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APONTAMENTOS PARA UMA RELEITURA DA TEORIA DA INTERPRETAÇÃO DE KELSEN Cláudio de Oliveira Santos Colnago1 RESUMO: o presente estudo aborda a teoria da interpretação de Hans Kelsen, buscando fazer uma leitura fiel das concepções deste teórico do Direito, dentre elas a indeterminação da norma jurídica, o binômio “interpretação autêntica” e “interpretação não-autêntica” e a formulação da moldura como significados possíveis da norma. A partir da exposição sobre Kelsen, busca uma releitura da referida teoria da interpretação, a partir do enfoque lingüístico do fenômeno jurídico, buscando entender a “moldura” como limitação dos significados possíveis dos enunciados que integram os textos de direito positivo. PALAVRAS-CHAVE: Hans Kelsen, interpretação, linguagem. 1 INTRODUÇÃO A temática da interpretação é, sem sombra de dúvidas, um dos assuntos mais instigantes sobre os quais costuma-se debruçar o cientista do direito. As contribuições para a evolução da interpretação foram muitas, sem dúvida. Nosso intento, porém, não é fazer um apanhado geral dos estudiosos da hermenêutica jurídica, mas focalizar os aspectos da interpretação em um dos grandes estudiosos do Direito do século XX – Hans Kelsen. Mas os limites de nossa abordagem vão além: com base na análise preliminar da hermenêutica kelseniana, buscamos empreender uma releitura, conjugada com modernos entendimentos que vislumbram o Direito como fenômeno lingüístico, 1 O autor é Advogado e Mestre em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais pela Faculdades de Vitória – FDV. demonstrando, assim, a possibilidade de sua aplicação no entendimento do Direito vigente. 2 ESCLARECIMENTOS NECESSÁRIOS SOBRE KELSEN Antes que passemos às considerações de fundo do presente trabalho, urge deixar consignados alguns breves esclarecimentos sobre a metodologia kelseniana, a qual influencia brutalmente a concepção da interpretação para este teórico. Ao realizar um corte metodológico2 e restringir suas considerações às normas jurídicas, Kelsen tinha como único intento conferir cientificidade ao conhecimento sobre o Direito, imerso que estava, àquela época, em outros ramos do saber. Podemos afirmar que Kelsen pretendia retirar a ciência jurídica da sua condição de parasita3 de outras ciências sociais, dependente que estava de análises sociológicas e políticas, sempre vinculadas a uma dada ideologia, o que lhes conferia uma parcialidade inadmissível para os padrões científicos da época. Sobre o assunto, eis a explicação de Kelsen4, presente nas primeiras páginas da Teoria Pura do Direito, ignorada por muitos: De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito. Quanto a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto. 2 Segundo Tárek Moysés Moussallem, “Corte metodológico é o ato linguístico delineador da linguagem do objeto de estudo”. (MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. São Paulo: Max limonad, 2001, p. 34, grifos no original) 3 Parasito, segundo Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira: “Diz-se de um organismo que, pelo menos numa fase de seu desenvolvimento, vive na superfície ou no interior de outro organismo, o hospedeiro, obtendo dele parte, ou a totalidade de seus nutrientes”. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 2. Ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, p. 1268, vocábulo parasito). 4 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 1-2. Há mesmo quem considere o maior feito de Kelsen a importância que deu, em sua obra, à metodologia de uma ciência jurídica. Esta é a opinião, por exemplo, de Eduardo García Maynez5, O maior mérito de Kelsen foi introduzir, com energia e acuidade por nada igualadas, a questão metodológica. Nenhum jurista sustentou com tamanho rigor a necessidade de desvendar, dentro da órbita do conhecimento jurídico, os campos e os setores de estudo de cada disciplina. (tradução nossa) Assim, pedimos ao leitor que, ao analisar a teoria da interpretação de Kelsen, não procure alguém que imaginava ser o Direito exclusivamente norma, mas sim que tenha renunciado a buscas científicas acerca de outros elementos que não a norma jurídica. Acerca desta perspectiva, Tércio Sampaio Ferraz Jr.6 Pondera que A redução do objeto jurídico à norma causou inúmeras polêmicas. Kelsen foi continuamente acusado de reducionista, de esquecer as dimensões sociais e valorativas, de fazer do fenômeno jurídico uma mera forma normativa, despida de seus caracteres humanos. Sua intenção, no entanto, não foi jamais a de negar os aspectos multifaciais de um fenômeno complexo como é o direito, mas de escolher, dentre eles, um que coubesse autonomamente ao jurista. Sua idéia era a de que uma ciência que se ocupasse de tudo corria o risco de se perder em debates estéreis e, pior, de não se impor conforme os critérios de rigor inerentes a qualquer pensamento que se pretendesse científico. 3 A INTERPRETAÇÃO EM KELSEN As principais considerações7 de Kelsen a respeito da interpretação são encontradas na segunda edição de sua mais famosa obra, Teoria Pura do Direito. 5 Para conferir credibilidade, segue o original: “El más grande mérito de Kelsen es haberse planteado, con energia y agudeza por nadie igualadas, la cuestión metodológica. Ningún jurista ha sostenido con mayor rigor la necesidad de deslindar, dentro de la órbita del conocimiento jurídico, los campos y sectores de estudio de cada disciplina”. (MAYNEZ, Eduardo García. Importancia de la teoría jurídica pura. 2. ed. Ciudad de México: Distribuciones fontamara, 1999, p. 41) 6 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Por que ler Kelsen, hoje. Apud COELHO, Fábio Ulhôa. Para entender Kelsen. 3. ed. 3. Tiragem. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 15-16. 7 Como nos informa Mario G. Losano, além do capítulo da “Teoria Pura do Direito” voltado à interpretação, somente em um artigo (Zur theorie der Interpretation, publicado na Revue Internationale de la Théorie du Droit, 1934, p. 9-17) são encontradas considerações de Kelsen sobre o tema que, ainda assim, em nada discrepam daquelas constantes em sua obra mais conhecida. (LOSANO, Mario G. Teoría pura del derecho: evolución y puntos cruciales. Trad. de Jorge Guerrero R. Santa Fé de Bogotá – Colômbia: Editora Temis, 1992, p. 113). O citado capítulo se inicia com a distinção entre as chamadas interpretações autêntica e não-autêntica, passando pela indeterminação presente no ato de aplicação do Direito, os métodos de interpretação e retomando a distinção do ato de interpretação enquanto “ato de conhecimento” e “ato de vontade” (cisão já presente na distinção entre interpretação não-autêntica e autêntica). Procuremos, então, analisar estes tópicos. 3.1 INTERPRETAÇÃO NÃO-AUTÊNTICA E INTERPRETAÇÃO AUTÊNTICA No capítulo sobre a interpretação, Kelsen começa a tecer considerações sobre a atividade de aplicação do Direito. Esta, para ele, é indissociável da atividade hermenêutica, já quesomente é possível criar uma norma inferior quando se sabe o sentido possível da norma superior: A relação entre a norma que regula a produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infra- ordenação. A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior.8 Entre os atos de aplicar e interpretar, esta identificação inicial é notória e se mostra presente em sua própria definição da interpretação, visto que “...a interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior”9 . A esta interpretação enquanto aplicação do direito pelos agentes autorizados pela ordem jurídica, Kelsen chama de interpretação autêntica, já que o ato de interpretação, neste caso, gera direito novo, ainda que mais específico (concreto) que o anterior. Cria-se uma nova norma jurídica (inferior) pela aplicação de uma pré-existente (superior). 8 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 247. 9 Ibidem, p. 387. Como veremos adiante, a concepção da interpretação como aplicação da norma abstrata, gerando uma norma concreta, está umbilicalmente ligada à noção kelseniana de Ordenamento Jurídico enquanto um sistema escalonado de normas superiores e inferiores. A interpretação, para Kelsen, porém, não está restrita aos agentes normativos, ou seja, àqueles que detém competência para criar normas. Também aqueles que devem observá-las precisam interpretar os enunciados da lei (até para poderem se conduzir conforme aos anseios do legislador), utilizando-a como uma motivação para uma conduta. A esta última, Kelsen designa interpretação não-autêntica e nela engloba toda interpretação feita por quem não seja um agente competente para a criação de normas. Sob este rótulo, ficam abarcadas, então, as interpretações levadas a cabo pelos leigos e pela ciência do Direito. Para Kelsen, deve-se somente limitar a buscar os significados possíveis da norma, sem indicar qual deles é o correto, até pela impossibilidade de tal empresa: A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação ‘correta’. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximativamente.10 A interpretação autêntica é, basicamente, volitiva, de forma que a sua atividade representará sempre uma aplicação de significados possíveis da norma jurídica, previamente enunciados numa atividade de cognição representada pela interpretação não-autêntica (formulação da moldura), a respeito da qual Fabio Ulhôa Coelho11 afirma que A diferença entre a interpretação não autêntica produzida pela ciência jurídica e a autêntica está ligada à natureza do ato. A primeira se realiza através do conhecimento, é ato cognoscitivo, enquanto que a segunda traduz o exercício de competência jurídica. Há, por assim dizer, um momento cognoscitivo na interpretação autêntica, mas ela é essencialmente ato de manifestação de vontade. 10 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 396. 11 COELHO, Fábio Ulhôa. Para entender Kelsen. 3. ed. 3. Tiragem. São Paulo: Max Limonad, 2001, p.62. 3.2 A INDETERMINAÇÃO DA NORMA JURÍDICA E A MOLDURA Kelsen primava pela coerência de suas ponderações teóricas, de forma que a sua formulação sobre a interpretação reflete, necessariamente, sua concepção de direito enquanto um sistema normativo hierarquizado. Losano12, comentando a distinção das interpretações em Kelsen, destaca: As duas interpretações se distinguem, conclui Kelsen, porque a interpretação do órgão que aplica o direito é criativa, enquanto que a da ciência jurídica não o é. Kelsen parece assim ter construído uma teoria da interpretação em harmonia com as próprias concepções, seja sobre a estrutura hierárquica do Direito, seja sobre a função puramente cognoscitiva da ciência jurídica. (tradução nossa) O mestre de Viena concebia o sistema jurídico como um conjunto de normas escalonadas, no qual as normas superiores regulam a forma de criação e o conteúdo possível da norma inferior13. Esta regulamentação de sua própria criação, feita de forma bipartida em procedimento necessário e conteúdo possível, gera contrastes notórios. Assim, enquanto o procedimento para a criação da norma inferior está solidamente estabelecido14, o conteúdo possível da mesma norma gera muito mais incertezas. O Direito jamais teria como regular toda e qualquer conduta possível do agente 12 Para conferir credibilidade, segue o original: “Las dos interpretaciones se distinguen, concluye Kelsen, porque la interpretación del órgano que aplica el derecho es creativa, mientras que la de la ciencia jurídica no lo es. Kelsen parece así haber construido una teoría de la interpretación en armonía con las propias concepciones ya sea sobre la estructura jerárquica del derecho, ya sea sobre la función puramente cognoscitiva de la ciencia jurídica”. (LOSANO, Mario G. Teoría pura del derecho: evolución y puntos cruciales. Trad. de Jorge Guerrero R. Santa Fé de Bogotá – Colômbia: Editora Temis, 1992, p. 116-117) 13 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 246. 14 Seja no que diz respeito ao procedimento obrigatório, seja no que atine ao procedimento não-proibido, há certeza a respeito do procedimento necessário para a criação de uma norma jurídica (o que não exclui, porém, a necessidade de interpretar estas espécies de normas). Caso um conjunto de deputados queira criar uma lei, o procedimento necessário (obrigatório) está fixado nas normas superiores. Por outro lado, caso dois particulares queiram formular o contrato, embora não exista um procedimento necessário (obrigatório) qualquer procedimento que não viole as normas que lhes regulam será lícito, devido à existência de uma norma geral de autorização (“aos particulares, tudo o que não está proibido está permitido”). Podemos falar, conforme os pressupostos explicados no tópico 4, que o procedimento de criação da norma é sintaticamente certo, embora semanticamente incerto, ao passo que seu conteúdo será sintático e semanticamente incerto. criador da norma inferior, justamente porque sua adaptação às mutações sociais é lenta. Por tais motivos, segundo Kelsen15, o sistema deve sempre deixar uma margem, menor ou maior, conforme o direito positivo, “... de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato”. É dizer que a norma superior deve orientar seu sujeito sobre os conteúdos possíveis da norma inferior. Assim, a regulação, por exemplo, da sentença pela lei o será sempre de forma mais ou menos indeterminada. Kelsen distingue esta indeterminação em dois momentos: a indeterminação intencional, em que se estipulam expressamente as opções do aplicador; e a indeterminação não-intencional, em que o agente deve preencher o conteúdo de uma norma cuja indeterminação decorre da vaguezade seu significado. Dentro do primeiro grupo, ficariam as normas que, ao regularem a criação de outras normas, colocassem expressamente opções possíveis ao aplicador, devendo o mesmo escolher entre elas segundo critérios estabelecidos no direito positivo. Tal indeterminação seria consciente, pois o Legislador sabe que não pode prever todo e qualquer acontecimento. Hans Kelsen16 explica esta espécie de indeterminação com o seguinte exemplo: A lei penal prevê, para a hipótese de um determinado delito, uma pena pecuniária (multa) ou uma pena de prisão, e deixa ao juiz a faculdade de, no caso concreto, se decidir por uma ou pela outra e determinar a medida das mesmas – podendo, para esta determinação, ser fixado na própria lei um limite máximo e um limite mínimo. Já, no segundo grupo, a indeterminação se dá não em função da vontade da autoridade que pôs a norma superior, mas, em virtude de os signos utilizados pela 15 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 388. 16 Ibidem., p. 389. mesma no enunciado normativo serem plurissignificativos, admitindo várias interpretações possíveis. Assim, explica Kelsen17: Aqui temos em primeira linha a pluralidade de significações de uma palavra ou de uma seqüência de palavras em que a norma se exprime: o sentido verbal da norma não é unívoco, o órgão que tem de aplicar a norma encontra-se perante várias significações possíveis. No mesmo contexto, vislumbra-se como exemplo de indeterminação intencional a situação na qual se deve aplicar uma norma que determina que as propriedades cuja utilização não atenderem ao interesse social devam ser desapropriadas. Entram nesse grupo de indeterminação também os casos de antinomia (que pode ser a única causa da indeterminação [i.e. a dúvida de qual norma aplicar], ou estar combinada com a própria vagueza da norma). Com efeito, as normas jurídicas trabalham com base em palavras que, como todo signo, possuem um maior ou menor grau de vagueza e de ambigüidade. Este fenômeno decorre do fato de a linguagem, como toda criação humana, ser imperfeita. Assim, desde vocábulos teoricamente mais simples, como “mesa”18, a palavras mais “densas”, como “interesse público”, há uma certa carga de indeterminação. Esta carga de indeterminação, segundo Eros Roberto Grau19, gera uma enorme incompreensão potencial das normas jurídicas, levando à confusão acerca da interpretação dos conceitos jurídicos postos no ordenamento: “a perturbação do pensamento claro e da expressão lúcida, relativamente à compreensão dos 17 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 389. 18 Citamos Tércio Sampaio Ferraz Jr, ao comentar o erro em se buscar sempre uma essência significativa única nas palavras: “Afinal, é óbvio que ‘mesa’ não é apenas este objeto em cima do qual coloco os meus papéis, um cinzeiro, algumas frutas, mas é também mesa diretora dos trabalhos, a mesa que a empregada ainda não pôs, a mesa pródiga de sicrano, da qual muitos desfrutam, etc.” (FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Introdução ao direito: técnica, decisão, dominação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 35) 19 GRAU, Eros Roberto. Conceitos indeterminados. In: Justiça Tributária: direitos do fisco e garantias dos contribuintes nos atos da administração e no processo tributário. Anais do I Congresso Internacional de Direito Tributário, realizado em Vitória/ES. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 119. conceitos, resulta, fundamentalmente, da circunstância de serem ambíguos ou imprecisos [vagos, elásticos, fluidos] os seus termos”. Sendo determinada por opções expressamente postas ou por escolhas necessárias em virtude da imprecisão lingüística dos enunciados normativos, a norma concreta deverá sempre atender a um parâmetro mínimo de correspondência significativa com a norma que lhe confere fundamento de validade. Não podemos falar, por exemplo, que um cachorro seja uma galinha, ou que uma lâmpada seja um cavalo. Por tais motivos, é que Kelsen20 fala em uma moldura de aplicação do direito: O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível. Nos exemplos dados, as aludidas significações estariam fora da moldura, uma vez que a formulação da moldura é tarefa interpretativa cognoscitiva, consistindo em etapa preliminar à interpretação-aplicação, como nos ensina Mario G. Losano21, para quem a interpretação científica “...é um dos pressupostos para que se possa realizar a interpretação autêntica. [...] Por isso, quando se quer conhecer os elementos constitutivos da interpretação autêntica, é preciso remontar acima de tudo à interpretação científica”. Não cabe aos intérpretes do Direito, segundo Kelsen, a definição da única solução correta, que estaria contida na letra da lei, já que todos os significados possíveis, 20 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 390. 21 Para conferir credibilidade, segue o original: “...es uno de los presupuestos para que pueda realizarse la interpretación autentica [...] Por lo tanto, cuando se quieren conocer los elementos constitutivos de la interpretación auténtica, es preciso remontarse ante todo a la interpretación científica”. (LOSANO, Mario G. Teoría pura del derecho: evolución y puntos cruciales. Trad. de Jorge Guerrero R. Santa Fé de Bogotá – Colômbia: Editora Temis, 1992, p. 117-118) desde que dentro da moldura, podem ser aplicados aos casos concretos, sem que possamos qualificar um como melhor que o outro. Esta crença numa pretensa “única solução correta” é sustentada através da hermenêutica tradicional, como aponta Fábio Ulhôa Coelho22: A hermenêutica tradicional – chame-se assim – se reduz à discussão sobre o método exegético mais adequado para se alcançar a verdade contida na norma, algumas vertentes propondo a pesquisa dos fatores históricos, outras pressupondo a logicidade do sistema normativo, etc. Kelsen desqualifica tal discussão. Todas as significações reunidas na moldura relativa à norma têm rigorosamente igual valor, para a ciência jurídica. Quando o órgão aplicador do direito opta por atribuir à norma interpretanda uma das significações emolduradas, não realiza ato de conhecimento, mas manifesta sua vontade. Há casos, porém, em que será possível que uma significação que esteja, a princípio, fora do quadro, seja nele incluída pela atividade judicial. Embora a decisão que o faça seja, em tese, anulável, a manutenção da significação fora do quadro somente ocorre com o fenômeno da coisa julgada que, consoante velho brocardo romano, pode transformar o preto em branco. Assim, embora a interpretação não-autêntica limite os significados possíveis da norma, é possível que a atividade judicial se afaste do quadro, de forma a, inovando, chegar inclusive a influenciar a largura do quadro, ampliando-lhe a abrangência. Sobre o assunto, Kelsen23 explana: A propósito, importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas, como também se pode produzir uma norma que se situe fora da moldura que a norma a aplicar representa. [...] Atravésde uma interpretação autêntica deste tipo pode criar-se Direito, não só no caso em que a interpretação tem caráter geral, em que, portanto, existe interpretação autêntica no sentido usual da palavra, mas também no caso em que é produzida uma norma jurídica individual através de um órgão aplicador do Direito, desde que o ato deste órgão já não possa ser anulado, desde que ele tenha transitado em julgado. É fato bem conhecido que, pela via de uma interpretação autêntica deste tipo, é muitas vezes criado Direito novo – especialmente pelos tribunais de última instância. 22 COELHO, Fábio Ulhôa. Para entender Kelsen. 3. ed. São Paulo: Max limonad, 2001, p. 62. 23 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 394-395. Destaque-se que a coisa julgada é eleita por Kelsen como fenômeno necessário somente à perpetuação de uma norma individual cujo significado, a princípio, estivesse fora da moldura. Não se trata, como pensa Mario G. Losano24, de requisito para a interpretação autêntica em si mesma. Fica claro, assim, que é totalmente despropositada a comparação de Hans Kelsen com escolas que entendem a função judicial como mera declaração da solução que já estaria pronta e acabada na lei (como, por exemplo, a escola da exegese). Muito pelo contrário, ao admitir a vagueza25 dos signos como causa para o preenchimento do significado da norma pelo juiz, Kelsen admite várias soluções distintas para o mesmo caso como possíveis. 3.4 A INTERPRETAÇÃO COMO CONHECIMENTO E COMO VONTADE Agora que já explanamos a concepção da moldura kelseniana, devemos retomar a distinção da interpretação feita por Kelsen. Basicamente, a interpretação que é feita por todos aqueles que não detenham competência para criar normas será interpretação não-autêntica, ou seja, uma interpretação como ato de conhecimento. Do mesmo modo, sempre que a interpretação for realizada por alguém autorizado pelo ordenamento jurídico a criar normas, será uma interpretação autêntica, ou seja, interpretação como ato de vontade. No primeiro caso, cumpre apenas estabelecer as significações possíveis de um dado signo constante do texto legal, ou seja, conhecer as possíveis formulações significativas daquela marca. No segundo, passada esta fase, procede-se a uma 24 LOSANO, Mario G. Teoría pura del derecho: evolución y puntos cruciales. Trad. de Jorge Guerrero R. Santa Fé de Bogotá – Colômbia: Editora Temis, 1992, p. 123-124. 25 Segundo Luis Alberto Warat, “um termo é vago, em sentido lato, nos casos onde não existe uma regra definida quanto à sua aplicação”. (WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 76). escolha26 (daí o ato de vontade), criando-se, com base no significado escolhido, uma norma inferior em relação à norma aplicada. Kelsen, neste ponto, é coerente com suas premissas, pois diz que o jurista (cientista do Direito) deve somente enunciar os significados possíveis da norma, jamais apontar aquele que entende o mais correto, porque, em sua visão, isto implicaria uma escolha e, como tal, uma ideologia, algo estranho ao entendimento científico do direito. Já o aplicador, ao escolher o significado, necessariamente sofreria o influxo de inúmeras normas não-jurídicas, fato este inegável, mas que não deveria ser objeto de uma ciência do Direito. Vejamos a explanação do citado pensador27: Na medida em que, na aplicação da lei, para além da necessária fixação da moldura dentro da qual se tem de manter o ato a pôr, possa ter ainda lugar uma atividade cognoscitiva do órgão aplicador do Direito, não se tratará de um conhecimento do Direito positivo, mas de outras normas que, aqui, no processo da criação jurídica, podem ter a sua incidência: normas de Moral, normas de Justiça, juízos de valor sociais que costumamos designar por expressões correntes como bem comum, interesse do Estado, progresso, etc. 4 UMA RELEITURA DE KELSEN Analisando as considerações de Kelsen acerca da interpretação, pensamos poder conservar muitos de seus elementos para uma leitura mais atual, baseada no enfoque lingüístico do fenômeno jurídico. Esta opção se dá em virtude de os 26 Segundo Losano, “...quando o texto kelseniano fala de interpretação autêntica, se refere não a um processo cognoscitivo que agrupa os possíveis significados de uma norma geral, mas sim uma atividade volitiva que escolhe estes possíveis significados.” Para conferir credibilidade, segue o original: “...cuando el texto kelseniano habla de interpretación auténtica, se refiere no a un proceso cognitivo que agrupa los posibles significados de una norma general, sino a una actividad volitiva que escoge entre estos posibles significados” (LOSANO, Mario G. Teoría pura del derecho: evolución y puntos cruciales. Trad. de Jorge Guerrero R. Santa Fé de Bogotá – Colômbia: Editora Temis, 1992, p. 120). 27 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 393. textos que compõem o direito positivo serem uma criação humana e, como tal, um bem cultural, dependente da significação que os seus intérpretes lhe atribuam28. Neste sentido, destacam-se, pela sua relevância, as palavras de Lúcia Santaella29: Considerando-se que todo fenômeno de cultura só funciona culturalmente porque é também um fenômeno de comunicação, e considerando-se que esses fenômenos só comunicam porque se estruturam como linguagem, pode-se concluir que todo e qualquer fato cultural, toda e qualquer atividade ou prática social constituem-se como práticas significantes, isto é, práticas de produção de linguagem e de sentido. Assim, adotamos a semiótica como forma de enfocar o direito enquanto uma linguagem30, que importa abordar os signos31 que a informam em três instâncias, conforme aduz Tércio Sampaio Ferraz Jr.32: “A semiótica é a teoria dos signos (por exemplo, dos signos lingüísticos, das palavras) em sua tríplice relação: signos entre si (sintaxe), em relação ao objeto (semântica) e aos seus usuários (pragmática).” O direito seria, assim, um sistema tríplice33: o conjunto de signos (letras no papel nos textos de direito positivo); o conjunto de significados (objetos/conceitos do 28 Esta afirmação contraria a distinção kelseniana da interpretação científica como exclusivo conhecimento, já que, em toda e qualquer interpretação, está implícito um ato de vontade. O que ocorre é que, na interpretação científica, mesmo havendo vontade, interpreta-se para conhecer, ao passo que na interpretação autêntica, interpreta-se para aplicar. 29 SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica? 1987, p. 14. Apud MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. São Paulo: Max limonad, 2001, p. 41. 30 Na esteira de Tárek Moysés Moussallem, enfocamos a linguagem como “capacidade de comunicação por meio de signos”. (Ibidem., p. 25) 31 Adotamos a definição de “signo” de Saussurre, ou seja, “...uma entidade bifásica, formada pela associação de um conceito a uma imagem acústica, de uma idéia a um suporte fonético”. (WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 25). Assim, as letras “l”, “i”, “v”, “r” e “o”, articuladas no papel formando a palavra “livro”, correspondem ao signo, ao qual é associado um conceito pelas nossas mentes (geralmente, um objeto formado por inúmeras páginas datilografadas e organizadas em capítulos). 32 FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Introduçãoao direito: técnica, decisão, dominação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 124. 33 De forma mais restritiva, entendendo como ordenamento jurídico somente o conjunto de normas, opina Eros Grau: “As normas, portanto, resultam da interpretação. E o ordenamento, no seu valor histórico- concreto, é um conjunto de interpretações, isto é, conjunto de normas. O conjunto das disposições (textos, enunciados) é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais. O significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete.” (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 72). mundo sensível aos quais estes signos fazem referência) e o conjunto de significações (normas propriamente ditas, formadas pela articulação de significados pelo intérprete). Tratamos, respectivamente, dos planos sintático, semântico e pragmático da linguagem34. Assim, o procedimento de interpretação seria uma construção de sentido da norma, a partir do enunciado constante no texto de direito positivo. O enunciado está presente no plano sintático, sendo o lugar-comum interpretativo de dada comunidade que entenda aquela língua (i.e., o português). A partir de cada enunciado, o intérprete atribui, com base em seus pré-conceitos, os significados a cada termo (i.e., pensa num instrumento de escrita com tinta, quando lê a palavra “caneta”). Uma vez estabelecidos estes significados, eles serão articulados pelo intérprete para a formulação da norma jurídica, posta em sua estrutura de antecedente descritor e conseqüente prescritor. Sobre o assunto, diz-nos Eros Grau35: As disposições, os enunciados, os textos, nada dizem: somente passam a dizer algo quando efetivamente convertidos em normas (isto é, quando – através e mediante a interpretação – são transformados em normas). Por isso as normas resultam da interpretação, e podemos dizer que elas, enquanto disposições, nada dizem – elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem. Muitas vezes, o significado do enunciado é dado por um outro enunciado (como o conhecido exemplo da definição de funcionário público do artigo 327 de nosso Código Penal), de forma que enunciado difere de norma. Em sua obra póstuma, extraímos a seguinte passagem de Kelsen36 que bem resume o tema: 34 Remetemos o leitor que deseje se aprofundar no assunto à leitura das seguintes obras: MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. São Paulo: Max limonad, 2001; FERRAZ JR., Tércio Sampaio Ferraz. Introdução ao direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1994 e WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2e. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995. 35 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 72-73. Admite-se a expressão: a norma 'reza' que algo deve ser ou acontecer, contanto que através dessa expressão não se induza confundir a norma com um enunciado . Pois a norma não é nenhum enunciado e - como ainda mostraremos com mais pormenores - precisa ser claramente diferenciado de um enunciado, nomeadamente também de enunciado sobre uma norma. É normal, então, que precisemos de vários enunciados para formar uma norma, ou então que possamos criar mais de uma norma com base em um só enunciado. A norma é a articulação de significados (plano pragmático) obtidos em momento lógico, posterior à leitura dos enunciados (plano sintático). Aliás, já em obra posterior à Teoria Pura do Direito, podemos vislumbrar resquícios desta concepção no próprio pensamento kelseniano37: Os diferentes elementos de uma norma podem estar contidos em produtos bem diferentes do procedimento legislativo e podem ser exprimidos lingüisticamente de várias maneiras diferentes. Quando o legislador proíbe o roubo, ele pode, por exemplo, definir em primeiro lugar o conceito de roubo em uma série de frases que formam o artigo de um estatuto e, então, estipular a sanção em outra frase, que pode ser parte de outro artigo do mesmo estatuto ou até mesmo parte de um estatuto inteiramente diverso. Evidenciando a possibilidade de que de um mesmo ato advenham distintas significações, Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin38 enunciam o seguinte: ...o sujeito que fala pode dizer a mesma coisa em distintas ocasiões, mas dizendo o mesmo pode fazer coisas bem distintas: pronunciando as mesmas palavras ou palavras que tenham o mesmo significado, pode fazer uma asserção em uma ocasião, formular uma pergunta ou dar uma ordem, em outra. Na mesma obra citada, os autores argentinos formulam as concepções de norma- prescrição, norma-sentido e norma-comunicação, para evidenciar as três realidades lingüísticas distintas (planos sintático, semântico e pragmático), 36 KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Trad. de José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor. 1986, p. 34. 37 KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 62-63. 38 Para conferir credibilidade, segue o original: “... el sujeto hablante puede decir lo mismo en distintas ocasiones, pero diciendo lo mismo, puede hacer cosas muy distintas: pronunciando las mismas palabras o palabras que tienen el mismo significado, hace una aserción en una ocasión, formula una pregunta o da una orden, en otra.” (ALCHOURRON, Carlos e BULYGIN, Eugenio. Sobre la existencia de las normas jurídicas. Ciudad de Mexico: Fontamara, 1997, p. 43). optando pela segunda concepção. Já Daniel Lagier39 busca conciliar tais entendimentos, que não são excludentes: Em outras palavras, Alchourrón e Bulygin têm razão quando afirmam que se deve distinguir três sentidos quando se fala em norma: norma-prescrição, norma-sentido e norma-comunicação, mas talvez seria mais exato falar de “níveis” ou “planos” do conceito de norma que não são excludentes. Estes três “planos” são inseparáveis: uma teoria das normas que não dê conta dos três não pode ser uma teoria adequada. Neste sentido, Carlos Santiago Nino40 nos dá razões para se adotar a corrente que vê a norma como comunicação, no ângulo pragmático da linguagem: O significado das orações é determinado pelo significado das palavras que a integram e pelo seu respectivo ordenamento sintático. Em muitas ocasiões, as palavras usadas em uma oração geram problemas acerca da determinação de seu significado e em outras o vínculo sintático entre os termos da oração dá lugar a equívocos. Disto se infere que muitas vezes não é simples determinar qual proposição corresponde a uma oração da linguagem. Entre os vários pontos colocados por Kelsen acerca da interpretação, pensamos que o mais importante diz respeito à indeterminação dos enunciados que compõem os textos de direito positivo, que leva o intérprete autêntico, por assim dizer, a fazer uma escolha entre os significados possíveis constantes na moldura. Podemos, ainda hoje, falar em uma moldura, mas não somente restrita aos significados dos textos do direito positivo. Os significados possíveis postos à escolha do aplicador não são somente os significados do texto, mas também o significado dos fatos postos à sua apreciação. Kelsen41 já dizia que esta 39 Para conferir credibilidade, segue o original: “Dicho de otra manera, Alchourróny Bulygin tienen razón cuando afirman que hay que distinguir tres sentidos en los que se habla de norma: norma-prescripción, norma- sentido y norma-comunicación, pero quizá fuera más exacto hablar de ‘niveles’ o ‘planos’ del concepto de norma que no son excluyentes. Estos tres ‘planos’ son inseparables: una teoría de las normas que no dé cuenta de los tres no puede ser una teoría adecuada”. (LAGIER, Daniel González. Acción y norma en G.H. Von Wright. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. 353.) 40 Para conferir credibilidade, segue o original: “El significado de las oraciones está determinado por el significado de las palabras que la integran y por el ordenamiento sintáctico de ellas. En muchas ocasiones, las palabras usadas en una oración plantean problemas en cuanto a la determinación de su significado, y en otras el vínculo sintáctico entre los términos de la oración da lugar a equívocos. De ello se infiere que muchas veces no es sencillo determinar qué proposición corresponde a una oración del lenguaje.”(NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho. Barcelona: Editorial Ariel, p. 259.) 41 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 389. indeterminação significativa “... pode respeitar tanto ao fato (pressuposto) condicionante como à conseqüência condicionada”. No mesmo sentido, é o que defende Eros Roberto Grau42: Logo, o que incisivamente deve aqui ser afirmado, a partir da metáfora de Kelsen, é o fato de a “moldura da norma” ser, diversamente, moldura do texto, mas não apenas dele; ela é, concomitantemente, moldura do texto e moldura do caso. O intérprete interpreta também o caso, necessariamente, além dos textos, ao empreender a produção prática do direito. Mas como traçar esta moldura? Quais significados estão dentro e quais significados estão fora da moldura? Embora estas questões não tenham sido respondidas diretamente por Kelsen, buscaremos respostas para elas, com base na releitura do mestre de Viena. 4.1 Limites do enunciado e interpretação conforme a Constituição Como vimos, a “moldura” foi definida por Kelsen como o limite significativo da norma a ser aplicada, cuja função seria outorgar parâmetros ao aplicador da norma superior, na tarefa de construção da norma inferior. Dentro de nossa perspectiva lingüística, tendo-se estabelecido que o Direito, enquanto conjunto articulado de significações, é criação do intérprete43, resta perquirir como se dará este parâmetro. Estaria o aplicador livre para chamar uma lâmpada de cavalo, ou dizer que uma galinha deu origem a um cachorro? Pensamos que não. A moldura, em nossa visão, corresponderá a um limite dentro do qual se encontrarão os significados possíveis de serem atribuídos aos signos constantes nos enunciados (textos) de direito positivo. E o principal limite, para tanto, é, justamente, o próprio enunciado. Há casos em que a moldura é mais 42 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 26. 43 O intérprete científico cria enunciados sobre o Direito, ao passo que o intérprete autêntico cria enunciados prescritivos, o que importa numa atividade de criação de Direito somente por este último. ampla (quando se utilizam, nos enunciados, termos de significado vago, como interesse público, paz social, justiça, etc.) e casos em que a moldura é mais estreita (i.e. norma que proíbe fumar cigarros no cinema). Dizemos o principal limite, porque nos é claro que o enunciado sozinho nada significa, pois depende do contexto histórico-social de aplicação das normas jurídicas, ou seja, depende do intérprete (ou conjunto deles) para lhe atribuir vida e significação. Basta exemplificar que o enunciado “mulher honesta”, ainda presente em nosso sistema sintático de direito positivo, tem uma moldura muito mais ampla do que tinha 40 anos atrás. Naquela época, até mulheres que viajassem sozinhas não se adequariam ao conceito. Hoje, qualquer pessoa do sexo feminino que pague suas contas em dia pode nele ser enquadrado. Esta mutação de significação era uma idéia também já presente em Kelsen, como depreendemos das palavras de Carlos Eduardo Araújo de Lima44: O mestre de Viena, ao final de sua vida, deixou bem claro, recorrendo a Vaihinger, que o conceito pode sofrer deslocamentos e ser atualizado, desde que de forma pertinente (como foi o caso da mudança última, com a filosofia do como-se). Só não se fala da mudança enquanto tal, da capacidade de mudar e nem da possibilidade de que, no interior da doutrina, novas mudanças se produzam. Confunde-se, enfim, aquilo que é permanente (por exemplo, o nome norma fundamental) com o que é mutável (o seu significado). A presente concepção da moldura kelseniana também tem reflexos diretos no que diz respeito ao controle de constitucionalidade45, máxime à temática da interpretação conforme a Constituição. Em breves linhas, a interpretação de acordo com a Constituição consiste na exclusão de vários significados possíveis da moldura de que se serve o intérprete. Assim, embora o signo comporte, em tese, uma gama de significados, a 44 LIMA, Carlos Eduardo de Araújo. Permanência e mutabilidade em Hans Kelsen. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 1995, p.7 45 Referendando a concepção já presente em Kelsen, de que a norma não tem um único significado correto, podemos mencionar a súmula 400 do STF: “Decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário pela letra “a” do art 101, III, da Constituição Federal.” Neste caso, a moldura comportaria mais de um significado para a norma a ser aplicada. incompatibilidade destes para com as normas superiores (constitucionais) levam à sua exclusão (dos significados, não do signo). Nada mais condizente, já que o controle de constitucionalidade se dá sobre normas, e não sobre textos. Neste sentido, citamos trecho de voto do Ministro Celso de Mello na ADIn 581- DF46, no qual se enuncia que esta forma de interpretação reduz “a expressão semiológica do ato impugnado a um único sentido interpretativo”. No mesmo sentido está o apontamento de Canotilho47, para quem a referida técnica “... só é legítima quando existe um espaço de decisão (= espaço de interpretação) em que são admissíveis várias propostas interpretativas...”. E este espaço corresponde à moldura, que nos é fornecida, basicamente, pelo signo. Assim, a interpretação conforme a Constituição espelha, com clareza, a acuidade da concepção do direito como linguagem e a adequação da adoção da moldura de Kelsen para a verificação dos significados possíveis. 5 CONCLUSÃO 46 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. LISTA DE MERECIMENTO - TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA VIGESIMA-PRIMEIRA REGIAO - RIO GRANDE DO NORTE - LEI No 8.215/91 - CONSTITUCIONALIDADE. A Lei no 8.215/91 mostra-se constitucional no que se lhe empreste interpretação harmônica com as seguintes premissas: a) a consideração do exercício por mais de dois anos e da quinta parte da lista de antigüidade ocorre vaga-a-vaga, descabendo fixá-la, de início e de forma global, para preenchimento das diversas existentes; b) confeccionada a lista de merecimento para a primeira vaga, apuram-se, para a vaga subseqüente, os nomes dos juízes que, afastados os já selecionados, componham a referida quinta parte de antigüidade e tenham, no cargo de presidente de junta de conciliação e julgamento, dois anos de exercício; c)a regra constante da parte final da alínea "b" do inciso II do artigo 93 da Carta Federal diz respeito à lista de merecimento a ser elaborada e não a vaga aberta, podendo o tribunal, de qualquer forma, recusar o nome remanescente,observada a maioria qualificada de dois terços. d) inexistentes juízes que atendam às condições cumulativas previstas na alínea "b" do inciso II do artigo 93 da Lei básica Federal em número suficiente a feitura da lista tríplice, apura-se a primeira quinta parte dos mais antigos, considerados todos os magistrados, isto para os lugares remanescentes na lista de merecimento. ADI 541. Relator: Marco Aurélio Mello. 06/11/1992. In: www.stf.gov.br. Acesso em: 31/03/2005. 47 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 19XX, p. 1190. Buscamos, por meio deste artigo, resgatar as concepções da interpretação em Kelsen e demonstrar sua atualidade mediante uma releitura que lhe empreste um enfoque lingüístico (em tudo já presente, ao menos como semente, em sua teoria) bem como sua aplicabilidade para a interpretação cotidiana do direito positivo e, especialmente, da Constituição, encontrando limitações hermenêuticas no enunciado e no contexto significativo. Esperamos que o leitor possa, após esta leitura, buscar atualizar a teoria hermenêutica Kelseniana e conciliá-la com os meios mais modernos de exegese das normas jurídicas. 6 REFERÊNCIAS ALCHOURRON, Carlos e BULYGIN, Eugenio. Sobre la existencia de las normas jurídicas. Ciudad de Mexico: Fontamara, 1997. 108p. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. 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