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EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA SURDOS

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Ministério da Educação e do Desporto 
Secretaria de Educação Especial 
Instituto Nacional de Educação de Surdos 
Departamento de Desevolvimento Humano, 
Científico e Tecnológico 
SEMINÁRIO 
DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA 
EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA 
SURDOS 
21 a 23 de julho de 1997 
Rio de Janeiro 
CIP - Brasil. Catalogação-na-fonte 
Sindicato Nacional de Livros, RJ. 
S474s 
Seminário Desafios e Possibilidades na Educação Bilíngue para 
Surdos (1997 Rio de Janeiro, RJ) 
. Seminário Desafios e Possibilidades na Educação Bilíngue para 
Surdos, 21 a 23 de julho de 1997 / (organização) INES, Divisão de 
Estudos e Pesquisas - Rio de Janeiro: Ed. Líttera Maciel Ltda. 
Inclui bibliografia 
I. Surdos - Educação - Congressos: I. Instituto Nacional de 
Educação de Surdos (Brasil). Divisão de Estudos e Pesquisas. 
II. Título. 
96-2048 CDD-371.912 
CDU-373.33 
131296 161296 002373 
ANAIS DO SEMINÁRIO 
DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA 
EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA SURDOS 
Edição 
Instituto Nacional de Educação de 
Surdos - INES 
Capa/Projeto Gráfico 
Anna Maria Vodopivic 
Produção Gráfica 
Editora Líttera Maciel Ltda 
Tiragem 
1.500 exemplares 
Comissão de Publicação 
Cármen Sílvia Nora Dias Quintieri 
Mareia Regina Gomes 
Maria Inês Batista Barbosa Ramos 
Vera Regina Loureiro 
Wilma Favorito 
Rua das Laranjeiras; 232 
CEP: 22240-001 
Rio de Janeiro - RJ - Brasil 
Telefax (021) 285-7284 
285-7393 
Instituto Nacional de Educação de Surdos 
Presidente da República 
Fernando Henrique Cardoso 
Ministro de Estado da Educação e do Desporto 
Paulo Renato Souza 
Secretária de Educação Especial do MEC 
Marilene Ribeiro dos Santos 
Diretora-Geral do Instituto Nacional de 
Educação de Surdos 
Leni de Sá Duarte Barboza 
Diretora do Departamento de Desenvolvimento 
Humano, Científico e Tecnológico 
Wilma Favorito 
Agradecimentos 
a todos os profissionais do INES 
que colaboraram na organização 
deste evento e, em especial, à 
direção do Colégio Imaculada 
Conceição 
Apresentação 
Palestras 
Educação: Singularidade e Solidariedade 
Eliana L. M. Yunes 
O Dizer do Sujeito Bilíngue: aportes da Sociolinguística 
Tereza Machado Maher 
Língua e Escrita: uma questão de história 
Tânia C. Clemente de Souza 
A Educação para os Surdos entre a Pedagogia Especial e 
Políticas para as Diferenças 
Carlos Bernardo Skliar 
A Escrita nas Diferenças: 
Regina Maria de Souza 
Dinamização de Leitura dentro de uma Prática Bilíngue n 
Bibliotecas do INES 
Regina Celeste R. B. Rodrigues 
Aquisição de L1 e L2: o contexto da pessoa surda 
Ronice Múller de Quadros 
Uma Experiência Fonoaudiologica na Abordagem Bilíngue 
Cristina B.F. Lacerda 
Apresentação 
Esta publicação reúne os textos relativos às palestras apresentadas 
por ocasião do Seminário DESAFIOS E POSSIBILIDADES NA EDUCA-
ÇÃO BILÍNGUE PARA SURDOS promovido pelo INES de 21 a 23 de julho 
de 1997. 
Neste encontro, que contou com a participação de cerca de 600 pro-
fessores e técnicos de 25 estados do Brasil, as reflexões giraram em torno 
das implicações sociais, culturais, linguísticas e pedagógicas inerentes a 
uma proposta de educação bilíngue para surdos. 
Pensar a educação de surdos ultrapassa o fato de se levar em consi 
deração a coexistência de duas línguas no ambiente pedagógico. Há que 
se pensar o surdo como qualquer outro sujeito bilíngue, imerso em dife-
rentes registros culturais, inscritos nas relações de poder determinadas 
historicamenrte na sociedade. A comunidade de surdos compartilha ques-
tões semelhantes às comunidades linguísticas ditas minoritárias como os 
índios, ou imigrantes, ou povos colonizados que precisam lutar muito 
para terem afirmadas e reconhecidas sua identidade cultural e linguística 
no contexto sócio-polítieo em que vivem. 
Em decorrência dessas considerações, é natural supor que o indiví-
duo surdo apresente singularidades relevantes em seu processo de aqui-
sição do conhecimento. O papel da língua de sinais como primeira língua 
do surdo e como língua de instrução na escola, bem como a aquisição do 
português como segunda língua são algumas das particularidades a se-
rem estudadas e discutidas pelos profissionais da área da surdez. 
Questões como estas, pensadas no âmbito de um projeto político 
pedagógico para surdos, precisam interagir com as discussões atuais da 
educação geral. Assim como as pesquisas linguísticas cada vez mais 
buscam entender as características linguísticas e cognitivas dos surdos. 
a educação especial precisa aproximar-se o mais possível dos grandes 
debates que hoje se realizam na educação como um todo. 
Respeitar a diferença em todos os seus aspectos e simultaneamente 
negociar os saberes é o grande desafio da educação, e, em particular, da 
educação de surdos. 
Educação: Singularidade 
e Solidariedade 
Profª Drª Eliana Yunes (PUC-RJ) 
A sociedade humana organizou-se sobre alguns eixos que, ao longo 
da história da civilização, revelaram-se constantes, mas em permanente 
rotação: o manejo da técnica desde o domínio do fogo; a regulação das 
trocas desde a proibição do incesto; a ordenação do mundo pela nomea-
ção do verbo; o controle das massas pela tomada do poder. Entre eles, 
girando igualmente ao sabor de forças intercondicionadas, o homem -
assim, grafado no singular e significando o coletivo. O homem, então. 
eram os homens. 
A primeira notícia que temos desta noção, delineia este ser humano, 
menos como espécie e mais como gênero, sem qualquer traço de individu-
alidade que o retirasse do todo em que se perdia, anónimo. Nomes tinham 
apenas os que simbolizavam este coletivo: os reis - legisladores-profe-
tas, cuja vontade e palavra determinavam as fronteiras em que se moviam 
os demais, estes, que morrendo em seu nome, paradoxalmente, lhe permi-
tiam dar vida ao nome e perpetuar-se na memória. 
Mesmo quando doutrinas menos monolíticas passaram a criar dissa-
bores para estas estruturas, aqui e acolá, o homem, imaginando-se como 
um outro, numa história de lugares marcados, desenvolveu uma percep-
ção míope de sua condição pessoal, a não ser quando do "chamado" 
divino. 
Das histórias de seres imaginários e coisas anímicas às narrativas de 
confissões e memórias, passam-se alguns milénios c muitos conflitos, em 
que as vitórias cm campo de batalha, nem sempre significaram, para os 
nomeados, êxito na manipulação das massas. Esta gente ignara, de difícil 
compreensão e muita perplexidade, antes comprometia que servia, pela 
ignorância, os rumos que o poder estatuía como o da história. 
Desde (Santo) Agostinho até (São) Tomás de Aquino, passando em 
meio a Inquisição por uma mulher destemida, (Santa) Tereza d'Avila e, 
quando nenhum deles ainda, se invocava pelo título de santificação, emer-
giram personas individuais cujo perfil singular, séculos depois, tentamos 
aos poucos ainda delinear. 
A noção de indivíduo nos chega com o romantismo, quando o herói 
não mais místico ou legendário, mas navegador ou mascate, começa a 
fazer um nome, tirando do anonimato um Cristóvão Colombo, um Romeu, 
um Quixote, um Rousseau. Das confissões de Rousseau podemos puxar 
dois fios que, de perto, tocam o tema que nos propuseram tratar: o da 
noção de individualidade e o da relevância da educação. A revolução 
mercantil e marinheira, que sustentou economicamente o Renascimento c 
o Absolutismo, já fortalecera as corporações de ofícios e as pequenas 
escolas monacais para tornar útil a gente miúda, despreparada para ga-
rantir seu sustento c o dos reinos. 
A noção de indivíduo, todavia, se circunscreve, sociologicamente 
para distinguir o homem na multidão e, mesmo, quando ao cabo da revo-
lução burguesa, o nome próprio ganhou foro (enquanto se vendiam títu-
los), a educação se manteve como instrumento de domesticação e adap-
taçãodos indivíduos aos papéis sociais que lhes foram reservados pelo 
novo sistema. 
Educar, no entanto, etimologicamente, apontava para outros proce-
dimentos. De ex-dúcere - conduzir para fora, trazer à tona, à expressão, o 
que vive dentro do homem, pelo próprio étimo, solicitava estratégias di-
versas das que então se punham em marcha, no processo de escolarização 
que, lentamente, se expandia. Educação presumia acompanhamento, com-
panhia, diálogo, troca de olhares e de experiências, manifestação da rela-
ção homem x mundo que a percepção colhia, ensaio de especulações. 
construção de conhecimento. 
Ao contrário, um rol sistemático de conteúdos e de valores, tendo 
por base ideologias subliminares, desenhou o educando educável e o 
homem educado que a sociedade almejava conformar. Primeiro, a 
prevalência do caráter instrumental, depois o adestramento de habilida-
des; em seguida, a assimilação da tradição e do conhecimento acumula-
dos e, por fim, o treinamento técnico. E a sociedade cada vez. mais longe 
dos sonhos de cidadania responsável e qualidade de vida com direitos 
garantidos. 
É com Kant, com sua teoria do conhecimento, que a noção de subje-
tividade aflora - há qualidades que não são propriedades dos objetos, 
mas afetações dos sujeitos que as percebem: portanto, atributos que se 
delineiam na mente do sujeito cognoscente. Embora não reduzisse a rea-
lidade ao sujeito pensante, Kant deu relevância às instruções e concei-
tos, "a priori", para além da possibilidade de experiência que o homem 
pudesse desenvolver. 
Neste binómio, sujeito que conhece / objeto observado, o mundo da 
experiência dependeria, essencialmente, da estrutura da consciência hu-
mana. Para Kant a sensibilidade e o entendimento são fontes do conheci-
mento, que combinadas, nos dão a experiência do real como fenómenos, 
isto é, enquanto objetos que se relacionam a nós sujeitos. Este passo 
importante, na explicitação do papel da razão e dos sentidos na constitui-
ção dos sujeitos e de sua relação com o conhecimento do mundo, ilumina 
a noção de consciência. A tomada de consciência indicaria um paulatino 
domínio completo da realidade experienciada pelos sujeitos. 
A modernidade trouxe no seu bojo, mais que o iluminismo, o 
positivismo, o empirismo - trouxe a crise do conhecimento enquanto inca-
paz de dar conta das práticas sociais e individuais que transformaram o 
final do século passado em ruína e fragmentação de todas as certezas. A 
celebração do saber enciclopédico excluía as diferenças, e com elas, o 
"gaúche" do mundo. 
É com Freud que esta noção de sujeito vai se reformular. Para além da 
consciência humana, com controle sobre objetos e comportamentos, 
desvendava-se no fundo do poço das memórias pessoais, o lado oculto 
da mente, o inconsciente. Dele irrompiam, sob censura, desejos e recalques, 
todo o reprimido por conta, justamente, das imposições da ordem do 
simbólico, da ordem da lei, no plano social. Aflorando do inconsciente, 
outro sujeito carecia de resgate para harmonizar-se e às suas relações. 
Tem início um processo que funde, lentamente, sujeito e objeto, no pro-
cesso de conhecimento. 
Por outro lado, com Marx, a análise econômica e histórica denuncia o 
mecanismo de controle do social por interesses difusos, mas sistematica-
mente, organizados, sob a forma de ideologias que disseminam determi-
nadas visões de mundo, orientando, subliminarmente, as formas de ação 
e as práticas políticas das sociedades. 
A complexidade em torno do conceito de sujeito aumenta. Por um 
lado, ele enriquece sua autonomia, pela descoberta do peso de suas emo-
ções e sentimentos, memórias e necessidades. Construindo-se a si mes-
mo, em um movimento permanente de verbalizar-se, ele se transforma em 
narrador de sua história. Por outro lado, vê-se coagido por valores, prin-
cípios e ideias que antes lhe pareciam tão "naturais" e os descortina, 
agora, como produções discursivas, interessadas que submetem seu pró-
prio discurso. 
Vê-se, então, em situações, continuamente dramáticas, que escapam 
à sua compreensão, quer como parte, quer como totalidade; fragmenta-se 
e corre o risco de anular-se, de dissolver-se, de novo, no anonimato das 
massas. 
Na educação, um discurso libertador e democrático toma corpo, 
admitindo-se que o sujeito conhece e se conhece - se reconhece - ganha 
identidade e se transforma permanentemente, à luz de sua historicidade, 
das circunstâncias que o cercam, segundo a forma como se relaciona com 
seu tempo e espaço, de como logra intervir no entorno. Conhecer deman-
da interpretar, o que significa envolver-se com o mundo. 
A noção de que o sujeito interpreta o mundo com a bagagem de vida 
que traz, com seu repertório cultural, pouco a pouco, alavanca a ideia de 
que o conhecimento e o sentido do mundo não podem ser articulados 
tora das linguagens. O caráter social desta e sua inexorável estruturação 
da mente faz com que o próprio inconsciente, sendo linguagem, não se 
exima da permeabilidade social, através dos traços, sinais e cenas que o 
impregnam. 
Com isto, o peso das comunidades interpretativas se torna decisivo 
para que os sujeitos se construam. Dizendo de outro modo, a subjetivida-
de cede passo à inter subjetividade, condição para que se compreenda, 
como impossível, um sujeito "puro" da razão; do mesmo modo, que inevi-
tável é a existência da diferença para que se possam produzir "verdades" 
aceitáveis entre sujeitos de uma mesma comunidade, isto é, para que 
possa haver acordo (ético e estético); só entre os sujeitos estaria o con-
senso inteiramente dinâmico e reajustável, segundo o processo mesmo 
do conhecimento que nunca é definitivo. 
Se a intersubjetividade, por um lado, coloca a premência da conside-
ração do mesmo e, do outro, se ela elimina parte da concepção conflitante 
de individualidade - o homem é com os outros - a intersubjetividade corre 
o risco de gerar e acomodar qual modelo, este sujeito-entre-sujeitos, 
desmemorizando, invalidando quaisquer gestos que não correspondam, 
digamos, ao societário em seu conjunto. 
Mas, não é bem esta a saída: não é tanto pela similaridade que a 
intersubjetividade se torna possível - é também pela troca, pela diferença 
que ela se desaloja continuamente, permitindo que a estabilidade não se 
cristalize e alcance os patamares de consenso doutrinário, dogmático ou 
ideológico. Nestes meandros, todo o processo educativo deve-se trans-
formar porque ele só pode ensinar o que, ao mesmo tempo, aprende. O 
saber de ontem já não é operativo, ele se move com a história dos sujeitos 
que interagem, entre si, e com o mundo no recorte tempo - espacial em que 
se inserem. 
A diferença produtiva, digamos assim, no lugar da diferença 
conflitante, e por isso, excluível ou excludente, se consolida no que Guattari 
chamou de singularidade: a feliz articulação do entendimento comum 
com a sensibilidade particular ou da sensibilidade comum com o 
entendimento particular, oriundos das percepções e interações próprias 
de mundo, numa combinatória que se renova incansavelmente... até que o 
sujeito decida coincidir apenas consigo mesmo, estagnar e morrer. 
Buscando a troca, a ampliação dos horizontes através de visões di-
versas do mundo, a prática dos homens demanda uma tolerância de 
ordem ética e um compromisso com a.solidariedade: o outro, diferente de 
mim é igual a mim, se me permitem o paradoxo: eu sou um outro. A possi-
bilidade de o conhecimento, o saber, alargar-se e ir em busca de formula-
ção para novas hipóteses de respostas relativas a muitas velhas ques-
tões, implica na mudança de paradigma da educação: das verticalidades 
para as horizontalidades, do assertivo para o performativo, da subordina-
ção para a coordenação. 
Embora, de alguma fornia isto já esteja no discurso de um pedagogo 
do quilate de Paulo Freire no Brasil de 30 anos atrás, nossas práticas 
continuamrefratárias ao diálogo, à concomitância, à simultaneidade. Tra-
balhamos, ainda, com o jogo do desgosto - ou isto ou aquilo -quando 
isto e aquilo podem ser verdadeiros, conforme o olhar desprovido de 
antolhos e preconceitos que lancemos ao mundo. 
Ser solidário não é ser solitário; a vida é, e portanto demanda, mais de 
um - da biologia genética às epistemologias ou teorias do conhecimento. 
A interação e a reciprocidade só estranham a quem se estranha e por 
conta disto não reconhece o mesmo no outro - na medida em que sua 
própria singularidade não lhe é familiar. A mesmice lhe embaraça a visão. 
Contudo, nesta babel da sociedade urbana e de massa, neste arco de 
solidariedades e tolerâncias de que carecemos não se dispensa o gesto 
da coerência. E por ela que todo o sistema se desequilibra e reajusta, 
porque se arruma e reconstitui. A coerência exige um estar em caminho 
permanente, aberto ao diálogo, ao não visto nem entrevisto, sem sucum-
bir às falácias da homogeneidade e do consenso apático que subtrai à 
vida sua vitalidade mesma - a perseverante busca do gozo, da harmonia, 
da alegria; não de um, mas de muitos; de todos quantos se descobrem 
sujeitos de suas paixões, conduzindo-se para fora, educando-se num pro-
cesso interminável de curar-se - com todo o prazer, até que... a indesejável 
das gentes venha e encontre a mesa posta e cada coisa em seu lugar, 
como disse Bandeira. 
Educar é educar-se a si enquanto companhia de um outro. Cada dife-
rença a ser trabalhada é uma diferença e não uma desqualificação do 
sujeito. Há surdos que não ouvem e surdos que não querem ouvir. Am-
bos carecem de educação. Solidária. 
O Dizer do Sujeito Bilíngue: 
Aportes da Sociolinguística 
Profª. Dra Tereza Machado Maher 
(PUCCAMP/UNICAMP) 
"Os direitos linguísticos formam parte integral dos 
direitos humanos fundamentais. Estes direitos se re-
ferem àquelas prerrogativas que parecem atributos 
naturais e evidentes a todos os membros das maiori-
as linguísticas dominantes: o direito a usar sua pró-
pria língua em qualquer contexto cotidiano e oficial, 
particularmente na educação, como também o direi-
to de que as opções linguísticas do sujeito sejam res-
peitadas e que este não sofra discriminação alguma 
pela língua que fala." (Hamel, 1995) 
O bilinguismo tem sido visto no mundo como algo negativo, como 
um problema. Embora a esmagadora maioria dos países do mundo seja 
multilingue, existe o mito de que o multilingúismo c um estado de exceção 
que deve, a todo custo, ser erradicado (cf. Calvet, 1987). A construção de 
tal mito está documentada na História: a Torre de Babel, um dos castigos 
impostos, na tradição judaico-cristã, à humanidade colocou como certe-
za: muitas línguas - o caos. O conceito de Estado-Nação, legado da 
Revolução Francesa, estabeleceu como verdade o binômio "unidade = 
uniformidade": a formação de um Estado pressuporia e dependeria da 
existência de uma cultura, de uma língua nacional. Estes são apenas 
alguns dos acontecimentos históricos que, ao longo do tempo, e ideolo-
gicamente, vêm imprimindo na consciência individual e coletiva a noção 
de que o Homem - o Cidadão - deve ser monolíngue. E é este mesmo mito 
do monolinguismo que tem impedido a disseminação de resultados de 
pesquisas que poderiam contribuir para o estabelecimento de políticas e 
práticas educativas mais justas e democráticas para as minorias linguísti-
cas existentes no mundo. 
Muito embora minha experiência profissional e meu compromisso 
político mais imediato seja com a educação da criança indígena, é meu 
objetivo neste trabalho, por tudo que afirmei acima, levantar, ainda que 
de maneira extremamente suscinta, algumas informações teóricas advindas 
da Sociolinguística, na expectativa de que, talvez, este texto possa contri-
buir para o debate sobre a educação da criança surda. 
Bilinguismo Social e Conflito Diglóssico 
Eram anglo-saxões os primeiros pensadores a elegerem o 
multilinguismo social como objeto de investigação (Weinreich, 1953, 
Ferguson, 1959 e Fishman, 1967)'. Diglossia, ou seja, a relação entre 
línguas (ou variedades linguísticas) que ocupam um mesmo espaço só-
cio-geográfico, foi definida, nesta tradição de pesquisa, como sendo uma 
relação de dualidade funcional estável. Dentre línguas em contato have-
ria uma cujo uso estaria sempre reservado para o âmbito do público e do 
formal (língua Alta), enquanto que a outra estaria reservada para o domí-
nio privado, informal (língua Baixa). Traços distintivos como prestígio, 
tradição literária, modo de aquisição, estandardização e estabilidade dis-
tinguiriam tais variedades sendo que normas rígidas regulariam a distri-
buição funcional do uso linguístico nas comunidades de fala - cada lín-
gua sendo usada exclusivamente no seu domínio, servindo sempre a uma 
função específica. 
A partir do início da década de 70, o conceito clássico de diglossia 
começou a ser alvo de críticas, críticas estas originalmente levantadas no 
interior da chamada Sociolinguística da Periferia: a sociolinguística catalã 
e ocitana. Composta por investigadores "nativos", falantes de línguas 
minoritárias - o que, como explicam Hamel e Sierra (op.cit.), fez com que o 
fenômeno passasse a ser olhado de um outro lugar, o lugar da opressão 
sócio-econômica e cultural - a Sociolinguística da Periferia fez incidir suas 
críticas, principalmente, para a visão idílica de estabilidade. 
homogeneidade e harmonia embutida no conceito canónico de diglossia. 
Os acadêmicos anglo-saxões orientavam-se pelos preceitos do estrutura-
lismo e do funcionalismo, c, portanto, para eles, normas, regras e consen-
so eram características centrais das relações e ações sociais. Os 
sociolinguístas europeus, por outro lado, concebendo o conflito como 
parte constitutiva da dinâmica social, argumentavam que, em situações 
diglóssicas, não existe apenas uma diferenciação funcional, aparente-
mente neutra, entre as línguas, pois o que está em jogo é que a cada 
função corresponde uma valoração social diferenciada. Daí terem pro-
posto que a relação diglóssica não fosse mais pensada como uma relação 
de contato estável entre uma língua alta e uma baixa, mas, sim, como uma 
relação de conflito não-estável. assimétrica, entre uma língua dominante e 
Kremnitz (l981) e Haminel e Sierra (1983) historicizam as diferentes 
conceitualização de diglossia existentes na literatura sociolinguística. 
outra dominada. Entendido desta maneira, o fenômeno diglóssico se refe-
re, em última instância, a um jogo de ocupação linguística.2 Neste jogo a 
língua dominante tenta "abocanhar" funções próprias da língua domina-
da, "enfraquecendo-a ", "empurrando-a" para usos e funções cada vez 
mais restritos e/ou desprestigiados, a não ser que forças contrárias de 
resistência sociolinguística sejam acionadas. 
Sabemos que a política linguística no Brasil elegeu a língua portugue-
sa como "língua nacional", língua de prestígio. Historicamente, tem sido 
ela a língua da escola. A literatura nela produzida tem sido incentivada e 
cuidadosamente documentada. Exclusivamente dela sempre se utilizaram 
o discurso legal, os meios de comunicação de massa. A língua portugue-
sa impera, portanto, no âmbito do formal, do oficial, do público e, por isso, 
é ela a língua dominante no país. Desprestigiadas, às demais línguas 
brasileiras restou o papel de línguas subalternas.1 
A importância de atentarmos para a existência de conflito diglóssico 
reside no fato de que este, quando presente, afeta atitudes e tomadas de 
decisões em todas as esferas sociais, na escola inclusive já que, como é 
sabido, esta não opera num vácuo social (cf. Poche, 1989 ou Maher, 1996). 
Logo, o modelo de educação adotado nas escolas para crianças surdas 
irá refletir o posicionamento de seus agentes educativos, frente ao con-
flito diglóssico, vivenciado por seus alunos. Sem que a Língua de Sinaisofereça, agressivamente, resistência ao português, sem que ela tente pe-
netrar nos domínios da língua dominante, esta língua minoritária não terá 
chances de se firmar no embate diglóssico. Cabem, então, as perguntas: 
qual é o lugar e o peso dado à Lingua de Sinais no currículo? Que 
terrenos comunicativos/discursivos estão por ela sendo conquistados no 
cotidiano da sala de aula? A escola visa promover a estandardização da 
Língua de Sinais, incentivando, por exemplo, a criação de neologismos? 
Que esforços estão sendo feitos no sentido de se documentar a produção 
literária feita nesta língua? Estas são algumas questões com as quais 
educadores comprometidos com os direitos linguísticos da criança surda 
teriam, a meu ver, que se preocupar. 
!
 Convém não nos esquecermos de que, qualquer que seja o nosso posicionamento 
sobre o que constitui o fenômeno diglóssico, a maneira como a questão é definida é 
sempre metonímica, uma vez que as línguas como tais não podem participar de 
"jogo" algum. Seus usuários, estes sim, enquanto membros de grupos sociais é que, a 
depender do enfoque teórico, estariam em contato ou em conflito (cf. Hamel, 1988) 
' Nunca é demais lembrar que são faladas no país, hoje, por cidadãos brasileiros 
natos, cerca de 203 línguas, a saber: pelo menos 170 línguas indígenas, 30 línguas de 
imigrantes, 2 línguas de sinais (Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS - e Língua de 
Sinais dos Urubu-Kaapor), e evidentemente, a língua portuguesa. 
Bilinguismo Individual e um Universo Discursivo Diferenciado 
Se deixarmos de lado a macro-análise do bilinguismo c nos debruçar-
mos sobre o fenômeno ao nível do indivíduo, iremos, novamente, nos 
deparar com a existência de mitos. Vejamos apenas duas das definições 
de bilinguismo compiladas por Baetens Beardmore (1982), definições es-
tas muito semelhantes àquelas ditadas pelo "senso comum": 
"Bilinguismo é o controle de duas línguas 
equivalente ao controle do falante nativo 
destas línguas." Bloomfield, 1933.(grifo meu) 
"O sujeito bilíngue é aquele que funciona 
em duas línguas em todos os domínios, sem 
apresentar interferência de uma língua na 
outra " Halliday, 1984. (grifos meus) 
Qualquer indivíduo que esteja em contato efetivo com comunidades 
bilíngues, ou que seja, ele mesmo, um de seus membros, ao contrapor as 
práticas comunicativas que testemunha ou vivência com as definições 
acima irá perceber os equívocos contidos nestas últimas. Em primeiro 
lugar, há que se considerar que tais definições pressupõem a possibilida-
de de existência de "bilíngues equilibrados", ou seja, de falantes com 
idêntica competência comunicativa cm ambas as línguas de seu repertó-
rio. Ora, a noção, inicialmente utilizada pelos sociolinguistas, de bilinguismo 
equilibrado, teve que ser posta de lado à medida que observações da 
realidade comprovaram ser este conceito apenas uma idealização. O 
bilíngue, nos dizem os dados empíricos, é sempre capaz de desempenhar-
se melhor numa língua do que na outra a depender do gênero/tipo de 
discurso e do seu estado emocional no momento da comunicação. Sabe-
mos, ademais, que questões que envolvem a necessidade ou o desejo de 
reafirmação de identidade étnica ou social, frequentemente, afetam o grau 
de competência exibida pelo bilíngue. O surdo, por exemplo, querendo, ou 
precisando, marcar-se ou não se marcar, discursivamente, como "surdo" 
tenderá a exibir uma competência ora mais, ora menos, distante da compe-
tência comumente exibida por sujeitos monolíngues em língua de sinais 
ou em língua portuguesa. As competências do sujeito bilíngue não são, 
portanto, fixas, estáveis como sugerem as definições sob análise. 
Um segundo problema embutido nestas definições refere-se à nega-
ção de um comportamento discursivo no qual haveria uma suposta "con-
laminação perniciosa" entre as línguas utilizadas pelos falantes. Ora, o 
funcionamento discursivo do sujeito bilíngue prevê a utilização de mu-
dança de código (code-switching) e empréstimos linguísticos 
(borrowings) em sua gramática.4 Um bom bilíngue transita de uma língua 
para outra justamente porque, diferente do monolíngue, tem competência 
para tanto. A mudança de código e os empréstimos linguísticos são 
recursos comunicativos poderosos dos quais ele lança mão com frequên-
cia, para, pragmaticamente, atribuir sentidos vários aos seus enunciados: 
para expressar afetividade, relações de poder, mudanças de tópico, iden-
tidade social/étnica, etc... Não se trata, portanto, de um deficit, mas, sim, 
é preciso insistir, de um recurso estrategicamente utilizado. Sendo assim, 
todo o cuidado deve ser tomado para que a escola não "problematize' 
aspectos do desempenho da criança bilíngue que, na verdade, são 
constitutivos do seu discurso, são uma de suas riquezas, uma de suas 
especificidades. 
Além das considerações acima, creio que nossas ações educativas 
serão mais justas se nos convencermos de que o sujeito bilíngue funcio-
na num universo discursivo próprio, específico, que não é nem o univer-
so discursivo do falante monolíngiie em L1, nem o do falante monolíngue 
em L2. O sujeito bilíngue não é produto da somatória de competências 
equivalentes às competências dos sujeitos monolíngues e, portanto, não 
deve ser assim avaliado. Sua competência comunicativa só pode e deve 
ser totalmente avaliada com referênciaa ambas as línguas de seu repertó-
rio e em termos das funções exercidas por cada língua no interior da 
comunidade de fala. Em suma, é preciso, abandonando idealizações, ado-
tarmos uma visão sócio-funcional de bilinguismo (cf. Grosjean, 1982, 
Romaine, 1989). 
Por último, é preciso atentarmos para a alta possibilidade de ocorrên-
cia de conflitos escolares devido à existência de culturas interacionais5 
incongruentes na sala de aula bilíngue/' Uma vez que falantes de línguas 
diferentes utilizam não apenas "códigos", sistemas linguísticos diferen-
tes, mas, também, observam padrões interacionais diferenciados, padrões 
estes culturalmente determinados, é de se supor a possibilidade de que 
Ver a este respeito. Zentella, 1981. Baker. 1993, Romaine, 1995. 
5
 Empresto a expressão "cultura internacional" de Leavitt e Stairs, 1988. 
Cf. Maher, 1994. 
professores ouvintes e alunos surdos estejam, cm suas interações 
transculturais, guiando-se por regras de apropriabilidadc e etiquetas 
conversacionais antagônicas. Cabe, então, a pergunta aos especialistas 
da área: que esforços estão sendo feitos para a compreensão da cultura 
interacional do surdo? 
Espero que as reflexões contidas neste texto possam, ainda que mini-
mamente, contribuir para que as crianças surdas tenham a educação 
específica e de alta qualidade a que têm direito enquanto membros de uma 
das minorias linguísticas brasileiras, de modo que elas, exercendo ampla-
mente sua cidadania, tenham condições de, em contrapartida, também 
contribuir para a melhoria deste país. 
Referências Bibliográficas: 
BAETENS BEARDMORE.H. Bilingualism: Basic Principies. Clevedon: 
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GROSJEAN, F. Life with Two Languages - An Introduction lo 
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MAHER, T. M. Ser Professor Sendo índio: Questões de Lingua(gem) e 
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POCHE, B. "A Construção Social da Língua" (trad. Tânia Aikimin) in G. 
Vermes e J. Boulel (ores.) in Multilinguismo. Campinas, S.P.: 
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ZENTELLA, A.C. "Tá Bien, You CoiildAnswer Mc En Cualquier Idioma: 
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Duran (org.) Latino Language and Communicative Behavior. 
Norwood, N.J. Ahlex, 1981:109-131. 
Língua e Escrita: 
uma questão de história 
Profª. Drª. Tânia Conceição Clemente de Souza 
(Universidade Federal Fluminense) 
Nosso objetivo é recuperar que o desenvolvimento da escrita pelo 
homem se deu de forma diferenciada nas diferentes sociedades. Por ou-
tro lado, apontar que nas sociedades, onde não se atesta o advento da 
escrita, a materialidade da língua, traz em si, a sua especificidade de língua 
de oralidade, dado fundamental na constituição da relação homem/cultu-
ra/mundo e na constituição da identidade do povo. 
Em sua maioria, as sociedades buscam uma relação simbólica e abs-
traía entre língua e escrita, quando se criam símbolos convencionais para 
o registro da oralidade. 
Algumas outras sociedades buscam essa mesma relação, trabalhan-
do, porém, com outras formas de escrita, melhor dizendo, formas de escri-
tura, nas quais se apreende uma dimensão analógica no registro da 
oralidade. Ou seja, a escritura se constitui numa relação direta com a 
imagem do real ou do abstrato, base de construção do arquivo da história 
das sociedades de oralidade. 
A relação língua e escrita é, pois, uma relação histórica, construída 
em lugar e épocas determinadas. Quando se procura recuperar de que 
forma se deu o desenvolvimento das sociedades, descobrem-se duas 
formas de Arquivo dessa história: uma através da escrita, no caso, a que 
trabalha com símbolos convencionais e abstratos; outra através de ou-
tras formas de escritura, em que se apreende que o Arquivo de uma soci-
edade pode ser guardado em imagens, em coreografias, cantos, no artesa-
nato1, etc. 
Para falar um pouco mais explicitamente dessa relação eu vou focali-
zar aqui três fatores: a história da escrita de sociedades como a nossa e a 
história de outras formas de escritura; a proposta de ortografias despro-
vidas de historicidade e a questão da materialidade discursiva. 
Vamos começar pela questão: O que é a escrita? 
'Em Souza, 1997 (no prelo), discute-se como a imagem, entendida, no caso, como 
forma de escritura, é peça fundamental na preservação da história e da cultura das 
sociedades de oralidade, tendo, por uma questão de história, preponderância sobre 
outras formas de escrita. 
Trata-se de um objeto cultural e simbólico, elaborado historicamente 
por alguns povos, cujo fim é registrar fatos de oralidade. 
Segundo algumas vertentes teóricas como no âmbito da Linguística, 
por exemplo, a primeira expressão de escrita pelo homem teria ocorrido em 
forma de desenho. O desenho, a princípio, teria a função de relatar, de 
nomear as coisas numa fornia direta e "literal". Mais tarde, o desenho, 
gradativamente, torna-se abstrato, e passa a corresponder à expressão de 
conceitos, ideias e, com isso, é definido como um ideograma. Em outro 
momento, inventam-se símbolos que, convencionalmente, passam a ser 
associados às sílabas, dando lugar à escrita silábica, ou aos sons indivi-
dualmente, dando lugar à escrita alfabética. 
Hoje em dia, percebe-se que muitas sociedades se destacam entre si 
pelo tipo de escrita desenvolvido. Há, entretanto, sociedades em cuja 
história não se desenvolveu a escrita; são as chamadas sociedades de 
oralidade. 
Pressupor, do ponto de vista evolucionista, o desenho, a imagem, 
como uma forma primeira de escrita é um fato passível de discussão. 
Pesquisas arqueológicas têm revelado a existência de sociedades con-
temporâneas entre si que apresentavam, cada uma individualmente, tanto 
a imagem quanto o ideograma, como formas de escrita. Logo, é um equí-
voco pensar na evolução do desenho para o ideograma, já que ambos 
coexisliram numa mesma época. Ou seja, o desenho não deu origem à 
escrita, como se diz. 
Um outro dado que contribui para a não associação do desenho à 
evolução da escrita se fundamenta nas diferenças existentes entre as 
duas expressões da linguagem: a verbal e não-verbal. Diferenças que 
não só colocam as duas dimensões da linguagem em planos diametralmente 
opostos, como aniquilam qualquer perspectiva de evolução entre ambas. 
Linguagem verbal/escrita X Linguagem não-verbal/formas de escritura 
• ideograma • mitograma 
• sílaba • imagem 
• albabelo 
• não-linearidade (depende do olhar) 
• multidirecionalidade 
• não-segmentação (quando se 
destaca 
um elemento da imagem, cria-se uma 
outra imagem; um outro texto) 
• linearidade 
• direcionalidade 
• segmentação: palavra 
sílaba 
fonema 
sintagma 
O outro fator, além da história das escritas, diz respeito a proposta de 
ortografias para línguas em cuja história não se registra o advento da 
escrita. Nessas propostas, percebe-se a total falta de um caminho histó-
rico, no caso, pensado pelo próprio índio. A escrita de sua língua lhe é 
trazida pelo outro (o não-índio) que entende das regras de escrita, mas 
nem sempre tem o cuidado de apreender a dimensão social e ideológica 
desse processo. Orlandi (1990) aponta, dentre muitos aspectos, o modo 
caricatural como têm sido escritas as palavras em língua indígena. Diz a 
autora que "escrever as palavras como elas soam é trabalhar uma sua 
imagem fora de sua história, de seu modo de existência". 
Recorrer ao trabalho com um monitor (um falante nativo) nem sempre 
garante a eficácia do processo. Porque, a todo tempo, estamos impondo 
uma realidade - no caso, a escrita ortográfica - que não tem um elo 
histórico, nem com a sua forma de sociedade, nem portanto, com a sua 
identidade. Assim, ao se propor a essas sociedades um trabalho com a 
escrita ortográfica é preciso se pensar de que forma se dará essa passa-
gem do mundo da oralidade ao mundo da escrita:. 
Muitos são os aspectos que merecem ser levados em conta, a come-
çar pela própria noção de palavra. Em muitas línguas indígenas brasilei-
ras, são comuns os processos de incorporação de vocábulos, segundo 
os quais um núcleo verbal ou nominal pode incorporar, no interior de seu 
radical, vários outros radicais. Dessa incorporação, resultam não só alte-
rações morfonêmicas, como se apagam as fronteiras entre as palavras. A 
ortografia que se propõe para as línguas indígenas segue os mesmos 
princípios adotados para a ortografia das línguas ocidentais e, nestas, 
não são previstas palavras decorrentes de incorporação. 
O último fator que vou abordar se refere à discursividade. 
A escrita de uma língua não se resume apenas a uma proposta de 
ortografia para a palavra. A escrita tem que pressupor a estrutura textual, 
;Ao trabalhar com propostas de ortografias para grupos indígenas brasileiros, tenho 
observado fatos interessantes que ilustram posições diferentes do índio, ao ter que 
lidar tanto com a escrita do português, quanto com a escrita do seu idioma. Ao 
aprenderem a escrita do português, uma escrita que já vem pronta, cristalizada, não 
registro nenhum dado que possa revelar a interferência do índio no processo deconstrução dessa escrita. Ao contrário do que observo, quando o que está em jogo é 
a linguagem indígena. Quando estive entre os Tapirapé (índios Tupi), trabalhando na 
organização de cartilhas em língua Tapirapé, me chamou a atenção a insistência de 
um dos nossos monitores índios em dar à palavra ?poko 'comprido' a seguinte 
representação ?po?ko?, na qual o símbolo ['.'], que traduzia na escrita o fonema 
descrito como oclusão glotal, foi inserido aleatoriamente na extensão da palavra. 
Essa escrita particular, em nada, do ponto de vista linguístico, traduz a relação letra/ 
fonema prevista para a ortografia. Entretanto, ela traduz um gesto de apropriação do 
índio, pela escrita de uma língua que í sua e de cuja história, ele faz parte. Como lhe 
é abstraia - a-histórica - a relação letra/fonema, ele cunha a palavra com uma relação 
que é sua, particular, imprimindo à mesma a identidade indígena, histórica. 
a materialidade discursiva da língua, muitas vez.es, só dominada pelo fa-
lante nativo, já que essa quase sempre escapa ao linguista preocupado 
em aprisionar a língua indígena dentro de um sistema, e despreocupado 
com a textualidade, a dimensão discursiva da língua, lugar onde se cons-
titui uma relação mútua, tanto a identidade da língua, quanto a do seu 
falante. 
No caso das línguas indígenas, esse problema se torna mais comple-
xo, pois, em termos discursivos a estrutura dessas línguas é muito dife-
rente da nossa. E a nossa tendência é simplificar essa estrutura num 
trabalho de disciplinação dessas línguas. O resultado é que o material 
que é produzido em língua indígena acaba ilustrando textos com a mesma 
estrutura do português, mas ditos em língua indígena. Textos sem 
historicidade, sem materialidade discursiva. 
Inúmeros são os exemplos que eu poderia arrolar aqui no intuito de 
ilustrar como o material para alfabetização indígena, quase sempre elabo-
rado com critérios pertinentes e com a ajuda de monitores indígenas, 
frustra os nossos objetivos - a alfabetização - quando ganha inserção na 
realidade do grupo. (Cf.: Leite et allii, 1987 e Souza, 1993) 
Destacarei apenas, à guisa de ilustração, a impossibilidade (nossa ou 
do índio?) de utilizar uma frase como 'A Mangaba madura se espalha no 
chão' numa cartilha Tapirapé. Diante da dificuldade de nosso monitor 
traduzir uma frase - aparentemente simples para nós - para a sua língua 
materna, passei a indagar a diversas pessoas, na Aldeia, a versão da 
mesma, em Tapirapé. A reação era uma só: estranhamento, confusão e, 
por fim, a resposta 'não sei'. Até que uma índia - considerada por mim 
como linguista nata - depois de dar boas risadas, retrucou: 
"Tori (não-índio) é burro mesmo, hein. Tapirapé não diz desse jeito 
porque se a mangaba está no chão é porque ela já está madura." 
Como se pode ver, assim como as palavras são escritas independen-
tes do seu modo de existência, a língua nas cartilhas (e em outros materi-
ais) parece desprovida da materialidade que a constitui como espaço de 
representação e de identificação. É a representação da identidade própria 
da língua que se perde, que é apagada. É a representação própria do índio 
que também se apaga, e o seu estranhamento diante do que lhe é apresen-
tado como escrita (?), escritura (?) de sua língua nada mais é do que o 
reflexo dessa falta de reconhecimento do índio, na e pela língua, agora 
com uma forma escrita. Ou seja, apaga-se a língua, o discurso, o índio e, 
por consequência, a singularidade. 
Uma singularidade que se revela na estrutura textual, discursiva. E 
que estrutura discursiva, textual é essa? É a mesma que não permite que 
um texto como 'A mangaba madura se espalha no chão' (e tantos outros) 
seja intraduzível para o Tapirapé, já que não descreve a sua dimensão de 
mundo. É a mesma que não permite textos ditos com palavras do índio, 
mas que sua estrutura espelha a língua do outro: falta a incorporação, 
falta a sintaxe que, quase sempre, está distante da relação sujeito/ 
predicado3. 
Para concluir, eu diria que o problema principal num projeto de educa-
ção bilíngue, reside aí: o excesso de preocupação com aspectos formais 
e de conteúdo, e o pouco cuidado com o cultural, o social, o discurso, 
enfim, com a diferença. E a diferença é uma questão de história. 
Bibliografia 
• LEITE, Y. et alii. "O papel do aluno na alfabetização de grupos indíge-
nas: a realidade psicológica das descrições linguísticas", Boletim do 
Museu Nacional, 53,1985. 
• ORLANDI, E. Terra à Vista - Discurso do Confronto: velho e novo 
mundo, São Paulo. Cortez, 1990. 
• SOUZA, T.C.C. de. "A questão discursiva e a elaboração de cartilhas 
em línguas indígenas" in: Seki, L. (Org.) Linguística Indígenae Educação 
na América Latina", Campinas, Editora UNICAMP, 1993. 
• . "'Gestos de Leitura em Sociedades de Oralidade", 
in: Orlandi, E. (Org.) Que é leitor? São Paulo, Pontes, (no prelo) 
' Confiram-se, por exemplo, a sintaxe das línguas ergalivas ou das línguas de tópico-
comentario. 
A Educação para os Surdos 
entre a Pedagogia Especial 
e as Políticas para as Diferenças 
Prof. Dr. Carlos Skliar (UFRGS) 
Trajetórias Ideológicas e Pedagógicas 
atuais na Educação dos Surdos. 
Nos últimos tempos, houve uma significativa transformação, tanto 
no que se refere a concepções ideológicas, como na vida escolar cotidia-
na na educação dos surdos. Das múltiplas contribuições para essa mu-
dança, os aspectos mais relevantes se constituem na difusão dos mode-
los denominados bilíngues/biculturais e o aprofundamento nas concep-
ções sociais, culturais e antropológicas da surdez. Sem dúvida, o abando-
no progressivo da ideologia clínica dominante no último século e a apro-
ximação a paradigmas sócio-culturais não podem ser considerados, total-
mente suficientes, para se poder afirmar a existência de um novo olhar 
educacional. Existem muitas dificuldades na organização dos projetos-
político educacionais específicos e muitas são as limitações que, ainda 
hoje, dominam a prática pedagógica cotidiana nas escolas. Hoje em dia, 
ainda se percebe a necessidade de uma transformação radical, nas atitu-
des, nos estereótipos e nos imaginários sociais que constituem o poder e 
o saber clínico/terapêutico: uma transformação que implica numa análise 
profunda sobre as grandes metas-narrativas e os contrastes binários (por 
exemplo. Bauman 1991: Silva 1995) enraizados na educação dos surdos; 
uma trajetória que deveria implicar, também, numa revisão sobre a ques-
tão das identidades, das línguas, e das culturas dos surdos. Neste senti-
do é possível definira existência, ou melhor, a potencialidade da existên-
cia de dois movimentos educacionais, movimentos que estão surgindo, 
explícita ou implicitamente, dentro ou fora das escolas para surdos. Por 
um lado, é possível definir um movimento de tensão e de ruptura, entre a 
educação de surdos e a educação especial: por outro lado, e não sempre, 
como consequência do fato anterior, também pode-se falar de um movi-
mento de aproximação da educação dos surdos às discussões, aos dis-
cursos e às práticas educacionais próprias de outras linhas de estudo, em 
educação (Skliar, 1997 a) 
O primeiro movimento se justifica por 3 razões, aparentemente inde-
pendentes entre si: 
Coloca-se cm julgamento que a educação especial seja o contexto 
obrigatório e apropriado para um debate significativo sobre a educação 
dos surdos, pelo menos, nos termos e nas concepções habitualmente 
simplificadas que ela promove. 
> Discute-se a funcionalidade daquela linha contínua de sujeitos de-
ficientes, dentro da qual, os surdos estão forçados a existir, na educação 
especial (Skliar, 1997 b): um anacronismo que consiste em situar os sur-
dos, os deficientes mentais, os cegos, etc. em uma continuidade que, na 
verdade, é descontínua, isto é, grupos de indivíduos juntos, mas também 
separados entre eles, e separadosde outros sujeitos. Por outro lado, 
devido a esta segunda razão, fica exposta com clareza, a oposição 
conceituai, entre indivíduo deficiente auditivo - na educação especial - e 
comunidade surda - na definição dos modelos sócio-antropológicos. 
> Adverte-se que não são reconhecidos os diferentes e múltiplos 
recortes de identidade, linguagem, raça, cognição, gênero, idade, comuni-
dade, culturas, etc. dos surdos. Neste contexto, os surdos, tanto como os 
outros grupos, são definidos só a partir de seus supostos traços negati-
vos, percebidos como um desvio da normalidade. A construção das iden-
tidades não depende da maior ou da menor limitação biológica e sim de 
complexas relações linguísticas, históricas, sociais e culturais. Neste 
sentido, não haveria nada em comum, por exemplo, entre um surdo c um 
deficiente mental, que separe esse surdo ou esse deficiente mental - de 
um menino de rua, de uma indígena ou de um trabalhador rural. 
E evidente, mesmo que não seja o tema desse trabalho, que o conjun-
to de razões aqui expostas constituem, além disso, um olhar crítico, em 
direção às antigas e novas políticas de integração dos surdos, na escola 
comum, que entre outros fatos, nega aos surdos, o encontro com sua 
identidade, com sua língua, com sua comunidade e sua cultura (Skliar, 
1997 c) 
O movimento de aproximação da educação dos surdos a outras li-
nhas de estudos em educação possibilita uma discussão dentro de um 
contexto ideológico, teórico e discursivo mais apropriado e profundo. O 
fato de que os surdos também possam ser considerados pela diferença1 
não supõe igualá-los a outros grupos, para posteriormente, normalizar o 
contexto histórico e cultural da sua origem. Não se trata, então, de dizer 
que os surdos padecem dos mesmos problemas que todos os demais 
grupos minoritários, excluídos, marginalizados e dominados. Pelo contrá-
'É possível que ao falar das diferenças, elas sejam consideradas como totalidades 
fixas ou estáticas. Mas neste trabalho, utilizo o termo diferença como um produto 
social, histórico e culturalmente relacionado de forma variável com outras diferen-
ças. 
rio, compreender a surdez, como uma diferença significa, como para toda 
diferença, um reconhecimento político (McLaren. 1995). 
As consequências educacionais possíveis para a educação dos sur-
dos, a partir dos movimentos educativos, antes descritos, seriam múlti-
plas: entre essas consequências, destaco as seguintes: 
> Um maior aprofundamento nas análises dos mecanismos de poder 
e de saber da ideologia dominante na educação dos surdos - o oralismo -
desde suas origens, sua atualidade e seu futuro. 
> Uma redefinição dos problemas que governam a educação para os 
surdos, ou melhor, um olhar completamente novo para o que é realmente 
determinante e/ou variável nela. 
> Um consenso sobre as potencialidades educacionais dos surdos, 
descentralizando-se dos imperativos curriculares dos ouvintes - quer dizer, 
do oral, do escutar, do ler e do escrever e centrando-se nas especificidades 
linguísticas, cognitivas, comunitárias, culturais, de identidade e de 
participação educativa dos surdos. 
> Uma ampliação do sentido e do significado sobre o papel que cabe 
à escola de surdos na educação de surdos, a partir de uma definição mais 
extensa e crítica de um campo para a educação de surdos, que compreen-
da as diferentes relações existentes, não só dentro da escola como tam-
bém, fora dela. 
> Uma ampliação e uma multiplicação dos espaços conquistados pe-
los surdos, dentro de sua educação, em oposição às típicas concessões 
fragmentadas e descontínuas que propõem, tradicionalmente os ouvin-
tes. 
Proponho-me nas páginas seguintes, analisar, detalhadamente, so-
mente algumas destas questões. 
O oralismo como ideologia dominante 
O oralismo foi e continua sendo hoje, em boa parte do mundo, a 
ideologia dominante dentro da educação dos surdos. A concepção de 
indivíduo surdo refere-se, unicamente, a uma dimensão clínica - a surdez 
como deficiência, os surdos como doentes - dentro de uma perspectiva 
terapêutica, os surdos devem ser reeducados e/ou curados. A conjunção 
de ideias clínicas e terapêuticas levou a uma transformação progressiva e 
sistemática do contexto escolar e de suas discussões e enunciados peda-
gógicos, em mecanismos de natureza médico -hospitalar (Lane, 1993). 
É uma tradição, criticar o oralismo, considerando-o, somente, como 
um poder vertical, absoluto, onipresente; tal simplificação deriva, entre 
outras questões, de uma leitura legalista de suas estratégias negativas 
mais explicitas - por exemplo a proibição do uso da língua de sinais, o 
controle, a disciplina c o castigo corporal, etc. Sem dúvida, a questão do 
oralismo, como ideologia dominante, excede por completo à instituição 
escolar e requer uma análise mais detalhada do sentido comum e dos 
estereótipos difundidos, em vários níveis, das sociedades que legitimam 
a ideia de que os surdos têm que aprender a falar. Neste sentido o oralismo 
não deve ser compreendido somente como um poder exercido, através de 
leis e seria uma ingenuidade pensar que surgiu, simplesmente, graças a 
um decreto, em um momento preciso da história.2 
Como ideologia dominante, o oralismo gerou determinados efeitos, 
pois contou -seguindo o raciocínio de Moreira e Silva ( 1994)- com a 
cumplicidade da medicina e dos médicos, dos profissionais para-médicos, 
dos pais e familiares dos surdos, dos professores ouvintes c inclusive, de 
alguns surdos, aqueles que representavam, naquele momento, e repre-
sentam agora, os progressos inevitáveis da terapêutica (o surdo que fala) 
e da tecnologia (o surdo que escuta). E o oralismo não pode ser definido, 
somente, como um conjunto de ideias e práticas institucionais coerentes 
e homogéneas, desenvolvidas exclusivamente para que os surdos falem, 
porque convivem junto a essas ideias e essas práticas algumas concep-
ções filosóficas, religiosas e políticas já dominantes no século XIX (Skliar, 
Massone e Veimberg, 1995) 
Por último, a ideologia dominante não é hegemônica e gera interpreta-
ções diferentes. Entre essas interpretações aparecem algumas formas de 
resistência que, no caso dos surdos, se expressam de múltiplas maneiras. 
A criação de associações de surdos é so um exemplo disso, c todas elas 
surgiram, curiosamente, depois da imposição.da oralidade nas escolas. E 
resulta, ainda que paradoxalmente, que se continue considerando-as 
guetos e não como seria razoável, espaços liberados do controle da defi-
ciência. Na atualidade, as lutas pelos direitos humanos e pelo direito 
específico da aquisição da língua de sinais, constituem, somente o retrato 
formal dessa resistência. Talvez os casamentos entre surdos, as produ-
ções artísticas, culturalmente diferenciadas, o refúgio das crianças sur-
Mesmo que seja uma tradição mencionai' seu caráter decisivo, o Congresso de Milão 
de 1880 -onde os diretores das escolas para surdos, mais famosas da Europa propuse-
ram acabar com o gestualismo e dar lugar à palavra viva, a palavra falada - não foi a 
primeira, nem a última oportunidade, em que se decidiram políticas similares. Essa 
decisão já havia sido escrita anteriormente, e era aceita em grande parte do mundo. 
Apesar de algumas oposições individuais e isoladas, o Congresso constituiu, não o 
começo da ideologia oralista dominante mas sim, sua legitimação oficial (Skliar. 
1997 d). 
das nos banheiros das escolas oralistas, para comunicarem-se, sejam ex-
pressões mais genuínas desse processo. 
Redefinir ou criar um novo olhar na educação dos surdos 
Uma análise limitada da ideologia dominante pode originar, também, 
uma resumida explicação sobre os problemas cruciais que caracterizam a 
educação dos surdos. Assim, as causas e as consequências do fracasso 
parecem inverter-se. O fracasso na educação dos surdos, com seus múl-
tiplos e variadossintomas, foram e são hoje, motivo para dois tipos de 
justificativas, igualmente inapropriados; por um lado, que os surdos são 
os responsáveis diretos desse fracasso-fracasso então, da surdez, dos 
dons biológicos naturais - e por outro lado, que o fracasso obedece a um 
certo tipo de dificuldade metodológica, o que reforça a necessidade de 
purificar e sistematizar, ainda mais os métodos. Nos dois tipos de justifi-
cativas mencionadas, quis-se evitar toda denuncia sobre o fracasso da 
escola e/ou das políticas educacionais e/ou do estado (Arroyo, 1991). 
A educação dos surdos se encontra, portanto, não à frente de um 
único problema e sim, à frente de duas formas independentes de 
problematizar sua própria realidade. A primeira delas, poderia ser defini-
da, como o problema dos poderes e saberes dos ouvintes, ao redor das 
modalidades de comunicação e de linguagem adequada para os surdos. 
Ainda que, aparentemente incluam posições antagónicas, todas elas 
conservam e reproduzem um círculo de baixas expectativas pedagógicas. 
A segunda, por outro lado, poderia ser entendida como a existência de 
múltiplas variáveis que, efetivamente, intervêm na construção de uma 
educação significativa para os surdos; variáveis que estão atravessadas 
por fatores históricos, políticos regionais e culturais específicos, relati-
vos a cada uma das situações pedagógicas concretas e que portanto, não 
permitem reduzir a educação dos surdos a uma simples questão de ordem 
metodológica. 
A proposta atual para a análise das construções educacionais possí-
veis para os surdos poderia estar determinada por um conjunto das 
variáveis interdependentes (Skliar, 1996 a e b): o reconhecimento do 
fracasso educativo, nas suas raízes e em suas consequências pessoais, 
sociais, cognitivas, linguísticas, comunicativas, de cidadania, de formação 
acadêmica e de trabalho; a natureza e tipo das atitudes, os estereótipos, 
as representações c o imaginário social sobre os surdos e a surdez, pre-
sentes dentro e fora da escola; as políticas e a situação linguística concreta 
da comunidade educativa; a participação da comunidade de surdos no 
debate linguístico e pedagógico e sua participação efetiva no projeto 
escolar, as bases ideológicas e arquitetônicas para a estruturação e a 
sequência de objetivos pedagógicos: a continuidade institucional do pro-
jeto educativo; e, por último, as pressões geradas pelas políticas de 
integração social e escolar. 
As grandes narrativas e os contrastes binários na educação dos surdos 
No processo de aproximação a outras linhas de estudo em educação 
é possível que seja importante que a educação de surdos abandone e 
critique suas grandes metas-narrativas, quer dizer, o oralismo, a comuni-
cação total, e o bilinguismo - e, também, seus típicos contrastes e oposi-
ções binárias: normalidade/anormalidade, ouvinle/surdo, maioria/ouvinte)/ 
minoria (surda), oralidade/gestualidadc, etc. Tais oposições sugerem sem-
pre o privilégio do primeiro termo da oposição, termo que define o signi-
ficado da norma cultural. O termo secundário, nesta dependência hierár-
quica não existe fora do primeiro e sim dentro dele. Assim se estabelece 
um exercício de poder e uma divisão do mundo que organiza e pontualiza 
o ideal, deixando no outro mundo, tudo aquilo que e incontrolável e/ou 
ambivalente. 
A oposição ouvinte/surdo 
O fato de que os surdos não possam, nem queiram em sua maioria, ser 
ouvintes ou ser como os ouvintes não parece constituir um obstáculo 
para as ideias dominantes na educação dos surdos. Os únicos modelos 
ou os modelos fundamentais nas escolas para surdos são os ouvintes; o 
tempo de interação e de identificação, entre alunos surdos de diferentes 
idades, é suficientemente escasso, como que para evitar que existam "con-
tágios gestuais entre os alunos" - quer dizer que as crianças se conhe-
çam, entre outros surdos, e que adquiram a linguagem de sinais, através 
de uma transmissão comunitária e cultural. Quando se programa a presen-
ça de adultos surdos, em geral não como comunidade, mas sim, como 
indivíduos isolados, ela se limita a encontros reduzidos e para tarefas 
determinadas; muitas das crianças' surdas, ainda passam seu escasso 
tempo livre entre hospitais, clínicas e consultórios; por último, permane-
cem o resto do dia dentro de um ambiente familiar, que desconhece ou 
nega a potencialidade da identidade linguística e cultural dos surdos, o 
que gera um mecanismo de controle familiar sobre a criança. 
A intenção de que as crianças surdas fossem em um hipotético futuro 
adultos ouvintes, originou um doloroso jogo de ficção de identidades. 
Neste jogo, os surdos levam a pior parte, porque acabam sofrendo e 
sentindo-se forasteiros, porque são catalogados, não só como 
não-ouvinles, mas também, como autistas, psicóticos, deficientes men-
tais, afásicos e esquizofrênicos. Estes estereótipos não são inocentes 
nem ingénuos, c seguindo a concepção de Stam e Shohat (1995), revelam 
formas opressivas que, somente em um começo, podem parecer inócuas, 
são uma forma de controle social e determinam, justamente, uma devasta-
ção psíquica causada por retratos, sistematicamente negativos, destes 
grupos. 
Sem dúvida, esta c somente uma parte da análise da oposição binária 
ouvinte/surdo. A outra questão nos leva a uma tripla interrogação: o que 
é, de quem é, e onde está o mundo dos ouvintes? Ser ouvinte é, certamen-
te, uma totalidade mas não parece ser um recorte significativo para uma 
descrição do mundo, se nele cabem por exemplo, o presidente de uma 
república europeia, uma mulher tecelã do Cáucaso, um índio do Amazo-
nas, um mexicano e uma criança do Nepal. Está claro, que neste caso, o 
papel de ser ouvinte significa uma forma de dominação e um fazer com 
que os surdos sejam subalternos na educação. A configuração de ser 
ouvinte pode começar como uma referência a uma hipotética normalidade 
auditiva mas se associa, na prática e no discurso, a toda uma sequência 
de traços de outra ordem. Ser ouvinte, então, é ser falante mas é também 
ser branco, ser homem, profissional, saudável, normal, letrado, civilizado, 
etc. Ser surdo, portanto, é estigmatizar a deficiência auditiva pelo não 
falar, não ser homem, ser analfabeto, anormal, desempregado, perigoso, 
etc. 
Foi Lane (1988) quem revelou, com maior precisão, como e quanto 
são idênticas a visão paternalista do colonialismo europeu, em relação 
aos nativos africanos, e a dos profissionais ouvintes em relação aos sur-
dos. Não é casual essa descoberta nas duas visões se adverte o que 
McLaren (1995 ob. cit.) chama de multiculturalismo conservador e 
corporativo: entre outras práticas, se deslegitimam as línguas estrangei-
ras e os dialetos regionais e étnicos se é proclamadamente monolíngúe 
em consequência se destroem os cimentos da proposta de uma educação 
bilíngue e se utiliza a palavra diversidade para encobrir uma ideologia de 
assimilação que está na base dessa posição. 
A oposição maioria (ouvinte) / minoria (surda) 
É habitual, definir a comunidade de surdos, como uma minoria lin-
guística. Essa descrição está baseada no fato de que a língua de sinais é 
utilizada por um grupo restrito de pessoas as quais em uma definição 
tradicional deveriam viver uma situação de desvantagem social, de desi-
gualdade e participar de uma forma limitada na vida da sociedade majori-
tária. E curiosa a coincidência desta definição com algumas das ideias 
dominantes na educação dos surdos especificamente aquelas que insis-
tem, em que, o uso da língua de sinais constitui, sempre, um fator de 
exclusão da sociedade majoritária (Anderson. 1989). Não é esse o espaço 
para se discutir as determinações estatísticas que consideram os surdos 
e outros grupos como minorias linguísticas, ou raciais, étnicas, sociais, 
etc. No entanto, me parece útil, introduzir alguns dados significativos. 
Jones e Pullen( 1992) estimam, que na Inglaterra existam 50.000 sur-
dos que usam língua de sinais britânica - ou a BSL - quase a mesma 
quantidade de quem usa o idioma GALES como primeira língua. Deveriam 
ser compreendidas, então, como duas minorias iguais: mas as formas de 
organização políticas e educativas em torno delas, são bem diferentes: e 
essa diferença imposta entre minorias demonstra que as minorias não são 
todas minorias que existem, de fato, minorias melhores e piores que se 
qualifica e não se quantifica aquilo que é minoritário. 
Sabe-se por outro lado, que a língua de sinais americana - ASL - é a 
terceira língua de maior uso nos Estados Unidos. Porém, terá essa língua 
O mesmo status social acadêmico e linguístico que o espanhol, o chinês 
ou o francês? Será que o que é, linguisticamente, mais utilizado em um 
determinado país, também é o politicamente, mais reconhecidos? E não 
faltam exemplos, em que a oposição maioria (ouvinte) / minoria (surda) 
fica desvirtuada. Sacks (1989) entre outros descreve que na ilha Martha's 
Vineyard de Massachusetts, todos, surdos e ouvintes, usavam até pouco 
tempo atrás, a língua de sinais, mesmo quando, a proporção de surdos 
era, infinitamente, menor. 
Todos esses exemplos deveriam servir para demonstrar, que mesmo 
querendo estabelecer critérios quantitativos, para uma política educativa, 
estes se tornam necessariamente qualitativos e respondem a uma hierar-
quia e a uma assimetria de poder: mas não do poder de uma maioria, mas 
sim, de uma minoria.1 
A oposição ora l idade/ gestualidade 
Os surdos criaram, desenvolveram e transmitiram, de geração em ge-
ração, uma língua, a língua das sinais, cuja modalidade de recepção e 
produção é viso-gestual. Muitos supõem que essa criação linguística 
deriva do fato de que a deficiência auditiva impede aos surdos um acesso 
à oralidade. Assim as línguas de sinais, parecem um prémio de consolo 
para os surdos, e não, um processo e um produto construído, histórica e 
socialmente, por lais comunidades. 
'Note-se que nas escolas de surdos, existem, justamente, mais surdos que ouvintes. E 
o fato de que as decisões linguísticas e pedagógicas respondam somente ao poder e ao 
saber dos ouvintes, não se reduz simplesmente a uma questão de oposição maioria/ 
minoria: é o uso da língua de sinais o que sublinha um conjunto de relações de poder 
assimétricas e põe, em evidência, aquilo que a minoria/maioria ouvinte das escolas 
quer exilar, quer dizer. a surdez. 
Os trabalhos da linguística pós-estruturalista avaliaram o estatuto 
linguístico da língua de sinais, como língua natural e como sistemas dife-
renciados das línguas orais: o uso do espaço, com valor sintático e topo-
gráfico, e a simultaneidade dos aspectos gramaticais são algumas das 
restrições impostas pelo tipo de modalidade viso-espacial e determinam 
sua diferença estrutural em relação às línguas auditivo-orais. 
A linguagem, então, deveria ser definida independentemente, da mo-
dalidade em que se expressa ou pelo meio através do qual, é percebida: 
possui uma estrutura subjacente, independente da modalidade de expres-
são, seja esta auditivo-oral ou viso-geslual. Desse modo, a língua oral e a 
língua de sinais não constituem uma oposição, e sim, a presença de dois 
canais diferentes c, igualmente eficientes, para a transmissão e a recepção 
da capacidade da linguagem. 
Mesmo quando numerosas investigações demonstram que as lín-
guas de sinais cumprem com todas as funções descritas para as línguas 
naturais - como por exemplo, as conversações cotidianas, a ironia, a poe-
sia, etc. avança-se na sua desvalorização, julgando-a como uma mescla 
de pantomima e de sinais icônicos universais ou considerando-a, um 
pidgin primitivo. 
Sem dúvida, não se deve pensar que a oposição mencionada, é so-
mente, uma questão de mitos c crenças que pertencem, somente, ao cam-
po da linguística, pois ao mesmo tempo, vive, dolorosa e problematica-
mente, dentro das escolas, trata-se, por um lado, de que essa modalidade 
de comunicação - a viso/gestual - e essa língua dos surdos - a língua dos 
sinais não é a língua dos professores ouvintes. E, trata-se também, do 
contrário: essa modalidade de comunicação - a auditiva/oral - c essa lín-
gua dos professores - a língua oral não é a língua dos alunos surdos. O 
fato de que. alunos e professores não compartilham, nem as modalidades 
nem as línguas é uma das ambiguidades mais notórias na educação dos 
surdos. E a ambiguidade gera na maioria das vezes, um inquestionável 
poder linguístico dos professores ouvintes c um processo de 
des-linguagem e de des-educação, nos alunos surdos. 
As políticas de educação bilíngue e bicultural para surdos - ou deve-
riam ser chamadas políticas de educação multilingue e multicultural? -
teriam que arrojar uma luz sobre esses fatos e, não simplesmente definir o 
uso das duas línguas dentro da educação dos surdos. Essa aceitação das 
línguas não supõe necessariamente uma reconversão do problema. É que 
ainda existindo as duas línguas, cada uma poderia continuar 
correspondendo a dois grupos de pessoas diferentes e a duas ou mais 
imagens do mundo. Assim, o sistema educacional, para os surdos perma-
necerá comunicativa e linguisticamente, sempre em paralelo. 
Um consenso sobre as potencialidades educacionais dos surdos. 
Os surdos constituem um problema atípico para a educação. Além de 
enfrentar a escola, com a existência das diferenças, de outras formas e 
processos de identidade de linguagem e de cognição, sugere a necessi-
dade de profundas c radicais mudanças na ideologia e na arquítetura 
educativa. E um fato, que por trás das grandes narrativas na educação 
dos surdos existe um debate implícito sobre a negação ou a afirmação das 
potencialidades educativas desses sujeitos. Tais potencialidades, real ou 
virtualmente ignoradas, pelas escolas e pelas políticas públicas poderiam 
ser definidas, da seguinte maneira: 
• A potencialidade de aquisição de uma língua, a língua de sinais, em 
outra modalidade de recepção e produção diferente da modalidade 
oral dominante. Colocar a língua de sinais, ao alcance de todas as 
crianças surdas, deveria ser o princípio linguístico a partir do qual se faz 
possível um projeto polílico-educacional mais vasto. Mas, esse pro-
cesso não deve ser considerado, somente, como um problema escolar/ 
institucional nem como uma decisão que afeta nada mais que um certo 
plano da estrutura pedagógica, nem muito menos, como uma questão a 
se resolver através de recursos metodológicos. A língua de sinais é um 
direito dos surdos e não uma concessão de algumas escolas, ou de 
alguns diretores de escola ou de alguns professores. 
• A potencialidade de identificação da criança surda com seus pares c 
com os adultos surdos. As crianças surdas têm direito além disso a 
desenvolverem-se em uma comunidade de pares e de construir sua 
identidade no marco de um processo sócio-histórico não descontínuo, 
nem fragmentado. As inter-relaçõcs com outros grupos sociais e cultu-
rais dependem em grande parte da atualização e do exercício dessa 
potencialidade. A partir dessa perspectiva a educação dos surdos, de-
vem-se propor modalidades diferentes nos processos de ensino e de 
aprendizagem e tender à construção de grupos sociais em áreas de 
aprendizagem (Sanchez 1992), descentralizando-se assim, das rígidas 
idades escolares, do controle curricular do professor ouvinte e 
centrando-se na interação entre crianças jovens e adultos surdos de 
diferentes idades, raças, gênero, etc. 
• A potencialidade do desenvolvimento de outras estruturas, formas e 
funções cognitivas, reguladas por um mecanismo de processamento 
visual das informações. A modalidade viso-gestual, não só tem a ver 
com a potencialidade linguística dos surdos mas sim envolve o 
processamento de todos os mecanismos cognitivos. Essa é uma 
potencialidade que afeta, sobretudo,a questão didática, as informa-
ções e o conhecimento e gera uma contradição entre a modalidade 
cognitiva dos professores e a modalidade cognitiva dos alunos. 
• A potencialidade de inclusão em uma vida comunitária e em um 
processo de compreensão e produção de fatos culturais diferencia-
dos. Não parece possível compreender o conceito de cultura surda, se 
não for através de uma leitura de multiculturalismo, quer dizer, a partir 
de uma compreensão de cada cultura na sua própria lógica, na sua 
própria historicidade. Por ele, a cultura surda não c uma imagem velada 
de uma hipotética cultura ouvinte. Não é o seu contrário. Não é uma 
cultura patológica. Para muitos ouvintes que trabalham com surdo, a 
existência de uma cultura surda constitui tanto um problema de crenças 
pessoais, como de oportunidades de experiências. De crenças porque, 
justamente, não existe nada fora do seu normal, sua própria e 
auto-referencial cultura; nesse plano, a cultura surda seria somente um 
desvio, uma anomalia. E é um problema de experiência porque ao traba-
lhar com crianças surdas - em uma perspectiva clínica, se desconhece 
os processos e os produtos que geram, por exemplo, a nível de teatro, 
poesia, artes visuais, ciência didática, etc, determinados segmentos da 
comunidade adulta dos surdos. 
• A potencialidade de participação no debate linguístico, escolar, de 
cidadania, etc, através de um processo singular de reconstrução his-
tórica de uma nova visão sobre a própria educação. São muitos os 
depoimentos de surdos que, ao fazer referência ao seu passado 
educativo, invocam a imagem de ser estrangeiros, forasteiros, exilados. 
Não estão fazendo referência ao fato literal de terem vindo de outras 
cidades, longe de suas casas em busca de um serviço educativo. Men-
cionam o ser c o sentir-se estrangeiros, o ser e o sentir-sc forasteiros, o 
ser e o sentir-se exilados mesmo dentro das próprias escolas para sur-
dos, dentro das escolas com ouvintes c cm seus próprios lares. Esses 
depoimentos poderiam valer como uma oposição à frágil memória 
institucional das escolas de surdos - cujas lembranças chegam, geral-
mente, só até a adolescência dos alunos - e constituir-se cm uma 
contra-memória e uma crítica da ideologia dominante, tal como sugere 
King (1995) nos chamados Estudos Negros. 
A educação bilíngue para surdos como meta-narrativa 
metodológica, linguística, psicolingúística e/ou pedagógica. 
A proposta genérica de bilinguismo para surdos poderia correr o 
risco de constituir-se também como outra grande meta-narrativa na edu-
cação dos surdos. Estabeleceu-se uma convenção em torno dela, tanto 
no que diz respeito a terminologia, como em relação a algumas das práti-
cas institucionais, denominadas bilíngues. Como toda convenção a edu-
cação bilíngue apresenta duas características relevantes: possui, ao mes-
mo tempo, um alto grau de ambiguidade e um caráter relativo de verdade. 
Ambiguidade, porque sua própria definição é objeto de várias interpreta-
ções, inclusive diferentes entre si e a reflexão, mesmo dentro do mesmo 
campo terminológico se revela antagônica. E apresenta um caráter de 
verdade, porque inclusive em sua mínima expressão - duas línguas na 
educação dos surdos - já supõe e constitui uma supuração em relação a 
ideologia dominante c um avanço objetivo na concepção educativa para 
os surdos. 
Definindo a educação bilíngue para surdos, como uma grande narra-
tiva é possível delimitar quatro vertentes diferentes não sempre integra-
das ou relacionadas em suas interfaces respectivas, c habitualmente defi-
nidas, de uma forma estática: existem, neste sentido, narrativas bilíngues 
que dão ênfase ao metodológico e/ou linguístico e/ou ao psicolingúístico 
e/ou em menor medida, à narrativa pedagógica. Cada uma delas, separa-
damente, poderia referir-se a um tipo diferente de educação bilíngue para 
surdos. 
No primeiro caso, a educação bilíngue está sendo narrada e atuada 
como um sistema escolar que, simplesmente, vem substituir o seu 
antecessor - a comunicação total - e opor-se ao oralismo. As ideias peda-
gógicas do século XX em relação aos surdos, atravessaram várias fases 
diferenciadas que não podem ser compreendidas, somente, em termos de 
uma lineariedade em que as ideias antigas são naturalmente substituídas 
pelas novidades4. 
O surgimento5da comunicação total, nos fins da década de 60 e co-
meço da década de 70 - cujos mentores recalcam, inclusive hoje, de que se 
trata de uma filosofia c não de um método" - estabeleceu uma nova ordem 
nas escolas, deteriorando as férreas barreiras do logocentrismo na educa-
ção dos surdos e privilegiando a comunicação, qualquer forma de comu-
nicação, acima de qualquer outro objetivo. 
4
 Lembra-se que já nos fins do séc. XVIII existiam na Fiança propostas bilíngues para 
a educação de surdos baseadas no acesso dos surdos à língua de sinais e à língua escrita 
(veja sobre isso Lane, 1984). 
s
 Refiro-me ao surgimento da comunicação total, como narrativa atual, na educação 
de surdos. Experiências similares já haviam sido desenvolvidas no Instituto Nacional 
de Paris, pelo abade L'Epée, nos finais do séc. XVIII, que criou signos melódicos, na 
língua de sinais francesa, para ensinar a estrutura gramatical da francês escrito. 
''A oposição filosofia-método, e que sustenta a comunicação total é discutível e 
precisaria de um amplo espaço de debate, inapropriado para este trabalho. Nas margens 
das intenções da comunicação total por distanciar-se dos métodos, é sua própria 
prática, ou sua prática parcial, ou sua prática mal entendida, o que indicaria o contrá-
rio. Toda vez que numa transmissão de informação, ou em uma simples conversação. 
predomine e seja sistemático o objetivo de fazer visualizar a estrutura do idioma 
falado - mas não a informação nem a conversação em si mesma - e não se use e se 
modifique a língua dos surdos, estamos frente a um sistema de recursos organizados, 
física e temporalmente. Essas características respondem por completo à descrição de 
um método e não de uma filosofia. Por outro lado, o uso do termo filosofia na 
educação dos surdos deveria responder Questões de outra transcendência, como por 
exemplo, a imagem do Homem Cultural e não exclusivamente a do Homem Comuni-
cativo presente no projeto escolar. 
O que podia ter sido e deveria ser uma estimulante transição: termi-
nou sendo um fim em si mesmo7 o que deveria ser uma transição para a 
autonomia linguística dos surdos terminou sendo uma eleição consciente 
e exclusiva dos ouvintes e, de certa forma, uma eleição contra as neces-
sidades sócio-linguísticas e psicolinguísticas dos surdos. Em síntese, 
uma nova estrutura comunicativa para os ouvintes, mas não um instru-
mento cultural significativo para os surdos. 
Como narrativas linguísticas e psicolinguísticas, a educação bilíngue 
introduziu a questão da aquisição da língua de sinais na educação dos 
surdos e os vínculos lexicais semânticos e sintéticos dessa língua com as 
outras modalidades linguísticas. Os primeiros modelos revelaram uma 
hierarquia nos objetivos e nos níveis linguísticos, oferecendo, aos sur-
dos -pelo menos teoricamente - um acesso completo à língua de sinais e à 
língua escrita e um acesso parcial à língua oral (por exemplo Bouvet 1 982) 
ou um acesso completo à língua de sinais c a língua oral (por exemplo 
Volten-a 1987). 
A partir dessas definições baseadas nas experiências de educação 
bilíngue seguiram orientações de magnitude, continuidade e ideologias 
diversas. Essa variedade educativa, que não conspira contra si mesma, 
nem constitui um perigo em si mesma (Skliar 1997) obriga e merece uma 
generosa reflexão sobre a política educativa para surdos e sobre os meca-
nismos de gestão, avaliação e continuidade das escolas bilíngues. 
Os motivos dessa diversidade e diferenças nos projetos de educação 
conduzem à questão da narrativa

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