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PRINCÍPIOS DO PROCESSO PENAL Este texto traz um compilado extraído das seguintes obras: BONFIM, Edilson M. Curso de Processo Penal - 15ª Edição 2025. 15. ed. Rio de Janeiro: SRV, 2025. E-book. p.84. ISBN 9788553625833. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9788553625833/. Acesso em: 14 ago. 2025. AVENA, Norberto. Processo Penal - 15ª Edição 2023. 15. ed. Rio de Janeiro: Método, 2023. E-book. p.33. ISBN 9786559647774. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786559647774/. Acesso em: 14 ago. 2025. ● Princípio do estado de inocência, da “presunção” de inocência ou princípio da não culpabilidade Fundamento legal: art. 5º, LVII, da CF (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”). Precedentes históricos: o princípio se positiva pela primeira vez no art. 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Paris, 26.8.1789), inspirado na razão iluminista (Voltaire, Rousseau etc.). Posteriormente, foi reafirmado no art. 26 da Declaração Americana de Direitos e Deveres (22.5.1948) e no art. 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Assembleia das Nações Unidas (Paris, 10.12.1948). Análise terminológica: Sustenta a boa doutrina que a expressão “presunção de inocência” é de utilização vulgar, já que não é tecnicamente correta31. É verdade. Presunção, em sentido técnico, é o nome da operação lógico-dedutiva que liga um fato provado (um indício) a outro probando, ou seja, é o nome jurídico para descrição justamente desse liame entre ambos. No caso, o que se tem mais propriamente é a consagração de um princípio de não culpabilidade, até porque a Constituição Federal (art. 5º, LVII), não afirma presumir uma inocência, mas sim garantir que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII). Assim, o princípio em questão alberga uma garantia constitucional, referindo-se, pois, a um “estado de inocência”32 ou de “não culpabilidade”: vale dizer, ninguém pode ser reputado culpado até que transite em julgado sentença penal condenatória. Conteúdo do princípio: Este princípio reconhece, assim, um estado transitório de não culpabilidade, na medida em que referido status processual permanece enquanto não houver o trânsito em julgado de uma sentença condenatória. O princípio do estado de inocência refere-se sempre aos fatos33, já que implica que seja ônus da acusação demonstrar a ocorrência do delito (actori incumbit probatio), e demonstrar que o acusado é, efetivamente, autor do fato delituoso. Portanto, não é princípio absoluto34, alterando-se a “presunção” da inocência (“presunção” juris tantum35) uma vez provada a autoria do fato criminoso. Nos casos em que não for provada a existência do fato, não existir prova de ter concorrido para a prática da infração penal ou não existir prova suficientemente segura para fundamentar o juízo condenatório (art. 386, II, V e VII, do CPP), será o juiz obrigado a absolver o acusado, não se lhe podendo imputar a culpa por presunção. Nesse caso, porém, falamos da aplicação do princípio in dubio pro reo (vide distinção adiante). Vale consignar, também, como exceção à regra de que o ônus da prova sempre recai para a acusação, que há aquelas que ficam a cargo da defesa, entre as quais a prova da existência de causas de justificação (p. ex., legítima defesa) ou de extinção da punibilidade (art. 107 do CP), além de circunstâncias que minoram a sanção. Também decorre desse princípio a excepcionalidade de qualquer modalidade de prisão processual. Com efeito, a prisão processual não constitui cumprimento de pena, ao contrário do que a denominação reservada a algumas modalidades de prisão processual possa erroneamente sugerir. Seu fundamento é diverso. Ainda assim, a decretação da prisão sem a prova cabal da culpa somente será exigível quando estiverem presentes elementos que justifiquem a necessidade da prisão36 (de modo geral, provas que, embora não demonstrem cabalmente a culpa do acusado, sejam suficientes para constituir suspeita válida de que o acusado efetivamente seja culpado – o fumus boni juris, ou fumaça do bom direito – e a existência de risco social no caso em que não seja decretada sua prisão – o periculum libertatis). Sem esses elementos, que devem ser avaliados em cada caso concreto, a prisão se torna ilegal, podendo ser atacada pela via do habeas corpus. Aqui, mais atento ao princípio da presunção de inocência a garantir que a prisão processual seja, de fato, uma medida excepcional, o legislador infraconstitucional, ao idealizar a Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime), ampliou as exigências da manutenção da prisão cautelar, obrigando o magistrado a revisar a análise da necessidade da medida restritiva de liberdade a cada 90 dias, fundamentando-se na existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem sua decisão (art. 315 do CPP). No caso do flagrante, diante da citada Lei n. 13.964/2019, o juiz deverá designar audiência de custódia (com a presença do custodiado, seu advogado e representante do Ministério Público), no prazo de 24 horas, sendo certo que eventual descumprimento poderá ensejar a responsabilização da autoridade, com espeque no art. 311, § 3º, do Código Penal e no art. 19 da Lei n. 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade). Por fim, é corolário do princípio da não culpabilidade a impossibilidade de se considerarem, para efeitos de dosimetria da pena, os inquéritos e processos criminais em andamento do acusado, sem trânsito em julgado. Aliás, esse é o teor da Súmula 444 do STJ: “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”. Prisão provisória e princípio do estado de inocência: A jurisprudência reconhece pacificamente que as modalidades de prisões provisórias não ferem o princípio do estado de inocência37. Também, consoante assentado pelos tribunais38, são válidas as prisões temporárias, em flagrante39, preventivas40. ● Princípio da igualdade das partes ou da paridade processual ou da paridade de armas A igualdade processual é um desdobramento do princípio da isonomia ou da igualdade (art. 5º, caput, da CF), reconhecida como verdadeira medula do devido processo legal47. No âmbito do processo penal, às partes devem ser asseguradas as mesmas oportunidades de alegação e de prova, cabendo-lhes iguais direitos, ônus, obrigações e faculdades. O modelo adotado pelo sistema jurídico brasileiro para a solução de conflitos de interesses pressupõe, portanto, a exigência de igualdade de tratamento processual entre aquele que se diz detentor da pretensão deduzida em juízo e aquele que resiste ao direito pretendido. Revela-se, assim, como cerne do processo penal o conflito existente entre dois interesses indisponíveis que reclamam o trato paritário: o direito de punir e o direito de liberdade48. Objetivo::Dessa forma, dando-se paridade de armas49 às partes na dialética processual, objetiva-se evitar uma situação de privilégio ou supremacia de uma das partes, equilibrando-se o processo pelo respeito à igualdade50, na medida em que as partes devem ser “munidas de forças similares”51. Caráter relativo: Essa igualdade, no entanto, não é absoluta, sofrendo temperamentos, principalmente pelo princípio do favor rei. De fato, o processo penal caracteriza-se por uma desigualdade essencial entre as posições de acusador e acusado, evidenciada principalmente quando se tem por paradigma o processo civil, no qual prevalecem disputas entre particulares. Com efeito, no âmbito do processo penal, no mais das vezes o litígio contraporá o particular a um órgão do Estado. As partes litigantes, portanto, serão essencialmente diferentes. Além disso, no litígio penal estará em jogo a liberdade individual do acusado, direito fundamental, o que justifica que o princípio da igualdade, no processo penal, seja mitigado de forma a favorecer, em algumas situações, a posiçãodo acusado (p. ex., art. 386, VII, do CPP). Não se considera inconstitucional, assim, que disponha ele de alguns instrumentos aos quais a acusação não tem acesso. Inexiste inconstitucionalidade, portanto, no fato de caber somente à defesa a utilização de determinados recursos, por exemplo, os embargos infringentes e de nulidade (art. 609, parágrafo único, do CPP), bem como em face da inexistência, em nosso sistema, da revisão criminal pro societate. ● Princípio da ampla defesa Fundamento legal: art. 5º, LV, da Constituição Federal (“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”). O princípio da ampla defesa consubstancia-se no direito das partes de oferecer argumentos em seu favor e de demonstrá-los, nos limites em que isso seja possível. Conecta-se, portanto, aos princípios da igualdade e do contraditório. Não supõe o princípio da ampla defesa uma infinitude de produção defensiva a qualquer tempo, mas, ao contrário, que esta se produza pelos meios e elementos totais de alegações e provas no tempo processual oportunizado por lei28. A defesa pode ser exercida por meio da defesa técnica e também da autodefesa. A defesa técnica é aquela exercida em nome do acusado por advogado habilitado, constituído ou nomeado, e garante a paridade de armas no processo diante da acusação, que, em regra, é exercida por um órgão do Ministério Público. A defesa técnica é indisponível. Caso o réu não possa contratar um advogado, o juiz deverá nomear para sua defesa um advogado dativo ou, quando possível, determinar que assuma a defesa um defensor público. Sem isso, não poderá prosseguir o processo (arts. 261 a 264 do CPP). Constatando-se a falta de atuação de defesa técnica ou que esta foi feita por defensor cuja inscrição está suspensa na OAB, os atos praticados serão considerados nulos29. A esse respeito, a Súmula 523 do STF deixa claro que a falta de defesa constitui nulidade absoluta, enquanto sua deficiência só ocasionará nulidade quando demonstrado o prejuízo para o réu. O exercício da ampla defesa prestigia, ainda, a possibilidade de o defensor interpor recurso de apelação contra decisão exarada nos autos, ainda que o réu tenha renunciado a esse direito (Súmula 705/STF). Vale salientar, ainda, que a defesa técnica reveste-se de suma importância no processo penal, tanto que o legislador, na redação do art. 396-A, § 2º, do Código de Processo Penal, exige a nomeação de defensor ao réu que não o tiver, sob pena de nulidade absoluta. A autodefesa é exercida diretamente pelo acusado. É livremente dispensável, e tem por finalidade assegurar ao réu o direito de influir diretamente na formação da convicção do juiz (direito de audiência) e o direito de se fazer presente nos atos processuais (direito de presença)30. Assim, também, a necessidade de que o acusado seja interrogado presencialmente, conforme o preceito do art. 185 do Código de Processo Penal, sob pena de nulidade. Cumpre alertar que o “direito ao silêncio” (art. 5º, LXIII, da Constituição da República) é uma extensão do direito a autodefesa, na medida em que pode optar pela tentativa de influir no convencimento do Magistrado, apresentando sua versão dos fatos, ou, de outro modo, ficando calado. Na segunda hipótese, o silêncio não será interpretado pelo magistrado em desfavor do réu (vide, adiante, na análise do interrogatório). Existente a defesa técnica, é direito das partes a produção de provas que demonstrem a ocorrência dos fatos alegados que tenham pertinência à causa. Assim, se o juiz da causa rejeita a produção de uma prova que objetivamente seja necessária para a apuração da ocorrência de determinado delito, configura-se o cerceamento ao exercício do direito à ampla defesa (abreviadamente referido como “cerceamento de defesa”), o que configura nulidade. Há que ressaltar que, nesse caso, não importa se a prova tenha sido requerida pela defesa ou pela acusação. O direito de defesa, nesse aspecto, relaciona-se com o dever que as partes no processo penal têm perante a apuração da verdade (vide, adiante, o princípio da verdade real), que deverá prevalecer sobre a vontade individual das partes. Por fim, há que fazer a ressalva de que o indeferimento de provas ou de outros instrumentos de defesa, em si, não constitui a priori cerceamento ao direito à ampla defesa. Com efeito, deve-se também atentar para o princípio do livre convencimento racional do juiz (vide, adiante). Se a prova faltante não for, efetivamente, essencial para a apuração da verdade, ou quando o juiz entender dispensável a prova requerida, por entender suficiente a prova já existente, não se configurará a nulidade, desde que a negativa em determinar sua produção seja razoável e desde que seja devidamente motivada a decisão denegatória. ● Princípio do favor rei (in dubio pro reo ou favor libertatis) Esse princípio tem por fundamento a presunção de inocência. Em um Estado de Direito, deve-se privilegiar a liberdade em detrimento da pretensão punitiva. Somente a certeza da culpa surgida no espírito do juiz poderá fundamentar uma condenação (art. 386, VII, do CPP). Havendo dúvida quanto à culpa do acusado ou quanto à ocorrência do fato criminoso, deve ele ser absolvido. ● In dubio pro reo e in dubio pro societate O princípio in dubio pro reo tem sua antítese teórica no princípio in dubio pro societate, que preceitua que, no caso de dúvida acerca da culpabilidade do acusado, decida-se em favor da sociedade. Em nosso sistema, no entanto, o princípio in dubio pro societate somente tem aplicação em específicas oportunidades: quando do oferecimento da inicial acusatória (denúncia ou queixa), porquanto não se cobra certeza definitiva quanto à autoria criminosa, somente indícios de autoria; e nos processos do Júri, quando do encerramento da primeira fase (judicium accusationis), no momento da decisão de pronúncia pelo juiz (art. 413 do CPP)41. Contudo, qualquer que seja o tipo de procedimento, sempre que se tratar de decisão definitiva de mérito – sentença em sentido estrito –, vigerá o princípio in dubio pro reo. ● Princípio do contraditório Fundamento legal: art. 5º, LV, da Constituição Federal (“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”). O contraditório, na já clássica definição de Canuto Mendes de Almeida, é “a ciência bilateral dos atos e termos processuais e a possibilidade de contrariá-los”23, pelo que representa uma garantia conferida às partes de que elas efetivamente participarão da formação da convicção do juiz. Nesse sentido, como muitos dos princípios referidos nesse capítulo, está, em certa medida, contido no conjunto das garantias que constituem o princípio do devido processo legal formal. O princípio do contraditório significa que cada ato praticado durante o processo seja resultante da participação ativa das partes. Origina-se do brocardo audiatur et altera pars. A aplicação do princípio, assim, não requer meramente que cada ato seja comunicado e cientificado às partes (contraditório formal). Relevante é que o juiz, antes de proferir cada decisão, ouça as partes, dando-lhes igual oportunidade para que se manifestem, apresentando argumentos e contra-ar-gumentos. Destarte, o juiz, ao proferir a decisão, deve oferecer às partes oportunidade para que busquem, pela via da argumentação, ou juntando elementos de prova, se for o caso, influenciar a formação de sua convicção (contraditório material). Da mesma forma, a publicação e comunicação às partes de cada decisão têm por finalidade submeter a seu crivo as decisões proferidas, e, via de regra, as partes terão novamente oportunidade para manifestação, ainda que seja pela via recursal. Além disso, também em respeito ao princípio da igualdade (vide, adiante), cada oportunidade demanifestação concedida a uma das partes deve ser igualmente concedida à parte contrária. Por esse motivo, deve-se assegurar a ambas as partes iguais direitos de participar da produção da prova e de se manifestar sobre os documentos juntados e argumentos apresentados pelo ex adverso ou pelo juiz24. O respeito ao contraditório deve ser registrado pelo juiz. Com efeito, a motivação das decisões (vide, adiante, o princípio da motivação dos atos judiciais) pelo julgador deve indicar os critérios adotados para que se dê pela procedência ou improcedência dos argumentos trazidos pelas partes, já que constitui garantia (contraditório) de que os pedidos deduzidos pelas partes, bem como os argumentos trazidos para sustentá-los, ainda que não acolhidos, efetivamente influenciaram no resultado da decisão, legitimando assim o exercício do poder estatal. Vale salientar que o princípio do contraditório pode sofrer mitigações excepcionais, tal como no caso das medidas urgentes – verbi gratia, a decretação da prisão preventiva, as medidas assecuratórias etc. – em que o pronunciamento judicial se dará inaudita altera pars, sob pena de prejuízo à própria efetividade do processo. Espécies de contraditório: Em razão do que vimos, podem-se identificar com a doutrina duas espécies de contraditório: a) Contraditório real: assim se denomina o que se efetiva no mesmo tempo da produção probatória, como ocorre, por exemplo, durante a inquirição de testemunhas em juízo. Nessa oportunidade, confere-se imediatamente à parte contrária a possibilidade de reperguntas. b) Contraditório diferido: o que ocorre posteriormente à produção da prova, ou seja, quando das alegações, debates, requerimentos e impugnações ulteriormente efetuadas pelas partes25. Desse modo, em caso de impossibilidade de efetivação do contraditório real, pela natureza da prova (interceptação telefônica, busca e apreensão etc.) ou pela natureza do procedimento (inquérito policial), ou ainda pelo momento em que se realiza (p. ex., exame perinecroscópico em um morto, sem que se tenha ainda determinada a natureza jurídica da morte e/ou suspeita de autoria), deve ser garantido às partes o contraditório diferido26, em respeito ao art. 5º, LV, da Constituição Federal27. ● Princípio da publicidade Fundamento legal: arts. 5º, LX (“a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”), e 93, IX (“todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”), da Constituição Federal e art. 792, primeira parte, do Código de Processo Penal (“as audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais...”). Publicidade imediata e mediata: A Carta Magna estabelece, como regra geral, que os atos processuais serão públicos (art. 5º, LX), constituindo-se em garantia inseparável do conceito de democracia, na medida em que se exige transparência nos assuntos públicos52. É por isso que, conforme salienta Roxin, o princípio da publicidade revela-se ineficaz ou pervertido nos Estados totalitários, já que na maioria das vezes os opositores políticos são condenados em procedimentos secretos ou em simulacros de processos53. Dessa forma, ao conferir publicidade aos atos processuais, reconhecemos um dos alicerces do Estado Democrático, na medida em que temos como primeiro fundamento o fato de que tanto as partes quanto a sociedade podem exercer controle sobre os atos praticados em juízo. Podemos, assim, falar em: a) publicidade imediata: as partes estão presentes e têm contato direto com os atos processuais; e b) publicidade mediata, geralmente resultante da divulgação de tais atos pelos meios de comunicação54. Em regra, o acesso aos autos dos processos, a audiências, sessões de julgamentos e demais atos processuais é público, sendo ilegal qualquer restrição imposta ao seu acompanhamento (dentro, obviamente, do critério da razoabilidade). Abre-se exceção apenas àqueles casos em que a defesa da intimidade ou o interesse social ou público aconselharem a adoção de uma publicidade restrita (art. 792, § 1º, do CPP). Ainda nos casos de atos processuais que corram em sigilo, entretanto, não existe vedação total. O grau máximo de restrição à publicidade compreende o processo ao qual tenham acesso, além do juiz, apenas as partes e seus procuradores. Estes em hipótese alguma podem ficar alijados dos atos processuais. Publicidade absoluta, plena ou externa e publicidade restrita, especial ou interna: Classificamos a publicidade dos atos processuais, portanto, como: a) publicidade absoluta ou plena (ou externa55): garantia assegurada à população em geral do livre acesso aos atos processuais. É a regra no direito brasileiro; b) publicidade restrita ou especial (ou interna56): quando presente o interesse social ou a necessidade da defesa da intimidade, ou, nos termos do art. 792, § 1º, do Código de Processo Penal, se da publicidade “puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem”, poder-se-á determinar a publicidade restrita a um número reduzido de pessoas. Exemplo disso é o art. 234-B do Código Penal, que presumiu o inconveniente grave e determinou que os processos em que se apuram crimes contra a dignidade sexual tramitarão em segredo de justiça. Publicidade, sistema acusatório e sigilo O princípio da publicidade coaduna-se com o sistema acusatório do processo penal brasileiro. Apenas um rol reduzido de atos, por sua natureza peculiar, não será conduzido de forma completamente pública. Com efeito, não ofende esse princípio o sigilo do inquérito policial (art. 20 do CPP)57 nem o recolhimento dos jurados em uma sala secreta para procederem à votação dos quesitos formulados pelo juiz presidente nos julgamentos de competência do Tribunal do Júri, caso em que a própria Constituição Federal assegura o sigilo das votações (art. 5º, XXXVIII, b). A restrição à publicidade desses atos, entretanto, é relativa. No caso do inquérito policial, o sigilo acerca das informações reunidas sobre o investigado somente deverá perdurar enquanto a publicidade oferecer risco ao próprio sucesso das investigações. Uma vez encerradas estas e, principalmente, se usadas em juízo as provas produzidas sigilosamente, é imperativo que o investigado tenha pleno acesso a todos os elementos obtidos, sob pena de afronta aos princípios do contraditório e da ampla defesa (vide, acima), e mesmo por força de determinação legal, já que o Estatuto da Advocacia (Lei n. 8.906/94) garante ao advogado acesso aos autos de flagrante e de inquérito (Súmula Vinculante 14/STF). Da mesma forma, o recolhimento dos jurados em sala secreta para que respondam aos quesitos de julgamento respeita a necessidade de que esse ato seja praticado sem interferência externa. O sigilo, considerando-se o caráter leigo dos jurados, torna-se, assim, recomendável, recebendo respaldo da Constituição Federal. Não obstante, como no caso do inquérito, o resultado dos atos praticados sob o manto do sigilo ficará sujeito à publicidade. Outro exemplo claro de mitigação ao princípio da publicidade é, ainda, a retirada dos acusadores e defensores que, na sala secreta, intencionem turbar a manifestação do Conselho de Sentença (art. 485, § 2º, do CPP) ou, também, quando determinada a retirada do réu da sala de audiência se o juiz verificar que sua presença causará humilhação, temor ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a colheita da verdade no depoimento (art. 217 do CPP). Finalmente, ressalve-se que a falta de intimação à parte ou ao seu patrono acerca da ocorrência de determinado ato processual, menos do que representar afronta ao princípio da publicidade,desrespeita os princípios do contraditório, ao potencialmente restringir a possibilidade de manifestação da parte no processo, e da ampla defesa, ao dificultar a eventual impugnação do ato não comunicado. Isso porque para as partes e seus patronos, como referido, os atos processuais serão sempre públicos, de modo que o acesso ao seu conteúdo será sempre possível. Ainda na linha da restrição à publicidade dos atos processuais e suas consequências jurídicas, insta salientar que a Lei n. 12.681/2012 acrescentou parágrafo único ao art. 20 do Código de Processo Penal, explicitando que, nos atestados de antecedentes que lhe forem solicitados, a autoridade policial não poderá mencionar quaisquer anotações referentes a instauração de inquérito contra os requerentes. Trata-se de nova mitigação à ampla publicidade processual, em respeito à intimidade da pessoa e à presunção de inocência, notadamente em razão da inexistência de sentença condenatória transitada em julgado. Ademais, observa-se também que há mitigação à publicidade dos autos quando se nega ao réu acesso a termos de declaração prestados por colaborador premiado e que não digam respeito aos fatos imputados ao acusado, especialmente se tais declarações ainda estão sendo investigadas, situação na qual existe previsão de sigilo, nos termos do art. 7º da Lei n. 12.850/2013. Neste caso, entende-se que a negativa não viola a Súmula Vinculante 14 do STF58. ● Princípio do juiz natural O princípio do juiz natural decorre do art. 5.º, LIII, da Constituição Federal, ao dispor que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente. Embora, à primeira vista, a leitura do dispositivo possa sugerir que se refere apenas à necessidade de observância das regras de competências ratione materiae, ratione personae e ratione loci, é certo que possui alcance bem maior do que este, primeiro porque se refere a “autoridade competente” e não a “juízo competente”, e, segundo, porque a nulidade dos atos processuais quando realizados em juízo incompetente já é consagrada em nível de legislação infraconstitucional, no art. 564, I, do CPP. Compreende-se, assim, da análise do inciso LIII que a pretensão a ele incorporada objetiva assegurar ao acusado o direito de ser submetido a processo e julgamento não apenas no juízo competente, como também por órgão do Poder Judiciário regularmente investido, imparcial e, sobretudo, previamente conhecido segundo regras objetivas de competência estabelecidas anteriormente à prática da infração penal. Em consequência, veda-se a criação de tribunais ou juízos de exceção (o que não se confunde com jurisdições especializadas, que constituem simples desdobramento da atividade jurisdicional), assim como a designação de magistrado para atuar, especificamente, em um determinado caso, por exemplo, em razão da condição da pessoa que ocupa o polo passivo da relação processual penal. Apesar da existência de posições em contrário, compreendemos, em face da natureza do princípio, que o postulado do juiz natural apenas pode ser invocado em prol do acusado, e não em seu desfavor. Neste sentido, apreciando hipótese na qual o réu, condenado a pena de quatro anos de reclusão por juízo incompetente, teve anulado esse julgamento a partir de recurso exclusivo seu, sendo, depois, condenado pelo juízo competente a pena superior à primeira que lhe havia sido imposta, decidiu o STJ que “somente se admite que este último princípio – Juiz natural – seja invocado em favor do réu, nunca em seu prejuízo. Sob essa ótica, portanto, ainda que a nulidade seja de ordem absoluta (a incompetência), eventual reapreciação da matéria não poderá de modo algum ser prejudicial ao paciente, isto é, à sua liberdade” (HC 105.384/SP, DJ 03.11.2009). Considerou a Corte, como se vê, que a reprimenda fixada por quem não era o juiz natural do processo vinculou a nova pena estabelecida no juízo competente. Igual entendimento é adotado, também, no STF ● Princípio da vedação das provas ilícitas Fundamento legal: art. 5º, LVI, da Constituição Federal (“são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”). O princípio constitui, em verdade, uma vedação a que o juízo adote, como elemento de convencimento no curso do processo penal, elementos de prova obtidos por meios considerados ilícitos. O valor “justiça” não é absoluto, mas relativo. Nesse sentido, não pode ser perseguido à tout prix46. Assim, conquanto o processo penal tenha por finalidade a busca pela verdade real, esse valor encontra limites em outros valores tutelados pelo ordenamento jurídico, principalmente nos direitos e garantias fundamentais assegurados ao cidadão. Provas obtidas por meios ilegítimos, portanto, não devem influir na formação do convencimento do juiz. De acordo com grande parte da doutrina e da jurisprudência, o postulado em questão excepciona-se no tocante à utilização das provas ilícitas em favor do réu. É a aplicação de uma das facetas do princípio da proporcionalidade. A questão da licitude das provas será novamente abordada em capítulo posterior. ● Princípio da economia processual Fundamento legal: arts. 563 (“nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”) e 566 (“não será declarada a nulidade de ato processual que não houver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa”) do Código de Processo Penal e art. 65 da Lei n. 9.099/95 (“Os atos processuais serão válidos sempre que preencherem as finalidades para as quais forem realizados...”). O princípio da economia processual consubstancia-se no aproveitamento dos atos judiciais praticados, ainda que tenham sido conduzidos de maneira diversa daquela prescrita em lei. O princípio tem por finalidade evitar a repetição desnecessária de atos processuais. Se um ato determinado, embora tenha sido conduzido de forma diversa daquela estabelecida na lei, foi eficaz no atingimento dos objetivos para os quais foi realizado, é racional que o trâmite do processo não seja prolongado, uma vez que não houve qualquer prejuízo às partes ou ao processo. O princípio da economia processual é consagrado no brocardo francês pas de nullité sans grief, ou seja, não há nulidade sem prejuízo. O mandamento está consubstanciado no art. 563 do Código de Processo Penal. Segundo o mesmo fundamento racional, tampouco serão repetidos aqueles atos cuja prática se tenha dado de maneira irregular, mas que não tenham influído na apuração dos fatos que constituam a lide ou na decisão da causa (art. 566 do Código de Processo Penal). Mais uma vez, evita-se a repetição de atos se a irregularidade na sua prática é irrelevante para o processo. Como o processo penal compreende a prática regrada e sucessiva de atos com o objetivo de chegar a uma verdade sobre o cometimento de uma infração penal para posterior responsabilização do autor, é necessário que essa marcha processual se dê de maneira eficiente, a fim de se evitar a morosidade na prestação jurisdicional, garantindo uma razoável duração do processo (nem tão rápido que de afogadilho lhe escape a garantia de direitos fundamentais do réu, nem tão demorado que deixe desguarnecida a vítima e a sociedade pela prescrição na efetivação da impunidade). Umbilicalmente atrelado aos princípios da celeridade e da duração razoável do processo, o princípio da economia processual afasta a atividade jurisdicional desnecessária, evitando despender esforços (energia e tempo) em atos de pouca valia e que nada contribuam para o deslinde do processo ou que, de outra forma, já se tenha obtido o efeito desejado. Evidencia-se, também, o princípio da economia processual nos institutos da conexão e continência, previstos nos arts. 76 e 77 do Código de Processo Penal, por exemplo, na aceitação de prova emprestada (produzida em um processo e utilizada em outro). Na Lei n. 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), o princípio da economia processual vemformulado no art. 62, que determina seja privilegiada a consecução da finalidade do ato processual em detrimento de sua forma (expressando, de modo mais abstrato, o fundamento dos arts. 563 e 566 do Código de Processo Penal). ● Princípio do devido processo legal (devido processo penal) Fundamento legal: art. 5º, LIV, da Constituição Federal (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”). Mais tecnicamente, em sede penal, chamado de devido processo penal16. “Devido processo legal” é expressão que deriva do inglês due process of law17, constituindo, basicamente, a garantia de que o conteúdo da jurisdicionalidade é a legalidade (nullus actum sine lege)18, ou seja, o rigor de obediência ao previamente estabelecido na lei. De fato, a origem histórica do princípio é inglesa (art. 39 da Magna Carta, outorgada em 1215 por João Sem Terra aos barões ingleses19), muito embora a concepção moderna do que venha a ser o devido processo legal se deva, em grande medida, à construção jurisprudencial da Suprema Corte norte-americana. ● Princípio do devido processo legal material e formal A moderna doutrina o considera cláusula de segurança do sistema jurídico, identificando dois distintos aspectos ínsitos ao princípio do devido processo legal: a) O devido processo legal em sentido material ou substancial (substantive due process of law) refere-se ao direito material de garantias fundamentais do cidadão, representando, portanto, uma garantia na medida em que protege o particular contra qualquer atividade estatal que, sendo arbitrária, desproporcional ou não razoável, constitua violação a qualquer direito fundamental. É um princípio de conceituação aberta, porque implica o fato de que seu conteúdo não é definido “a priori”. Assim, a aplicação do princípio do devido processo legal material refere-se à apreciação de cada caso, avaliando-se, diante das peculiaridades de cada situação individualmente considerada, se houve, pela atuação do Estado, afronta a direito do particular. O desrespeito ao devido processo legal pode ser oposto a atos de qualquer natureza, emanados de qualquer dos órgãos do governo e de qualquer dos Poderes do Estado, inclusive do Legislativo. Vale dizer, o Estado não pode legislar abusivamente, mas deve fazê-lo respeitando o princípio da proporcionalidade; este, por sua vez, arrima-se em várias cláusulas constitucionais, donde ressalta, dentre elas, principalmente, aquela que garante o substantive due process of law (CF, art. 5º, LIV)20. Assim, o Poder Judiciário, provendo a sociedade com um devido processo legal, poderá proferir juízos acerca da própria razoabilidade ou proporcionalidade de determinado dispositivo normativo, mitigando sua aplicação ou mesmo determinando sua inaplicabilidade a partir de seu prudente arbítrio. Trata-se, pois, de um instrumento amplo para flexibilizar a atuação do poder do Estado de acordo com parâmetros de racionalidade ou do princípio da proporcionalidade. b) Por seu turno, o devido processo legal formal, ou em sentido processual (procedural due process of law), tem como conteúdo certas garantias de natureza processual, conferidas às partes tanto no trâmite do processo quanto no que diz respeito à sua relação com o Poder Judiciário. A cláusula do devido processo legal estabelece a garantia do acusado de ser processado segundo a forma legalmente prevista, reconhecendo no processo penal, além de sua instrumentalidade, também sua natureza constitucional21. O Estado está obrigado, na busca da satisfação de sua pretensão punitiva, a obedecer ao procedimento previamente fixado pelo legislador, vedada a supressão de qualquer fase ou ato processual ou o desrespeito à ordem do processo. À guisa de exemplo, o funcionário público acusado da prática de um crime funcional afiançável deverá ser processado conforme o rito previsto nos arts. 513 e seguintes do Código de Processo Penal, sob pena de nulidade do feito. Ao lado dessa dimensão fundamentalmente procedimental – que constitui o sentido original do princípio do devido processo legal, paulatinamente alargado com o tempo –, o devido processo legal formal consubstancia-se também na disponibilização, aos cidadãos, de mecanismos eficazes de atuação perante o poder estatal. A implementação de um devido processo legal processual, portanto, implica garantir às partes uma atuação efetiva durante o desenrolar do processo (deduzindo pretensões, produzindo provas, fazendo alegações), na busca do convencimento do juiz, obrigando este à plena obediência ao princípio. Nesse sentido, já se reconheceu o cabimento de recurso extraordinário por ofensa direta à Constituição Federal, quando o órgão julgador deixou de analisar pressupostos de recorribilidade, e, portanto, fez com que seu silêncio configurasse vício (de procedimento) infrator da garantia do devido processo legal22. O devido processo legal, assim, constitui um conjunto de garantias suficientes para possibilitar às partes o exercício pleno de seus direitos, poderes e faculdades processuais. ● Princípio da não autoincriminação ou do “nemo tenetur se detegere” Trata-se da imunidade à autoacusação, sob o princípio de que ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere): trata-se de decorrência natural da conjugação dos princípios constitucionais da presunção de inocência (art. 5.º, LVII) e ampla defesa (art. 5.º, LV) com o direito humano fundamental que permite ao réu manter-se calado (art. 5.º, LXIII). Se o indivíduo é inocente, até que seja provada sua culpa, possuindo o direito de produzir amplamente prova em seu favor, bem como se pode permanecer em silêncio sem qualquer tipo de prejuízo à sua situação processual, é mais do que óbvio não estar obrigado, em hipótese alguma, a produzir prova contra si mesmo. O Estado é a parte mais forte na persecução penal, possuindo agentes e instrumentos aptos a buscar e descobrir provas contra o agente da infração penal, prescindindo, pois, de sua colaboração. Seria a admissão de falência de seu aparato e fraqueza de suas autoridades se dependesse do suspeito para colher elementos suficientes a sustentar a ação penal. Parece-nos constituir direito de o acusado permanecer calado não somente nos atos de interrogatório policial ou judicial, mas desde o momento em que é preso. Nas palavras de Maria Elizabeth Queijo, “o nemo tenetur se detegere foi acolhido, expressamente, no direito brasileiro, com a incorporação ao direito interno do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Por força de tal incorporação, em consonância com o disposto no art. 5.º, § 2.º, da Constituição Federal, como direito fundamental, o nemo tenetur se detegere possui hierarquia constitucional, portanto, não poderá ser suprimido nem mesmo por emenda constitucional. Tal entendimento não foi modificado pelo art. 5.º, § 3.º, do texto constitucional, incluído pela Emenda Constitucional 45/2004, mas por ele corroborado”. ● Princípio do duplo grau de jurisdição Princípio segundo o qual as decisões podem ser revistas por órgãos jurisdicionais de grau superior, por meio da interposição de recursos. Abrange tanto as questões de fato quanto as questões de direito, alcançando as sentenças e as decisões interlocutórias. O princípio não encontra previsão expressa na Constituição. Parte da doutrina sustenta que a Constituição Federal, quando organizou o Poder Judiciário em instâncias, consagrou esse princípio implicitamente. De qualquer forma, o princípio do duplo grau de jurisdição emerge textualmente no art. 8º, item 2, h, do Pacto de San José da Costa Rica da Convenção Americana de Direitos Humanos, tendo sido recepcionado no art. 5º, § 2º, da Constituição Federal. Malgrado seja a regra, existem exceções ao princípio do duplo grau de jurisdição, entre elas a ausência de previsão para impugnar algumas decisões, como, normalmente, ocorre nas decisõesinterlocutórias simples (p. ex., recebimento da denúncia). Ainda, ao fixar determinados casos de competência originária do Supremo Tribunal Federal, a Constituição acaba por instituir situações em que inexistirá o duplo grau de jurisdição. Com efeito, dos casos julgados originariamente por aquele tribunal, a Corte constituirá única e última instância. Também algumas das decisões proferidas por Juizados Especiais não estão, a rigor, sujeitas ao duplo grau de jurisdição. Isso porque o órgão dotado de competência recursal para os casos submetidos à jurisdição daquela corte compõe-se de magistrados que atuam na primeira instância. Assim, conquanto haja recurso para a impugnação de suas decisões, não há propriamente duplo grau de jurisdição. Não estando a hipótese entre as exceções, há que observar o percurso processual entre as instâncias, não se permitindo pular etapas. Nesse sentido, já se decidiu pela impossibilidade de supressão de instância, ainda que seja para impugnar vício que cause nulidade absoluta, prevalecendo o princípio do duplo grau de jurisdição74. Vale alertar, ainda, para a discussão acerca da possibilidade de recurso da acusação contra a sentença de absolvição pelo quesito genérico, no Tribunal do Júri. Como deseja parte da doutrina, sob o argumento da prevalência da soberania do Conselho de Sentença, não seria possível, nessa situação, o Ministério Público recorrer para reformar a decisão absolutória. Todavia, com o fito de reforçar o princípio do duplo grau de jurisdição, o STF já decidiu pela possibilidade de recurso da acusação, afastando a confusão entre soberania do Júri e poder ilimitado dos jurados75. ● Princípio da imparcialidade do juiz Significa que o magistrado, situando-se no vértice da relação processual triangulada entre ele, a acusação e a defesa, deve possuir capacidade objetiva e subjetiva para solucionar a demanda, vale dizer, julgar de forma absolutamente neutra, vinculando-se apenas às regras legais e ao resultado da análise das provas do processo. Visando garantir essa imparcialidade, a Constituição Federal estabelece ao magistrado as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios (art. 95), proibindo, ainda, juízo ou tribunais de exceção (art. 5.º, XXXVII). Em determinados casos, a lei presume a parcialidade do magistrado, impondo-lhe que se afaste da causa. Tal ocorre nas situações de impedimento e suspeição. As causas de impedimento, também consideradas como ensejadoras da incapacidade objetiva do juiz, encontram-se arroladas no art. 252 do Código de Processo Penal. Trata-se de situações específicas e determinadas, que impõem a presunção absoluta (jure et jure) de parcialidade. Já as causas de suspeição, rotuladas também como motivos de incapacidade subjetiva do juiz, estão previstas no art. 254 do Código de Processo Penal. Tanto o impedimento como a suspeição devem ser reconhecidos ex officio pelo juiz, afastando-se ele voluntariamente de oficiar no processo e encaminhando-o ao seu substituto legal. Não o fazendo, poderão ser arguidos por qualquer das partes (arts. 112 e 254 do CPP). ● Princípio do promotor natural O princípio do promotor natural, assim como o do juiz natural, encontra-se previsto no art. 5.º, LIII, da Constituição Federal, ao estabelecer que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente. Trata-se, hoje, de princípio sedimentado na doutrina e da jurisprudência, justificando-se na circunstância de que todo acusado tem o direito de saber, com definição antecipada, aquele que personificará o Estado-acusador. Em razão desse princípio, veda-se a designação seletiva de membro do Ministério Público para atuar em caso específico, quando isso implicar abstração das regras gerais de atribuições estabelecidas anteriormente à prática da infração penal. Nada impede, porém, que seja designado Promotor de Justiça para o exercício de atribuições genéricas, ou seja, aquelas que podem abranger, abstratamente, mais de uma hipótese concreta. É o caso dos Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO), criados mediante resolução ou provimento do Procurador-Geral de Justiça junto aos Ministérios Públicos de diversos Estados do Brasil, com a finalidade de elevar ou otimizar as investigações realizadas pelo Ministério Público em relação àquela ordem de delitos40. E também não ofende o princípio a designação de promotores auxiliares com vista à atuação conjunta com o promotor original nas hipóteses que envolvem a apuração processual penal de fatos de elevada complexidade. Neste último caso, aliás, é situação comum a designação de outro promotor para, juntamente com o promotor natural que oficia no processo, atuar no polo acusatório em julgamentos perante o Tribunal do Júri quando vários fatos ou diversos réus devam ser julgados ou quando a prova a ser exposta aos jurados ou a ser realizada na sessão de julgamento for extensa, intrincada, de complexa demonstração ou de difícil produção (por exemplo, a hipótese em que inúmeras testemunhas tenham sido arroladas). Na verdade, a ofensa ao princípio do promotor natural ocorre nas hipóteses que configurem um acusador de exceção, lesionando o exercício pleno e independentemente das atribuições do Ministério Público. A atuação ministerial pautada pela própria organização interna, com atribuições previamente definidas em Lei Orgânica do Ministério Público estadual, não configura ofensa àquele postulado41. Outro aspecto importante refere-se à sua abrangência. Trata-se, com efeito, de princípio relacionado ao processo criminal, não alcançando o inquérito. Por essa razão, eventuais diligências realizadas na fase das investigações policiais a partir de determinação (requisição) de promotor distinto daquele que seja quem deva atuar não implicam violação ao que dispõe o art. 5.º, LIII, da CF. E quanto à subscrição da denúncia por outros promotores, além do promotor da comarca? Considera o STF que inexiste ofensa ao art. 5.º, LIII, da CF, na medida em que, nestes casos, o que ocorre é a simples reunião de forças visando ao oferecimento da inicial42. Mas atenção: é indispensável que o promotor com atribuições previamente estabelecidas assine a peça, sob pena de se considerar nula ou até mesmo inexistente essa denúncia. Notas de fim __________________________ 1 Jerzy Wróblewski, The judicial application of law, p. 40. 2 Guillermo J.Yacobucci, El sentido de los principios penales, p. 59. 3 Guillermo J.Yacobucci, El sentido de los principios penales, p. 58. 4 Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero, A theory of legal sentences, p. 5. 5 Yacobucci, El sentido de los principios penales, p. 59. 6 A confusão conceitual e a profusão vernacular não são fenômenos isolados em território brasileiro. A propósito, vide Juan Montero Aroca, Derecho jurisdiccional III: proceso penal, 11. ed., p. 33-39. Especialmente, temos que o problema terminológico gera uma interconexão de diversas categorias processuais e constitucionais de difícil distinção. Por exemplo, somente para falarmos em termos de direitos fundamentais, Scheuner, em um artigo, tratando destes, utiliza 21 diferentes expressões com conotações teórico-es-truturais: “garantias de liberdade”, “princípios de conformação social”, “elementos de ordenação social”, “princípios constitucionais”, “barreira” (da liberdade de conformação do legislador), “objetivo”, “missão”, “diretriz obrigatória”, “princípios e determinações em seu conteúdo institucional-funcional”, “máximas”, “determinações objetivas”, “marco”, “liberdades dos direitos fundamentais”, “objetivos dos direitos fundamentais”, “participação”, “direitos sociais”, “determinação dos fins do Estado”, “concepções dos fins”, “vinculação a fins”, “mandatos legislativos” e “diretrizes” (cf. Robert Alexy, Teoría de los derechos fundamentales, 2. reimpr. p. 41). 7 Teresa Armenta Deu, Lecciones de derecho procesal penal, p. 69. 8 Millar, The formative principles ofcivil procedure, Illinois Law Review, 1923, v. 8, p. 89. 9 J. Picó I Junoy, El principio de la buena fe procesal, p. 45. 10 J. Picó I Junoy, El principio de la buena fe procesal, p. 45-46. 11 Alberto Montón Redondo, Principios fundamentales del proceso penal, in Homenaje a Don Antonio Hernández Gil, v. 3, p. 3191. 12 J. Picó I Junoy, El principio de la buena fe procesal, p. 49. 13 Juan-Luis Gomez Colomer, El proceso penal alemán: introducción y normas básicas, p. 44. 14 Claus Roxin, Derecho procesal penal, p. 77 e s. 15 Claus Roxin, Derecho procesal penal, p. 79. 16 Rogério Lauria Tucci, Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, 2. ed., p. 67. 17 A tradução usual – “devido processo legal” – não parece a mais adequada, porquanto a expressão “law”, em inglês, não poderia ser trasladada ao português apenas como “lei”, por ser algo mais amplo, a retratar todo o universo jurídico, o mundo do direito a que se aferra o princípio do devido processo legal. Isso é tão mais marcante pelo fato de que na esfera anglo-americana – onde nasce o princípio – a diferença entre “regras” e “princípios” (mandatos de dever-ser pertencentes ao gênero norma) tem relevância ímpar, uma vez que, nesses países, ao contrário do Brasil, o direito nasce principalmente da case law, não tendo como fonte primária o direito legislado. 18 Rosemiro Pereira Leal, Teoria geral do processo, p. 173. 19 Sendo o art. 39 da Magna Carta inglesa o antecedente mais antigo da garantia do devido processo legal – assim é aceito pela doutrina –, vieram-lhe textos subsequentes, que lhe foram estruturando, tal como hoje o concebemos. Vide, a propósito, Vicente Greco Filho, Tutela constitucional das liberdades, p. 32. 20 STF, TP, ADI 1.407-2, Rel. Min. Celso de Mello, j. 7.3.1996, DJU, 24.11.2000, p. 86. 21TACrimSP, AP, Rel. Ary Belfort, JTACrimSP, 69/300. 22 STF, 2ªT., HC 79.572-3, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 29.2.2000, DJU, 22.2.2002, p. 34. 23 Joaquim Canuto Mendes de Almeida, Princípios fundamentais do processo penal, p. 82. 24 “Para que o contraditório possa se perfectibilizar no Processo penal, é preciso necessariamente que sejam atendidos 3 (três) direitos das partes, são eles: 1. Direito à informação: é o direito que a parte possui de ser comunicada sobre os fatos e provas. Nesse contexto, são dignos de destaque os atos de comunicação processual (citação, intimação e notificação). 2. Direito de participação: é o direito de a parte atuar, oferecendo reação, manifestação ou contrariedade sobre os fatos e provas. 3. Direito de interferência: é o direto de a parte efetivamente interferir no pronunciamento do juiz” (Leonardo Barreto Moreira Alves, Manual de processo penal, p. 92-93). 25 Carlos Frederico Coelho Nogueira, Comentários ao Código de Processo Penal, v. 1, p. 133. 26 “Perícias e documentos, mesmo produzidos na fase do inquérito policial, constituem-se efetivamente em prova, com contraditório postergado para a ação penal, sem refazimento necessário na ação penal” (STJ, 6ªT., AgRg no AREsp 1.704.610/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 20.10.2020). 27 STJ, 6ªT., AgRg no AREsp 1.704.610/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 20.10.2020. 28 Rosemiro Pereira Leal, Teoria geral do processo, p. 104. 29 Nesse sentido: STF, 1ªT., HC 110.271/ES, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 7.5.2013. 30 Surpreendente decisão da 2ª Turma do STF que concluiu que réus foragidos podem participar a audiência de instrução e julgamento por videoconferência, com fundamento na ampla defesa e no contraditório (HC 227.671, Rel. Min. Edson Fachin, j. 7.8.2023). 31 Cf. J. Montero Aroca: “Pese sua denominação pela jurisprudência como ‘presunção’ juris tantum, ‘verdade interina de inculpabilidade’, trata-se de maneira pouco adequada de afirmar que o acusado é inocente enquanto não se demonstre o contrário. A presunção exige um fato base ou indício, do que se desprende a existência do segundo, o fato presumido, com o nexo lógico entre eles que é a presunção” (Derecho jurisdiccional III: proceso penal, p. 288). “O denominado ‘direito à presunção de inocência’”, escreve Andrés Oliva Santos, “muito duvidosamente pode se entender, a nosso juízo, como um verdadeiro direito subjetivo e, sem gênero de dúvida, não se refere a nenhuma verdadeira presunção. [...] não é uma verdadeira presunção porque esta supõe dois fatos (o indício ou base e o presumido) que na presunção de inocência não se dão” (Derecho procesal penal, p. 84); também, Philippe Merle, Les présomptions légales en droit pénal, p. 6. 32 No Brasil, terminologia adotada por Mirabete; Tourinho, a seu turno, fala em “princípio da inocência” (Manual de processo penal, 6. ed., 2004, p. 28). 33 Manuel Jaén Vallejo, Principios y garantías del proceso penal, p. 15. 34 Jean Pradel, Procédure pénale, p. 312. 35 Manuel Jaén Vallejo, Principios, p. 15. 36 “Princípio da presunção da inocência. Aplicação de medidas coercitivas à liberdade antes de decisão transitada em julgado. Possibilidade, desde que preenchido o requisito da necessidade” (STF, 2ª T., HC 80.830-1, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 5.3.2002, DJU, 28.6.2002, p. 142). Nesse sentido, o TJRJ: HC 0041975-94.2023.8.19.0000, São João de Meriti, 5ª Câm. Crim., Rel. Des. Cairo Italo França David, DORJ, 18.8.2023, p. 287). 37 “A prisão ad cautelam, fulcrada na lei, não entra em choque com o disposto no art. 5º, inc. LVII, da Carta Magna” (STJ, 5ª T., RHC 6497, Rel. Min. Felix Fischer, j. 5.8.1997, DJU, 8.9.1997, p. 42530). Assim, também STJ, 5ª T., Rel. Min. Gilson Dipp, RHC 9.888, j. 19.9.2000, DJU, 23.10.2000, p. 148; STJ, 6ª T., RHC 10.302, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 26.9.2000, DJU, 19.2.2001, p. 241. 38 Precedente do STF: 1ªT., RHC 217.679-AGR/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 3.10.2022, DJe, 6.10.2022. 39 STJ, 6ªT., HC 425.414/RS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, j. 6.3.2018, DJe, 14.3.2018. 40 2ª T., HC 135.072 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, j. 5.12.2017, DJe, 19.12.2017; 6ª T., RHC 98.436/MG, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, j. 2.8.2018, DJe, 9.8.2018. 41 TJMG, 1ª Câm. Crim., RSE 0007600-03.2022.8.13.0313, Rel. Des. Wanderley Paiva, j. 6.6.2023, DJEMG, 7.6.2023. 42 Parte da doutrina sustenta, contudo, que a verdade real também não é palpável no processo penal, devendo-se trabalhar com o conceito da verdade possível, dentro de regras processuais rígidas e o sistema de tipicidade processual (nulidades). 43 Sobre o tema, o Ministério Público de São Paulo se posicionou, por meio do Enunciado n. 5 PGJ-CGMP, que o art. 3º-A do CPP não revogou os incisos I e II do art. 156 do mesmo diploma legal, com exceção da parte que autoriza o juiz, de ofício, a determinar a produção antecipada de prova, na fase de investigação. 44 “É exatamente em relação a casos de insuficiente reconstrução fática em juízo que a exigência de imparcialidade do juiz, no sentido da ausência de comprometimento do órgão julgador a favor de uma das testes sustentadas, orienta o exercício dos poderes instrutórios de ofício, os quais devem ser considerados como uma forma de garantir a completude do aporte cognitivo das fontes de prova e, assim buscando evitar que a imperfeição de um exame probatório lacunoso condicione o conteúdo da deliberação penal” (Frederico Valdez Pereira, Fundamentos do justo processo penal convencional: as garantias processuais e o valor instrumental do devido processo, p. 393). 45 STJ, 6ªT., HC 496.662/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 13.9.2022, DJ, 27.9.2022. 46 Jacobo López Barja de Quiroga, Instituciones de derecho procesal penal, p. 249-251. 47 STF, TP, HC 83.255-5, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 5.11.2003. 48 STJ, 5ªT., HC 28.481, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 16.9.2003, DJU, 13.10.2003, p. 389.Também em: STJ, 5ª T., RHC 95.446/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 15.5.2018, DJe, 25.5.2018. 49 Sobre o tema, Welton Roberto, Paridade de armas no processo penal. 50 J. Picó I Junoy, Las garantías constitucionales del proceso, p. 132. 51 Antonio Scarance Fernandes, Processo penal constitucional,3. ed., p. 58. 52 Antonio Magalhães Gomes Filho, A motivação das decisões penais, p. 48. 53 Claus Roxin, Derecho procesal penal, p. 11. 54 Antonio Magalhães Gomes Filho, A motivação das decisões penais, p. 50. 55 Rogério Lauria Tucci, Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, p. 213. 56 Rogério Lauria Tucci, Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, p. 213. 57 O procedimento de investigação criminal, por regra, é sigiloso, buscando, com a restrição da publicidade, conferir maior resultado na apuração da prática criminosa. STJ, 5ª T., HC 306.035/MG, Rel. Min. Felix Fischer, j. 3.2.2015, DJe, 24.2.2015. E também em STF, TP, Rcl 16.436 AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 28.5.2014, DJe, 29.8.2014. 58 STF, 2ªT., Rcl 22.009 AgR/PR, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 16.2.2016, Informativo do STF n. 814. 59 O estudo detalhado dos sub-requisitos do princípio da proporcionalidade foi feito no item 10.3 do Capítulo XV.