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TEORIA GERAL DO PROCESSO PENAL Gabriel Bonesi Ferreira Princípios processuais penais e constitucionais Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Descrever os princípios da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa. � Definir os princípios da publicidade, da busca da verdade e da inad- missibilidade das provas obtidas por meios ilícitos � Identificar o princípio do juiz natural, do nemo tenetur se detegere e da proporcionalidade. Introdução Canotilho (1998) explica que os princípios são normas multifuncionais que ora atuam como ratio legis, isto é, são base para a interpretação e aplicação de regras e da legislação, e ora atuam como lex, ou seja, como normas de conduta impositivas propriamente ditas. Assim, os princípios desempenham um importante papel nos sistemas jurídicos de um modo amplo, pois podem tanto orientar a aplicação de leis quanto funcionar como base para a solução de conflitos frente à inexistência de normas de conduta específicas. No processo penal os princípios também exercem essas funções. A origem dos princípios aplicáveis ao processo penal é variada, eles decorrem do texto literal da Constituição Federal, do Código de Processo Penal e de outras normas infraconstitucionais complementares. Neste capítulo, você vai estudar os princípios mais importantes aplicáveis ao processo penal. 1 Princípios da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa Os princípios processuais penais são trabalhados de modos diferentes na doutrina, no que concerne a seu tratamento quanto às divisões e subdivisões. Os princípios da inocência, do contraditório e da ampla defesa são considerados princípios fundamentais do processo penal e estão previstos expressamente na Constituição Federal de 1988 (CF). O caráter fundamental desses princípios se expressa pelas suas literalidades no texto constitucional e acabam sendo tratados por toda a doutrina em matéria de processo penal. É importante a análise individualizada de cada um deles. Princípio da presunção de inocência Lopes Júnior (2020) aponta que a presunção de inocência remonta ao Direito romano, sendo relativizado por vários séculos e chegando a ser invertido na Idade Média, isto, é a dúvida pela insuficiência de provas chegava a ser considerada uma semiprova que levava o acusado à condenação. Isso era, efetivamente, uma presunção de culpabilidade, uma vez que qualquer tipo de elemento que suscitasse dúvida sobre a culpabilidade era suficiente para uma condenação, até mesmo um boato ou depoimento isolado. A presunção de inocência foi finalmente consagra em um passado mais recente, após a Revolução Francesa (1789), com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em seu art. 9º (DECLARAÇÃO..., 1789), apesar de ter sido novamente relativizada nos séculos XIX e XX por Estados totalitários e fascistas. A presunção de inocência foi novamente consagrada na Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, além de compor dispositivos similares em muitas outras convenções, pactos e tratados internacionais de direitos fundamentais (LIMA, 2020). No Brasil, foi a Constituição Federal de 1988 (CF) que finalmente consagrou tal princípio, em seu art. 5º, LVII, que estabelece o seguinte: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (BRASIL, 1988, documento on-line). Trata-se de uma cláusula pétrea, isto é, não pode ser modificada ou suprimida da constituição. Princípios processuais penais e constitucionais2 É central no conceito do princípio da presunção da inocência a ideia de que ninguém pode ser declarado culpado sem o devido processo legal, que, por sua vez, deve se orientar pelo contraditório pela ampla garantia de defesa do acusado. Presumir a inocência significa também que o ônus da prova da culpa é da acusação, de tal modo que a condenação somente pode ocorrer mediante o livre convencimento do Juiz imparcial às partes do processo e que tem o dever de considerar e julgar de acordo com as provas do processo, observando o ônus da prova. Do princípio da inocência decorrem três di- mensões ou regras: a norma de tratamento, a norma probatória e a norma de julgamento (LOPES JÚNIOR, 2020). A norma de tratamento, que decorre da presunção da inocência, impõe que o Poder Público não pode tratar o acusado ou denunciado como cul- pado, ou seja, impõe-se um dever de tratamento do acusado como inocente. Um dos reflexos dessa norma veda prisões automáticas ou obrigatórias e impede a execução provisória da sanção penal (LIMA, 2020). Assim, exige-se o fim do processo penal para o tratamento do condenado como tal. A norma de tratamento decorrente não impede a prisão cautelar, mas essa medida deve sempre ser considerada uma medida excepcional, que somente pode ser imposta a partir da análise de um caso concreto. Aliás, a própria CF autoriza a possibilidade de prisão sem que haja trânsito em julgado de uma sentença condenatória (art. 5º, LXI, CF, BRASIL, 1988) para os casos de prisão em flagrante de delito ou por ordem escrita e fundamentada, o que evidencia o seu caráter excepcional, observados os requisitos próprios das prisões cautelares. Conforme expõe Lopes Júnior (2020), a norma de tratamento atua em duas dimensões, acompanhe: � Interna ao processo: que impõe ao magistrado o tratamento do acusado como inocente, de modo que as prisões cautelares devem ser considera- das excepcionais, além de ter o dever de observar que o ônus da prova recai sobre a acusação e, em caso de dúvida, deve favorecer o acusado. � Externa ao processo: deve-se garantir “[...] a proteção contra a publi- cidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu” (LOPES JÚNIOR, 2020, p. 142). Assim, trata-se de proteger a imagem, dignidade e pri- vacidade do acusado de modo a evitar a sua exposição e julgamento midiático. 3Princípios processuais penais e constitucionais A norma probatória exige a observância da distribuição do ônus pro- batório, de modo que cabe à acusação demonstrar, de modo inequívoco ou para além de qualquer dúvida razoável, que o acusado é culpado, e não que o acusado deva demonstrar a sua inocência (LIMA, 2020). Por esse motivo, a culpabilidade do acusado deve ser demonstrada pelo acusador, assim como a prova dos fatos imputados (LIMA, 2020). Do mesmo modo, a comprovação deve ser feita legalmente, cumprindo o devido processo legal, não se admitindo provas ilícitas, ou obrigando o acusado a colaborar com a apuração dos fatos (LIMA, 2020; LOPES JÚNIOR, 2020). A norma de julgamento atua em uma perceptiva subjetiva, que incide sobre as provas produzidas, concretizando preceitos como o in dubio pro reo e o favor rei, segundo o qual deve-se privilegiar o acusado na análise da suficiência da prova (LOPES JÚNIOR, 2020). A CF demarca claramente que a presunção de inocência ocorre até o trânsito em julgado da sentença, por isso, enquanto houver possibilidade de interposição de recurso ou mesmo que haja recurso pendente de julgamento, mesmo aqueles que não gozam de efeito suspensivo, deve ser presumida a inocência do acusado. A necessidade de se aguardar ou não o trânsito em julgado da sentença condenatória para o início da execução da pena é uma discussão que ocorre há vários anos. Em 2009, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o Habeas Corpus (HC) nº. 84.087 e concluiu que a execução da pena somente deve ocorrer após o trânsito em jugado da sentença penal condenatória, de acordo com o art. 5º, LVII, CF. Porém, com o julgamento do HC nº. 126.292, também pelo STF, alterou-se o entendimento anterior e passou a prevalecer o entendimento de que é possível a execução provisória da pena após o julgamento de recurso por Tribunal de segunda instância, sob o fundamento de que isso não feriria o princípio da presunção da inocência. O tema voltou a serreanalisado pelo STF em 2019, no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) nº. 43/DF, 44/DF e 54/DF. De forma definitiva, fixou-se a tese, pelo STF, de que a execução da pena somente pode ocorrer com o trânsito em julgado da decisão condenatória, impedindo a “execução provisória” da pena. Princípios processuais penais e constitucionais4 Princípio do contraditório Na definição de Nucci (2020, p. 156), o princípio do contraditório: […] significa dizer que a toda alegação fática ou apresentação de prova, feita no processo por uma das partes, tem a outra, adversária, o direito de se mani- festar, havendo um perfeito equilíbrio na relação estabelecida pela pretensão punitiva do Estado em confronto com o direito à liberdade e à manutenção do estado de inocência do acusado. O princípio do contraditório é uma condição dialética do processo (LOPES JÚNIOR, 2020), devendo ser garantida às partes a participação e discussão em todos os fatos que serão analisados no processo, o que pressupõe o direito à informação e o direito à participação (LIMA, 2020). O direito à informação refere-se ao direito de conhecimento da parte adversa da existência de uma demanda, prova ou argumento da parte contrária, possibilitando a sua ciência para a resposta. O direito à participação é o direito da parte poder responder ao argumento, pedido ou prova produzida ou requerida pela parte adversa. Trata-se de garantir a efetiva possibilidade de exercício do contraditório, criando condições de efetiva possibilidade de manifestação de uma parte em relação a outra. O direito ao contraditório objetiva, em resumo, dar às partes a igualdade formal e material de armas e oportunidades no processo penal, o que acaba por legitimar a própria atuação jurisdicional em seu provimento final (LOPES JÚNIOR, 2020). Princípio da ampla defesa O direito da ampla defesa está intimamente ligado ao princípio do contradi- tório, inclusive, ambos estão previstos no art. 5º, LV, da CF (BRASIL, 1988). A ampla defesa se expressa pelo contraditório, ou seja, pela reação à acusação, mas não se confunde com ela: Com efeito, por força do princípio do devido processo legal, o processo penal exige partes em posições antagônicas, uma delas obrigatoriamente em posição de defesa (ampla defesa), havendo a necessidade de que cada uma tenha o direito de se contrapor aos atos e termos da parte contrária (contraditório) (LIMA, 2020, p. 58). 5Princípios processuais penais e constitucionais Desse modo, pode ocorrer a violação do contraditório sem a violação da ampla defesa, no caso, por exemplo, de a acusação deixar de ser intimada para se manifestar sobre um argumento da defesa. A ampla defesa visa a assegurar o equilíbrio na relação processual, tendo em vista que o acusado, é a parte no processo penal sempre hipossuficiente em relação ao Estado, que detém mais fontes de dados e meios de produção de prova. O princípio da ampla defesa visa a garantir amplos meios e variados meios, para que o acusado seja capaz de se defender frente a uma acusação. Por essa razão, todo acusado tem direito a uma defesa técnica, ou seja, que a sua defesa seja promovida por um advogado constituído ou nomeado, ou por um defensor público. A defesa técnica é necessária, irrenunciável, plena e efetiva (LIMA, 2020), de modo que ninguém pode ser processado sem um defensor, inclusive aqueles acusados que sejam ausentes ou foragidos (art. 261, CPP, BRASIL, 1941). A exigência da defesa técnica decorre, também, da presunção de hipossuficiência do acusado (sujeito passivo) frente ao Estado, com vistas a equilibrar a relação processual (LOPES JÚNIOR, 2020). Desse modo, um acusado não pode ser processado sem defesa técnica e, caso não constitua advogado nos autos, cabe à defensoria pública defendê-lo; na falta desta, será constituído advogado dativo pelo juízo criminal. Além de necessária, a defesa deve ser adequada. Deve-se assegurar prazos e meios para o exercício da defesa. A falta de atuação defensiva efetiva de advogado da parte pode levar à sua destituição por ordem judicial mediante requerimento do Ministério Público (MP), como fiscal da lei, ou mesmo de ofício pelo próprio Juiz, tendo em vista que a falta de defesa efetiva pode levar à nulidade do processo por violação à ampla defesa (LIMA, 2020). Outro âmbito da ampla defesa é a atuação do acusado em sua autodefesa ou defesa pessoal. Trata-se da defesa exercida pelo próprio acusado do processo em diversas oportunidades, e não pode ser desprezada pelo Juiz, apesar de ser disponível, visto que não é obrigatoriamente exercida. Um dos principais meios de autodefesa ocorre com o interrogatório, quando é dada a oportunidade ao acusado de se defender sobre as acusações, mediante justificativas ou negativas de autoria ou materialidade dos fatos imputados (LOPES JÚNIOR, 2020). A autodefesa pode ser exercida de diversos modos. A autodefesa é consi- derada positiva quando o acusado pratica atos que objetivam resistir ao poder de investigação do Estado (LOPES JÚNIOR, 2020). A autodefesa pode ser considerada negativa quando consiste na não produção de elementos probatórios ou na recusa de produção de provas que possam ser potencialmente danosas a ele, por exemplo, ficando em silêncio durante o interrogatório, ou mesmo não contribuindo, de nenhum modo, com atividade probatória, etc. Princípios processuais penais e constitucionais6 2 Princípios da publicidade, da busca da verdade e da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos Os princípios da publicidade, da busca da verdade e da inadmissibilidade de provas ilícitas são outros três princípios do direito processual penal que devem ser analisados especificamente. Princípio da publicidade O princípio da publicidade visa a assegurar a clareza e a publicidade dos atos praticados em um processo, de modo a assegurar a transparência da atividade jurisdicional tanto às partes quanto à coletividade, mostrando-se como importante instituto democrático (LIMA, 2020). A publicidade dos atos judiciais não é um princípio do processo penal apenas, mas de todos os tipos de processos judiciais (ressalvadas as hipóteses específicas), tendo em vista que o art. 93, IX, CF, prevê que todos os julgamentos do Poder Judiciário serão públicos, ressalvado em casos que se tenha que preservar o direito à intimidade do interessado quando esses não prejudiquem o interesse público à informação. Desse modo, pode haver ato sigiloso ou pode ser determinado segredo de justiça, quando os atos processuais somente são acessíveis aos interessados, mas o sigilo é exceção, enquanto a publicidade, mesmo de atos processuais penais, é regra. O princípio da publicidade também encontra fundamento no art. 5º, XXXIII, CF (BRASIL, 1988), que assegura o direito de todos a receber informações dos órgãos públicos de seu interesse particular ou de interesse coletivo ou geral, que devem ser prestadas nos prazos legais sob pena de responsabili- dade, ressalvando as informações em que o sigilo é essencial à segurança da sociedade e do Estado. Ou seja, os atos processuais são, em regra, públicos. A publicidade garante o total acesso das partes aos atos e decisões que ocorrem no processo, facilitando o exercício do direito à informação. A pu- blicidade também permite o controle e a fiscalização dos atos e das decisões do Poder Judiciário pela sociedade. A publicidade é, em regra, ampla, o que permite o acompanhamento de atos e julgamentos por qualquer cidadão, inclusive, mediante a consulta dos autos, a participação em seções de julgamento e a exposição de todo ou de parte do processo em meios de comunicação gerais. Existem também casos em que a publicidade é restrita. A restrição pode ser em relação a alguns atos e decisões ou mesmo a todo o conteúdo do processo, de acordo com as hipóteses legais. 7Princípios processuais penais e constitucionais Enquanto a publicidade não precisa ser justificada, porque é regra,o sigilo ou a restrição da publicidade sempre terão motivos, como a preservação da intimidade, do interesse social e segurança social, ou mesmo caso haja riscos de escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem (art. 792, § 1º, CPP, BRASIL, 1941; LIMA, 2020). Princípio da busca da verdade Lima (2020) descreve o princípio da busca da verdade como uma superação contemporânea da oposição entre verdade real e verdade formal. Segundo o autor, tradicionalmente, fazia-se uma distinção entre a verdade real ou material, que se busca em um processo penal, e a verdade formal, que seria própria do processo civil. De acordo com essa concepção, nas ações de natureza civil, o Juiz deve ter uma postura passiva, de modo que a produção de provas caberia exclusivamente às partes. Desse modo, ao final da instrução, o Juiz do processo civil deve julgar de acordo com as provas produzidas, independentemente da realidade material ou “real” dos fatos. Desse modo, sua decisão se basearia na verdade formal, ou seja, em uma verdade aparente, construída a partir das provas presentes nos autos. Em oposição ao processo civil, o processo penal busca a verdade real ou material, que não é exatamente a verdade absoluta e objetiva, isto é, aquela que corresponde perfeitamente ao que aconteceu no plano “real”. A verdade real ou verdade material é aquela que seria considerada a mais próxima possível da realidade. Com base no princípio da verdade real, o magistrado deve buscar todas as provas que entender necessárias, tal qual as partes, com vistas a encontrar a verdade real. Assim, não deve se manter inerte ou passível às provas apre- sentadas. Agindo desse modo, será mais possível de atingir a verdade real como um princípio de justiça a ser alcançado e um modo de perfectibilizar a atuação jurisdicional. Lima (2020) e Avena (2018) apontam que essa divisão entre as diferenças entre a verdade formal e a verdade material, que seriam objetivo do processo civil e penal, respectivamente, vem sendo mitigada, a ponto de não ser mais possível essa diferenciação à vista de dispositivos do processo civil, que permi- Princípios processuais penais e constitucionais8 tem que o Juiz também busque no processo civil a verdade material. Ou seja, não haveria mais sentido falar em verdade formal e material em um processo e outro, mas apenas de verdade como objetivo de ambos os processos. Lima (2020) e Avena (2018), assim como Nucci (2020), ressaltam a importância da atuação do magistrado no processo penal, e fazem uma defesa, em maior ou menor medida, da atuação dos magistrados na busca da verdade que se apro- xima o mais possível dos fatos “reais”. Mas também destacam que a “verdade absoluta e objetiva” é um ideal a ser perseguido no processo penal, apesar de não ser efetivamente alcançável, tendo em vista que a “verdade” é construída no processo a partir das provas e da própria interpretação delas. Mesmo assim, não negam a necessidade da construção da verdade nos autos que se aproxime o máximo possível do que teria ocorrido faticamente na realidade. Lopes Júnior (2020) considera o sistema processual brasileiro um sistema inquisitório. O autor considera que o sistema acusatório é o sistema mais adequado e democrático, em razão disso, rechaça a tese de que, aos magis- trados, cabe a atuação de ofício como um modo de busca da “verdade”. Para Lopes Júnior (2020), é necessário realocar a verdade no âmbito do processo penal, sendo necessário negar completamente o mito de que o processo penal objetiva evidenciar qualquer tipo de verdade. Ele considera que a ambição da verdade coloca em risco o contraditório, na medida que com ele, assumem-se dispositivos de um Juiz inquisidor, capaz de atuar ativamente no processo na produção de provas, confundido, de algum modo, os papéis do acusador e julgador. Lopes Júnior (2020) não pretende negar a verdade no processo penal, mas pretende realocá-la estruturalmente no processo, como contingencial e não estruturante do processo penal. Com isso, busca ressaltar não a verdade, mas o processo penal como um ritual judiciário, que deve observar o contraditório e as regras do devido processo legal como um modo mais adequado de se pensar o objetivo e a estrutura do processo penal. Assim, trata-se de evidenciar e descolar a discussão para a importância da construção de um sistema que permita o pleno exercício do contraditório e a limitação dos poderes acusató- rios dos magistrados exercidos por meio de suas atuações de ofício, de modo que a gestão da prova deve estar vinculada às partes, sob pena de favorecer a imparcialidade judiciária. Em resumo, deve-se deslocar a discussão da busca da verdade para a construção e o respeito das “regras do jogo”, o que se faz, também, com a negação da verdade como estruturante do processo penal. 9Princípios processuais penais e constitucionais Princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos O princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos está previsto no art. 5º, LVI, da CF: “[...] são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (BRASIL, 1988, documento on-line). Na mesma linha, o art. 157 do Código de Processo Penal (CPP) estabelece: “[...]são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou le- gais” (BRASIL, 1941, documento on-line). A obtenção de prova ilícita, como aponta Lopes Júnior (2020), é, inclusive, um crime previsto no art. 25, da Lei nº. 13.869, de 5 de setembro de 2019 (BRASIL, 2019), que dispõe sobre crimes de abuso de autoridade. A partir da redação desses dispositivos legais é possível observar que, em suas literalidades, são inadmissíveis de pleno direito as provas ilícitas, consideradas aquelas que são obtidas por algum meio ilícito. O raciocínio para a inadmissão da prova obtida é simples: a obtenção de prova por meio ilegal contamina o seu conteúdo, bem como infringe regras importantes de direito, por isso o legislador opta por inadmitir a prova ilícita. Trata-se de um princípio importante, que objetiva a proteção do acusado, e não só o seu favorecimento. Provas ilícitas podem ser consideradas, por exemplo, a quebra ilegal do sigilo bancário, a gravação clandestina de conversa alheia, entre muitos outros exemplos. Apesar das disposições legais expressas, Lopes Júnior (2020) aponta que a doutrina e a jurisprudência vêm admitindo, em algumas hipóteses, a prova ilícita, e há várias correntes doutrinárias sobre a matéria. Nos extremos há uma corrente minoritária que admite a prova obtida por meio ilícito se ela não for vedada pelo ordenamento processual. Desse modo, o responsável pela prova ilícita poderia utilizá-la no processo, mas poderia responder eventualmente outro processo pela violação da norma de direito material na obtenção da prova. No outro extremo, há os que defendam a inadmissão absoluta da prova ilícita, não admitindo qualquer exceção ou relativização da vedação constitucional. Outros ainda admitem a prova ilícita em nome do princípio da propor- cionalidade, segundo o qual, em certos casos, a partir da ponderação entre o interesse público e o direito a ser protegido, a prova ilícita pode ser aceita (LOPRES JÚNIOR, 2020). Lopes Júnior (2020) aponta corretamente que se trata de uma relativização muito perigosa, posto que proporcionalidade não se baseia, de fato, em critérios objetivos, correndo grandes riscos de violação a direitos em nome da proporcionalidade. Princípios processuais penais e constitucionais10 Por fim, parte da doutrina defende que as provas ilícitas podem ser ad- mitidas a partir da proporcionalidade de pro reo. Segundo essa corrente, as provas ilícitas somente poderiam ser admitidas se se revelassem a favor do réu, a partir da ponderação de que o direito de liberdade de um inocente prevalece sobre eventual violação de direito para a obtenção da prova(LOPES JÚNIOR, 2020). Conforme Nucci (2020), muitos autores dessa corrente ponderam que o réu que colhe prova ilícita para a sua absolvição o faz em legítima defesa, por isso a prova poderia ser admitida, mas não negam que a aceitação da prova ocorre em nome do princípio da proporcionalidade. 3 Princípio do juiz natural, do nemo tenetur se detegere e da proporcionalidade Resta, ainda, a análise dos princípios do juiz natural, do nemo tenetur se detegere e da proporcionalidade. Vejamos. Princípio do juiz natural O princípio do juiz natural encontra fundamento no art. 5º, LIII, CF, que estabelece o seguinte: “[...] ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (BRASIL, 1988, documento on-line). Tam- bém está fundamentado no art. 5º, XXXVII, CF, que proíbe ou veda o juízo ou Tribunal de exceção. O juízo ou Tribunal de exceção é aquele criado de forma temporária e/ou excepcional para o julgamento de determinada matéria, ou seja, são criados após um fato e se prestam para o julgamento dele. Lopes Júnior (2020) afirma que o princípio do juiz natural é fundante do Estado Democrático de Direito e trata-se do direito de o cidadão saber qual autoridade irá processá-lo e julgá-lo caso pratique uma conduta definida como crime. Trata-se, além disso, do estabelecimento de órgãos judiciários de modo prévio a qualquer fato delituoso, com a definição não só dos órgãos judiciários, mas da competência para o julgamento de determinadas condutas. A definição previamente estabelecida dos órgãos judiciários objetiva a imparcialidade do julgador, uma vez que é definida a competência do juízo antes da prática do ato. Assim esse juízo julgará indistintamente a todos que cometerem os crimes de sua competência. Ao contrário, quando se trata de um juízo ou Tribunal de exceção, os riscos de parcialidade são enormes, tendo em vista que o juízo ou Tribunal é criado para o julgamento de um fato 11Princípios processuais penais e constitucionais específico, de modo que a escolha dos julgadores ocorrerá de acordo com o fato, retirando a imparcialidade do julgamento. Para Lopes Júnior (2020) e Lima (2020), o princípio do juiz natural tem a sua aplicação no momento da prática do delito, de modo que será compe- tente o juízo definido no momento dessa prática, e não do início do processo. A alteração dessa regra poderia impor e manipular critérios de competência de acordo com o fato criminoso já consumado, o que implica em definição do Juiz da causa em momento posterior ao fato delituoso, permitindo a “escolha” de um Juiz “mais conveniente” a um ou outro interesse. No Brasil, é comum a criação de Varas especializadas em determinadas matérias, de modo que determinados crimes acabam sendo julgados sempre pelo juízo da Vara especializada. Essa divisão judiciária não ofende o princípio do juiz natural, porque a definição da competência é prévia ao ato delituoso. Também porque não se trata da criação de um juízo para o julgamento de uma situação específica, mas de casos genéricos de mesma natureza, não implicando em imparcialidade do magistrado, pois a sua competência já foi previamente atribuída para o julgamento de determinadas matérias em relação a qualquer pessoa que cometer algum crime de sua competência. Lima (2020) explica o que ocorre quando a competência é modificada no curso do processo em razão de alteração da lei processual penal. Nesses casos, se o processo estiver na fase de conhecimento, ainda sem sentença de mérito, deve ser remetido ao novo juízo competente sem a invalidade dos atos praticados, tendo em vista que, em regra, a lei processual tem aplicação imediata à sua vigência. Por outro lado, se já houver decisão de mérito à época da alteração, ocorre a prorrogação da competência do órgão originário. Princípio do nemo tenetur se detegere O princípio do nemo tenetur se detegere é, literalmente, o princípio que expressa o direito de não produzir provas contra si mesmo. O direito constitucional ao silêncio durante um interrogatório (art. 5º, LXIII, CF) decorre da modalidade genérica do direito a não produzir provas contra si mesmo, e não é a sua única expressão. De acordo com Lima (2020), trata-se de uma modalidade de autodefesa passiva, na qual o indivíduo acusado de um crime permanece inerte à produção de qualquer tipo de prova. Segundo esse princípio, o acusado que deixar de colaborar com a investigação, com o juízo ou com a acusação na produção de provas não pode ser penalizado por seu ato, proibindo o uso de qualquer medida por parte dos acusadores para obrigar a confissão ou a colaboração do acusado Princípios processuais penais e constitucionais12 frente ao fato que lhe é imputado. Destaca-se, inclusive, que permanecer em silêncio e não colaborar com a produção de provas, além de direitos, podem ser estratégias defensivas a serem tomadas de acordo com o caso prático. Lima (2020) afirma que o preceito constitucional do art. 5º, LXIII, CF dá a entender, em sua literalidade, que se presta apenas para a proteção daquele que está preso. Mas, de modo bastante consolidado na doutrina e jurisprudência mais aceita, o dispositivo aplica-se àqueles que não estão presos e a toda pessoa a quem foi imputada um lícito criminal. Em resumo, ninguém é obrigado a confessar um crime. Inclusive, quando alguém é convocado como testemunha, não está obrigado a responder pergunta que possa incriminá-lo, mesmo que indiretamente. Apesar de a testemunha ter o dever de falar a verdade, sob pena de crime de falso testemunho, não estará configurado esse crime se a testemunha, ao depor, deixar de revelar fatos que possam incriminá-la. O art. 5º, LXIII, CF estabelece que o “preso deve ser informado de seus direitos”, por isso a autoridade que realizou a prisão deve informar previamente o direito de permanecer calado e não produzir provas contra si mesmo, sob pena de macular a prova obtida (LIMA, 2020). A omissão da advertência a esse direito gerará a invalidade da prova obtida e das provas derivadas (LIMA, 2020). Lima (2020) aponta alguns desdobramentos do princípio do nemo tenetur se detegere. Veja a seguir. � Direito ao silêncio ou de ficar calado: trata-se da previsão constitucio- nal literal do instituto, é o direito de não responder aos questionamentos da autoridade, fato que não irá gerar confissão ficta ou falta de defesa, não podendo o silêncio levar à presunção da culpabilidade ou autoria do fato imputado, tendo em vista que o ônus da prova permanece da acusação. � Direito de não ser constrangido a confessar a prática de ilícito penal: o acusado não pode ser obrigado ou constrangido à confissão da prática de um delito, o que se fundamenta no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 14, § 3º) na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8º, § 2º, “g”, e § 3º), aos quais o Brasil é signatário, conforme expõe Lima (2020). � Inexigibilidade de dizer a verdade: segundo Lima (2020), alguns doutrinadores afirmam que o acusado tem o direito de mentir, pois isso não é tipificado como crime, de modo que o nemo tenetur se detegere seria o princípio que assegura o direito à mentira. O autor, entretanto, não concorda com essa afirmação, pois isso seria admitir que um Estado 13Princípios processuais penais e constitucionais Democrático de Direito assegura o direito ao comportamento antiético e imoral, consubstanciado na mentira. Efetivamente, não existe uma pena ao acusado que mente, nem mesmo àquele que foge, a não ser que cometa outros crimes para realizar tais condutas, ou seja, outros crimes são tipificados, mas não o ato da fuga ou da mentira em si. A fuga sem tipificação e a mentira em depoimento sem penalização podem ser conceituados como direitos de resistência, pelo qual o Estado deixa de punir determinadas condutas em casos em que os indivíduos agem respaldados em direito inalienável, mesmo que seus atos sejam contrários a condutas punitivas do Estado (FERREIRA, 2013).Nesses casos, não se trata do direito de não produzir provas contra si mesmo, mas da concepção jurídico-filosófica adotada pelo legislador no sentido de que não é possível penalizar o indivíduo que age na defesa de direito inalienável, no caso a liberdade, mesmo que a pretensão punitiva e o próprio Estado sejam legítimos (FERREIRA, 2013). � Direito de não praticar qualquer comportamento ativo que possa incriminá-lo: a doutrina e a jurisprudência têm adotado o entendimento da impossibilidade de exigir ou coagir um acusado a realizar um ato ou produzir uma prova que possa causar a sua autoincriminação (LIMA, 2020). Lima (2020) cita diversos exemplos: a participação em acareações, o fornecimento de material para exame grafotécnico, a configuração de constrangimento ilegal, a decretação de prisão preventiva de acu- sados pela negativa de participar na reconstituição do crime. Porém, a tolerância, por parte do acusado, na realização de algum ato não seria violação ao nemo tenetur se detegere, pois não exigiria uma ação do acusado, mas apenas que este deixe de ocorrer, sendo citada como exemplo a realização de reconhecimento pessoal e a realização de teste de bafômetro para comprovar a embriaguez (LIMA, 2020). � Direito de não produzir nenhuma prova incriminadora invasiva: direito de não realizar intervenções corporais que importem em pene- tração no organismo por instrumento ou substância que implique na utilização de partes do corpo ou que impliquem em invasão física do corpo, como define Lima (2020). Quando se trata de prova não invasiva, que são aquelas que implicam em inspeções ou verificações corporais, elas podem ser realizadas mesmo sem a concordância do acusado, desde que não impliquem a sua colaboração ativa (LIMA, 2020). Princípios processuais penais e constitucionais14 Princípio da proporcionalidade Lima (2020) considera o princípio da proporcionalidade um dos princípios do Direito Processual Penal e pondera que não se trata de um princípio com previsão explícita, mas que decorre do devido processo legal e da legalidade (art. 5º, II e LIV, CF, BRASIL, 1988). O princípio da proporcionalidade revela a sua importância ao analisar o “peso” dos atos do Poder Público em sede processual penal, isto é, “[...] o princípio da proporcionalidade, que se qualifica, enquanto coeficiente da razoabilidade dos atos estatais, como postilado básico de contenção dos excessos do Poder Público” (LIMA, 2020, p. 84). A aplicação do princípio da proporcionalidade é orientada por seus requi- sitos de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. São, em resumo, os requisitos ou subprincípios que buscam orientar a medida a ser tomada proporcionalmente às vantagens e desvantagens de determinado ato. No preenchimento do requisito da adequação é analisado se determinada medida restritiva é considerada adequada, ou seja, se será apta e eficaz ao fim pretendido; deve-se verificar se o meio escolhido irá colaborar para o fim pretendido (LIMA, 2020). Quanto ao requisito da necessidade, considera-se a escolha da medida menos gravosa na restrição de direitos e que seja, ao mesmo tempo, capaz e eficaz de se atingir o objetivo pretendido (LIMA, 2020). Assim, a necessidade está relacionada à opção pela medida eficiente menos gravosa possível, com a finalidade de evitar excessos na persecução penal. O requisito da proporcionalidade em sentido estrito acaba reunindo os requisitos da adequação e da necessidade, dando as características essenciais do princípio da proporcionalidade (lato sensu). A proporcionalidade em sentido estrito é a ponderação entre o ônus e o benefício de determinada medida, isto é, trata-se da avaliação pelo julgador se os benefícios esperados com a medida restritiva justificam os ônus e a restrição a direitos que a medida importa (LIMA, 2020). Desse modo, é necessário analisar se a restrição de direitos será proporcional aos resultados esperados. 15Princípios processuais penais e constitucionais AVENA, N. Processo penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 ago. 2020. BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Brasília: Presidência da República, 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto-lei/del3689.htm. Acesso em: 23 ago. 2020. BRASIL. Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019. Dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade; altera a Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, e a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994; e revoga a Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965, e dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Brasília: Presidência da República, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/ L13869.htm. Acesso em: 23 ago. 2020. CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almeida, 1998. DECLARAÇÃO dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. [S. l.: s. n.], 1789. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos- -humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf. Acesso em: 23 ago. 2020. FERREIRA, G. B. O direito de resistência na defesa dos direitos fundamentais. 2013. 27 f. Monografia (Especialização)- Universidade Estadual do Norte do Paraná, Curitiba, 2013. LIMA, R. B. de. Manual de Processo Penal. Volume único. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2020. LOPES JÚNIOR, A. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. LOPES JÚNIOR, A. Fundamentos do processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2016. NUCCI, G. de S. Curso de direito processual penal. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. Leitura recomendada BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 1995. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm. Acesso em: 23 ago. 2020. Princípios processuais penais e constitucionais16 Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun- cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. 17Princípios processuais penais e constitucionais