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TECNOLOGIAS REPRODUTIVAS, ÉTICA E GÊNERO: O DEBATE LEGISLATIVO BRASILEIRO Debora Diniz1 A MEDICINA REPRODUTIVA NO BRASIL Em 1984, nasceu o primeiro bebê fruto de inseminação artificial no Brasil, um episódio que suscitou uma intensa polêmica, tanto sobre a veracidade do fato como também sobre a atribuição da autoria2. Desde então, a medicina reprodutiva brasileira vem acompanhando o que é feito nos principais centros de pesquisa e ensino do mundo, com um intercâmbio contínuo de experiências entre profissionais estrangeiros e nacionais. Mas, diferentemente de outras áreas do conhecimento médico, a medicina reprodutiva é basicamente um campo de atuação do setor privado, um dado que subverte a lógica tradicional da pesquisa e do ensino médico no país. De um modo geral, as inovações tecnológicas na área biomédica têm como porta de entrada no país os grandes hospitais públicos e universitários. A comunicação entre os setores público e privado depende, em larga medida, dos profissionais que trabalham nos dois campos e são responsáveis pela transferência da tecnologia. No caso da medicina reprodutiva, como o espaço preferencial de atuação tem sido até agora as clínicas e serviços privados, a relação com as universidades, por exemplo, ocorre mais tardiamente, 1 Doutora em Antropologia; Fellow Researcher do Interdisciplinary Gender Studies, Universidade de Leeds/Reino Unido; Pesquisadora Associada do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília/Brasil; Diretora da Organização Não-Governamental Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero; Member of the Board of Directors da Feminist Approaches to Bioethics Network. debdiniz@zaz.com.br. Agradeço a gentileza de Daniel Simeão, à equipe do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), especialmente a Almira Rodrigues, a Patrícia Álvares, do Conselho Federal de Medicina (CFM), e a Teresa Citeli, da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) pela cessão do material de pesquisa. Em especial a Marilena Corrêa pela discussão de questões fundamentais aqui presentes. Este artigo é resultado das pesquisas que desenvolvi no Centro de Estudos de Gênero, Leeds/UK, entre os meses de junho e setembro de 2000. Agradeço à Fundação Ford (Brasil) e ao British Council pelos financiamentos recebidos. A Sasha Roseneil, coordenadora do Centro de Estudos de Gênero, pela hospitalidade e amizade durante o período que estive em Leeds, e, em especial, a John Taylor pela amizade e sugestões. 2 Algumas das idéias discutidas nesta primeira seção foram originalmente desenvolvidas por Marilena Corrêa e Debora Diniz em Novas Tecnologias Reprodutivas no Brasil: um debate à espera de regulamentação, em artigo apresentado na “I Conferência Internacional de Ética e Gênero”, ocorrida em Leeds, Reino Unido, em junho de 2000. 2 sobretudo comparando-se às outras especialidades. Essa subversão da lógica tradicional do conhecimento biomédico vem imprimindo características particulares à prática da medicina reprodutiva no Brasil e, principalmente, de forma mais direta, ao debate bioético a respeito do uso dessas tecnologias. Ao mesmo tempo em que a entrada da medicina reprodutiva no Brasil se deu de forma precoce, especialmente se comparada a outros países também de medicina periférica, a difusão da técnica não foi acompanhada de debates sociais ou políticos sobre o tema. No campo dos estudos sócio-antropológicos, por exemplo, poucas foram as pesquisadoras de inspiração feminista que se debruçaram sobre o tema, muito embora o país tenha uma sólida tradição de estudos e pesquisas em saúde e direitos reprodutivos 3 . Grande parte das publicações relacionadas às novas tecnologias reprodutivas, quando não se restringem à discussão clínica propriamente dita, são de cunho jurídico e/ou religioso. Seria necessário uma análise das razões que possam ter contribuído para esse vazio nos estudos feministas, especialmente se considerarmos o fato de que as novas tecnologias reprodutivas compõem a pauta preferencial do jornalismo científico nacional. Histórias de mulheres gestando seis embriões ou mesmo especulações sobre o futuro da reprodução humana são temas recorrentes da mídia impressa brasileira, desde a popularização do tema em inícios dos anos 90, com a exibição de uma telenovela, na principal rede nacional de televisão, sobre a comercialização do útero4. Em finais dos anos 90, o anúncio da clonagem da ovelha 3 Houve, é claro, a aparição de algumas vozes feministas sobre o tema. Os escritos de Marilena Corrêa, por exemplo, médica e socióloga com atuação no campo da reprodução social, são bons indícios da potencialidade do campo no Brasil (Corrêa, Marilena. A tecnologia a serviço de um sonho Um estudo sobre a reprodução assistida no Brasil Tese de Doutorado. Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997). 4No artigo “Saúde Reprodutiva: mídia, ciência e humanidades”, Maria Teresa Citeli analisa essa relação da mídia brasileira com temas pontuais da saúde reprodutiva das mulheres. Guiada por uma ampla base de dados que mapeia os quatro principais jornais do Brasil, a autora traça um quadro comparativo elucidativo do impacto de cinco temas – aborto, câncer, Aids e DSTs, reprodução e cultura sexual – na mídia impressa. A categoria “reprodução”, por exemplo, onde se encontram representadas as novas tecnologias reprodutivas, representou cerca de 21% do total das matérias catalogadas pelo banco de dados (mimeo. 2000: 04). 3 Dolly e as discussões em torno do uso da técnica em humanos consolidaram definitivamente o tema das tecnologias reprodutivas no imaginário popular do país5. Nesse contexto pouco crítico frente à medicina reprodutiva, a bioética não foi uma exceção. Os poucos estudos bioéticos sobre o tema confundem-se com análises jurídicas e normativas de situações específicas, tais como a comercialização de útero ou o descarte de embriões supra-numerários, quase não havendo análises teóricas ou mesmo etnográficas relacionadas à realidade brasileira6. O resultado desse desinteresse das ciências sociais pelas questões relacionadas à medicina reprodutiva é a preponderância de argumentos clínicos e jurídicos no debate legislativo nacional. Ao contrário de outros países, onde a discussão em torno das tecnologias reprodutivas envolveu diversos setores da sociedade, constituindo um amplo exercício de debate democrático, no Brasil o processo legislativo vem sendo controlado e conduzido por representantes dos interesses de três grandes classes, nesta ordem de influência: a Medicina, o Direito e a Igreja Católica. O mais significativo é o fato de que esses três grupos não se diferenciam no que se refere às moralidades fundamentais que procuram defender pela lei, fazendo com que haja uma espécie de sobreposição de interesses entre as três categorias. Essa harmonia de interesses entre a medicina, o direito e a igreja católica, três instituições de referência para a sociedade brasileira, torna o debate ainda mais hermético, dificultando o acesso de outras perspectivas críticas, tais como as teorias feministas. Nesse artigo, iremos analisar a condução do processo legislativo brasileiro em torno das novas tecnologias reprodutivas, tendo como principal contraponto o debate ocorrido no Reino Unido, especialmente com a publicação do Warnock Report e as sugestões feitas pela Human Fertilisation and Embryology Authority (HFEA)7 . Dentre o conjunto do material analisado, enfatizaremos os projetos de lei em tramitação no 5 Ibiapina, Sergio & Diniz, Debora. “Mídia, Clonagem eBioética” In Cadernos de Saúde Pública. vol. 1, 2000. 6O fato é que grande parte dos estudos bioéticos sobre as novas tecnologias reprodutivas são antes apropriações indevidas do conceito da bioética que mesmo análises cuidadosas baseadas em referenciais teóricos já consolidados. 4 Congresso Nacional brasileiro, as declarações públicas e oficiais feitas pelos legisladores envolvidos na questão e as regulamentações da classe médica que vêm influenciando o processo legislativo8. Além da análise das proposições legislativas, incluímos também a seção da Justificativa dos projetos, pois é nela que o legislador discorre sobre o que considera como sendo o embasamento moral do projeto. Antecipamos, contudo, que apesar de a influência do Warnock Report ter sido fundamental no início do processo legislativo brasileiro, especialmente para a promulgação da primeira resolução médica sobre o assunto, a discussão, atualmente, se distancia do debate britânico. Os temas em pauta no debate legislativo brasileiro não são os mesmos que motivaram a execução do comitê consultivo inglês, muito embora estes últimos tenham impulsionado o início da discussão no Brasil, como ocorreu, por exemplo, com a questão da pesquisa científica com embriões humanos. O INÍCIO DO PROCESSO LEGISLATIVO Considerando que o nascimento do primeiro bebê de proveta foi um marco histórico no uso das tecnologias reprodutivas no Brasil, o início do debate legislativo foi tardio, sobretudo se levarmos em conta o fato de que o país carece de uma regulamentação de caráter nacional. Durante os primeiros sete anos de uso das novas tecnologias reprodutivas, não houve qualquer norma de controle dos procedimentos, sendo raros os registros ou dados sobre esse período. Como já foi dito em relação aos estudos feministas, o curioso desse descaso legislativo frente à medicina reprodutiva é 7 Warnock, Mary. Report of the Committee of Inquiry into Human Fertilisation and Embryology. Department of Health & Social Securty. July 1984. 8 Em linhas gerais, o processo legislativo brasileiro é conduzido da seguinte maneira: os deputados e senadores, que são eleitos pelo voto direto e compulsório, propõem projetos de lei que serão discutidos e modificados por relatores, discussões temáticas, audiências públicas, etc. O tempo de tramitação varia na mesma razão da intensidade do tema. No caso das novas tecnologias reprodutivas, por exemplo, o primeiro projeto de lei foi proposto em 1993 e até hoje não se firmou em torno da questão um consenso argumentativo que permita a sua consolidação em lei. É possível que projetos semelhantes, mas de autores diferentes, tramitem na Câmara e no Senado ao mesmo tempo, processo que ocorre atualmente no caso da regulamentação das tecnologias reprodutivas. No total, são três projetos de lei que encontram-se em discussão no Congresso Nacional brasileiro: dois na Câmara Federal e um no Senado. 5 seu descompasso frente à repercussão do tema na mídia e ao grande interesse despertado pelo assunto nos meios de comunicação em geral. Para se ter uma idéia do quanto o tema se constituía e ainda se constitui em um espetáculo midiático, em 1984 uma equipe médica firmou um contrato com uma rede de televisão, para o financiamento da vinda de especialistas australianos para o Brasil, visando a formação de um pequeno grupo de médicos brasileiros e cujo propósito final seria a transmissão, ao vivo, dos procedimentos técnicos envolvidos na fertilização in-vitro. O acordo era no sentido de registrar a cena da produção do primeiro bebê de proveta brasileiro, garantindo à empresa de comunicação os direitos de posse das imagens. A segunda parte do projeto, no entanto, a transmissão dos procedimentos da medicina reprodutiva, foi abandonada devido à morte de uma mulher em conseqüência de complicações das manipulações da fertilização in vitro (Fiv)9. Somente em 1993 foi proposto o primeiro projeto de lei sobre o tema no país. Conduzido pela Câmara dos Deputados, este projeto foi o que mais diretamente inspirou-se no Warnock Report e o que mais intensamente representou os interesses da classe médica no país. Segundo palavras de seu autor, “...as questões relativas à fertilização in-vitro, inseminação artificial, ‘barriga de aluguel’ e outras correlatas, conhecidas técnicas de reprodução assistida, têm preocupado a sociedade sob vários aspectos...”, fazendo com que seja necessário “...transformar a Resolução n. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina em norma legal, para fins de seu maior uso e respaldo social...”10. O Conselho Federal de Medicina (CFM) é a entidade da classe médica que estipula as normas para o exercício médico no país. Entre outras funções, tais como a de julgamento de erros médicos, o CFM estabelece critérios para o que se julga ser o padrão de prática profissional na medicina. De todos os médicos brasileiros é exigida a inscrição no CFM, pois só assim eles poderão exercer a profissão, muito 9 Corrêa, Marilena & Diniz, Debora New Reproductive Technologies in Brazil: a debate awainting regulation. mimeo. 8pp. Reis, A R Gomes A fertilização in-vitro no Brasil - A história contada, as estórias, mimeo (fonte: Biblioteca do Senado Federal), Brasília 1985 10Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 3.638. 1993: 07. Autoria Deputado Luiz Moreira. Relator: Deputado Marcelo Deda. 6 embora este seja um órgão privado e não seja o único que defenda os interesses dos médicos. O fato de ter sido o CFM a primeira entidade a regulamentar as novas tecnologias reprodutivas no Brasil não é sem justificativa. Por ser o órgão que define os preceitos da ética médica, isto é, as regras de conduta para o exercício da medicina, o CFM adquiriu força e legitimidade sociais muito acima de suas funções técnicas e administrativas. A responsabilidade pelo código de ética médica lhe conferiu uma suposta autoridade supramoral no campo da ética aplicada à saúde. Entretanto, ao regulamentarem os deveres e direitos do médico, as resoluções do Conselho estipulam também os deveres e direitos dos usuários dos serviços, fazendo com que as regras de conduta profissional dos médicos se tornem os parâmetros morais de julgamento para os casos de conflito moral. A forma como se iniciou o processo legislativo em torno das novas tecnologias reprodutivas não é apenas um exemplo do prestígio moral do CFM, mas também aponta para a idéia amplamente aceita de que, no campo da saúde e da doença, a autoridade técnica prevaleceria sob as crenças morais individuais. A crença de que a tarefa de mediação dos conflitos morais na medicina seria também da alçada do Conselho é pouco contestada no país, especialmente entre os usuários dos serviços médicos ou mesmo por outras profissões no campo da saúde. Considera-se que a ética profissional do médico deva ser também o padrão de conduta moral de todos os envolvidos no serviço de saúde, uma premissa que reforça a autoridade do médicos na estrutura sanitária nacional. Sendo assim, para o deputado autor do primeiro projeto de lei no país sobre tecnologias reprodutivas, basear-se na resolução do CFM foi, no mínimo, uma situação confortável. Na época, acreditava-se que não haveria problemas na transformação da resolução em projeto, nem tampouco na transformação deste, por conseguinte, em lei. A salvaguarda do CFM associada à pouca discussão do tema no país garantiriam a rapidez no processo. Como demonstraremos, o encaminhamento do processo não foi tão fácil assim, especialmente após o anúncio de experimentoscientíficos internacionais com embriões humanos, o que foi tornando o tema mais atrativo para os legisladores. 7 Com a ampliação do debate no Legislativo, a Resolução do Conselho, apesar de ainda ser uma referência importante para a regulamentação, deixou de ser considerada a peça-chave para o processo, a tal ponto de este primeiro projeto ter perdido parte de sua força no debate nacional. OS PROJETOS DE LEI Atualmente, são três os projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional brasileiro. Para fins deste artigo, iremos denominá-los pela ordem de proposição. O Projeto 1 foi proposto em 1993, e é de autoria de um deputado federal; o Projeto 2 foi proposto em 1997, também de autoria de um deputado federal e o Projeto 3 foi proposto em 1999 e é de autoria de um senador. O quadro a seguir é um resumo das principais proposições de cada projeto, as quais servirão de referência para a análise comparativa com o Warnock Report e as sugestões da HFEA11: Assunto Projeto 1 (1993) Público-Alvo Mulheres ou casais inférteis Clonagem Não menciona Consentimento Necessidade da autorização da mulher e do cônjuge Transferência de Embriões Máximo de 4 por tentativa Descarte de Embriões Proíbe Redução Embrionária Proíbe Pesquisa com Embriões Proíbe Doação Sigilo Comercialização Proíbe 11 Quadro semelhante foi proposto inicialmente pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), de onde nos baseamos para a elaboração deste. Mimeo. Brasília. 2000. 8 Assunto Projeto 2 (1997) Público-Alvo Mulheres ou casais inférteis Clonagem Proíbe Consentimento Somente da mulher Transferência de Embriões Máximo de 4 por tentativa Descarte de Embriões Permite após 5 anos Redução Embrionária Permite caso de risco de vida da gestante Pesquisa com Embriões Permite com ressalvas Doação Sigilo Comercialização Proíbe Assunto Projeto 3 (1999) Público-Alvo Mulher casada/idade reprodutiva Clonagem Não menciona Consentimento Necessidade da autorização da mulher e do cônjuge Transferência de Embriões Máximo 3 por tentativa12 Descarte de Embriões Proíbe Redução Embrionária Permite em caso de risco de vida da gestante Pesquisa com Embriões Não menciona Doação Possibilidade de quebra de sigilo Comercialização Proíbe Vale pontuar algumas características gerais de cada projeto. O Projeto 1, por ter sido o pioneiro no país, é o mais superficial de todos. Caracteriza-se por ter adotado uma visão abrangente sobre o assunto, um dado que lhe imprime uma certa leveza quando comparado ao Projeto 3. É também o projeto que mais diretamente representa 12 Algumas modificações do Projeto 3 foram decididas na última reunião da “Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça” e ainda não foram incorporadas à versão disponibilizada do projeto. Os itens modificados foram o número de embriões transferidos por ciclo (reduzido de quatro para três) e a determinação da exclusão de penalidade para a redução embrionária em caso de risco de vida para a mãe. O relato completo da reunião encontra-se nas atas da comissão citada. Senado Federal. Secretaria-Geral da Mesa. Serviço de Comissões. Reunião Ordinária da Comissão de Cidadania e Justiça. 12/04/2000. 9 os interesses dos médicos. O Projeto 2 é o que demonstra uma maior preocupação com a terminologia e os preceitos científicos, fazendo referências mais minuciosas a cada prática. Propõe a criação de uma “Comissão Nacional de Reprodução Humana Assistida”, um órgão com papel regulador e controlador da execução da lei, semelhante ao HFEA. O Projeto 3 é o que se encontra em uma fase mais avançada em termos de encaminhamento no Legislativo e o que vem suscitando maior debate social, muito embora tenha sido o último a iniciar a tramitação. É o projeto mais extenso entre os três e o que apresenta maior inspiração jurídica. WARNOCK REPORT, HFEA E OS PROJETOS DE LEI BRASILEIROS Para esta análise comparativa do processo legislativo brasileiro em relação ao britânico, vale lembrar as palavras iniciais de Mary Warnock ao introduzir as recomendações do comitê: “...in recommending legislation, then, we are recommending a kind of society that we can, all of us, praise and admire...”13. A admiração a que se refere Warnock não é uma mera relação contemplativa com um certo ideal de sociedade, e sim a busca da concretização desse ideal por intermédio da lei. A lei se torna, então, o instrumento legítimo e eficaz de imposição de determinada configuração social. Certas premissas morais sobre o ideal de sociedade subsidiam qualquer processo legislativo, especialmente em temas tão fundamentais como a reprodução biológica e social. Há, portanto, um jogo contínuo entre as moralidades que deverão ser defendidas pela lei e as moralidades passíveis de contestação. Neste contraste com o caso britânico, analisaremos os pressupostos morais de três categorias essenciais para o debate sobre as novas tecnologias reprodutivas no Brasil: o estatuto da criança resultante das técnicas; o número de embriões transferidos por ciclo (e seu correlato, a redução embrionária) e a questão da elegibilidade das mulheres a serem submetidas a tais técnicas. 13Warnock, Mary. Report of the Committee of Inquiry into Human Fertilisation and Embryology. Department of Health & Social Securty. July 1984: 3. 10 O Estatuto da Criança Os projetos 1 e 2 não mencionam a categoria criança, restringindo-se a expressões como pré-embrião, embrião ou feto. A criança foi uma entidade surgida com o Projeto 3, certamente influenciado pelas sugestões da última versão do Code of Practice da HFEA, onde temas como o bem-estar da criança são predominantes14. Boa parte da extensão do Projeto 3 representa uma incorporação de determinações feitas pela HFEA, em uma clara confusão de atribuições entre o papel do Legislativo e o que deveria ser determinado pelo CFM ou por uma comissão nacional de reprodução humana assistida. O fato é que, apesar do termo criança ter sido recentemente retirado do texto legislativo (mediante uma sugestão feita por um grupo de juristas que acompanham o Projeto 3), na seção da Justificativa se lê: “...chamamos mais uma vez a atenção para o fato de que, ao escolher a linha mestra de proteger a criança, este projeto fortalece o princípio da paternidade responsável...” (sem grifos no original) 15 . Obviamente, a própria escolha do termo criança em detrimento de embrião ou feto é intencional. O impacto afetivo da defesa dos interesses de uma criança quando comparado à de um embrião ou feto é muito maior, além do que retira-se de cena o debate sobre o estatuto do embrião, um tema ainda pouco explorado no país e, portanto, longe de um consenso. O curioso é que não se define a categoria criança no Projeto 3. A eficácia do conceito está exatamente nesta ambigüidade, pois ao pressupor um consenso prévio sobre seu sentido, a defesa de seu uso semântico torna-se mais simples. Ou seja, ao mesmo tempo que supostamente não se tem dúvidas sobre o que venha a ser uma criança e sua 14HFEA Code of Practice. 4 ed. July 1998. Uma análise comparativa do sentido da categoria criança no processo legislativo brasileiro com a categoria embrião anglo-saxã seria interessante. Algumas das observações feitas por Sarah Franklin sobre o estatuto do embrião nas leis inglesas lembram a categoria criança no contexto brasileiro: “...this is why the embryo is ‘special’: it is connected to us... in this sense to debate embryogenesis isto debate humanity...” (“Making Representation: the parliamentary debate on the human fertilisation and embryology act”. Edwards, Jeanette et al (eds). Technologies of Procreation: kinship in the age of assisted conception. 2 ed. London/NY. Routledge. 1999: 141). 15 Senado Federal. Projeto de Lei do Senado. n. 90, 1999: 23. Autoria: Senador Lúcio Alcântara. Relatoria: Senador Roberto Requião. 11 dignidade social, a ambigüidade do termo permite que o sentido se transmude a depender das situações. Ao discutir, por exemplo, a elegibilidade para as técnicas de reprodução assistida, não se enfrenta diretamente a questão da família heterossexual como a única elegível, mas sim faz-se insinuações às relações sociais da criança, como sendo a referência do julgamento: “...diante de todas essas possibilidades, a grande questão surgida a partir do desenvolvimento da reprodução assistida diz respeito exatamente a suas conseqüências para o estado de filiação da criança...” 16 . Deliberadamente, o Projeto 3 confunde filiação, consangüinidade e parentesco, fazendo com que as três categorias sejam sinônimas para a defesa do que se pressupõe serem os interesses da criança. Neste contexto, criança torna-se sinônimo de parentesco determinado pela consangüinidade de uma filiação legítima surgida a partir de um casamento heterossexual. A importância da consangüinidade e do vínculo genético entre a criança e seus genitores é tão intensa que, para desencorajar a doação heteróloga de gametas, o texto prevê a possibilidade da quebra do sigilo do doador após a maioridade da criança: “...em relação à utilização de gameta de um doador anônimo para possibilitar o nascimento de uma criança legalmente sem pai, o projeto propõe um meio efetivo de dissuasão: possibilitar à criança que vier a nascer que exerça o direito de exigir do doador o reconhecimento de paternidade, direito esse que também deve ser estendido ao doador que queira reclamar a paternidade da criança...” (sem grifos no original)17. Na verdade, a estratégia do risco da quebra de sigilo do doador é uma saída eficaz para coibir a possibilidade de que outros arranjos matrimoniais que não a família heterossexual tenham acesso às técnicas, uma vez que poucas pessoas se prontificarão a doar esperma ou óvulo diante do risco de identificação futura e das conseqüências jurídicas do ato. O que se desenvolve, no entanto, é um interessante subterfúgio argumentativo - o apelo à autonomia da criança em conhecer suas origens biológicas - 16 Senado Federal. Projeto de Lei do Senado. n. 90, 1999: 12. Autoria: Senador Lúcio Alcântara. Relatoria: Senador Roberto Requião. 17 Senado Federal. Projeto de Lei do Senado. n. 90, 1999: 8. Autoria: Senador Lúcio Alcântara. Relatoria: Senador Roberto Requião. 12 com o objetivo de limitar ao máximo a possibilidade de que mulheres solteiras ou casais de homossexuais tenham acesso à medicina reprodutiva por meio da doação anônima de gametas. Em outros momentos do Projeto 3, no entanto, criança torna-se sinônimo da essência do humano, de uma certa humanidade compartilhada que deve ser protegida contra abusos, tais como o risco do uso da técnica por mulheres solteiras ou homossexuais. Para argumentar o estatuto sagrado da criança, o texto propõe uma analogia com o meio ambiente que, apesar de extensa, transcrevemos: “...ainda que faltem postulados científicos ou constatações que possam ser estendidas para toda uma sociedade, é possível proceder a uma análise dos riscos a que se submetem as crianças nascidas com o emprego da reprodução assistida...assim sendo, da mesma forma como ocorre com um levantamento de impacto ambiental, se a avaliação relativa ao emprego da reprodução assistida trouxer à luz a possibilidade de sérios riscos para a criança... então deve-se recusar autorização ou idealizar mecanismos para desencorajar o recurso à reprodução assistida. Acreditamos ser preciso fazer pelas crianças do futuro o que hoje já se faz a respeito de qualquer inovação que se deseje implementar no ambiente: se existem sérios riscos, então as mudanças não serão feitas, mesmo que algumas pessoas as creiam vantajosas...”18 (sem grifos no original). As “crianças do futuro” representam a continuidade das moralidades defendidas pelo projeto, isto é, a garantia de que, assim como o meio ambiente é a condição necessária para a sobrevivência física da humanidade, a família heterossexual ou, segundo declaração do senador responsável pela revisão do projeto, a “família completa” se manterá como o núcleo básico da estrutura social 19 . O risco mencionado pelo projeto é o de que outros arranjos familiares tenham acesso à tecnologia reprodutiva e constituam famílias concorrentes à “família completa”. Sendo assim, a defesa dos interesses das “crianças do futuro” garante a manutenção do padrão heterossexual de família, bem como a esperança de que essas crianças garantirão a continuidade desses valores. 18 Senado Federal. Projeto de Lei do Senado. n. 90, 1999: 14/15. Autoria: Senador Lúcio Alcântara. Relatoria: Senador Roberto Requião 13 O fato é que a categoria criança está relacionada à defesa dos valores patriarcais ameaçados pelas novas tecnologias reprodutivas, pois, em larga medida, a criança representa os interesses masculinos que precisam ser garantidos pela lei. Os dispositivos legais previstos pelo projeto, e especialmente a seção de crimes, visam assegurar a necessidade da figura paterna, impedindo todo e quaisquer acesso de mulheres desvinculadas de uma união heterossexual, isto é, sem um companheiro masculino, à medicina reprodutiva. Essa condição inalienável da figura paterna para a eticidade das tecnologias reprodutivas no Brasil é um princípio que se harmoniza com as recomendações da HFEA para o Reino Unido: “...the Human Fertilisation Act and Embryology Act (1990) requires that the welfare of the child must be taken in account before any treatment can commence at a licensed centre...”, “...including the need of that child for a father...” (sem grifos no original)20. Mas, conforme veremos adiante, na seção sobre a elegibilidade, não são todos os projetos que pressupõem a necessidade da figura masculina para o acesso à medicina reprodutiva. Número de Embriões Transferidos No vocabulário normativo sobre as novas tecnologias reprodutivas, a categoria mulher parece inexistir, especialmente quando comparada à criança ou ao casal. Nos três projetos de lei analisados a mulher como uma entidade é raramente citada. Esse não parece ser um lapso legislativo exclusivo do Brasil, uma vez que no Code of Practice da HFEA, por exemplo, há seções específicas sobre o bem estar da criança, sobre doadores e clientes, não havendo, no entanto, nenhuma informação direcionada exclusivamente à situação das mulheres envolvidas na medicina reprodutiva. O Projeto 3 foi o único que na Justificativa fez alguma menção à saúde das mulheres, ao considerar que: “...além das conseqüências físicas para as mulheres e das conseqüências jurídicas relacionadas à paternidade da criança...existe ainda a questão da baixa efetividade das 19Parecer n. , 1999. Da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania sobre o Projeto de Lei do Senado n. 90. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado. n. 90, 1999. 20 HFEA Standard Patient Information.. July 1998: 1. 14 técnicas, contra seu alto custo em termos financeiros, psicológicos e biológicos...”21. Muito embora o Projeto 3 tenha mencionadoa possibilidade de danos à saúde da mulher, os riscos foram comparados aos desdobramentos jurídicos que os homens podem sofrer quanto à paternidade ou mesmo aos custos financeiros inerentes ao processo. Essa desconsideração dos direitos e da saúde reprodutiva das mulheres submetidas às novas tecnologias reprodutivas se torna mais acentuada no debate acerca do número de embriões a serem transferidos por ciclo reprodutivo e na discussão sobre a redução embrionária. Diferentemente de outros países que optaram por não delimitar na lei o número de embriões a serem transferidos por ciclo, no Brasil essa vem sendo uma questão fundamental, impossível de ser resolvida senão por meio da imposição de uma lei. Devido à legislação nacional proibitiva em relação ao aborto – a interrupção da gestação é considerada crime com penalidades previstas em lei, exceto em casos de risco de vida materna e de gravidez resultante de estupro e se executado nos três primeiros meses de gestação22 –, o tema da transferência embrionária e seu correlato, a redução embrionária, tornaram-se a pauta preferencial de discussões. Somente para ser ter uma idéia do quanto a discussão legislativa em torno do aborto é delicada no país, pouco mais de oitenta projetos de lei já foram apresentados em toda a história do Congresso Nacional brasileiro, desde iniciativas extremamente liberais até mesmo de retrocesso da lei. Atualmente, não existe sequer um único projeto em tramitação com relatoria ativa, ou seja, a tendência de todos os projetos de lei sobre o tema do aborto é serem arquivados pela impossibilidade de continuidade ou mesmo de diálogo legislativo. Isso não significa que o tema não venha suscitando debates acalorados na sociedade, especialmente entre representantes de comunidades religiosas e movimentos 21 Senado Federal. Projeto de Lei do Senado. n. 90, 1999: 21. Autoria: Senador Lúcio Alcântara. Relatoria: Senador Roberto Requião. 22 O debate sobre a interrupção seletiva da gestação em casos de má formação fetal vem se intensificando no país. Hoje, apesar de tal prática ainda ser considerada crime, estima-se que mais de 400 interrupções seletivas de gestação já foram executadas no país, por meio de alvarás judiciais em nome da incompatibilidade do feto com a vida extra-uterina. Para uma análise das moralidades contidas nos primeiros alvarás judiciais brasileiros, vide: Diniz, Debora Selective Abortion in Brazil through juridical 15 feministas. Entretanto, o arquivamento de todos os projetos é um indicativo do quanto a discussão é considerada perigosa para a trajetória legislativa de um político. O tema da redução embrionária esteve presente desde o início do processo normativo brasileiro sobre a medicina reprodutiva, já com a resolução do CFM. Os projetos 1 e 2 prevêem a transferência de até quatro embriões por tentativa, ao passo que o Projeto 3 reduziu muito recentemente esse número para três. Todos os projetos proíbem a redução embrionária e alguns até mesmo sugerem severas penalidades para quem a praticar. Os projetos 2 e 3, no entanto, consideram a possibilidade de redução embrionária em casos em que não houver outro meio de salvar a vida da gestante. Durante os primeiros tempos de vigência da resolução do CFM, especialmente quando não havia regulamentações ou projetos concorrentes, eram comuns na mídia relatos de mulheres descrevendo a experiência da redução embrionária em decorrência de gestações múltiplas. Nesta fase, o discurso médico conseguiu ser soberano diante do princípio da santidade da vida do embrião, fazendo com que não se falasse em aborto, mas em seu correlato clínico, a redução embrionária. A medicalização da redução embrionária foi uma saída eficaz durante os primeiros tempos da medicina reprodutiva no Brasil, a despeito da Resolução proibitiva do CFM. Considerava-se a indicação da redução embrionária como parte necessária do tratamento reprodutivo e as clínicas que a praticavam não eram punidas23. O apelo a legislações de outros países, especialmente às recomendações do Warnock Report, onde não se estipulava o limite máximo de embriões a serem transferidos por ciclo ou mesmo não se deliberava diretamente sobre a redução embrionária, era um recurso de argumentação muito comum (especialmente no seguinte trecho do Warnock Report: “...though in some sense related, fell outside our terms of reference. Chief among these warrants. mimeo. 8pp (“O Aborto Seletivo nos Alvarás Judiciais Brasileiros”. In Bioética. vol.5, no1, pp.19-24, 1997). 23 A sobreposição de categorias entre redução embrionária e aborto foi uma estratégia muito semelhante à narrado por Ana Teresa Ortiz sobre as práticas de “desengravidar” desempenhadas por médicos dos serviços públicos da República Dominicana. Ao invés de se referirem ao aborto, proibido sob todas as formas no país, os médicos da pesquisa de Ortiz defendiam-se dizendo estar “desengravidando” as mulheres (“Bare-Handed Medicine and its elusive patients: the unstable 16 were abortion and contraception...”24). Os grupos anti-abortistas demoraram um certo tempo para reverter essa ressimbolização tecnológica do aborto pela medicina reprodutiva, embora a vitória tenha sido relativamente fácil. Hoje, todos os projetos em tramitação partem do princípio da intocabilidade da vida do embrião. A tal ponto as legislações internacionais mais flexíveis sobre o assunto são desconsideradas, aqui incluídas as recomendações da HFEA, que um dos senadores, ao se referir às leis de outros países, afirmou: “...existem aberrações no mundo a respeito disso. O projeto espanhol, por exemplo, é de uma violência incrível. Por outro lado, um país como a Alemanha, que viveu os absurdos das experiências com os seres humanos e com a vida, tem um projeto extraordinariamente mais duro ou tão duro e rigoroso quanto o nosso...”25. Pelas expressões “duro e rigoroso”, entenda-se a impossibilidade de redução embrionária ou a proibição de experimentos com embriões humanos, tais como a clonagem. O fato é que a gravidez multigemelar (considerada pela literatura especializada no assunto um dos principais efeitos colaterais da reprodução assistida) e a redução embrionária têm sido questões analisadas à luz da legislação nacional sobre o aborto e não como questões básicas de saúde da mulher ou ainda como restrições científicas da técnica26. O silêncio em torno da saúde da mulher em casos de gestações múltiplas une representantes dos interesses da medicina reprodutiva e das comunidades religiosas, em uma harmonia que, muitas vezes, impede que se perceba a diferença entre as construction of pregnant women and fetuses in Dominican obstetrics discourse” In Feminist Studies 23, n. 2 (Summer 1997): 263-289. 24 Warnock, Mary. Report of the Committee of Inquiry into Human Fertilisation and Embryology. Department of Health & Social Securty. July 1984: 5. 25 Senado Federal. Secretaria-Geral da Mesa. Serviço de Comissões. Reunião Ordinária da Comissão de Cidadania e Justiça. 12/04/2000:5. 26 Sobre o tema, vide por exemplo: Serour, Gamal I.; Aboulghar, Mohamed; Mansour, Ragaa, et ali. “Complications of medically assisted conception in 3.500 cycles”. In Fertility and Sterility, vol. 70, n. 4, October 1998: 638-642.; Martin, Peter M; Welch, Gilbert H. “Probabilities for Singleton and Multiple Pregnancies after in vitro Fertilization”. In Fertility and Sterility, vol. 70, n.3, September 1998: 478-481; Addor, Véronique; Santos-Eggimann, Brigitte; Fawer, Claire-Lise; Paccaud, Fred; Calame, André. “Impact of Infertility Treatments on the Health of Newborns”. In Fertility and Sterility, vol. 69, n. 2, February 1998: 210-215; Roest, Jan; van Heusden, Arne; Verhoeff, Arie; Mous, Harold; Zeilmaker, Gerard. “A Triplet Pregnancy after in vitro Fertilization is a Procedure-Related Complication that 17 particularidades de cada grupo. O resultado disso é a não discussão da relação entre o número de embriões a serem transferidos por ciclo, o risco da gravidez múltipla, a proibição da redução embrionária e a saúde da mulher, fases interdependentes das técnicas reprodutivas. Para os que defendem princípios religiosos, o que importa é a proibição da redução embrionária, ao passo que, para os praticantes da medicina reprodutiva, o importante é que não se alardeie a baixa eficácia das tecnologias reprodutivas. Ou seja, por razões diferentes, religiosas para uns e financeiras para outros, a conclusão legislativa vem sendo a mesma: não se toca no assunto da redução embrionária, um crime considerado bárbaro pelos legisladores, ao ponto de um deles, por ocasião da última discussão pública em torno do Projeto 3, referir-se ao tema da seguinte forma: “...não dá para continuarmos nessa discussão do tipo quem não quer punir a redução embrionária, porque são serial killers os defensores do aborto; porque a redução embrionária significa destruição de embriões que porventura significam vida...” (com grifos no original)27. Neste contexto de pressão religiosa e científica - de um lado, pela não redução embrionária e, por outro, para que se mantenha alto o número de embriões transferidos por ciclo em nome da baixa eficácia da técnica -, a saúde da mulher é um detalhe esquecido no debate. A diminuição de quatro para três embriões a serem transferidos por ciclo reprodutivo, uma sugestão inédita do Projeto 3, assim como a inclusão do excludente de penalidade para a redução embrionária em casos de risco de vida para a gestante, foram consideradas conquistas significativas pelos grupos que defendem a saúde reprodutiva das mulheres. Elegibilidade das Mulheres Durante um longo período, essa questão não foi alvo de discussão legislativa. Mulheres solteiras e/ou casadas tinham o mesmo direito de acesso às tecnologias should be Prevented by Replacement of two embryos only”. In Fertility and Sterility, vol. 67, n. 2, February 1997: 290-295. 27 Senado Federal. Secretaria-Geral da Mesa. Serviço de Comissões. Reunião Ordinária da Comissão de Cidadania e Justiça. 12/04/2000: 8. 18 reprodutivas, um passo inicialmente dado pela Resolução do CFM e incorporado pelos projetos de lei 1 e 2. O texto do Projeto 1 considera que “...toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta lei pode ser receptora das técnicas de reprodução assistida...”, ao passo que o Projeto 2 é ainda mais direto em sua indicação, “...toda mulher capaz, independentemente de seu estado civil, poderá ser usuária das técnicas de reprodução humana assistida...” (sem grifos no original) 28 . O Projeto 3, até muito recentemente, também considerava a possibilidade de mulheres solteiras virem a ter acesso às tecnologias reprodutivas, não sendo fundamental sua condição marital para a elegibilidade. Inesperadamente, no entanto, o Projeto 3, em uma linha argumentativa muito semelhante às proposições do Warnock Report e às recomendações da HFEA, retrocedeu. A nova versão do texto sugere que apenas as mulheres casadas ou em união estável poderão ter acesso às tecnologias reprodutivas: “...beneficiários aos cônjuges ou ao homem e à mulher em união estável...que tenham solicitado o emprego de reprodução assistida com o objetivo de procriar...” (sem grifos no original) 29 . Ou seja, mais do que exigir o consentimento do cônjuge ou companheiro, o projeto prevê a necessidade da união estável para a elegibilidade, um princípio de difícil mensuração e capaz de gerar sérias controvérsias sociais e morais, especialmente com a entrada das tecnologias reprodutivas no serviço público de saúde. Dentre outras possíveis interpretações para este retrocesso do Projeto 3 na questão da elegibilidade das mulheres, consideramos que duas razões foram fundamentais. A primeira delas é uma certa oposição e repulsa generalizadas às tecnologias reprodutivas por considerá-las “anti-naturais”, “desnecessárias” ou mesmo “ameaçadoras”, descrições regularmente utilizadas pelos legisladores responsáveis pelo projeto30. Em 28 Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 3.638. 1993: 02. Autoria Deputado Luiz Moreira. Relator: Deputado Marcelo Deda. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 2.855. 1997: 07. Autoria Deputado Confúcio Moura. Relatoria: Deputado Jorge Costa. 29 Senado Federal. Projeto de Lei do Senado. n. 90, 1999. Autoria: Senador Lúcio Alcântara. Relatoria: Senador Roberto Requião. Senado Federal. Secretaria-Geral da Mesa. Serviço de Comissões. Reunião Ordinária da Comissão de Cidadania e Justiça. 12/04/2000. 30 Senado Federal. Projeto de Lei do Senado. n. 90, 1999. Autoria: Senador Lúcio Alcântara. Relatoria: Senador Roberto Requião. 19 um debate com outros senadores acerca do tema, o relator responsável pela última versão do projeto, expressou da seguinte forma a sua indignação diante das técnicas reprodutivas: “...esse projeto refletiu a essência desses debates e a minha visão sobre esse problema...é um compromisso com a vida. Eu preferia que a reprodução assistida não ocorresse, mas ela ocorre e além de ocorrer está sem nenhuma disciplina...” (sem grifos no original) 31 . Em certo sentido, dificultar o acesso às tecnologias reprodutivas é uma estratégia eficaz de controle de algo considerado socialmente indesejável. O passo seguinte torna-se, então, o de tentar desvendar quais são as razões morais que sustentam essa repulsa pelas novas tecnologias reprodutivas. Como já foi dito anteriormente, a proteção da criança é a razão principal de tal repulsa pelas tecnologias reprodutivas. Mas, assim como a defesa dos interesses da criança pode ser um artifício para garantir certos privilégios e prerrogativas patriarcais dominantes na sociedade brasileira, a restrição da elegibilidade às mulheres em união estável garante que, com a popularização da medicina reprodutiva, não haverá o descarte da figura masculina. Por um lado, a criança estabelece a necessidade do pai para a composição da “família completa” e, por outro, a restrição da elegibilidade para as mulheres em união estável pressupõe a figura do cônjuge, uma exigência que imediatamente elimina a possibilidade de mulheres homossexuais recorrerem à reprodução assistida. Há um trecho da Justificativa do Projeto 3, onde se argumenta a proibição da comercialização de útero, que é elucidativo desse mal-estar patriarcal frente às tecnologias reprodutivas e à autonomia das mulheres. A rudeza expressiva do legislador, antes mesmo de ser um deslize de redação, demonstra a intensidade de seu temor diante da possibilidade da perda de controle sobre a reprodução das mulheres: “...se determinou um mecanismo para desencorajar mulheres, tanto as de meia-idade quanto aquelas que não sofram de infertilidade, de recorrerem à reprodução assistida pela vaidade de ter um filho fora da idade reprodutiva ou de não se submeter aos 31 Senado Federal. Secretaria-Geral da Mesa. Serviço de Comissões. Reunião Ordináriada Comissão de Cidadania e Justiça. 12/04/2000: 5. 20 efeitos indesejados de uma gravidez...” (sem grifos no original)32. A vulgaridade do uso do termo “vaidade” neste contexto não foi ao acaso, ainda mais se lembrarmos que poucas são as ocasiões que o projeto se dirige diretamente às mulheres, tal como faz o legislador neste trecho. Ao contrário das crianças que são dignas de defesa por sua fragilidade e vulnerabilidade social, as mulheres são alvo do controle masculino em nome de uma suposta e inexplicada “vaidade”. Cabe, portanto, à lei coibir os exageros da “vaidade” feminina, segundo os termos do legislador. POSSÍVEIS DESDOBRAMENTOS DO DEBATE LEGISLATIVO NO BRASIL Há um certo consenso de que é preciso regulamentar as tecnologias reprodutivas no Brasil, tanto no acesso quanto no exercício profissional relacionado às mesmas. Em nome dessa expectativa social e pelo desenrolar-se do processo legislativo, não nos restam dúvidas de que o país terá uma regulamentação de caráter nacional em um futuro próximo. Alguns temas, no entanto, deverão ser incorporados ou ao menos considerados nesta reta final. Considerando ser possível realizar projeções futuras acerca do debate legislativo, apontaríamos dois assuntos como emergentes. O primeiro será o da pesquisa científica com embriões e o segundo o da questão da alocação e das prioridades de recursos em saúde, especialmente com a disponibilização da medicina reprodutiva nos serviços públicos. Muito brevemente explicaremos o porquê da atenção futura a esses dois pontos. Os projetos 1 e 2 consideram o tema da pesquisa científica com embriões, com uma clara influência do Warnock Report. O Projeto 2, por exemplo, o mais cauteloso no assunto, destina uma seção do texto legislativo ao assunto, intitulada Da Investigação e Experimentação, onde se lê: “...os gametas humanos poderão ser objeto de investigação básica ou experimental, exclusivamente para fins de aperfeiçoamento das técnicas de 32 Senado Federal. Projeto de Lei do Senado. n. 90, 1999. Autoria: Senador Lúcio Alcântara. Relatoria: Senador Roberto Requião. 21 obtenção, amadurecimento de oócitos e crioconservação de óvulos...”33. O Projeto 3, por sua vez, adotou a perspectiva contrária, pois sequer menciona o problema, descartando a discussão, como não sendo da alçada do projeto ou mesmo como não sendo prioritária para o país neste momento. Temas como a clonagem, por exemplo, vêm sendo deixados à margem da discussão legislativa sobre as novas tecnologias reprodutivas, inseridos em projetos de lei específicos em tramitação no Congresso Nacional brasileiro. Os três projetos, vale ressaltar, mencionam a proibição do uso da medicina reprodutiva para a clonagem de seres humanos. Não nos restam dúvidas, especialmente em nome do compasso brasileiro com a pesquisa biomédica internacional, que a pesquisa científica com embriões humanos será um tema emergente das discussões legislativas em torno dos projetos citados 34 . Vale ainda lembrar que essa apartação da pesquisa científica do debate legislativo sobre as técnicas reprodutivas diferencia o caso brasileiro do anglo-saxão, onde esta junção foi considerada fundamental, senão a questão mais importante. Por fim, a segunda projeção de tema é resultado da introdução da medicina reprodutiva no serviço público de saúde. Esta, provavelmente, será uma das questões que mais dificuldade trará para o debate legislativo nacional. Até então o debate em torno das tecnologias reprodutivas no país esteve imerso em valores burgueses, tais como a reprodução da família heterossexual ou a determinação da filiação. Esse foi um viés resultante dos dilemas enfrentados pelos praticantes e usuários das técnicas, grosso modo um universo de pessoas com valores morais semelhantes. Até pouco tempo, a medicina reprodutiva era um serviço e um conjunto de técnicas somente acessíveis aos usuários dos serviços privados de saúde, ou seja, um grupo muito restrito de pessoas habilitadas a pagar os altos custos financeiros dos tratamentos. A novidade, no entanto, é a pressão que vem sendo feita, especialmente por parte de médicos interessados em 33 Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 2.855. 1997: 05. Autoria Deputado Confúcio Moura. Relatoria: Deputado Jorge Costa. 34 A Lei de Biotecnologia, n. 8.974/1995, entre outras questões, regulamenta “...as experiências com embriões humanos, células reprodutivas, material genético...”, propondo o princípio da indisponibilidade de material biológico e da pessoa. Esta lei, no entanto, não é referenciada pelos 22 legitimar o campo da medicina reprodutiva no país, no sentido de que as novas tecnologias reprodutivas sejam também oferecidas pelo sistema público de saúde. Em algumas cidades brasileiras alguns poucos hospitais especializados em saúde da mulher já oferecem este tipo de serviço, um tema digno de um estudo etnográfico, especialmente se contrastado aos serviços e valores da medicina reprodutiva privada. Indiferente ao fato de se a entrada da medicina reprodutiva no sistema público de saúde brasileiro representará ou não um passo para a democratização do conhecimento científico (um tema intensamente debatido por vários setores da sociedade brasileira e de fundamental importância para a bioética), a conseqüência imediata dessa transferência de tecnologia será a questão sobre as prioridades em saúde e, particularmente, sobre quais devam ser as prioridades no campo da saúde reprodutiva das mulheres. A relação custo/benefício das tecnologias reprodutivas é, hoje, um dos debates mais acalorados no campo da medicina reprodutiva em todo o mundo, especialmente porque toca nos interesses das companhias de seguro de saúde35. No Brasil, onde as carências e desigualdades do sistema sanitário nacional são imensas, este será um tema que definitivamente não poderá ser ignorado. Entretanto, como o movimento de introdução da medicina reprodutiva no serviço público de saúde vem sendo conduzido por médicos diretamente interessados na institucionalização definitiva da técnica, essa discussão tem sido até agora desconsiderada pelo debate legislativo. RESUMO Nesse artigo, analisamos a condução do processo legislativo brasileiro em torno das novas tecnologias reprodutivas, tendo como principal contraponto o debate ocorrido no Reino Unido, especialmente com a publicação do Warnock Report e as sugestões feitas pela Human Fertilisation and Embryology Authority (HFEA). Dentre o projetos de lei (Corrêa, Marilena & Diniz, Debora. Novas Tecnologias Reprodutivas no Brasil: um debate à espera de regulamentação. mimeo. 8pp. 2000). 35 Sobre o tema vide, por exemplo: Wallach, Edward. “Cost-Effective Treatment of the Infertile Couple” In Fertility and Sterility, vol. 70, n. 6, December 1998: 995-1005; Griffin, Martha; Panak, William F. “The Economics Cost of Infertility-Related Services: an examination of the Massachusetts infertility insurance mandate”. In Fertility and Sterility, vol. 70, n. 1, July 1998: 22-29; The Ethics Committee of the American Society for Reproductive Medicine. “Shared-Risk or Refund Programs in Assisted Reproduction”. In Fertility and Sterility, vol. 70, n. 3, September 1998: 414-415. 23 conjunto do material analisado, foi dada ênfase aos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional brasileiro, as declarações públicas e oficiais feitas pelos legisladores envolvidos na questão e as regulamentações da classe médica que vêm influenciandoo processo legislativo. Muito embora o uso das tecnologias reprodutivas não seja novidade no Brasil, o país ainda carece de uma regulamentação de caráter nacional sobre o assunto. A análise do material legislativo demonstrou que pouca atenção vem sendo dada à saúde e aos direitos reprodutivos das mulheres submetidas às tecnologias reprodutivas, sendo três questões consideradas moralmente prioritárias: os direitos e interesses da criança; a redução embrionária e a elegibilidade das mulheres.
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