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A HISTÓRIA DA PSICOLOGIA E SEUS MODELOS EPISTÊMICOS Cesar Rey Xavier reyxavier@gmail.com O texto a seguir faz alusão ao quinto capítulo de obra recém-publicada sob o título A psicologia e o problema mente-corpo (2012), cuja temática visa discutir a íntima relação de dependência entre a psicologia e a filosofia da mente, oferecendo também um caminho hipotético para esta relação. O capítulo em questão percorre os diferentes modelos epistêmicos que se prestaram ao objeto psicológico desde o seu nascimento como ciência autônoma. O presente texto destaca, portanto, esta temática, aprofundando seus fundamentos e apresentando novas perspectivas de análise. Quando pensamos acerca de uma ciência, a primeira ideia que se evidencia na mente do pesquisador é a de seu objeto de estudo, isto é, aquilo que esta dada ciência coloca sob seu olhar atento e rigoroso. Pergunta-se ele então: o que esta ciência quer estudar exatamente? A obviedade deste fato, contudo, pode ludibriar o observador mais desatento, caso ele deixe de perceber que quando qualquer observador lança seu olhar sobre um dado objeto de estudo, ele também o “veste” com certa roupagem epistemológica carregada de valores, ideologias e expectativas. A esta roupagem chamaremos aqui de “modelo epistêmico”. Portanto, dependendo do modelo empregado para revestir determinado objeto, obtemos ao final um objeto impregnado com os valores epistêmicos oriundos deste modelo. No caso de uma ciência para a qual se possa delinear cerca de dez modelos epistêmicos, por exemplo, seria o mesmo que afirmar que esta ciência conta com dez identidades diferentes, desde que cada um destes modelos estaria “vestindo” o objeto daquela ciência com uma roupagem epistemológica diferente. Tal situação é particularmente expressiva na ciência psicológica, na qual percebemos, além da concorrência de diferentes “paradigmas” (de acordo com a conceituação de Thomas S. Kuhn), o concurso de diferentes modelos que conferem diferentes identidades ao objeto. Dependendo da interpretação, contudo, o conceito de paradigma não chega a comprometer a identidade do objeto, pois abrange esferas mais amplas das diferentes comunidades científicas. Assim, vemos médicos seguirem orientações paradigmáticas diferentes em seus ofícios, mas todos comungam do mesmo objeto. Físicos e biólogos também podem se respaldar por paradigmas bem contrastantes, mas todos concordam em batizar seus objetos, respectivamente, de “matéria” e “vida”. Nestes casos, pensando em termos de diferentes paradigmas, não há um conflito sobre o que estão a estudar, ou seja, não há discussão sobre a terminologia que batiza os objetos de estudo destas ciências. Seguem orientações diferentes no que concerne às suas teorias, mas não discordam que estejam a trabalhar com o mesmo objeto. O mesmo não se pode dizer da psicologia – aqui, estamos diante de uma ciência que possui várias identidades para seu objeto de estudo, vários nomes, várias filiações. Na obra supracitada, o conceito de modelo é descrito da seguinte forma: um conjunto de noções básicas que interferem decisivamente no critério de seleção para um objeto de estudo, no caso, o objeto psicológico, noções estas que antecedem e preparam o caminho para uma definição mais coesa dentro da ciência em questão, algo bastante próximo da noção kuhniana de “paradigma”, apenas com um sentido mais específico, referindo-se à forma de seleção (ou abordagem) do objeto de estudo. Um modelo, segundo o que estamos querendo salientar, “fala” indiretamente do modo de observação que se lança sobre o objeto de estudo. Assim como se diz que boa parte de uma resposta já se pode encontrar na própria pergunta, também se pode dizer que boa parte do que se irá apreender de um dado objeto já se encontra nas expectativas do observador. Isto pode parecer óbvio, a priori, mas geralmente suas conseqüências são pouco refletidas, a posteriori. (XAVIER, 2012, p. 169-170). Deste modo, um modelo epistêmico nos conduz à identidade que uma dada teoria (dentre outras) atribui ao objeto de sua ciência. Se uma ciência, como é o caso da psicologia, possui diferentes teorias em seu corpus que resolvem empregar diferentes modelos (identidades), será o caso de concluir que esta ciência considera a possibilidade de diferentes “nomes” para seu objeto de estudo, algo que compromete sobremaneira a sua coesão interna e consequentemente o seu estatuto de ciência. Convém refletir sobre as palavras de Figueiredo & Santi: Ainda hoje, após mais de cem anos de esforços para se criar uma psicologia científica, os estudos psicológicos mantêm relações estreitas com muitas ciências biológicas e com muitas ciências sociais. Isto parece ser bom e, na verdade, indispensável! Mas várias vezes é mais fácil, por exemplo, um psicólogo experimentalista que trabalha em laboratórios com animais, tais como o rato e o pombo, entender-se com um biólogo do que com um psicólogo social que estuda o homem em sociedade. Este, por sua vez, poderá ter diálogo mais fácil com antropólogos e lingüistas do que com muitos psicólogos que foram seus colegas na faculdade e que hoje se dedicam à clínica psicoterápica. E, quando o psicólogo se põe a estudar temas como pensamento e solução de problemas, ele inevitavelmente se aproxima da filosofia e, em particular, da teoria do conhecimento (FIGUEIREDO & SANTI, 2004, p. 15). Podemos enxergar nisso aspectos positivos e negativos. A psicologia é, de fato, uma ciência sui generis, exatamente por compreender certas ambiguidades que poderíamos considerar “criativas”, intrínsecas à abrangência e plasticidade de seu objeto de estudo. Mas esta sua riqueza, por outro lado, fragiliza a necessária coesão epistemológica em torno de seu objeto de estudo, algo que se esperaria de qualquer ciência. O campo de possibilidades investigativas da psicologia é imenso, mas o alcance de seus passos ainda é limitado por uma indefinição de um modelo epistemológico que acompanhe esta amplitude. Os modelos empregados para “vestir” o corpus psicológico nunca fizeram jus à complexidade e abrangência de seu objeto. Serviram a um propósito de época e a diferentes estados de maturação na diacronia da ciência psicológica. Na esteira deste processo, a psicologia principiou sua jornada de emancipação tomando de empréstimo o modelo da Física e, adjacentes a ele, os adjetivos de “materialista” e “mecanicista”, conforme nos esclarece o trecho a seguir: É interessante notar que a psicologia nunca desfrutou de um modelo legítimo, um modelo que dissesse respeito especificamente à natureza e à ontologia de seu objeto de estudo. Desde o seu nascimento como ciência autônoma, ao cabo do século XIX, a psicologia precisou respaldar-se nos conceitos e nos métodos próprios da física, o que era notório através de expressões que se referiam à mente como sendo composta de “elementos”, ou sendo chamada de “aparelho”, esta última bastante empregada por Freud. As “idéias simples” dos empiristas eram encaradas mesmo como “átomos mentais”, num modelo de mente cuja complexidade era “construída” a partir dos conteúdos mais simples, tal como as engrenagens de um maquinário, marcas que em muito lembravam a vestimenta epistemológica do mecanicismo deixado como legado desde o século XVII (XAVIER, 2012, p. 170) A historiografia da psicologia, contada por outros pensadores e epistemólogos da psicologia, como Antonio Gomes Penna, também partilha do enfoque por modelos, embora dê luz a outros aspectos para os quais não haverá espaço hábil para esmiuçar aqui. Mas convém citar alguns trechos deste grande pensador brasileiro que se revelam especialmente oportunos à nossa análise, oriundos da obra História das ideias psicológicas, publicada nos anos 80. Ele menciona, por exemplo, o modelo psicopatológico-psiquiátrico destacado por Michel Foucault (1968) na obra “Doença mental e psicologia”. Em seguida, o pensador brasileiro lembra-nos de outros critérios que foram sendo agregados à diacronia dapsicologia, tomados de empréstimo e gradativamente incorporados ao seu estatuto epistemológico. Afirma ele: Outros critérios, não obstante se poderão explorar. Epistemologicamente, por exemplo, a relevância da influência do positivismo pode ser sublinhada. A ideia de uma psicologia capaz de se fundamentar no modelo da física logo se revela. A preocupação com a medida procede dessa linha de pensamento. Se o rigor no campo das ciências naturais se alcança pela quantificação, também nos estudos psicológicos ele poderá ter o mesmo significado. Nesse sentido, os estudos de Weber e Fechner marcam um momento importante no processo histórico de implantação da psicologia como ciência. Também as pesquisas na área da fisiologia e, especialmente, no domínio da neurofisiologia propõem-se como relevantes. [...] No que se refere à influência do positivismo, ela se revela em primeiro lugar pela afirmação de que as regularidades observadas no plano da conduta obedecem às mesmas condições causais que dominam as regularidades físicas. Nesse caso, os mesmos métodos válidos nos domínios da física se deverão impor no domínio da psicologia. Serão possíveis, portanto, os recursos de previsão e de controle relativamente aos diversos padrões de comportamento. Em segundo lugar, revela-se importante a questão da publicidade dos fatos investigados. Tal condição não será atendida por uma psicologia da consciência, mas apenas por uma psicologia do comportamento. E esta surge precisamente em função desse contexto epistemológico. (PENNA, 1981, p. 133). Na medida em que estes modelos de cunho fisicalista e positivista se revelavam limitados para abranger a complexidade do objeto psicológico, novas perspectivas despontavam sob a roupagem de novos modelos epistemológicos. Conforme salienta Penna: É claro que a perspectiva derivada do positivismo foi logo contestada e a negação do modelo físico produziu-se no mesmo momento e que foi adotado. Para os que rejeitam esse modelo, a psicologia teria que se construir em função de conceitos e de métodos diversos. (PENNA, 1981, p. 134). De fato, não tardou para que a história da psicologia assistisse a emergência do modelo respaldado na Química, calcado no pensamento do eminente filósofo John Stuart Mill, com a célebre metáfora das moléculas de água e do ácido sulfúrico. Tal modelo já representava um salto se comparado ao modelo da Física, no sentido de ser um apelo à concepção de uma mente mais “ativa” em todo o processo de construção das faculdades psíquicas. Assim, comparava-se o poder de síntese da mente ao da própria natureza quando as substâncias reagem umas às outras. Dois exemplos se destacam neste ínterim: a molécula de água e a do ácido sulfúrico. No primeiro caso, as propriedades do hidrogênio e do oxigênio, antes da reação, são gasosas, mas quando se transformam em água passam a exibir propriedades líquidas. No segundo, temos o oxigênio e o enxofre que, em separado, também exibem propriedades diferentes das do ácido que eles compõem depois da reação. Se a natureza apresentava este poder de síntese gerando novas propriedades a partir de elementos separados, então a mente, segundo este novo modelo, também seria capaz de produzir novas conjunturas a partir de sensações mais elementares, passando a exibir novas propriedades (XAVIER, 2012). O próprio Wilhelm Wundt, que tinha sobre os ombros a auspiciosa missão de emancipar o campo psicológico, já mesclava aspectos deste modelo em sua obra, muito embora tivesse sido frequentemente tachado de mecanicista. Seu conceito de “síntese criativa”, conhecido também por “síntese aperceptiva” ou ainda “princípio de síntese criadora” continha muito da metáfora do filósofo conhecida por “química mental”. (XAVIER, 2012). Mas a história da psicologia ainda assistiria a entrada em cena de novos modelos, calcados em outras áreas do conhecimento. O incremento nas pesquisas em genética e neurociência não demoraria a contagiar as mentes de muitos pesquisadores, com novas promessas de esclarecimento sobre célebres questões que desde sempre acompanharam a emancipação da psicologia como ciência, tais como o tratamento das psicopatologias e o enigma filosófico conhecido como “problema mente-corpo”. “Genes” e “cérebro” podem ser situados, para os fins de nossa análise, num modelo calcado na Biologia. Paralelamente ao incremento destas áreas de pesquisa, a segunda metade do século XX também testemunhou a ascensão de um modelo epistemológico bastante promissor, que podemos nomear por “modelo computacional”. Neste, a mente volta a ser comparada às máquinas, mas em uma escala obviamente muito superior à do mecanicismo do século XVII. A psicologia vê nascer o campo cognitivista em seu escopo de escolas, e todos parecem entusiasmados com a nova metáfora que compara o cérebro ao hardware dos computadores, e a mente ao conjunto de softwares que rodam neste hardware. (XAVIER, 2012). Não é difícil, contudo, refletir sobre a seguinte questão: quando uma ciência toma de empréstimo os modelos oriundos de outras áreas do conhecimento para revestir-se deles, haverá sempre a iminência de um “desconforto” em seus trâmites de pesquisa. Na metáfora que estamos aqui empregando, seria como tomar de empréstimo a roupa de algum amigo para ir a uma festa – por mais que as dimensões corporais de ambos fossem parecidas, aquela roupa não lhe pertenceria, e em algum momento deveria ser devolvida. Assim, modelos oriundos de campos diversos não são... de todo inapropriados para uma ciência incipiente como a psicologia. Em certo sentido, eles foram indispensáveis aos primeiros passos de um campo de pesquisas que se arriscava a investigar o inefável objeto psicológico. Muitas das analogias com máquinas, softwares, campos de força e com reações químicas foram necessárias para que se pudesse falar do objeto psicológico de um modo que parecesse minimamente entendível. Mas quando uma ciência, que ainda não dispõe de um modelo próprio, passa a revestir-se dos modelos de suas “irmãs” mais velhas ou contemporâneas, o quadro epistemológico pode ser caótico (XAVIER, 2012, p. 171). Além das dificuldades internas que uma ciência com várias “identidades” enfrenta, há também o perigoso efeito que determinados modelos epistêmicos geram sobre a mentalidade dos pesquisadores. Não nos esqueçamos que o enfoque do objeto de uma ciência por um dado modelo me informa, inclusive, o conceito de homem e de natureza implicados nesta escolha. E quando este modelo, ainda que útil em certos períodos da história desta ciência, destoa bastante da verdadeira essência deste objeto de estudo, as consequências podem comprometer as noções de homem e natureza relacionados com este objeto. Bem colocadas são as palavras de Hilton Japiassu a este respeito: Todo o esforço em prol do conhecimento do homem, como se torna patente nas várias metodologias das ciências humanas, foi sempre desenvolvido no sentido de se acabar com o privilégio do objeto “homem”, no sentido de se dessacralizá-lo, de se desantropologizá-lo e de deslocá-lo, do subjetivo ao objetivo. Assim, ao tentar desembaraçar os caminhos que conduzem ao homem de todas as imposturas nas quais ele se encontrava, a psicologia com pretensões à cientificidade tenta reduzi-lo a um objeto entre outros. Será tachado de mistificação todo empreendimento psicológico que não proceder a essa redução. (JAPIASSU, 1981, p. 115). Perceba o leitor que, em todas essas tentativas de se respaldar sob a égide de algum modelo epistemológico, podemos visualizar esforços conflitantes para se “encontrar” e até se justificar a existência de uma ciência que tem como seu objeto de estudo um ente complexo, abstrato e repleto de ambiguidades. No grande banquete de métodos e modelos epistêmicos que permeia até hoje as pesquisas em psicologia, houve os que buscassem a “alma” na fisicalidade das coisas, e aqueles que a procurassem nas transformações da natureza, outros ainda que a justificassem no próprio cerne dos processosorgânicos ou em comparações heurísticas com a tecnologia da computação. Mas o fato é que a psique humana não se deixa abarcar totalmente por nenhum destes modelos. Talvez isto seja um bom sinal – talvez ela esteja nos mostrando que a subjetividade humana deva ser respeitada como uma entidade natural legítima, exibindo, contudo, outras propriedades bem diferentes da matéria inanimada. Talvez mesmo ela esteja nos dizendo: “procurem um modelo epistemológico que sirva para a minha complexidade, um modelo legítimo que possa me revestir de modo a fazer jus a todo o alcance de minhas possibilidades”. REFERÊNCIAS FIGUEIREDO, Luís Cláudio M. ; SANTI, Pedro Luiz Ribeiro de. Psicologia: uma (nova) introdução. 2. ed. São Paulo: Educ, 2004. JAPIASSU, Hilton. Questões epistemológicas. Rio de Janeiro: Imago, 1981. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1994. PENNA, Antonio Gomes. História das ideias psicológicas. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. XAVIER, Cesar Rey. A psicologia e o problema mente-corpo: uma nova proposta para a imponderável epistemologia da consciência. Curitiba: Juruá, 2012.
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