Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
96 JUREMA ALCIDES CUNHA 10 Entrevista lúdica Blanca Guevara Werlang Freud organizou a sua teoria sobre a sexuali-dade infantil com base nos dados obtidos na análise de seus pacientes adultos. Em fun- ção disso, durante muito tempo, estimulou seus alunos e amigos, em Viena, a coletarem e a descreverem observações sobre a vida sexual de seus filhos, para poder obter um material que desse provas evidentes daquilo que ele afirmava. O resultado disso foi o caso do pe- queno Hans. Através dele, Freud (s/d) finalmen- te compreendeu as neuroses infantis e seu pa- pel na organização da neurose dos adultos, confirmando as hipóteses que havia levantado no seu artigo Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1989). A exposição do tratamento do pequeno Hans deu a Freud, sem dúvida, a oportunidade de fazer bem mais do que confirmar certas hi- póteses sobre a precocidade da vida sexual. Colocou, sem ser esta sua intenção, na roda das discussões psicanalíticas, a possibilidade de aplicar os princípios da técnica psicanalítica à criança. A partir do pequeno Hans, Hermine von Hug-Hellmuth observou que o jogo fornecia ex- celentes possibilidades de compreensão dos fantasmas, instituindo uma primeira forma de análise infantil que se vinculou, primeiramen- te, à educação. Ela não utilizou interpretações como na análise de adultos, por entender que o ego da criança infantil não estava suficiente- mente desenvolvido para suportar o peso de uma interpretação psicanalítica, e por saber que a criança não era motivada a procurar aná- lise, sendo encaminhada mais por ser um so- frimento da família; portanto, a interpretação não significaria nada para essa criança (Ajuria- guerra, 1983; Bleichmar & Bleichmar, 1992; Hinshelwood, 1992; Lebovici & Soulé, 1980). Em compensação, Melanie Klein (1980), desde o início, entendeu que as crianças pode- riam, sim, ser motivadas dentro de si mesmas para a análise, insistindo que elas poderiam ser analisadas, do mesmo modo que os adultos, explorando os conflitos inconscientes, absten- do-se de qualquer medida educativa ou de apoio. Neste sentido, Klein pode ser conside- rada como a iniciadora da técnica psicanalítica para crianças, preconizando a aplicação do jogo, por entendê-lo como o equivalente a um fantasma masturbatório. Contudo, foi Freud o primeiro estudioso que refletiu sobre a função e o mecanismo psicoló- gico da atividade lúdica infantil, quando inter- pretou a brincadeira de seu neto de 18 meses de idade. O menino brincava com um carretel amarrado em um barbante e, sempre seguran- do o fio, lançava o carretel por cima de seu berço, cercado por uma cortina, onde esse de- saparecia. Exclamava, então, “fora” (fort), pu- PSICODIAGNÓSTICO – V 97 xando logo o barbante, até atirar o carretel para dentro do berço, saudando seu aparecimento com um alegre “aqui” (da). Freud compreendeu que essa criança esta- va brincando de ir embora e voltar. Era a ma- neira que ela tinha para controlar a angústia da ausência da mãe. Então, a criança não esta- va meramente se divertindo. Pelo contrário, por meio da manipulação do brinquedo, estava do- minando uma situação que, de outra forma, seria impossível. Assim, para Freud (1976), as crianças repetem, nas suas brincadeiras, tudo que na vida lhes causou profunda impressão e, brincando, se tornam senhoras da situação. O menino do carretel tinha em seu jogo um representante da mãe atado ao cordão. Sim- bolicamente, deixava-a se afastar, até a atirava longe e, depois, quando sua vontade o deman- dasse, a fazia voltar. Tinha, como Freud ressal- tou, transformado a passividade de sua condi- ção infantil em atividade. As crianças, então, segundo Freud (1976), brincam para fazer alguma coisa que, na reali- dade, fizeram com elas. Nas brincadeiras, após idas a médicos, onde o corpo é examinado, ou após alguma cirurgia, muitas vezes, essas lem- branças, mesmo sendo penosas, se transfor- mam em conteúdo de jogo. Por quê? Porque, através do brinquedo, a criança tem a possibi- lidade de realizar o desejo dominante para sua faixa etária, por exemplo, o de ser grande e de fazer o que fazem os adultos. Desta maneira, na situação anterior relatada, a criança poderá ser o médico que estará atacando um corpo, passando a provocar, num objeto/brinquedo ou num companheiro de seu grupo de iguais, a sensação desagradável por ela experimentada. Então, passando da passividade do fato para a atividade do jogo, estará representando, com algum brinquedo ou companheiro, o que não pode exercer sobre a pessoa do médico. É, portanto, na situação do brinquedo, que a criança procura se relacionar com o real, expe- rimentando-o a seu modo, procurando cons- truir e recriar essa realidade. Através do brinquedo, a criança não só rea- liza seus desejos, mas também domina a reali- dade, graças ao processo de projeção dos pe- rigos internos sobre o mundo externo. O brin- quedo é, então, um meio de comunicação, é a ponte que permite ligar o mundo externo e o interno, a realidade objetiva e a fantasia. Pode-se dizer, pois, que Freud estabeleceu os marcos referenciais da técnica do jogo, de- monstrando que o brincar não é só um passa- tempo para viver situações prazerosas, mas também uma maneira de elaborar circunstân- cias traumáticas. Prosseguindo nesse sentido, Melanie Klein, como já mencionamos, colocou o brinquedo num lugar de destaque na luta contra a angústia mobilizada pelas pulsões sexuais. Segundo essa autora, ao brincar, a criança domina realidades dolorosas e contro- la medos instintivos, projetando-os ao exterior, nos brinquedos. Este mecanismo é possível, porque a criança, desde tenra idade, tem a ca- pacidade de simbolizar. Assim, para Klein (1980), o brincar é a linguagem típica da crian- ça, equiparando a linguagem lúdica infantil à associação livre e aos sonhos dos adultos. Por- tanto, a neurose de transferência desenvolve- se da mesma maneira, não sendo as figuras parentais atuais, mas as internalizadas, que são projetadas no analista, que terá como princi- pal função interpretar todo o material associa- tivo que a criança traz. Na mesma época, Anna Freud, seguindo ensinamentos de Hug-Hellmuth, colocou-se numa posição contrária à de Melanie Klein. Desse modo, com uma concepção diferente da mente infantil, afirmava que a criança não pos- sui consciência de doença, estando ainda pre- sa a seus objetos originais (pais), pelo que não poderia estabelecer uma neurose de transfe- rência com o terapeuta. Afirmava que o tera- peuta deveria apenas reforçar os aspectos po- sitivos do vínculo, sempre num nível de orien- tação educativa, considerando, ainda, que em nada o brincar da criança poderia ser comparado aos sonhos ou à associação livre do adulto. As discrepâncias entre Melanie Klein e Anna Freud e o debate dos respectivos pontos teóri- cos perduram, de certa forma, até hoje, lem- bra Hinshelwood (1992), nas teorias da psica- nálise kleiniana e da psicologia do ego. Mas, mesmo que discrepantes, ambos os posiciona- mentos ajudaram em muito na conceitualiza- 98 JUREMA ALCIDES CUNHA ção e no desenvolvimento da psicoterapia in- fantil. Certamente envolvida no mesmo intui- to, a conceituada psicanalista argentina Armin- da Aberastury (1978) entendeu que a criança não só estabelece uma transferência positiva e/ou negativa com o psicoterapeuta, como ex- pressava Klein, como também é capaz de es- truturar, através dos brinquedos, a represen- tação de seus conflitos básicos, suas principais defesas e fantasias de doença e cura, deixan- do em evidência, já nos primeiros encontros do acompanhamento, o seu funcionamento mental. Aberastury sugeriu, ainda, que possi- velmente esses fenômenos surgem devido ao temor da criança de que seu psicoterapeuta repita com ela a conduta negativa dos objetos originários que lhe provocaram a perturbação, prevalecendo agorao desejo de que o psicólo- go assuma uma função através da qual lhe dê condição para melhorar. Aberastury evidenciou, assim, o valor diag- nóstico da entrevista lúdica, falando, pela pri- meira vez, no nosso meio mais próximo, sobre a hora de jogo diagnóstica, estabelecendo di- ferenças com a primeira hora de jogo terapêu- tica. Para fins diagnósticos, segundo essa auto- ra, não há necessidade de uma caixa com ma- terial lúdico exclusiva para cada criança, con- siderando que qualquer tipo de brinquedo, mesmo que sejam os mais simples, oferecem possibilidades lúdicas projetivas para o diag- nóstico. Entretanto, quando se trata da primei- ra hora de jogo de tratamento, ao finalizar a sessão, além do terapeuta estabelecer as con- dições do contrato psicoterápico, deverá guar- dar junto com a criança todo o material lúdico numa caixa, que ficará fechada e à qual só te- rão acesso a criança e o terapeuta. Essa caixa, sem dúvida, se transforma durante o tratamen- to no símbolo do sigilo, similar ao contrato verbal que se estabelece com o adulto quando se inicia o tratamento. Na entrevista lúdica, Aberastury (1978) con- sidera também conveniente não interpretar, já que ainda não temos como saber se a criança será tratada ou não e, em caso de encaminha- mento, qual a técnica mais adequada para apli- car. Então, é muito delicado arriscar uma in- terpretação, porque podem se romper as de- fesas, cuja fragilidade ou rigidez ainda não conhecemos, e, como conseqüência, desper- tar muita ansiedade e/ou culpa, bem como ali- mentar fantasias de que seus impulsos podem atacar ou destruir a relação com o psicólogo, sentimentos estes que ficariam sem resolver, se a decisão for a de não acompanhar psicote- rapicamente a criança. Desta maneira, cabe ressaltar, como expres- sam Efron e colegas (1978), que a hora de jogo diagnóstica, fundamentada num referencial teórico psicodinâmico, é um recurso técnico que o psicólogo utiliza dentro do processo psi- codiagnóstico, que tem começo, desenvolvi- mento e fim em si mesmo, operando como unidade para o conhecimento inicial da crian- ça, devendo interpretá-la como tal, e cujos dados serão ou não confirmados com a testa- gem. Entretanto, a primeira hora de jogo tera- pêutica é apenas um elo dentro de um contex- to maior, onde irão surgir novos aspectos e modificações estruturais em função da inter- venção ativa do terapeuta. No psicodiagnóstico infantil, costuma-se entrevistar os pais, antes de ver a criança, com o objetivo de obter informações o mais abran- gentes possíveis sobre o problema e sobre como a criança é. Após as entrevistas com os pais, mantém-se o primeiro contato com a criança, que pode ser por meio de uma entre- vista lúdica. Nas entrevistas que foram realiza- das com os pais, deve-se combinar que eles conversem com a criança a respeito do motivo pelo qual é levada ao psicólogo. Assim, esse pode ser o início do diálogo com a criança, dentro da sala de jogo, sendo importante, en- tão, perguntar se sabe o que está fazendo ali, porque veio ou o que os pais falaram da sua vinda ao psicólogo. Esclarecendo esse aspec- to, compreender-se-ão as fantasias da criança a respeito do processo de avaliação, e, se a res- posta for negativa, deve-se fazer um breve re- lato do que foi falado com os pais, sem deta- lhes muitos profundos, mas sempre explicitan- do a verdade. As instruções específicas para uma entre- vista lúdica consistem em oferecer à criança a oportunidade de brincar, como deseje, com PSICODIAGNÓSTICO – V 99 todo o material lúdico disponível na sala, es- clarecendo sobre o espaço onde poderá brin- car, sobre o tempo disponível, sobre os papéis dela e do psicólogo, bem como sobre os obje- tivos dessa atividade, que possibilitará conhe- cê-la mais e, assim, poder posteriormente aju- dá-la. A entrevista lúdica de cada processo psico- diagnóstico é uma experiência nova, tanto para o psicólogo como para a criança, em que se refletirá o estabelecimento de um vínculo trans- ferencial breve. Nos brinquedos oferecidos pelo psicólogo, a criança deposita parte dos senti- mentos, representante de distintos vínculos com objetos de seu mundo interno (Efron, Fa- inberg, Kleiner et alii, 1978). Assim, muitos fe- nômenos que não seriam obtidos pela palavra poderão ser observados através do brincar, onde a criança, segundo Logan (1991), proje- tará suas questões-chave, tanto no aconteci- do do jogo quanto na maneira como usa os materiais e os brinquedos. As crianças, de maneira geral, agem, falam e/ou brincam de acordo com suas possibilida- des maturativas, emocionais, cognitivas e de socialização, e é pela sua ação (ativa ou passi- va) que elas exprimem suas possibilidades, des- cobrindo-se a si mesmas e revelando-se aos outros. Em função disso, algumas aceitam ra- pidamente acompanhar o psicólogo até a sala de entrevistas, começando facilmente a brin- car, conversar e interagir com o interlocutor. Outras podem resistir a se separarem dos pais, ou ficam na sala de entrevista muito inibidas, tanto na ação como na fala, tornando-se ne- cessário que o psicólogo faça algum assinala- mento, com a finalidade de ajudá-las a lidar com a angústia. Existem também ocasiões em que a criança, devido à sua problemática emo- cional, rompe o enquadramento, exigindo por parte do entrevistador a colocação de limites. A postura do psicólogo deve ser, em todos os casos, a de estimular a interação, conduzindo a situação de maneira tal que possa deixar transparecer a compreensão do momento, res- peitando e acolhendo a criança, de forma que esta se sinta segura e aceita. Em parte, o papel do psicólogo na entrevis- ta lúdica diagnóstica é passivo, porque funcio- na como observador, mas também é ativo, na medida em que sua atitude é atenta na com- preensão e formulação de hipóteses sobre a problemática do entrevistado, assim como na ação de efetuar perguntas para esclarecer dú- vidas sobre a brincadeira. Ainda, dependendo de cada situação, o psicólogo poderá não par- ticipar do jogo ou brincadeira, ou poderá de- sempenhar um determinado papel, caso seja o desejo da criança (Efron, Fainberg, Kleiner et alii, 1978). Em função das características da atividade, é mais adequado trabalhar em uma sala que não seja o consultório de adultos. É mais con- veniente, então, realizar a atividade em uma sala preparada para brincar, ou seja, uma sala fácil de limpar, razoavelmente ampla, para não prejudicar a liberdade de expressão, e, sempre que possível, próxima a um banheiro e/ou co- zinha, onde a criança possa ter acesso fácil à água, caso deseje brincar com ela, assim como possa limpar a sujeira de material de tinta, ca- netinhas, argila e semelhantes. O material lúdico deve ser apresentado sem uma ordem aparente, em caixas e/ou armários, sempre com as tampas ou portas abertas, de- vendo ser adequado para atender crianças de diferentes idades, sexo e interesses. Procurando representar os objetos mais comuns do mundo real circundante, os brin- quedos mais usados são: papel, lápis preto e colorido, canetinhas, borracha, apontador, ré- gua, cola, fita adesiva, corda, tesoura, massa para modelar, argila, tinta, pincéis, bonecos e famílias de bonecos, casa de bonecos, mario- netes, família de animais selvagens e domésti- cos, blocos de construção, carros, caminhões, aviões, bola, armas de brinquedo, soldados, super-heróis, cowboys e índios, equipamentos de cozinha, de enfermagem e de ferramentas domésticas, quebra-cabeças, telefone, panos, jogos de competição e quadro-negro. Analisar e interpretar uma hora de jogo diagnóstica não é uma tarefa fácil. Requer que o profissional esteja bem familiarizado com o material teórico de cunho analítico sobre a base fundamental do marco teórico-técnico forne- cido por Freud, Melanie Klein e Arminda Abe- rastury, sendo, então, a linha central de inter- 100 JUREMAALCIDES CUNHA pretação a análise das fantasias inconscientes a partir do jogo. Kornblit (1978) salienta que uma análise detalhada da hora de jogo permite: “a) a con- ceitualização do conflito atual do paciente; b) coloca em evidência seus principais mecanis- mos de defesa e ansiedades; c) avalia o tipo de rapport que pode estabelecer a criança com um possível terapeuta e o tipo de ansiedade que contratransferencialmente pode despertar nele; d) põe de manifesto a fantasia de doen- ças e cura” (p.225). Por outro lado, a autora considera também importante compreender a hora de jogo como uma história argumental da criança, construída em resposta a uma si- tuação de estímulo, avaliando, então, o modo como ela se inclui em dita situação. Isso possi- bilita considerar aspectos ou indicadores por ela chamados de “formais”, que, muitas vezes, ficavam esquecidos ou abafados pela princi- pal preocupação na inferência de conteúdos inconscientes. Alguns desses indicadores for- mais seriam: a maneira como a criança se apro- xima dos brinquedos, a sua atitude no início e no final da hora de jogo, a sua localização no consultório, a sua atitude corporal e o manejo do espaço. Efron e colegas (1978) lembram que não existe um roteiro padronizado para analisar esse método de avaliação. Por isso, propõem um guia de oito indicadores que possibilitam estabelecer critérios mais sistematizados e co- erentes para orientar a análise com fins diag- nósticos e prognósticos, em especial, para a classificação do nível de funcionamento da personalidade, sempre dentro de um entendi- mento dinâmico, estrutural e econômico. Os indicadores são: escolha de brinquedos e jo- gos, modalidade do brinquedo, motricidade, personificação, criatividade, capacidade simbó- lica, tolerância à frustração e adequação à rea- lidade. A escolha de brinquedos e jogos está rela- cionada com o momento evolutivo emocional e intelectual em que a criança se encontra. Ao nascer, o bebê é um ser passivo, que fica a maior parte do tempo deitado. Mas, à medida que se desenvolve, passa a sustentar a cabeça, a sentar-se e assim por diante, passando de um autoconhecimento para o conhecimento e exploração do mundo que o cerca. O surgimen- to de novas etapas indica aumento da vivência e do conhecimento da criança, mostrando a passagem de seu conhecimento corporal para o ambiental, até o início da socialização e aqui- sição de noções simbólicas. Os brinquedos e jogos, então, devem ser analisados do ponto de vista evolutivo, regis- trando cada uma das manifestações de con- duta lúdica, classificando-as conforme as ida- des correspondentes dentro de algum dos re- ferenciais da psicologia do desenvolvimento. Erik Erikson, citado por Melvin e Wolkmar (1993), por exemplo, descreve três fases suces- sivas na evolução dos brinquedos das crianças: auto-esfera, microesfera e macroesfera. Na auto-esfera, o brinquedo da criança é centrali- zado na exploração do próprio corpo e/ou nos objetos que estão imediatamente a seu alcan- ce; na microesfera, a criança expressa suas fan- tasias através de pequenos brinquedos repre- sentativos; e, na macroesfera, por incorporar a vivência social, passa, através de suas relações, a dividir o mundo com os outros. Por outro lado, Piaget, conforme Ajuriaguer- ra (1983), também propõe uma classificação que leva em conta, ao mesmo tempo, a estru- tura do jogo e a evolução das funções cogniti- vas da criança. Conseqüentemente, fala de brin- quedos e jogo de exercício (até os 2 anos), em que a conduta lúdica é destinada exclusivamen- te para a obtenção de prazer; de brinquedos e jogos simbólicos (entre 2 e 8 anos), em que a criança desenvolve a capacidade de represen- tar uma realidade que não está presente no seu campo perceptivo; e, por último, de brin- quedos e jogo de regras (a partir dos 8 anos), que são uma imitação das atividades dos adul- tos e que pertencem ao domínio do código social. Sugere-se, pois, que cada uma das condu- tas lúdicas, identificadas de acordo com a cro- nologia de cada fase evolutiva corresponden- te, seja, ainda, comparada, dentro do referen- cial psicanalítico, com as fases de evolução da libido (oral, anal, fálica e genital), o que pro- porcionará uma compreensão mais abrangen- te do funcionamento infantil. PSICODIAGNÓSTICO – V 101 Cada criança, segundo Efron e colegas (1978), estrutura uma modalidade de brinque- do que lhe é própria, baseada nas formas de manifestação simbólica de seu ego e de seus traços de funcionamento psíquico. Entre as principais modalidades, temos a plasticidade, a rigidez, a estereotipia e a perseveração. A plasticidade pode ser observada quando a criança consegue expressar suas fantasias através de brincadeiras organizadas, com se- qüência lógica, utilizando brinquedos ou ob- jetos que podem modificar a sua função de acordo com a sua necessidade de expressão, mostrando uma variedade de recursos egóicos e uma significativa riqueza interna, sem neces- sidade de recorrer a mecanismos de controle excessivos. Entretanto, quando a criança fixa certos comportamentos ou ações lúdicas de maneira rígida para expressar uma mesma fantasia, mostra grandes dificuldades para aproveitar e/ ou modificar os atributos dos brinquedos e um ego pobre em recursos frente à ansiedade, re- sultando na escolha de brinquedos e jogos monótonos e pouco criativos, como, por exem- plo, é o caso de Renata. Renata é uma bonita menina de 7 anos e 6 meses, muito bem arrumada, mostrando sinais evidentes de cuidados com sua aparência, muito perfumada e com uma exigente combi- nação de cores, desde a tiara nos cabelos até os sapatos. Seus pais a trouxeram para avalia- ção por estarem achando-a muito angustiada com suas atitudes repetitivas, contando que a menina não consegue brincar, arrumar seu quarto ou concluir seus temas escolares, pois perde muito tempo na tentativa de organizar a atividade proposta. Durante a entrevista lú- dica, mostrou-se insegura, pedindo licença para levantar, sentar ou pegar os brinquedos e mui- to preocupada em não sujar ou amassar sua roupa. Em vez de brincar, passou a maior par- te do tempo arrumando os brinquedos que se encontravam na prateleira de um armário, pro- curando deixá-los organizados, como se fosse a exposição de uma vitrine, com a justificativa de ser esta a forma mais fácil de enxergá-los, para depois poder decidir com quais deles brin- caria. Finalmente, decide brincar com a casi- nha de bonecas, passando o resto do tempo organizando os móveis de forma indecisa, mudando-os tantas vezes de lugar que o tem- po da entrevista se esgota. A ação repetitiva de Renata, a sua excessi- va necessidade de ordem e perfeccionismo, certamente cumpre a finalidade de afastar ou conter algum perigo ou ameaça imaginária, deixando transparecer uma modalidade de brincar rígida, não adaptativa, própria de crian- ças com componentes neuróticos. Por outro lado, os jogos estereotipados e perseverantes são a modalidade mais patoló- gica do funcionamento egóico, típica de crian- ças com funcionamento psicótico, como é o caso de Antônio, que é um menino de 4 anos, encaminhado para avaliação psicológica pelo neurologista para ajudar na classificação diag- nóstica. Embora tenha aceitado facilmente se separar dos pais para entrar na sala de entre- vista, não realizou nenhum intercâmbio verbal ou contato visual com o examinador, evitando qualquer tentativa de aproximação por parte deste. Não atendeu a qualquer solicitação di- reta, desprezando blocos, carrinhos e outros brinquedos oferecidos, usando apenas um boneco para bater na sua própria cabeça. Pas- sou a maior parte do tempo ora correndo pela sala, ora andando em círculos, ora andando na ponta dos pés, balançando as mãos e mo- vendo os seus dedos, indiferente ao ambiente onde estava inserido. O comportamento de Antônio, na entrevis- ta lúdica,deixa clara a falta de resposta afetiva e a presença de maneirismos e movimentos estereotipados, assim como de ações auto- agressivas, evidenciando uma desconexão com o mundo externo, tendo como única finalida- de a descarga de impulsos do id sem fins co- municacionais. O desenvolvimento motor é, segundo Mel- vin e Volkmar (1973), uma seqüência de está- dios ordenados, que inicia com o controle pos- tural do pescoço, por volta da terceira ou quar- ta semana de vida, até o caminhar indepen- dente, ao redor dos 18 meses. Aos poucos, as habilidades motoras tornam-se cada vez mais sofisticadas, tornando-se possíveis várias ha- bilidades de autocuidado (vestir, desvestir-se, 102 JUREMA ALCIDES CUNHA pentear-se, comer com utensílios, etc.), assim como habilidades de parar num pé só, subir e descer escadas, pular e dançar. As habilidades percepto-motoras também se aperfeiçoam, sendo que, em torno dos 2 anos, a criança pode copiar um círculo, aos 3 anos pode copiar uma cruz, aos 5 anos é capaz de desenhar um qua- drado e, aos 7, um losango. No período entre os 6 e 11 anos, tanto os aspectos quantitati- vos como os qualitativos se consolidam, sen- do que partes do desenvolvimento anterior se organizam subitamente, passando a funcionar de forma fluente e integrada, até que, perto dos 9 anos, as habilidade motoras se tornam automáticas e estabelecidas. Dessa maneira, parece importante que o psi- cólogo que conduz a hora de jogo diagnóstica tenha, além dos conhecimentos essenciais da psicologia evolutiva, conhecimentos básicos de fisiologia, neurologia e psicomotricidade, que lhe possibilitem identificar e descrever as pau- tas motoras da criança que está avaliando, para verificar a adequação destas à etapa evolutiva em que a criança se encontra. Em casos espe- cíficos de imaturidade ou dificuldades moto- ras, com interferência na aprendizagem esco- lar, torna-se conveniente a solicitação de ava- liação complementar psicopedagógica ou neu- rológica, que auxiliam tanto no diagnóstico principal como no diferencial. A avaliação da motricidade é, pois, de es- pecial importância, uma vez que o manejo ade- quado das possibilidades motoras, no que diz respeito à integração do esquema corporal, organização da lateralidade e estruturação es- paço-temporal, possibilitará à criança o domí- nio dos objetos do mundo externo no campo social, escolar e emocional, satisfazendo suas principais necessidades com autonomia, en- quanto dificuldades nesse âmbito provocarão certamente limitações e frustrações. A personificação é a capacidade da criança para assumir e desempenhar papéis no brin- quedo. É um elemento comum em todos os períodos evolutivos, através do qual as crian- ças transformam seus brinquedos ou a si mes- mas em personagens imaginários ou não, de acordo com sua faixa etária, expressando afe- tos, tipos de relações e conflitos, sempre em sintonia com a realidade de seu mundo inter- no. A análise desse indicador permitirá com- preender o equilíbrio existente ou não entre o superego, o id e a realidade, verificando tam- bém a capacidade de fantasia na definição de determinados papéis, que, com o auxílio da mágica lúdica, possibilitará, pelo menos por um período limitado, a satisfação dos desejos mais grandiosos que seu eu consciente, em outras circunstâncias, não lhe permitiria. Marcelo é um menino de 4 anos e 11 me- ses, que foi trazido para avaliação psicodiag- nóstica, por dificuldades para se separar da mãe, tanto em casa como na escola. Na entre- vista lúdica, desenvolveu uma brincadeira em que ele próprio assumiu o papel de um “gi- gante”. Um gigante muito forte, corajoso, bra- vo e malvado, que entra na casa da família das bonecas, à noite, quando todos dormem, para derrubar, esconder e trocar todos os objetos de lugar, deixando, como ele mesmo expressa, “Tudo bagunçado! Tudo espalhado!”. Expres- sa claramente satisfação, quando espalha os pequenos móveis e os diversos bonecos, mis- turando-os com os blocos lógicos, carrinhos e demais brinquedos, exclamando: “O temporal do gigante!”. Frente à observação do psicólo- go sobre a proximidade do final da entrevista, Marcelo rapidamente olha ao seu redor e jun- ta alguns brinquedos, montando, com parte dos móveis e objetos da cozinha, uma mesa, com xícaras, pratos, colher, copos e jarras, mencionando: “O gigante sumiu. Ele fez uma mágica. Olha o pão, olha a xícara. Eles vão acor- dar. O pai ficará bravo. A mãe ‘junta’ o filho, mas tem café na mesa, todos vão lanchar. Tia, foi só uma brincadeira, agora vou arrumar”. Marcelo certamente está tendo dificulda- des de enfrentar as frustrações e a ansiedade típica de sua faixa etária, que surgem com seu inevitável crescimento e exigência por parte dos pais de alcançar mais autonomia, o que lhe deve provocar insegurança e desejos de man- ter o aconchego materno. Ao se envolver rapi- damente com a tarefa proposta de “brincar como o desejasse”, liberou a sua onipotência, identificando-se com uma figura poderosa, “o gigante”, para poder fazer tudo aquilo que as figuras de autoridade não aprovariam, como PSICODIAGNÓSTICO – V 103 forma de denunciar seu descontentamento e castigá-los. Extravasa, assim, seus conteúdos agressivos de ataque e domínio, nem que seja quando a autoridade está dormindo, ou quan- do o superego está mais permissivo, deixando o ego, dominado pelo id, satisfazer desejos e impulsos. Mas, quando a realidade se impõe, novamente de forma onipotente, faz uma má- gica para amenizar o caos instalado, com ob- jetos e alimentos reparadores, como uma for- ma de aplacar a culpa provocada pelos seus impulsos agressivos. Através dessa personificação, houve clara- mente uma regressão a serviço do ego, que, por meio do relaxamento dos controles internos, fa- cilitou ao Marcelo a projeção de fantasias e de- sejos, desprendendo-se transitoriamente das rí- gidas regras do processo secundário, represen- tando simbolicamente conteúdos internos. Criar é inventar ou transformar a partir da própria capacidade. Quando a criança constrói um novo objeto ou transforma um já existen- te, mostra a sua capacidade de relacionar ele- mentos novos no brinquedo a partir da reor- ganização de experiências anteriores. Assim, a criatividade é um processo mental de manipu- lação do ambiente do qual resultam novas idéias, formas e relações. Quando a criança utiliza uma variedade de elementos para se expressar no brinquedo, está exercitando a sua capacidade simbólica. O jogo é uma forma de expressão da capacidade sim- bólica, e a vida de fantasia se torna mais ob- servável à medida que a criança se torna apta para o jogo simbólico. Durante o primeiro ano de vida, por exem- plo, o brinquedo consiste simplesmente na manipulação de objetos; depois desse perío- do, passa a ser usado funcionalmente, numa ação repetitiva, e, quando o jogo de faz-de- conta aparece, a criança começa a usar vários brinquedos simbolicamente, visando a objetos que representam outros objetos. Desta manei- ra, uma folha de papel pode se tornar um avião, um pau pode se transformar em cavalo, uma panela e uma colher, no melhor tambor, e o nenê caçula da família pode ser afogado numa piscina e, depois, levado a passear pelo amis- toso e simpático irmão. Com o aprendizado escolar, aparecem no- vos jogos, em que se combinam a capacidade intelectual e o azar, sendo o período da com- petição e de partilha de papéis com seu grupo de iguais. Mas, em todos os períodos evoluti- vos, o simbolismo habilita a criança a transfe- rir interesses, fantasias, ansiedades, culpa, ten- dências destrutivas para outros objetos e/ou pessoas, revelando preocupações e ansiedades, aspirações e desejos, na tentativa de obter, atra- vés da ação lúdica, o domínio do mundo exter- no, e, como indicador avaliativo, possibilita compreender também a capacidade expressi- va da criança e a qualidadedo conflito. Tentando exemplificar, lembramos o caso de João, de 6 anos de idade, que apresenta medo de dormir sozinho e do escuro, necessitando ainda dormir com seus pais. Desenvolve, na entrevista lúdica, a seguinte brincadeira e diá- logo: Pega uma caixa que contém madeiras de diversas formas e tamanhos e monta o que ele chama de um “dormitório”. Coloca dentro do cercado de madeiras uma cama de casal, duas mesinhas de cabeceira e dois abajures. Procu- ra, noutra caixa, os bonecos da família e, en- quanto isso, fala: J – “Este é o pai (boneco maior). Esta é a mãe (mostrando uma boneca). Sabes? Estes pais vão ter um filho!” E – “É mesmo?” J – “Claro, tu não reparou?” E – “E tu, como reparaste?” J – “Olha, fica quieta, que a criança precisa dormir (fala em voz baixa). Ele vai entrar na cama deles. Ele agora está quietinho entre os dois (coloca um boneco pequeno entre os pais e cobre a cama de casal com um pano). Psiu!, Silêncio! Vou pegar outro brinquedo. Psiu! Ele está dormindo (João pega do armário um ja- caré e, mexendo um pouco ansioso nos outros brinquedos, pega também um pequeno bone- co, que ele denomina de ‘diabo’). Olha! O que vai acontecer! Este (diabo) está tentando en- trar no quarto.” E – “E daí?” J – “Quer pegar a mãe do garoto, quer tirá- la da cama, mas isso não vai acontecer por- que.... olha! O jacaré lhe morde a perna (faz a 104 JUREMA ALCIDES CUNHA encenação) e o arrasta para fora do quarto e o fecha num cercado. Quase perdeu a perna!” João monta um cercadinho com as outras madeiras, sempre fazendo como se fosse o ja- caré que estivesse montando o cercado, e co- loca dentro deste o diabo. Diz então: “Deu! Tudo em paz”. João expressou, de forma inteligente, con- teúdos conflitivos através de elementos sim- bólicos adequados à sua idade evolutiva, dei- xando transparecer o estádio psicossexual que atravessa. Parece ser uma criança dependente, com traços fóbicos, que teme ser abandonada ou rejeitada, especialmente pela figura da mãe, o que, de certa forma, se explica pela dinâmi- ca da fase edípica que atravessa. A brincadeira organizada por ele deixa em evidência a sua preocupação com a relação afetivo-sexual dos pais. Sente-se excluído e vivencia a impossibi- lidade de participar dessa união, através da fantasia da cena primária. Invadido pelos sen- timentos de ansiedade, ciúme e frustração fren- te aos rivais (pai e novo filho), precisa se de- fender com uma certa dose de atuação, inva- dindo a cama dos pais, mas imediatamente projeta e desloca os impulsos agressivos para o ambiente. Simbolicamente, transforma-se em diabo para ter coragem de roubar a mãe do pai, mas a fantasia de culpa e a ansiedade de castração facilitam o deslocamento do poder da lei do pai para o jacaré, estabelecendo a ordem através do castigo. Por último, a tolerância à frustração e a adequação à realidade são indicadores que têm relação com a aceitação ou não das instruções e enquadramento da hora de jogo, assim como da aceitação dos limites, do próprio papel e do papel do outro, da separação dos pais, do tempo de início e fim, do resultado dos jogos, etc. Tudo isso está intimamente relacionado com as possibilidades egóicas e com o princí- pio de prazer e realidade. Como se pode observar, a entrevista lúdica diagnóstica é uma técnica de avaliação clínica muito rica, que permite compreender a natu- reza do pensamento infantil, fornecendo infor- mações significativas do ponto de vista evolu- tivo, psicopatológico e psicodinâmico, possi- bilitando formular conclusões diagnósticas, prognósticas e indicações terapêuticas.
Compartilhar