no Brasil graças a publicação da professora Silvia Lara, na Revista Brasileira de História 6 , entretanto, essa tradução concentra-se principalmente nos trechos referentes ao Brasil. Temos acesso a outras informações do documento por meio da análise de Paul Lovejoy 7 que persegue as pistas sobre a vida de Baquaqua na África. ATIVIDADE: Leitura A Biografia de Mahommah G. Baquaqua. Revista Brasileira de História. 1988. www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3686idem O texto compilado pela professora Silvia Lara tem início com a chegada de Baquaqua em Gra-fe. Neste primeiro momento ele encontra um conhecido de sua 6 LARA, Silvia Hunod. A Biografia de Mahommah G. Baquaqua. Revista Brasileira de História. 1988. www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3686idem <acesso em 24/11/2013> 7 LOVEJOY, Paul. Identidade e miragens de etnicidade. Revista Afro-Asia, n. 27, 2002 (a). www.afroasia.ufba.br/pdf/27_7_identidade.pdf Ver também: Baquaqua a identidade perdida de um ex-escravo. http://caminhandonotempo.blogspot.com.br/2010/12/baquaqua-identidade-perdida-de-um-ex.html <acesso em 24/11/2013> 6 região: Zoogoo, que atualmente recebe o nome de Djougou. (LOVEJOY, 2002(a): 17) Interessante é a afirmação que foi na localidade de Gra-fe que ele viu, pela primeira vez, um homem branco e uma casa de homem branco e se espantou, principalmente, com as janelas, algo que ele tinha jamais visto. (LARA, 1988: 270) Este pequeno trecho indica que, ainda, na primeira metade do século XIX, quando Baquaqua foi capturado, o europeu estava ausente na maior parte do continente africano, o que tornava o branco e seus costumes algo desconhecido para a população nativa. Entretanto sentimos falta, ao ler o texto publicado pela professora Silvia Lara de conhecer um pouco mais da vida do biografado antes de seu aprisionamento pelos traficantes de escravos. É no texto de Lovejoy que vamos encontrar dados sobre esse período da vida de Baquaqua, sobre as características da região, bastante marcada pela presença árabe e por inúmeras rotas de comércio como pode ser observado no mapa desse mesmo texto 8 . Por esse estudo ficamos sabendo que Baquaqua teria recebido ainda menino uma formação muçulmana e que, provavelmente, teria sido levado de Zoogoo (Djougou) para Daomé e de lá para Uidá, no Golfo do Benin, onde foi embarcado. (LOVEJOY, 2002(a): 23) Estando no porto de saída ele descreve oritual que precedia o embarque dos escravos: primeiramente eram marcados com ferro quente “como se fossem tampas de barril” (LARA, 1988: 271), depois disso uma grande festa se realizava e os escravos eram fartamente alimentados, finalmente chegada a hora do embarque eram levados em pequenos grupos, por um barco pequeno, até o navio. Descreve o terror que se apossou dele ao ver, pela primeira vez, um navio, acrescido pela imagem do afundamento de uma das embarcações que faziam o translado de terra até o navio, provocando a morte de trinta pessoas. Na seqüência do texto acompanhamos a travessia do Atlântico nos porões do navio. Fome, sede, sujeira, desconforto, fadiga, doença e castigos acompanham toda a viagem: “Oh! a repugnância e a imundície daquele lugar horrível nunca serão apagadas da minha memória. Não: enquanto a memória mantiver o seu posto neste cérebro distraído lembrarei daquilo. Meu coração até hoje adoece ao pensar nisto.” (LARA, 1988: 272) A viagem da África, partindo de Luanda, para a América durava 35 dias até Recife, 40 dias até a Bahia, 2 meses até o Rio de Janeiro. (BOXER, 1973: 244) Independentemente da duração a travessia era sempre muito difícil, pois os escravos eram mantidos a maior parte do tempo no porão evitando assim que se amotinassem ou que praticassem suicídio. Baquaqua viveu alguns anos servindo à patrões no Brasil: trabalhou vendendo pães para um padeiro em Pernambuco, foi vendido para um dono de navio que fazia comércio na costa brasileira o que o levou ao Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio 8 Ver mapa no texto de Lovejoy. Afro-Ásia, 2002, p.18. 7 Grande do Sul até que esse patrão recebe um encomenda de café para ser entregue no porto de Nova Iorque, um lugar livre de escravidão. Lá Baquaqua foge da embarcação sendo auxiliado por grupos abolicionistas, buscando depois refúgio no Haiti, onde permaneceria por dois anos. Ele converteu-se ao cristianismo em 1848. Segundo Lovejoy, durante quase três anos (1850-53) Baquaqua freqüentou o Central College, em McGrawville, Estado de Nova Iorque, onde, depois de mudar-se para o Canadá Oeste (Ontário), tomou providências visando a publicação de sua história, o que se concretiza em Detroit, em 1854. Viajou para Liverpool em janeiro de 1855, e a última notícia que temos dele data de 1857, na Grã-Bretanha, aguardando os resultados dos esforços de seus amigos missionários para levantar fundos, a fim de mandá-lo de volta para a África. (LOVEJOY, 2002(a): 26-28) Era um homem inteligente e com facilidade para aprender línguas, já no navio começou a conhecer as primeiras palavras em português e pouco tempo depois de ter chegado ao Brasil já sabia contar até cem, o que fez com que o patrão o colocasse na venda de pães (LARA, 1988: 275). Segundo seu depoimento tentou agradar o patrão realizando o seu trabalho da melhor forma possível para evitar novas punições, mas esse expediente mostrou-se inútil: Aproveitei disso para procurar elevar-me em sua opinião, sendo muito prestativo e obediente, mas tudo em vão; fizesse o que fizesse, descobri que servia um tirano e nada parecia satisfazê-lo. Então comecei a beber como os outros e, assim, éramos todos da mesma laia, mau senhor, maus escravos. (LARA, 1988: 275) A experiência vivida com o padeiro se repete com o capitão do navio: Fiz tudo que estava ao meu alcance para agradar meu senhor, o capitão, e ele, por sua vez, depositou confiança em mim. A senhora do capitão era tudo menos uma boa mulher; tinha temperamento deplorável. (...) Freqüentemente ela me fez cair em desgraça diante do meu senhor e, então, eu era infalivelmente açoitado. (LARA, 1988: 277) Baquaqua, que como dissemos anteriormente, converte-se ao cristianismo em 1848, escreve suas memórias influenciado pelos valores da nova crença, atribuindo seu sofrimento à uma provação divina e cada atitude de revolta contra a irracionalidade das punições sofridas uma falta de crença na salvação. Nesta época eu era um pobre pagão, quase tão ignorante quanto um Hotentote, e não havia aprendido sobre o verdadeiro Deus ou quaisquer de seus mandamentos Divinos. Entretanto, embora fosse ignorante e escravo odiava a escravidão, principalmente porque, suponho, era uma de suas vítimas. (LARA, 1988: 275) Ah! Cristandade, vos que sois apaziguadora dos sofrimentos do homem, guia dos cegos e força dos fracos, ide em vossa missão, anunciais em toda parte as pacíficas novas de salvação e fazei feliz o coração do homem e, “então, o deserto será feliz e florescerá como uma rosa”. (LARA, 1988: 278) 8 Apesar desse tom conformista adotado, provavelmente, sob a influência da religiosidade cristã ele demonstra consciência que a degradação moral a que esteve sujeito se devia a situação de escravidão. “Assim, sendo mal tratado, aprendi a beber e, a partir disso, aprendi a mentir e, sem dúvida teria ido, passo a passo, de mal a pior até que nada fosse suficientemente vil para meu gosto, e tudo isso por meio do horrível sistema da escravidão.” (LARA, 1988: 279) A penosa travessia do Atlântico no navio negreiro é a representação do trágico rompimento com sua vida anterior. Essa viagem simboliza também, segundo Paul Gilroy, a transformação vivida por aqueles indivíduos que deixam de pertencer às diversas etnias de origem e passam a ser identificados como “negros”. Esse fenômeno ficou conhecido na literatura inglesa como “Middle Passage” ou passagem do meio. (GILROY, 2001) Capturado como escravo e colocado em um navio negreiro os indivíduos deixavam de ser, como no exemplo de Baquaqua, de Zoogoo, de Nikki, de Benin, de Borgu ou de Igbo, deixam de ser reconhecidos pela maneira como cortam o cabelo ou por qualquer característica que os liga à suas terras, à sua família. A partir do embarque tornam-se africanos e negros. Terão que reconstruir suas vidas, famílias e referências. Jean Baptiste Debret: Diferentes nações africanas (1838) Apesar do rompimento violento com o passado a preservação da memória é uma necessidade para os seres humanos, para a construção do sentido de suas vidas, assim, houve um movimento de preservação das características físicas e culturais das nações africanas após a sua chegada no Brasil, durante a Colônia e o Império. Algumas dessas características podem ser conhecidas pelas representações deixadas por artistas e 9 pesquisadores, como por exemplo, Debret, Rugendas, Martius, que aqui estiveram durante o século XIX. A preservação de uma memória cultural na diáspora é um dos traços da nova identidade híbrida que foi sendo construída fundada em novas significações, novas línguas aprendidas, uma nova religiosidade como pudemos acompanhar na leitura das memórias de Baquaqua. Esse processo foi iniciado com o tráfico de escravos que a seguir iremos acompanhar. Parte III – Os primórdios do comércio escravo no continente – o tráfico transaariano. Ouço as preces das almas inocentes daquelas bárbaras nações, em número quase infindo, cuja antiga geração desde o começo do mundo nunca viu luz divinal. (Azurara: Crônica do descobrimento e conquista da Guiné, p.39) O tráfico de escravos é uma velha prática das sociedades humanas incitando diferentes campos do conhecimento a buscar compreender esse fenômeno no contexto das relações sociais. Entre fenícios, gregos, romanos e muitos outros grupos sociais a prática da escravidão se proliferou com características bem particulares a cada grupo. Nas sociedades africanas a escravidão e o comércio de escravos eram instituições fortementeenraizadas. Segundo descrições do viajante Cadamosto, em 1455, os escravos eram capturados em guerra com reinos vizinhos, alguns passavam a integrar a economia doméstica e os demais eram vendidos para os “mouros” em troca de cavalos. (THORNTON, 2009: 155). Cadamosto refere-se ao que observou na África Ocidental, na região que hoje corresponde ao Senegal/ Mauritânia, um dos primeiros pontos de contato entre portugueses e africanos. Esse território era atravessado por caravanas de comerciantes árabes que passavam pelo antigo Reino do Mali – que se constituiu junto aos rios que dão origem ao Rio Senegal – em direção ao norte da África, a região de Marrakech. Na maior parte dos reinos africanos os escravos não exerciam funções produtivas, pois esta era realizada familiarmente e os poucos escravos que dela participavam acabavam incorporados às linhagens. Nas antigas sociedades africanas os escravos pertenciam às elites ou ao Estado e eram usados como soldados, na administração, como concubinas ou em sacrifícios rituais. Manter escravos era, segundo Lovejoy, conservar um dos muitos tipos de relações de dependência existente em sociedade baseadas em sistemas de produção linhageiro 9 ou doméstico, entretanto, a escravidão não era uma instituição essencial. (LOVEJOY , 2002 (b): 44) As conquistas do norte da África e do sul da Europa promovidas pelos sucessores de Maomé, após a morte do profeta em 732, serão o marco inicial dos contatos entre povos muçulmanos e os reinos africanos. Os cronistas árabes que 9 Linhagens: membros de grupo que possuem o mesmo antepassado real; o espaço geográfico ocupado é chamado território linhageiro (este é ocupado por muitas linhagens que obedecem ao chefe grande, o chefe tradicional); difere de clã em que os membros se identificam graças ao ancestral comum lendário. Família alargada em África = erukulu em emakhuwa: “todos nascem da mesma barriga”. (CUEHELA, 1996, p. 10) 10 acompanhavam essa expansão registraram os feitos dos califas nos séculos VIII e IX e descreveram as rotas comerciais que ligavam o Sudão Ocidental (África Ocidental) e o Oriental em direção ao litoral do Mar Vermelho e a Península da Arábia. Com a expansão dos contatos com comerciantes islâmicos, a pré-existência de escravos favoreceu a integração, nas sociedades africanas, de uma atividade baseado no comércio de pessoas. As fontes disponíveis mostram que a partir do século IX o rapto de escravos foi substituído por um comércio regular. As informações dos geógrafos, cronistas e historiadores islâmicos permitem a reconstrução dos diversos caminhos e rotas de comércio que cruzavam a África Ocidental e Oriental, desde os rios Senegal e Níger, passando pelo lago Chade, atravessando as regiões de Dafur, Núbia e Abissínia conduzindo os escravos para o leste e direção ao mar Vermelho e para Norte, em direção às possessões muçulmanas no norte da África. Outra área de intensa atividade comercial será a costa oriental junto ao Oceano Índico. Mapa da África do Oeste no século XI in: História geral da África, III: África do século VII ao XI / editado por Mohammed El Fasi. – Brasília: UNESCO, 2010, p.146. Cronistas muçulmanos relatam inúmeras situações sobre o crescimento do comércio negreiro, através do Saara, que impulsionou a expansão de cidades e reinos nas franjas daquele deserto. Segundo a crônica de Ibn as-Sagir (770-780), estrangeiros de cidades comerciais distantes, da Península Árabe ou do Médio Oriente, como Basra e Kufa, se instalavam em cidades sudanesas, como Tahert, e ali desenvolviam um intenso comercio de homens e produtos. Os caminhos levando para o Sudão ou para os países de leste e do oeste abriram-se ao negócio e ao tráfico. (M’BOKOLO, 2009: 219) 11 E, pela crônica de Al –Yakubi (morto em 891), ficamos sabendo que: Para lá desta região (o oásis de Waddan), há o país Zawila em direção ao sul. A população é muçulmana, inteiramente ibadita. Fazem a peregrinação ao Templo Santo [...] Exportam escravos do Sudão capturados entre os miriyyun, os zagnawiyyun [zagnawa], os marawiyyun e outras tribos sudãs da sua vizinhança, reduzindo-as ao cativeiro. (M’BOKOLO, 2009: 219) Os séculos seguintes a intensidade do comércio e o afluxo de população deram origem a formação de três grandes impérios na África Ocidental. O mais antigo foi Ghana, já centralizado em 800 d.C., data da primeira referência árabe; o segundo é Mali que começa a crescer no século XIII e persiste até o século XVII e, finalmente, Songhay cujo desenvolvimento abarca os séculos XV e XVI. A riqueza de Ghana vinha do intenso comércio e da coleta de impostos que deu origem a uma sociedade onde floresceram inúmeras cidades. A capital, Kumbi, era uma grande cidade com cerca de 30.000 habitantes entre população urbana e rural. Esta cidade era ponto de partida de várias trilhas transaarianas. O rei e a aristocracia dominante controlavam as rotas comerciais, principalmente, aquela que trocava o sal, do Saara, pelo ouro da floresta do litoral. Mali é uma continuação do reino de Ghana, sua capital Tombuctu caracterizou- se por ser um importante centro cultural e religioso Songhay, o ultimo dos impérios desta região, tem sua origem vinculada a inúmeras lendas e povos, entre estes os berberes do deserto. A capital Gao, outro importante centro comercial, foi por algum tempo tributária do império Mali. Desde 900 existe documentação escrita (em árabe) sobre este povo. O Império do Songhay, também conhecido como império de Gao conseguiu derrotar os malinenses liderados por Alí Ber (1464-2492), que estendeu seus domínios e o transformou em um típico império islâmico. Gradativamente Songhay foi estendendo sua influência sobre outros povos da região tornado tributárias as cidades de Tombuctu e Dejene as quais, apesar disso, não deixam de continuar florescendo comercialmente. A decadência deste último império que apesar de melhor estruturado teve duração de apenas um século deve-se provavelmente ao fato de suas forças militares terem sido destroçadas por exércitos marroquinos de Almaçar, em 1591. A importância das capitais desses impérios decorre da estreita associação entre o comércio e urbanização e do domínio pelos chefes destes Estados dos pontos estratégicos das rotas comerciais. M’Bokolo distingue dois tipos de urbanização na região: as “cidades saarianas” e as “cidades sudanesas”, sendo as primeiras mais efêmeras por servirem apenas de paragens no caminho das caravanas e desaparecendo, uma vez extinta aquela rota comercial, as segundas mais perenes, junto a importantes cursos de água e com características estratégicas defensivas, como era o caso de Tombuctu, protegida por pântanos. (M’BOKOLO, 2009: 144/145) 12 O comércio realizado nessas cidades movimentava inúmeros produtos obtidos regionalmente ou trazidos de grandes distâncias como o trigo, uvas passa, tâmaras. Os escravos constituiam item sempre presente e cada vez mais expressivo. Para muçulmanos a escravidão era uma questão religiosa, todos os que não aceitassem a religião do Islã poderiam ser escravizados. Ahmed Bãbã, um estudioso de Tombuctu, apesar de condenar a escravidão afirmava: A razão para a escravidão é a descrença, e os descrente sudaneses são como os outros käfir (ou cafres), sejam eles cristãos, judeus, persas, berberes, ou quaisquer outros que persistam na descrença e não adotem o Islã. (LOVEJOY, 2002 (b): 68). Assim, a escravização era uma ação legítima e a guerra contra os que não aceitavam a religião muçulmana, normal. Nos impérios islamizados os escravos eram usadosnas funções militares e de governo, como concubinas, como mercadorias para exportação e, ainda, em plantações cultivando para comerciantes, para alimentar os exércitos, funcionários do governo e palácios de nobres. A presença de soldados negros é um dos temas controversos da literatura árabe havendo diversas referências de seu uso no combate à revoltas internas ou a conquista por governantes do Iraque, Síria, Egito e outras regiões do mundo árabe. Ahmed ibn Tulun, fundador da dinastia dos tulúnidas, no Egito (870-905), teria um exército de 40 mil homens, a maior parte de origem núbia. (M’BOKOLO, 2009: 229) A decadência dos grandes impérios centralizados da África Ocidental, após o século XV, não significou nem o desaparecimento de Reinos e Estados, nem o final das atividades comerciais na região. Lovejoy estudando a região onde Baquaqua teria vivido no século XIX, afirma que Djougou era uma das cidades mais importantes entre o território axanti e o Califado de Sokoto, Durante a longa estação da seca, grandes caravanas, com 1.000 ou mais mercadores e carregadores, e um número equivalente de jumentos, passavam por Djougou, freqüentemente permanecendo lá por um curto período. Eles transportavam nozes de obi e ouro dos axantis, e produtos importados da Europa, indo da Costa do Ouro em direção a leste, e retornavam com sal, natrão, têxteis, especiarias, produtos de couro, gado, escravos, e outras mercadorias. (LOVEJOY, 2002 (a): 17) Os contatos desse centro comercial com o Atlântico – Costa do Ouro – cresceram bastante após a expansão marítima européia iniciada no século XV e do estabelecimento de feitorias comerciais na costa ocidental da África onde se comercializava uma grande variedade de produtos com um relevo crescente dos escravos, cujo trabalho era utilizado inicialmente nos países europeus e nas primeiras colônias surgidas nas Ilhas do Atlântico Madeira, Açores, Canárias e, posteriormente, nas colônias americanas. Dali, provavelmente, Baquaqua teria saído. A professora Silvia Lara estava interessada em mostrar a parte da experiência brasileira de Baquaqua, assim no texto por ela editado, não é possível perceber os aspectos islâmicos da formação do biografado e nem sua origem familiar. Entretanto, a leitura do texto de Lovejoy, que analisa a biografia na íntegra, indica que o pai era de Baquaqua era de linhagem árabe e havia sido um próspero comerciante e os parentes de 13 sua mãe tinham importantes ligações com casas comerciais de Katisina. Ainda no texto de Lovejoy há algumas especulações do que teria levado à captura de Baquaqua, muito provavelmente o gosto que ele tinha pela bebida e que teria feito ele se descuidar e cair nas mãos de comerciantes que o levaram para o sul, para a região de Uidá onde embarcou para o Brasil. Baquaqua foi vítima de uma rede comercial que existiu durante séculos no continente africano. Entretanto, esse comércio de escravos adquire, com a chegada dos europeus na costa Atlântica, uma nova dinâmica e intensidade e isso será tratado no tópico seguinte. A tabela abaixo apresenta alguns números do tráfico de escravos desse período conhecido como transaariano, esclarecendo que para a construção dessa tabela os historiadores tomaram por fonte os cronistas árabes que acima se faz referência. Muitos desses números são estimativas, mas constituem importante elemento para comparação com o desenvolvimento desse tráfico a partir do surgimento da nova frente no Oceano Atlântico. Nos séculos seguintes, em particular nos séculos XVII e XVIII, os números serão drasticamente aumentados. Tráfico de escravos transaariano (650-1600) Período Média Anual Total estimado 650-800 1 000 150.000 800-900 3 000 300.000 900-1.100 8 700 1.740.000 1 100-1.400 5 500 1.650.000 1 400-1.500 5 300 430.000 1 500-1.600 5 500 550.000 Total ____ 4.820.000 fonte: AUSTEN, 1979, p. 66. In: LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações, Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2002. p. 61. Por estes dados podemos concluir que a média anual de escravos comercializados teve um crescimento contínuo, indicando o aumento dessa atividade incentivada pelos comerciantes árabes. A partir do século XV tem início a participação européia, localizada na região da África Ocidental (Senegâmbia) e se expandindo cada vez mais ao sul. Segundo Lovejoy: As primeiras caravelas portuguesas se aproximaram da costa da África no Atlântico nas décadas de 1430 e 1440, alcançando o rio Senegal em 1445. Ao fazê-lo abriram uma rota paralela às transaarianas. [...] O seu investimento na exploração da costa africana era um esforço consciente para evitar os intermediários muçulmanos; inicialmente eles apenas tiveram sucesso em expandir o comércio transaariano já existente, abrindo a rota marítima; depois, eles participaram no comércio interno africano como intermediários. (LOVEJOY, 2002 (b): 74). 14 Assim, o comércio desenvolvido pelas caravanas de comerciantes árabes estendia-se por um grande arco de rotas comercias que ia desde a Senegâmbia, ao norte do Rio Senegal, na costa oeste percorrendo o sul do deserto do Saara em direção a Dafur e ao mar Vermelho; seguiam, também, para o Oceano Índico até a Ilha de Moçambique exportando seus produtos para e Península Arábica, Mar Mediterrâneo, Golfo Pérsico, Médio Oriente. Segundo Lovejoy existiam seis principais rotas comerciais. (LOVEJOY, 2002 (b): 60) Essas caravanas ofereciam mercado para os produtos africanos trazidos do interior do continente como marfim, nós de cola, objetos de ferro, tecidos e uma infinidade de produtos fornecidos pelas populações africanas, mas também, comercializavam escravos que eram exportados ou utilizados nos Reinos Africanos. Essas mercadorias se somavam àquelas vindas das Ilhas de Ceilão, Sumatra e demais ilhas do Oceano Índico e eram comercializadas por hindus ou árabes até chegar aos portos mediterrânicos de Constantinopla, Alexandria e outros. A partir do século XV os portugueses procurando evitar os intermediários muçulmanos irão abrir uma nova frente de comércio no Atlântico. Parte IV – O ingresso europeu no comércio negreiro e o tráfico para a América Sem negros não há Pernambuco e sem Angola não há negros. (Pe. Antonio Vieira) Com o tráfico atlântico europeu, a escravidão que já existia no continente africano – e que havia recebido impulso com o tráfico realizado por islâmicos – intensifica-se, fomentando os confrontos inter-étnicos entre Estados e aldeias em busca do aprisionamento de escravos. As transformações das sociedades africanas, em decorrência do tráfico de escravos para a América, têm sido objeto de muita discussão entre os estudiosos. Muito se falou sobre os efeitos que esse comércio provocou nas disputas políticas internas, alimentando constantes conflitos entre reinos africanos, como forma de obtenção de contingentes que atendessem a demanda européia. Também foram considerados os problemas demográficos decorrentes da saída do continente de homens em idade de reprodução e no auge de sua força de trabalho. Lovejoy acredita que o impacto do mercado europeu no comércio de escravos foi muito intenso. Segundo suas pesquisas em um período de trezentos e cinqüenta anos saíram da África com destino a América quase oito milhões de indivíduos (7.847.000). Considerado desde seu início, em 1450, o total estimado é de mais de onze milhões (11.313.000). Um comércio que teve um crescimento vertiginoso: entre 1450-1600 foram 409.000 indivíduos; entre 1601-1700 esse número passou para 1.348.000e entre 1701-1800 saltou para 6.090.000. Para este autor a abertura do Atlântico para o comércio de escravos marcou uma ruptura radical na história da África, levando esta instituição, que era marginal nas sociedades africanas, para uma posição de grande importância dada a sua envergadura isto é, o escravo torna-se expressivo produto 15 comercial com uma demanda crescente e os grupos africanos se organizam para atender essa procura. (LOVEJOY, 2002 (b): 52). Exportação de Escravos da África: o comércio atlântico Período Número de escravos computados Porcentagem 1450-1600 409.000 3,6 1601-1700 1.348.000 11,9 1701-1800 6.090.000 53,8 1801-1900 3.466.000 30,6 Total 11.313.000 100,0 LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: Uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 51 A crescente demanda de escravos está relacionada à expansão das lavouras de gêneros tropicais na América. O século XVI corresponde a criação de um sistema produtivo de gêneros tropicais baseado no trabalho escravo nas ilhas do Atlântico (Açores, Madeira, São Tomé) e as primeiras instalações agrícolas e mineradoras (Peru) na América. No século XVII, após expulsão holandesa do Brasil, houve uma intensificação da produção de açúcar na região do Caribe, aumentando a demanda da região que já era grande. No século XVIII somam-se às necessidades da agricultura brasileira a abertura da exploração aurífera nas Minas Gerais. Assim as possibilidades de produção nas colônias americanas cresciam e a dependência do trabalho escravo também, aumentando o fluxo de pessoas da África para a América. Enquanto na América tropical as sociedades que se formaram nos quadros do sistema colonial serão predominantemente baseadas no trabalho escravo, na África a presença de escravos nunca foi essencial para a reprodução da sociedade, a integração do continente no tráfico de escravos se deu como principal área de oferta dessa mercadoria. A África era exportadora de escravos. Isto significa que o crescimento do tráfico não foi acompanhado por uma internalização das atitudes européias em relação a escravidão. As sociedades onde havia a utilização desse tipo de trabalho mantiveram os parâmetros das sociedades linhageiras, isto é, desenvolviam-se no contexto do trabalho familiar e os escravos eram usados por elites e pelo governo de forma suplementar no comércio (transporte de mercadorias), no serviço militar, na administração. A possibilidade de incorporação dos escravos no interior das famílias e comunidades africanas foi mantida, enquanto que na América, o escravo, considerado mercadoria, “coisificado”, estava sujeito a inferiorização e ao racismo. Apesar da integração na sociedade não ter desaparecido como possibilidade, o aumento crescente de escravos no interior do continente, particularmente nas áreas cortadas por rotas comerciais, começa a transformar a relação dos africanos com a escravidão. Como vimos na África Ocidental, onde surgem os Estado centralizados, desenvolve-se a utilização de escravos na produção interna, atendendo eventualmente as necessidades de um rei ou nobre em áreas de mineração, na produção de tecidos, na 16 obtenção de sal e marfim ou, ainda, para produzir lavouras que alimentariam os exércitos. Em muitas regiões do continente africano a escravidão cresceu e se expandiu até os últimos anos do século XIX. (LOVEJOY, 2002 (b): 56). A propriedade privada do trabalho escravo, a única forma de propriedade reconhecida na África, foi a forma de investimento adotada para gerar riqueza. Empregados em inúmeras formas de trabalho e com grande liberdade de movimentos, muitas vezes produzindo ou trabalhando com grande autonomia, os escravos africanos transmitiram aos viajantes da época a idéia que eram mais bem tratados que os escravos da Europa ou América. Para Thorton “estruturas legais diferentes levaram africanos e europeus a desenvolver a instituição da escravidão de modos bem diversos.” (THORNTON, 2004: 142). Thornton procura recuperar as dinâmicas internas dos reinos africanos, sua capacidade de decidir e escolher sobre aquilo que se refere às relações com os europeus no contexto de suas características culturais. Numa comparação dos valores próprios de cada cultura ele observa que, enquanto os europeus promoviam a apropriação do solo e tratavam essa característica como normal, natural, os africanos sempre tiveram a terra como bem comum, coletivo e os escravos como única forma de propriedade privada. (THORNTON, 2004: 125). A terra na Europa e o escravo na África eram os meios adotados para obtenção de rendimentos e símbolo de status e de riqueza. O valor comercial dos escravos explicaria o interesse das elites políticas e econômicas africanas em participar do tráfico vendendo grandes contingentes de escravos obtidos no interior do continente: ...o comércio de escravos (e o comércio no Atlântico em geral), não deve ser visto como um “impacto” externo e funcionando como uma espécie de fator autônomo na história da África. Em vez disso ele desenvolveu-se e foi organizado de forma racional pelas sociedades africanas que dele participaram, as quais tinham completo controle sobre o mesmo, até que os escravos embarcavam nos navios europeus para levá-los para as sociedades do Atlântico. (THORNTON, 2004: 124) Vamos nos lembrar da afirmação de Baquaqua: “...em Gra-te vi o primeiro homem branco o que, pode ter certeza, chamou-me muito a atenção” (LARA, 1988: 274). Assim, podemos observar que até chegar ao porto de embarque no litoral Atlântico muitos escravos não tinham tido nenhum contato com europeus. A demanda européia na costa do Atlântico promoveu um aumento da procura dessa mercadoria, mas o fez a partir de uma rede comercial já existente que era controlada pelos africanos. O comércio no Atlântico sofreu muitas variações segundo a época e a conjuntura política, por outro lado, os números relativos às viagens no Atlântico, apesar de mais precisos que aqueles do tráfico transaariano, variam muito conforme o estudioso consultado. Os dados que são comentados a seguir devem ser acompanhados com o mapa do site do Trafico Trans-Atlântico de Escravos Database – Viagens. Este mapa representa de forma resumida a quantidade de escravos (embarque/desembarque) de acordo com as regiões e os portos de origem e chegada, indicados por círculos amarelos (embarque) e vermelhos (desembarque). 17 Para trabalhar com o mapa siga os passos seguintes: 1. Abra o link: http://www.slavevoyages.org/tast/database/search.faces 2. Vá até a aba "Maps" 3. Observe ao lado direito o formulário que permite alterar as informações apresentadas no mapa 4. Use a aba "Select Map" para alternar os dados entre os "Portos" e "Regiões", além de poder selecionar períodos específicos. Selecione: “Regions (all periods)” e click a seguir “Refresch”. Na parte alta do mapa, click o último retângulo para ter uma melhor visão (ampliação) do mapa. 5. Passe o mouse sobre os círculos na área do mapa para obter informações mais detalhadas. Você poderá explorar também, no mesmo site, os “Mapas Introdutórios”: http://www.slavevoyages.org/tast/assessment/intro-maps.facesoc Acompanhando esse mapa podemos observar que o maior número de embarques de escravos ocorre na região da África Centro Ocidental com 3.324.026; em segundo lugar encontra-se a Baia do Benin, com 1.530.881. A concentração de embarques nessas regiões chama a nossa atenção, será interessante acompanhar algumas características desse comércio. A Baia do Benin e toda a regiãovizinha – Costa do Ouro; Baia de Biafra, Costa da Guiné – desenvolveram o tráfico escravo voltado para o Atlântico como uma extensão e continuidade do antigo comércio transaariano que acima analisamos. Os portugueses e demais europeus que comercializavam na região ficavam confinados nos portos costeiros, seguindo as regras estabelecidas por funcionário destes portos. Portugueses não exerciam uma presença militar na região, não capturavam escravos e os recebiam, assim como as demais mercadorias, de comerciantes muçulmanos responsáveis pelas ligações entre os estados exportadores e o interior mais distante. (LOVEJOY, 2002 (b): 102). Nos séculos XV e XVI esse tráfico supriu as demandas dos países europeus e das plantações das ilhas do Atlântico (Madeira, Açores, Canárias, Cabo Verde e São Tomé) sendo dirigidos na segunda metade do século XVI para as plantações da Bahia e de Pernambuco,além das plantações da América espanhola. Nos séculos seguintes, XVII e XVIII, a África Centro Ocidental irá assumir o predomínio do fornecimento de mão de obra, tornando-se preponderante durante o século XIX, quando começam surgir legislações restritivas ao tráfico, com maior incidência no hemisfério norte. 10 10 No Brasil a pressão para a extinção do tráfico tem início nos acordos firmados com a Inglaterra durante a vinda da Família Real para o Brasil, em 1808. Essas pressões de renovaram em todos os acordos comerciais e políticos firmados posteriormente (1810, 1815, 1822, etc.). As pressões inglesas em suas colônias (Atlântico Norte) tornam-se mais intensas após a supressão do tráfico em 1808 e da escravidão em 1833. A Independência dos EUA, em 1776, deu autonomia para cada Estado legislar sobre a questão da escravidão. Os Estados do Norte se declararam livres da escravidão, mas os Estados do Sul só o fizeram após a Guerra de Secessão, em 1863. 18 Na costa da África Centro Ocidental os portugueses encontram uma situação política bastante diversa do Golfo do Benin e da Guiné. Ali não existia influência islâmica e com facilidade entraram em contato com o rei do Congo e chefaturas associadas que aceitaram prontamente aderir ao cristianismo e se submeter ao batismo. Sobre esse primeiro contato Vainfas e Marina Souza afirmam: Quando Diogo Cão chegou à foz do rio Zaire em 1483 e contactou pela primeira vez o mani Nsoyo, chefe da localidade na qual aportara, o Congo era um reino forte e estruturado, cuja chefia máxima cabia ao Mani Congo. Formado por grupos de etnia banto, especialmente os bakongo, abrangia grande extensão da África Centro-Ocidental e se compunha de diversas províncias. (VAINFAS & SOUZA, 2008) A recuperação histórica dessa formação política baseia-se nas tradições orais recolhidas desde meados do século XVII, em documentos escritos por viajantes portugueses, que chegaram à costa Centro Ocidental no final do XV, e por outros viajantes europeus (espanhóis, holandeses, italianos) e em documentos escritos produzidos por nobres congos formados em Portugal desde os primeiros anos da chegada dos portugueses. O Reino do Congo se desenvolveu ao sul do rio com o mesmo nome e se consolidou ao articular as regiões vizinhas do interior e as do norte, constituindo-se de um conjunto de territórios com um estratégico centro político: Mbanza (capital) Congo, próximo a foz do rio Congo/Zaire e no cruzamento de duas rotas tradicionais de comércio: a estrada do sal ligando o litoral ao interior e a estrada do cobre. Além das regiões que constituíam o núcleo central (Mpemba, Mbama, Nsundi, Mpangu, Mbata) compunham o reino as regiões periféricas (Loango, Kakongo, Ngoyo), áreas estas que tinham uma tendência a se furtar ao domínio real. As fronteiras ao Oriente a ao Sul eram mais imprecisas e talvez alguns desses territórios pagassem algum tipo de tributo ao rei do Congo. (M’BOKOLO, 2009: 194) Como muitos outros grandes Estados africanos o Congo se constituiu por uma coleção de outros Estados menores incorporados por meio de alianças ou conquistas, conservando os menores a autoridade local, fazendo com que houvesse constantes confrontos entre estas autoridades. (THORNTON, 2004: 145) M’Bokolo apoiado na tradição oral e nos mitos fundadores do Reino atribui o poder do rei tanto à estruturas hierárquicas, pela submissão de pequenas aldeias, como à estruturas em rede, isto é, por complexos processo de articulação de diversas localidades autônomas cuja origem, provavelmente, era anterior à constituição do Reino e baseavam sua legitimidade nas relações de parentesco e na referência a ancestralidade (kanda). Estas localidades se complementavam sem que nenhuma pudesse sobrepor-se a outra. Finalmente, havia outra forma de organização política baseada no poder religioso, assentado nas forças espirituais que regiam o território, sendo o mais importante o bitomi encarregado de manter a harmonia das populações com a natureza e assegurar a fertilidade dos homens, das plantas e dos animais; seu poder era simbolizado pelo fogo. (M’BOKOLO, 2009: 186/187) Sobre estas formas de poder Vainfas e Souza afirmam, em relação às províncias: 19 Algumas delas, como as de Nsoyo, Mbata, Wandu e Nkusu, eram administradas por membros de uma nobreza local que assumiam os cargos de chefia há gerações, sendo o controle político mantido por uma mesma linhagem, enraizada no local. Outras províncias eram administradas por chefes escolhidos pelo rei dentre a nobreza que o cercava na capital. (VAINFAS & SOUZA, 2008) Reino do Congo (séc. XV) Paratiando - http://www.paratiando.com/negroreino.html <acesso em 25/03/2014) Os portugueses, ao aportarem nas costas africanas – acontecimento que tem lugar na região de Nsoyo (Soyo ou Sonho) – não conseguiram compreender a dinâmica dessas relações e tentaram construir paralelos às formas hierárquicas de poder da Europa. A extensão do reino pode ser avaliada pelas designações dos reis, por exemplo, Nzinga Mvemba (1506-1543), batizado como Afonso I, dizia-se: (...) rei do Kongo, de Loango, de Kakongo e de Ngoyo, aquém e além Zaire, senhor dos Ambundo e de Angola, de Aquisima, de Musuru, de Matamba, de Mulilu, de Musuku e dos Anzico, da conquista de Pangu Alumbu, etc. (M´BOKOLO, 2009: 194) M’Bokolo apresenta a seguinte cronologia dos primeiros contatos: 1487 instalação missionária no Kongo 1486 Primeira doação outorgando aos habitantes de São Tomé o privilégio do tráfico nas costas vizinhas. 1487-1491 Nzinga Nkuwu envia uma embaixada kongo a Portugal 1491 Regresso da embaixada kongo. Conversão da família real e da maior parte da nobreza ao cristianismo 20 1493 Envio de jovens Kongo para formação em Portugal. (M´BOKOLO, 2009: 417) Vainfas e Souza, recorrendo ao cronista Rui de Pina, analisam a cerimônia de batismo e a associação imediatamente percebida pelos congoleses entre fé e poder. O batismo foi reservado aos maiores do reino, numa certa ordem de hierarquias. Principalmente não podia ser usufruído antes de que o rei o recebesse, fato percebido pelo mani Nsoyo que respondeu negativamente aos nobres que pediram para também serem batizados, justificando o seu próprio batismo antes do Mani Congo por ser tio do rei e mais velho que ele. (VAINFAS & SOUZA, 2008) Assim ocorre, provavelmente como uma importante estratégia política, a conversão ao cristianismo do rei de Nsoyo e sua mulher e depois pelo Mani Congo, Nzinga-a-Nkuwu, batizado como João I e a capital, Mzamba Congo, passa a se chamar São Salvador. Estabelece-se entre o rei de Portugal e o rei do Congo uma relação deequilíbrio, mas também de mal entendidos pelos quais, por um lado, o rei de Portugal, passou a oferecer símbolos de legitimidade de poder ao rei do Congo sendo assimilado ao “mais velho”; e por outro, receber do rei do Congo presentes simbólicos, como peles de animais, num tratamento tipicamente atribuído ao “mais novo”. (M’BOKOLO, 2009: 416) As atividades comerciais da região, realizadas predominantemente pelos naturais de Loango, já eram intensas antes da chegada dos portugueses e giravam em torno de produtos específicos a certas áreas como sal, metais, tecidos e derivados de animais havendo um forte sistema monetário cujo equivalente eram conchas chamadas nzimbu, coletadas na região da ilha de Luanda. Com a morte de João I o reino do Congo vive uma crise sucessória em que sai vencedor o partido “cristão” subindo ao trono Afonso I (1505-1543) que irá governar por 37 anos. Ele irá assinar com os portugueses um tratado que estabelece exclusividade de comércio no Atlântico entre os portugueses e o Reino do Congo, o que irá despertar ciúmes de outros nobres, enfraquecendo o poder central do rei. Mas as relações entre os dois reinos, Portugal e Congo, se deteriora rapidamente. O aprisionamento incontrolável de escravos que passa a se realizar será motivo de muitas controvérsias entre os reis dos dois Estados levando Afonso I a mandar uma correspondência à Portugal reclamando que até nobres congoleses estavam sendo capturados, violando tanto o monopólio real quanto as regras tradicionais que regiam o antigo comércio de escravos na região. (M’BOKOLO, 2009: 416) Na segunda metade do séc. XVII, após o governo de Afonso I, tem início um período de desintegração do Reino do Congo que deixa de ser a principal fonte de fornecimento de escravos. Instaura-se um período em que nenhuma lei ou autoridade é reconhecida e as regiões passam a ser controladas pelos “senhores da guerra” fossem eles nobres do Congo, chefes imbangalas, novos príncipes guerreiros do interior do continente ou comandantes portugueses que chegam cada vez em maior número, em 21 particular após a fundação da colônia portuguesa de Luanda (1576). (LOVEJOY, 2002 (b): 129) O interesse crescente em escravos e no controle das minas levaram os portugueses a tentar uma expansão para o interior a partir de Luanda, colônia fundada em 1576, no território de Angola. Segundo Boxer: Quanto a Angola, podemos assim chamara a área situada entre os rios Dande e Longo, com o seu prolongamento para o interior numa extensão de centenas de milhas. Ndongo era o seu nome nativo; os portugueses denominaram-na Angola, por causa do nome, ou título, de seu governante (Ngola) na época em que a visitaram pela primeira vez. Primitivamente, seus chefes prestavam obediência ao rei do Congo, cuja suserania foi repudiada mais ou menos nos meados do século dezesseis, ficando o rei na posse apenas da ilha de Luanda e de sua valiosa pesca de búzios. (BOXER, 1973: 237) O ngola queria estabelecer relações diretas de comércio com os portugueses o que levou o rei Congo, pressionado pelos comerciantes da capital, a entrar em guerra contra Ndongo tendo sofrido uma pesada derrota. Depois desta emancipação os governantes do Ndongo tiveram que conviver com as interferências dos governadores portugueses que passam a chegar em Angola e seu crescente envolvimento no comércio negreiro. Entre estes está Manuel Cerveira Pereira, que chega em 1603 e em 1614 resolve conquistar o reino de Benguela. Sobre este episódio há uma interessante versão ficcional no romance de Pepetela, Ao Sul do Sombreiro. Uma das razões dos sucessos portugueses foi a aliança feita com os terríveis guerreiros imbangalas ou jagas, povo violento e canibal, operavam a partir de campos fortificados, eram nômades, não constituíam família, renunciavam a reprodução humana eliminando os recém nascidos, adotando alguns jovens, prisioneiros de guerra, a quem treinavam dentro de seus costumes. Atuavam a partir de Caçanje e Matamba; entre 1568-1575 invadiram e pilharam o reino do Congo, contribuindo com a crise interna vivida por aquele reino. Como viviam viajando e guerreando, abasteciam de escravos os portugueses, vendendo os que não queriam comer ou adotar, garantindo um fornecimento ininterrupto para o tráfico. Assim, os portugueses passam a interferir na política da região construindo acordos e alianças com diferentes reinos e contribuindo para o aumento da turbulência da África Centro-Ocidental. (LOVEJOY, 2002 (b): 121) Muito rapidamente comerciantes de outros países europeus irão querer participar do lucrativo comércio de escravos. Inicialmente os espanhóis, carentes de braços em suas colônias e favorecidos pela União Ibérica (1580-1640), obtêm de Felipe II, da Espanha, a concessão do primeiro asiento estrangeiro que foi entregue a Pedro Gomes Reynel, em 1595, com o compromisso de fazer chegar a Buenos Aires nada menos que 38.250 negros, que dali seriam levados ao Peru. (M’BOKOLO, 2009: 277). Os holandeses, organizados na Companhia das Índias Ocidentais, serão responsáveis pelos mais graves ataques em territórios portugueses, entre eles, a tomada de Pernambuco em 1630, a tomada de São Jorge da Mina em 1638 e a ocupação de Luanda em 1640. A tomada de Luanda teve como objetivo restabelecer o fornecimento de escravos para os engenhos de Pernambuco, interrompido devido a guerra de restauração entre Portugal e Espanha. A invasão não encontrou resistência, retirando-se 22 os portugueses da cidade levando todos os bens e pertences que pudessem carregar, pois acreditavam que o interesse dos holandeses seria apenas de saquear a cidade, à semelhança do ocorrido na Bahia, em 1624. Quando na manha de 26 de agosto, entraram na praça deserta, depararam os holandeses com “uma grande e bonita cidade, contendo cerca de 5.000 casas construídas de alvenaria, e não menor que Olinda”, sem falar em “cinco fortes e sete baterias, onde estavam assestadas cerca de 130 peças de artilharia, sessenta das quais de bronze”. (BOXER, 1973: 254) Durante a ocupação de Luanda os holandeses receberam a adesão do rei do Congo e de todos os Estados da região inclusive o apoio da rainha N’Zinga. Segundo M’Bokolo ela era “irmã” do ngola e a primeira informação que se tem dela é do período de 1621-1622, quando esteve em Luanda negociando um tratado como os portugueses aparentemente com um mandato do ngola. Concluído o acordo que lhe dava inúmeros benefícios comerciais e religiosos, volta ao Ndongo e toma o poder eliminando e assassinado todos os seus adversários. Depois de um reinado de cinco anos, passa a ser ameaçada pelos portugueses e se refugia num reino vizinho, Matamba onde, em condições mal elucidadas, foi aceita como rainha. Travando repetidas guerras expansionistas transforma aquele reino no mais poderoso da região e, também, num dos maiores fornecedores de escravos. (M’BOKOLO, 2009: 426) Ana Nzinga foi descrita por um missionário de Luanda, da época da ocupação holandesa: Se bem que seja cristã e se chame Dona Ana, ela pratica com os seus soldados todos os ritos yaka. Todo o seu povo é canibal. Manda oferecer sacrifícios sangrentos com numerosas vítimas. Manda matar e comer pelos cães, logo que nascem, os filhos de todas as mulheres do seu exército, ou então manda-os enterrar vivos, de maneira que estas mulheres são obrigadas a ir dar a luz a uma distância de quatro a seis milhas. A rainha pratica ainda uma infinidade de outras superstições. (M’BOKOLO, 2009: 426) Para combater os holandeses o governo de Lisboa autorizou, em auxilio dos portugueses em Angola, reforços da Bahia e do Rio de Janeiro. O primeiro grupofoi destroçado pelos jagas ao desembarcar, o segundo, comandado por Souto Maior, conseguiu desembarcar em Massangano, em 1646, e obteve importante vitória sobre a Rainha N’Zinga. Por essa mesma época os holandeses estacionam uma frota em frente a Ilha de Itaparica, na tentativa de bloquear o acesso português à baia de Todos os Santos (1647); isso obrigará Portugal dividir seus esforços na luta contra os holandeses, organizando duas forças de reação dirigidas uma para Bahia e outra para Angola. Esta última, comandada por Salvador Correia de Sá, antes de se dirigir para Angola, faz uma parada no Rio de Janeiro e obtém uma importante contribuição financeira dos moradores daquela capitania para armar sua esquadra além dos investimentos feitos com recursos próprios. Após alguns reveses as forças portuguesas conseguem a rendição dos holandeses, em agosto de 1648, os quais se retiram de Luanda e São Tomé. Salvador de Sá assume o governo de Angola e evita tomar medidas de represália contra os chefes africanos que estiveram ao lado dos holandeses, entre estes a rainha 23 N’Zinga, que retira-se para o interior. Contra algumas chefaturas do interior, aliadas aos holandeses, que ofereceram alguma resistência foram enviadas colunas punitivas muitos fugiram, mas a maioria voltou aos seus territórios sem criar problemas. Com o rei do Congo, entretanto, as coisas eram mais complexas e a descrição dos acontecimentos ilustra a interessante relação entre Portugal e aquele reino. Governava na época D. Garcia Afonso II que havia assumido o trono no momento da invasão holandesa, em diversos momentos apelara aos holandeses para auxiliá-lo em conflito com o reino vassalo do Sono (Soyo), até mesmo enviando emissários à Mauricio de Nassau, em Pernambuco. Por outro lado, apesar das pressões holandesas não abandonou o cristianismo, mas aceitou frades capuchinos espanhóis e italianos e desrespeitou as regras do padroado enviando uma embaixada ao Vaticano, em 1648, solicitando a nomeação de três bispos para o Congo independente da jurisdição eclesiástica de Portugal. Salvador de Sá tentou, frente a esses fatos, exigir de D. Garcia um acordo de paz bastante rigoroso, mas foi impedido pelo rei de Portugal, D. João IV que declarou: (...) não ser o rei do Congo vassalo desta Coroa, mas um irmão em armas de seus reis; e não ser direito com ele negociar valendo-se de nosso poder, ao invés de obedecer os ditames da razão e da justiça. E ainda, (...) temos muito mais a ganhar concedendo uma paz benévola, e a esperança de amizade no futuro, do que insistindo em exigir a reparação de passados danos e perdas. (BOXER, 1973: 290) E, efetivamente ganharam muito mais, todo o território ao sul do Dande e a ilha de Luanda passaram a ser possessão portuguesa desde 1649. Salvador de Sá restabeleceu o tráfico de escravos não só com o Brasil, mas, também, com o Rio da Prata, exigindo dos espanhóis pelo fornecimento regular de escravos, que tinham o Peru como destino, o pagamento exclusivamente em prata. (BOXER, 1973: 292) O tráfico de escravos cresceu incessantemente e as guerras entre os Estados africanos, envolvendo ou não a participação de Portugal, tiveram continuidade alimentando essa economia e promovendo uma contínua interiorização dos apresamentos em direção a África Central e ao vale do rio Zambeze, de onde saíam caravanas de mercadores em direção ao litoral Atlântico. Do outro lado do continente, o corredor do Zambeze em direção ao Índico era uma importante rota de comércio que antecede a chegada dos portugueses, por ali grandes quantidades de ouro e marfim, além de outros produtos, eram comercializados pelo Reino Monomotapa com os árabes. Os portugueses tentaram se apropriar desse comércio e das minas de ouro envolvendo-se na política interna do Reino e nas crises sucessórias. No século XVIII os escravos passam a representar uma parcela cada vez maior no comércio do Oceano Índico, com uma área de captação em torno do lago do Malawi, em direção à Ilha de Moçambique ou à Quelimane. (LOVEJOY, 2002 (b): 132 A desestruturação dos reinos do Congo e do Monomotapa nos leva a perguntar sobre o grau de interferência que a presença portuguesa desempenhou nessas crises. Thorton considera que a o aumento das guerras e a instabilidade política de 24 algumas áreas podem ter contribuído para o crescimento do comércio de escravos dessas regiões, mas não acredita que a demanda tenha causado as guerras. É nos interesses econômicos das elites e nas dinâmicas internas dos Estados que deve ser buscada a razão do crescimento do tráfico e não nas maquinações portuguesas. Ao se compreender essa dinâmica, o papel dos europeus como agentes provocadores de guerras (em oposição a se beneficiarem dela, tanto como um veículo para a venda de armas ou a compra de escravos) começou a ser menos decisivo. (THORNTON, 2004: 183) Depois de expulsar os holandeses de seus domínios na América e na África, os portugueses passam a organizar seu comércio por companhias monopolistas de comércio, cuja principal função era o tráfico negreiro, e que produziram fortunas enormes para seus participantes. Assim surge a Companhia Geral de Comércio do Brasil (1649), a Companhia de Cacheu (1675), mais tarde Companhia de Cabo Verde e Cacheu de Negócios de Pretos (1690), a Companhia Real de Guiné e das Índias (1693). Estas companhias foram o caminho para a participação de capitais provindos dos cristãos novos, muitos dos quais haviam desenvolvido suas atividades comerciais com os holandeses. Entretanto, a presença de outras bandeiras de navegadores realizando o tráfico (ingleses, franceses, italianos, etc) nunca foi totalmente eliminada. Assim, até o ano de 1845, com o Bill Aberdeen e 1850, com a Lei Eusébio de Queirós, os africanos continuaram a ser trazidos para a América nas mesmas e abjetas condições de transporte, nos porões dos navios negreiros. A viagem de Baquaqua foi uma das derradeiras e por isso envolta em tanta dissimulação. Chegamos, em Pernambuco, América do Sul, de manhã cedo e o navio ficou zanzando durante o dia, sem lançar âncora. Ficamos sem comida e sem bebida o dia inteiro e nos foi dado a entender que deveríamos permanecer em silêncio absoluto, sem clamor algum, senão nossas vidas estariam em perigo. (LARA, 1988: 273) Mas, mesmo com as legislações acima muitos escravos continuavam a ser trazidos clandestinamente para o Brasil ou transportados pelas costas brasileiras desde áreas de agricultura decadente do nordeste até o sudeste para atender a dinâmica lavoura cafeeira. Parte V – Conclusão: Processos históricos/ sujeitos históricos: o caso de Baquaqua “Olhai, sois já filhos de Deus; estais a caminho de terras espanholas (ou portuguesas), onde ireis aprender as coisas da fé. Esquecei tudo que se relacione ao lugar de onde viestes, deixai de comer cães, ratos, ou cavalos. Agora podeis ir, e sede felizes” (palavras pronunciadas aos africanos após o batismo no dia do embarque). (BOXER, 1973: 243) Ao tomar como exemplo o caso de Baquaqua procuramos trazer à reflexão o cotidiano a que estiveram sujeitos os indivíduos que foram aprisionados no continente africano, vendidos como escravos e trazidos para a América. Seu depoimento é uma 25 denúncia do tráfico de escravos e da escravidão e um instrumento da campanha abolicionista da segunda metade do século XIX nos EUA, Caribe e Inglaterra. Retomado na atualidade, esse depoimento oferece inúmeras situações a serem exploradas n dentro da temática do tráfico negreiro. Neste nosso estudo buscamos focar a questão da memória, do não apagamento da históriado tráfico negreiro, apesar de sua natureza desprezível e aviltante, e a compreensão de quem foram os sujeitos envolvidos no processo, ampliando, assim, o nosso conhecimento sobre a história do continente africano. Esperamos ter despertado sua atenção para o fato de que a natureza do tráfico negreiro se modifica durante os mais de quatrocentos anos de sua existência. As intenções iniciais da expansão portuguesa compunham-se tanto de motivos econômicos – ampliar áreas de comércio –, quanto de motivos religiosos – combater os infiéis. Este motivo último teve que ser readequado quando, ainda na primeira metade do século XV, navegantes portugueses se depararam com os negros, seres que não eram cristãos, mas tampouco os infiéis maometanos. Assim, começou a ser construída a idéia de que o africano era “gente pagã e bestial” e que “desde o começo do mundo nunca viu luz divinal”. (RODRIGUES, 1964: 2/3) Paralelamente ao estereótipo, que irá futuramente se consolidar no racismo, os europeus irão justificar suas atitudes para com os africanos como uma cruzada para a conversão daqueles indivíduos ao cristianismo. Conforme a epígrafe acima, o batismo irá constituir a primeira tentativa de apagamento da memória e da história dos escravos. Sobre essa cristianização forçada Baquaqua conta: Nós todos tínhamos que nos ajoelhar diante delas (imagens de santos); a família na frente e os escravos atrás. Fomos ensinados a entoar algumas palavras cujo significado não sabíamos. Também tínhamos que fazer o sinal da cruz diversas vezes. (LARA, 1988: 274) Na América do Norte os proprietários de escravos presbiterianos e protestantes, evitavam batizar seus escravos, mas não deixavam de fazer preleções com os ensinamentos da Bíblia. (M’BOKOLO, 2009:375) No continente africano o procedimento era de promover o batismo e a conversão dos reis e das elites locais, como foi o caso do Congo e do Monomotapa, em Moçambique. Entretanto a aceitação da religião foi quase sempre formal, tendo na exigência da monogamia a mais importante barreira para a integração cultural entre africanos e cristãos. Mas o Reino do Congo manteve-se cristão e mesmo a Rainha N’Zinga se declarava cristã. A adoção do cristianismo na prática foi mais um dos elementos, talvez até mesmo uma estratégia, que favoreceu a construção das relações comerciais entre Portugal e o Reino do Congo. A mesma política foi adotada em Moçambique, no Reino Monomotapa. A permanência de elementos da cultura cristã, entretanto, será duradoura e, particularmente em Angola, resignificado e adaptada pela cultura banto. Para Vainfas & Souza em África surgirá “um complexo religioso original, híbrido, a um só tempo católico e banto” (VAINFAS & SOUZA, 2008). Assim, os processos de cristianização não foram capazes de apagar a memória e a cultura dos africanos trazidos pelo tráfico negreiro para a América. 26 Como vimos no decorrer deste estudo as relações comercias no continente foram se transformando ao longo do tempo e à medida em que os portugueses avançavam na costa atlântica em direção ao sul. Na primeira fase da expansão, na costa da Senegâmbia, houve confronto com africanos e, também, uma tentativa de dominar as populações e o comércio local. Esta prática se transforma ao atingir a região do Benin, Costa do Ouro e Golfo da Guiné uma vez que, nestas áreas os portugueses estabelecem relações diplomáticas com os Estados africanos e se adéquam às atividades preexistentes criando uma frente Atlântica para o antigo comércio transaariano. (THORTON, 2008: 82) Na costa Centro Ocidental as relações entre portugueses e africanos começam novamente a sofrer alterações. Após realizarem uma aliança com o rei do Congo Nzinga-a-Nkuwu, batizado como João I, inicia-se um processo de cristianização da região multiplicando-se a presença de missionários e de portugueses. No território de Angola foi criada uma feitoria comercial que funcionou como tal por quatro anos, mas os portugueses começaram a se envolver nos conflitos políticos locais e em 1571 já possuíam uma base sólida e aliados locais para se manter e aí de forma mais permanente. (THORTON, 2008: 84) É a partir dessa base que tem início uma intervenção mais direta dos portugueses na política africana e no apresamento de escravos. O final do século XVI e o século XVII marcam as disputas constantes com navegadores de outras nacionalidades (ingleses, franceses, holandeses, etc) que querem participar do comércio negreiro que se revela cada vez mais lucrativo. No interior do continente, por sua vez, multiplicam-se os conflitos entre os Estados africanos que passam a alimentar o tráfico negreiro. Esses conflitos se interiorizam cada vez mais a leste, atingindo as regiões densamente povoadas do vale rio Zambeze. O expressivo aumento do número de escravos transportados para a América no final do sec. XVII, como pudemos observar ao analisar nos mapas disponíveis no site do O Trafico Trans-Atlântico de Escravos Database – Viagens, incita os historiadores no questionamento das razões desse crescimento. O aperfeiçoamento do mosquete faz desta arma mais um item no comércio entre europeus e africanos e fortalece inúmeros Estados em suas disputas sucessórias e de expansão. Por outro lado, o preço elevado do escravo tem sido apresentado como a mais forte razão para o aumento dos números de indivíduos exportados. (THORTON, 2008: 180) Até mesmo o crescimento da presença portuguesa e outros europeus – não podemos esquecer que muitos soldados mercenários do derrotado exército holandês optaram por permanecer em Angola – começam a produzir um número crescente de mestiços e mulatos que constituem forças de captura no interior, contribuindo para o aumento das ofertas. O fato é que o número anual de escravos exportados aumentou de 4.500 em 1600, para 8.000 em 1650, e para 11.000 em 1700. Maior que esses números somente os da Costa dos Escravos que exportou, em 1700, cerca de 19.400 escravos, aumento atribuído por Thorton a uma expansão do comércio na região de Aladá, apesar dele não descartar a possibilidade de existir aí um problema de nomenclatura na identificação das regiões de origem dos navios negreiros, pois Guiné poderia se referir a qualquer região entre o Senegal e Angola. (THORTON, 2008: 177) 27 Assim, estimulado pelo interesse comercial europeu e pelas dinâmicas de domínio e poder no interior do continente, o tráfico se desenvolve e milhares de indivíduos são trazidos para a América, sendo que cada um deles viveu a experiência do choque cultural descrito por Baquaqua em suas memórias. Passaram pelo aviltamento da viagem em navios negreiros sobre os quais permaneceram descrições em grande parte produzidas nos últimos anos que antecedem a abolição do tráfico, como é o caso da documentação fotográfica do Arquivo Nacional Britânico que possui fotos do um resgate de um navio de escravos, em 1868, dentro da política de supressão do tráfico assinada em acordos internacionais por diversas nações. ATIVIDADE: visite o site Arquivo Nacional Britânico. Fotos de um resgate de escravos em 1868. Disponível em: http://www.nationalarchives.gov.uk/education/lessons/lesson27.htm , acesso em 18 /01/ 2014. Retomando, ainda, a experiência de Baquaqua podemos afirmar que aqueles que conseguiam sobreviver à travessia sentiam-se imediatamente aliviados. Quando desembarquei, senti-me grato a Providencia por ter me permitido respirar ar puro novamente, pensamento este que absorvia quase todos os outros. Pouco me importava, então, de ser um escravo, havia me safado do navio e era apenas isso que pensava. (LARA, 1988: 273) Rapidamente
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