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A PROCESSUALIZAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA The legal procedure for piercing the corporate veil Revista de Processo | vol. 254/2016 | p. 151 - 191 | Abr / 2016 DTR\2016\19679 José Tadeu Neves Xavier Doutor e Mestre em Direito pela UFRGS. Professor e Coordenador de Cursos de Pós-graduação da Faculdade IDC. Professor da Faculdade Fundação Escola Superior do Ministério Público – FMP. Professor da Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul – Femargs. Advogado da União. jtadeunx@terra.com.br Área do Direito: Civil; Processual Resumo: O presente ensaio tem por escopo a análise do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no novo Código de Processo Civil. São abordadas as principais implicações que o referido incidente irá proporcionar no procedimento civil, com ênfase nas especificidades de sua instauração em primeiro grau e em sede de tribunais. Também é enfrentada a correlação entre a aplicação da disregard doctrine e a figura da fraude à execução. Palavras-chave: Desconsideração da personalidade jurídica - Incidente de desconsideração da personalidade jurídica - Novo Código de Processo Civil. Abstract: This article aims to analyze the incident of piercing the corporate veil on the new Civil Procedure Code. It will address the main implications that such incident will provide on the civil procedure, emphasizing the specifics of its establishment in lower and higher courts. In addition, the correlation between the application of the disregard doctrine and the figure of the fraud enforcement will also be addressed. Keywords: Piercing the corporate veil - The incident disregard of legal entity - New Civil Procedure Code. Sumário: 1Considerações introdutórias - 2A teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro: breve cenário sobre os aspectos materiais da disregard of the legal entity - 3A processualização da desconsideração da personalidade jurídica - 4O incidente de desconsideração da personalidade jurídica - 5A disregard of the legal entity e a caracterização de fraude à execução - 6Considerações finais - 7Referências bibliográficas 1 Considerações introdutórias O processo civil brasileiro vem experimentando, nas últimas décadas, uma série de reformas, as quais, de maneira frustrante, somente serviram para distanciá-lo ainda mais da realidade social que o acolhe. O desencanto com estes remendos que foram realizados no Código de Buzaid acabou por servir de estímulo para que a busca de solução dos inúmeros problemas da prestação jurisdicional brasileira desaguasse na elaboração de nova codificação processual. O advento do Código de Processo Civil de 2015 faz aflorar, no cenário jurídico nacional, em especial, dois sentimentos que, embora possam num primeiro momento parecer contraditórios, na verdade se complementam e descrevem com precisão a condição em que se encontra o sistema de tutela jurisdicional no Brasil. Estes sentimentos são a esperança e o medo. Esperamos que a nova legislação adjetiva propicie o início de nova fase na história do processo civil nacional, resultante do amadurecimento propiciado pela frustação em relação às sucessivas reformas que o antecederam, e que venha a assumir forte comprometimento com a concretização de modelo de processo justo e de resultado. O processo deve, ao mesmo tempo, se orientar pelos ditames do devido A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 1 processo legal, com contraditório efetivo, desenvolvimento transparente e cooperativo, e atuar como instrumento de efetivação dos direitos subjetivos daqueles que buscam o Judiciário como última instância de salvaguarda de seus direitos. O otimismo, porém, divide espaço com o medo de que as novidades da recente legislação não venham a se concretizar, representando textos vazios de mais uma legislação de passagem, sem encontrar eco na realidade do cotidiano das demandas judiciais, servindo apenas para confirmar a necessidade de se dar continuidade à infindável saga de reformas da legislação processual. É nesse cenário que a comunidade jurídica recebe a inserção do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, com expectativas e receios. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica representa um dos exemplos mais emblemáticos do ativismo jurisprudencial experimentados nas últimas décadas no cenário jurídico brasileiro. Apesar de sua origem estrangeira, a disregard doctrine encontrou no direito nacional terreno fértil para a sua consolidação, sendo atualmente tema de presença cativa em nossos debates jurídicos. A consagração da doutrina da desconsideração, num primeiro momento, ocorreu no ambiente pretoriano, o que se verifica a partir da década de 80 do século passado. A sua positivação ocorreu de forma tardia, sendo construída aos poucos, por meio de legislações esparsas, até alcançar plena realização com o advento do Código Civil de 2002, que a ela dedicou disposição normativa específica. A normatização, porém, ocorreu tão somente no plano material, de forma que o tema continuava carecendo de atenção no aspecto concernente a sua efetivação no plano processual, ambiente no qual ocorre sua aplicação. Tal lacuna abriu espaço para uma série de debates sobre a melhor forma de efetivação da desconsideração no seio do processo civil, de forma que viesse a se realizar sem ofensa aos ditames básicos do ordenamento constitucional e processual. A nova legislação processual, atendendo às reivindicações doutrinárias, realizou a positivação da normatização procedimental da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, prevendo a sua ocorrência e orientando a sua efetivação sob a técnica de incidente processual. A inovação está consolidada nos arts. 133 a 137 do CPC/2015 (LGL\2015\1656), com a inserção do incidente dentre as formas de intervenção de terceiros. Embora tal novidade não passe indene a críticas, a iniciativa do codificador é altamente louvável e representa passo histórico na consolidação de nova fase para a concretização da disregard doctrine no direito brasileiro. 2 A teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro: breve cenário sobre os aspectos materiais da disregard of the legal entity A concepção da pessoa jurídica como entidade dotada de autonomia, sendo considerada como sujeito de direito distinto em relação aos membros que a compõem, comumente agregada ao regime de limitação de responsabilidade, traz à tona a inevitável problemática resultante da possibilidade de sua utilização de forma abusiva, ou seja, desvirtuada dos fins que inspiraram a sua inserção no pensamento jurídico. Na busca de encontrar solução adequada a essa indesejada situação, o ativismo pretoriano desenvolveu a chamada teoria da desconsideração da personalidade jurídica, autorizando o julgador, quando da análise do caso concreto, desprezar os efeitos da personificação, mormente em relação à limitação de responsabilidade e, consequentemente, atribuir as obrigações por dívidas, formalmente pertencentes à entidade aos seus membros ou administradores. A formulação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica teve início no ventre da jurisprudência da common law, em decisões que datam do século XIX, onde ficou conhecida como disregard doctrine, piercing the corporate veil, lifting the corporate veil ou cracking open the corporate shell. Há clássica controvérsia doutrinária sobre o verdadeiro leading case pioneiro no tema, polarizando-se entre o caso Banck of Unied A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 2 States vs Deveaux, julgado em 1807, no sistema norte-americano, e o caseSalomon vs Salomon Co. Ltda, do direito inglês, datado de 1897,1 que deu origem ao chamado salomon principle, que ainda hoje orienta decisões do sistema da common law. No modelo da civil law a estruturação da teoriada desconsideração da personalidade jurídica é atribuída à Rolf Serick, que sistematizou a doutrina no direito germânico por meio de tese defendida perante à Universidade de Tubigen, em 1953, publicada posteriormente sob o título Aparencia y realidad en las sociedades mercantiles,2 que foi acompanhada, na doutrina italiana, do estudo formulado por Piero Verrucoli, Il superamento della personalità giuridica delle società di capitali nella Common Law e nella Civil Law.3 No direito nacional as primeiras notícias sobre a aplicação da teoria da desconsideração datam de 1955, em julgamento realizado pelo TJSP, que fundado na existência de confusão patrimonial entre sócio e sociedade, afastou o dogma da separação de esferas econômicas entre a entidade e seus membros, responsabilizando o sócio de sociedade dedicada ao ramo empresarial, que se valeu da personalidade da entidade para adquirir bens de uso doméstico.4 No âmbito acadêmico nacional o pioneirismo no estudo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é atribuído ao jurista Rubens Requião, que em 1969, proferiu conferência sobre o tema na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, a qual teve versão escrita publicada sob o título Abuso e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine).5 A esse trabalho se sucederam dois estudos atualmente considerados clássicos na abordagem do assunto. Em 1976 Fábio Konder Comparato publicou a obra Poder de controle na sociedade anônima6 e, em 1979, Lamartine Corrêa de Oliveira editou ensaio intitulado A dupla crise da pessoa jurídica.7 Na seara legislativa o pioneirismo na positivação do tema é atribuído à legislação consumerista, no que foi seguida de algumas leis especiais. O Código de Defesa do Consumidor normatizou a teoria da desconsideração no art. 28, dispondo: "O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração". No § 5.º deste dispositivo é autorizada a aplicação desta teoria sempre que a sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.8 Em 1994 a Lei Antitruste - Lei 8.884/1994, art. 18 - praticamente repetiu a previsão contida no caput do art. 28 da Legislação Consumerista, permitindo a aplicação da teoria da desconsideração na atividade de prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica.9 Atualmente a referida norma encontra-se revogada, tendo sido sucedida pela Lei 12.529/2011, que mantém a possibilidade de aplicação da disregard doctrine com instrumento de sanção às práticas de infração à ordem econômica ("Art. 34. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. Parágrafo único. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração").10 A disregard doctrine também foi positivada no regramento sobre a responsabilidade ambiental (Lei 9.605/1995), que em seu art. 4.º prevê: "Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente". Finalmente, a Codificação Civil de 2002 trouxe a cláusula geral da teoria da desconsideração para o direito privado nacional, em seu art. 50 ("Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica").11 Mais A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 3 recentemente a legislação anticorrupção (Lei 12.846/2013) normatizou a desconsideração na seara administrativa, ou seja, independentemente de decisão judicial, prevendo em seu art. 14, que "A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática de atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa". Em todas estas disposições, que positivaram a disregard of the legal entity, sempre foi preservada a noção de que tal disciplina não visa atingir à extinção da pessoa jurídica, representando, portanto, hipótese de ineficácia episódica do fenômeno da personificação, afastando, tão somente para o caso concreto, as consequências da separação patrimonial, estendendo a responsabilidade por determinados atos aos sócios ou administradores da pessoa jurídica, atingindo, assim o patrimônio pessoal destes.12 O mosaico referente à normatização da doutrina da desconsideração propiciou a consolidação de duas teorias propostas por Fábio Ulhoa Coelho, para sistematização do tema.13 Na visão deste autor há duas possiblidades de efetivação da disregard doctrine, chamadas de teoria maior e menor. A primeira não se contenta com a mera insolvência patrimonial da pessoa jurídica para que se busque a responsabilidade pessoal dos seus membros ou administradores, impondo também a necessidade de existência de abuso na utilização da entidade personificada. A sua incidência é verificada na aplicação das disposições constantes do art. 50 do CC/2002 (LGL\2002\400), do art. 28, caput, do CDC (LGL\1990\40), e na legislação antitruste. A teoria menor, por sua vez, autoriza o levantamento do véu que encobre a entidade pela mera verificação de insolvência da pessoa jurídica que vier a ocasionar prejuízos à realização dos direitos dos credores. Nesta modalidade a análise da ocorrência de conduta abusiva na utilização do entre personificado é despicienda. Esta versão é efetivada na aplicação da previsão constante do § 5.º do art. 28 do CDC (LGL\1990\40) e no regramento sobre de responsabilidade ambiental. Em relação a está última, Alexandre Freitas Câmara explica pontualmente que "nos processos que versem sobre matéria ambiental o único requisito para a desconsideração da personalidade jurídica é que a sociedade não tenha patrimônio suficiente para assegurar a reparação do dano ambiental e que tenha causado, permitida, assim, a extensão da responsabilidade patrimonial do sócio (ou vice-versa, no caso de desconsideração inversa), pouco importando se houve dolo, fraude, má-fé ou qualquer outra forma de se qualificar a intenção de quem praticou o ato poluidor".14 A autonomia e, por conseguinte, o convívio dessas teorias sobre a aplicação da disregard doctrine em nosso sistema jurídico foi ratificada, tanto nas Jornadas de Direito Civil quanto nas Jornadas de Direito Comercial. Na primeira o enunciado 51 conclui que: "A teoria da desconsideração da personalidade jurídica - disregard doctrine - fica positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema". Na Jornada da disciplina mercantil foi publicado o enunciado 9, dispondo: "Quando aplicado às relações jurídicas empresariais, o art. 50 do Código Civil (LGL\2002\400) não pode ser interpretado analogamente ao art. 28, § 5.º, do CDC (LGL\1990\40) ou ao art. 2.º, § 2.º, da CLT (LGL\1943\5)".15 2.1 Variações da teoria da desconsideração da personalidadejurídica A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, desde a sua inserção nos debates jurídicos nacionais, alcançou extraordinária órbita de aplicação, se fazendo presente no âmbito dos mais diversos ramos do direito, e de forma bastante diversificada. Atualmente, dentre as várias formas de classificação possível da aplicação da disregard doctrine, tem sido diálogo comum entre os juristas pátrios a sua classificação em teoria da desconsideração propriamente dita (ou direta) e teoria da desconsideração inversa. Na sua versão tradicional a presença dos motivos ensejadores da desconsideração da A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 4 personalidade jurídica irá provocar a extensão dos efeitos obrigacionais, e por consequência da responsabilidade patrimonial, aos administradores ou sócios da entidade. A disregard doctrine torna-se, então, o caminho para a penetração no âmbito da responsabilidade pessoal dos administradores ou sócios da pessoa jurídica, passando estes a assumir as obrigações que em tese estariam relacionadas ao ente personificado. As previsões normativas, mormente a cláusula geral do art. 50 da Codificação Civil, indicam a concretização da teoria da desconsideração nesta versão tradicional, que representa, portanto, a regra geral sobre a sua aplicação. A chamada desconsideração inversa da personalidade jurídica, representa derivação da noção tradicional da disregard doctrine, tendo alcançado considerável projeção nos últimos tempos. Como a expressa já indica de plano, nesta hipótese a pessoa jurídica é utilizada de forma abusiva para acobertar bens pessoais de seus sócios16 - visíveis ou ocultos - sendo lembrada com mais frequência para resolver lides referente a partilha patrimonial no direito de família, quando um dos cônjuges ou companheiros, com a intenção de fraudar a futura divisão de bens em relação ao outro membro do casal, realiza transferências patrimoniais para determinada sociedade.17 É interessante destacar que o novo Código de Processo Civil faz referência expressa à aceitação da aplicação desta modalidade de disregard doctrine, que já havia sido consagrada nas Jornadas de Direito Civil, que por meio do enunciado 283, conclui: "é cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada 'inversa' para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros". 3 A processualização da desconsideração da personalidade jurídica A efetividade processual deve ser a tônica de todo a instrumentalização da prestação jurisdicional, o que passa necessariamente pela existência de mecanismos processuais aptos a realizarem os direitos materiais existentes no ordenamento jurídico. Nas precisas palavras de Osmar Vieira da Silva "o processo é o ponto de travessia do lado abstrato para o lado concreto da norma jurídica não podendo perder sua função de instrumento para a realização do direito material".18 O valor maior do sistema processual é a tutela e realização dos direitos, alcançando ao sujeito aquilo que lhe for devido, sem retardamentos ou óbices formais desnecessários. A partir do advento do Código Civil de 2002, com a positivação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, e a consequente ampliação da sua utilização pelos tribunais, começaram os debates sobre o regramento dos aspectos processuais que a acompanham. Inicialmente, por iniciativa do Deputado Federal Ricardo Fiuza, foi apresentado no Congresso Nacional o PL 2.426/2003, buscando disciplinar a aplicação do disposto no art. 50 do CC/2002 (LGL\2002\400).19 O referido projeto sugeriu regulamentação detalhada sobre a aplicação da teoria, regulando, inclusive, a dispondo a sua aplicação nas lides trabalhistas. Entretanto, tal iniciativa legislativa não vingou. Agora, a sistemática instaurada pela nova codificação processual, fundada em bases comprometidas com a qualidade e efetividade da prestação jurisdicional e calcada dentre outros princípios, na observância do contraditório efetivo, da cooperação e da boa-fé processual,20 apresenta duas maneiras levar a juízo o debate sobre a presença dos requisitos ensejadores da aplicação da teoria da desconsideração: o pedido originário e o incidental.21 3.1 O pedido de desconsideração de forma originária O tema será enfrentado de forma originária, quando a pretensão de descortinar o véu que protege a entidade personificada já é apresentado no momento da propositura da demanda, proporcionando litisconsórcio passivo22 desde o início do processo.23 Conforme leciona Osmar Vieira da Silva "quando a fraude na manipulação da personalidade jurídica A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 5 ocorrer anteriormente à propositura da ação pelo lesionado, a demanda deve ser ajuizada contra a pessoa jurídica, sendo a sociedade a ser desconsiderada parte plenamente legítima. Por outro lado, se o autor teme eventual frustração ao direito que pleiteia contra uma sociedade empresária, em razão da manipulação fraudulenta da autonomia patrimonial no transcorrer do processo, ele não pode deixar de incluir, desde o início, no polo passivo da relação processual a pessoa ou as pessoas sobre cuja conduta incide o fundado temor".24 Nesta hipótese o sócio ou administrador (ou eventualmente a pessoa jurídica, no caso da desconsideração inversa) farão parte do processo desde o seu início, sendo citados para apresentar defesa e o julgador decidirá tanto sobre a adequação da sua responsabilização quanto sobre o mérito do pedido, ou seja, o objeto da demanda. A decisão sobre a desconsideração poderá ocorrer durante o curso do processo, na forma de interlocutória, ou vir inserida no corpo da sentença, ao final do feito. Também se encontra na doutrina, ao abordar esta forma de provocação da aplicação da teoria da desconsideração no âmbito processual, o debate sobre a natureza do litisconsórcio que é constituído nesta hipótese. Num primeiro momento não parece haver grandes celeumas quanto à classificação deste litisconsórcio como passivo facultativo, levando-se em consideração o critério da obrigatoriedade de formação do litisconsórcio.25 Porém, o mesmo não pode ser dito quanto ao debate sobre o seu enquadramento nas suas variações, polarizando-se os entendimentos entre as modalidades de litisconsórcio alternativo, eventual (ou subsidiário), e sucessivo. As referidas classificações estão relacionadas à presença de cumulação de pedidos na demanda que poderão ocasionar a ocorrência de litisconsórcio. Façamos uma breve síntese destas modalidades: (a) no litisconsórcio alternativo há cumulação de pedidos dirigidos, sendo cada um dirigido a determinada pessoa, mas apenas um dos pedidos poderá ser atendido, como se verifica, v.g., na consignação em pagamento quando há dúvida em relação a qual dos réus ostenta verdadeiramente a condição de credor, ou seja, esta modalidade terá oportunidade nos casos em que não for possível precisar, sem o exercício prévio da cognição, a perfeita legitimação processual correspondente à relação jurídica debatida na lide; (b) no litisconsórcio eventual ou subsidiário o segundo pedido somente será apreciado se o primeiro vier a ser afastado, sendo visível na hipótese de denunciação da lide formulada pelo autor; e, por fim, no (c) litisconsórcio sucessivo à análise do segundo pedido, atingindo o litisconsorte, dependerá do acolhimento da postulação formulada em relação ao outro demandado. Osmar Vieira da Silva defende o reconhecimento da existência litisconsórcio eventual ou subsidiário entre a pessoa jurídica que se pretende desconsiderar e aqueles que serão atingidos em sua responsabilidade patrimonial, no caso de acolhimento do pedido, argumentando que "no caso de responsabilidade subsidiária, na aplicação do art. 28 do CDC (LGL\1990\40), por exemplo, é possível ser proposta a demanda com litisconsórciofacultativo eventual", complementado: "se não for condenada a pessoa jurídica ou empresa-mãe, acolhida a desconsideração, será possível, desde logo, ser condenada a pessoa física, a empresa coligada ou integrante de grupo societário".26 Rodrigo Mazzei, por sua vez, defende que a existência de litisconsórcio sucessivo se encaixa perfeitamente nos parâmetros da desconsideração da personalidade jurídica, argumentando: "com efeito, os sócios e administradores da sociedade empresária, desde que figurantes do processo ou incidente de índole cognitiva (leia-se, em verdade, ação incidental), somente serão 'chamados' a responder pelos prejuízos causados pela pessoa jurídica - dentro de suas responsabilidades - após o julgamento de procedência contra ela, e, mesmo assim, se for verificado, dentro do gabarito legal de hipóteses, que o patrimônio do devedor originário (a sociedade) é insuficiente (ou há risco de ser insuficiente)".27 Fábio Ulhoa Coelho, no entanto, trilha entendimento em sentido diverso, defendendo a inexistência de litisconsórcio entre o ente personificado e aquele que se quer atingir com a desconsideração da personalidade jurídica, quando esta é postulada de forma originária, desde o início do feito. Na sua ótica, haveria legitimidade exclusiva daquele a A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 6 quem se quer imputar a responsabilidade, como decorrência do reconhecimento dos pressupostos ensejadores da disregard doctrine. Logo, o ente personificado seria parte ilegítima. O jurista explica sua opção: "quem pretende imputar a sócio ou sócios de uma sociedade empresária a responsabilidade por ato social, em virtude de fraude na manipulação da autonomia da pessoa jurídica, não deve demandar esta última, mas a pessoa ou as pessoas que quer ver responsabilizadas", acrescentando: "se a personalização da sociedade empresária será abstraída, desconsiderada, ignorada pelo juiz, então a sua participação na relação processual como demandada é uma impropriedade".28 Apesar dos respeitáveis argumentos do autor, acreditamos que a melhor técnica é aquela que mantém a formação de litisconsórcio entre a entidade personificada, com a qual o credor mantém relação jurídica, e o administrador ou sócio ao qual se pretende estender a responsabilidade. Em caso de reconhecimento da presença dos pressupostos necessários à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica ao caso, e houver a procedência do pedido que representa o objeto principal da demanda, a sentença terá aptidão para proporcionar efeito de coisa julgada, para ambos os litisconsortes. 3.2 Pedido incidental de desconsideração da personalidade jurídica A alegação poderá ocorrer também por meio de incidente processual, colocada na nova codificação como espécie de intervenção de terceiros, forma de ingresso forçado no feito, com aptidão para produzir eventual litisconsórcio passivo posterior, numa ampliação subjetiva da demanda.29 Tal inovação oferece uma série de vantagens, na medida em permite o debate e a eventual efetivação da teoria da desconsideração no mesmo feito, tornando despicienda a instauração de procedimento autônomo ou evitando que sejam negligenciados os postulados que balizam o ideal de realização do processo justo. Até então não havia uniformidade de entendimento sobre a processualização da teoria da desconsideração, mormente em relação a sua ocorrência durante o curso do processo. Não eram poucos os casos em que os tribunais acolhiam a possibilidade de aplicação da teoria da desconsideração no decorrer do curso da demanda, mas desprezando a necessidade de se atender a maiores formalidades prévias, optando por permitir o contraditório diferido, ou seja, postergado para momento posterior ao ato de aplicação do polo passivo. A citação prévia daqueles que seriam atingidos pela aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica acabava sendo dispensada, o que colocava em risco a efetivação do ideal de um processo justo, eis que conforme o ditame constitucional, ninguém poderá ser privado de seus bens sem o devido processo legal. Analisando esta postura dos tribunais Alexandre Freitas Câmara não poupou críticas a esta técnica procedimental equivocada, argumentando que este entendimento "contraria frontalmente o modelo constitucional de processo brasileiro, já que admite a produção de uma decisão que afeta diretamente os interesses de alguém sem que lhe seja assegurada a possibilidade de participar com influência na formação do aludido pronunciamento judicial", explicando: "ora, se ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal, então é absolutamente essencial que se permita àquele que está na iminência de ser privado de um bem que seja chamado a debater no processo se é ou não legítimo que seu patrimônio seja alcançado por força da desconsideração da personalidade jurídica".30 Por outro lado, não são poucos os precedentes em que se verifica a preocupação com o contraditório prévio como indispensável para a decisão sobre a aplicação incidenta da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Daniel Amorim Assumpção Neves, ao comentar sobre esta inovação procedimental, lembra que esta opção já se fazia presente em precedentes do STJ, que se fundava nos princípios da celeridade e da economia processual, explicando: "exigir um processo de conhecimento para se chegar à desconsideração da personalidade jurídica atrasaria de forma significativa a satisfação do direito, além de ser claramente um caminho mais complexo que um mero incidente A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 7 processual na própria execução ou na falência", concluindo assim que "tais motivos certamente influenciaram o legislador a consagrar a natureza de incidente processual ao pedido de desconsideração da personalidade jurídica".31 4 O incidente de desconsideração da personalidade jurídica O novo Código de Processo Civil inseriu o incidente de desconsideração da personalidade jurídica dentre as formas de terceiros no processo civil, disciplinando-o nos arts. 133 a 137,32 ao lado das técnicas tradicionais de intervenção de terceiros, como a denunciação da lide e o chamamento ao processo, e atribuindo tratamento instrumental especial ao tema. A inovação é de extrema importância e representa verdadeira dobra histórica no percurso que vem sendo trilhado pela teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito interno. Com esta atitude o legislador processual preenche sensível lacuna que vinha acompanhando as discussões sobre a maneira adequada de tratar processualmente a prática de atos de abuso da personalidade jurídica, bem como sobre a fixação de suas consequências no âmbito da tutela jurisdicional. A inovação proporcionada pelo codificador tem como ponto positivo, em especial à simplificação do debate processual sobre a questão da extensão da responsabilidade para além do ente personificado, pois permite a sua realização nos mesmos autos, o que depõe a favor da efetivação da instrumentalidade processual.33 4.1 Forma do pedido de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica Conforme a própria nomenclatura vem a expressar, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica vai ocorrer no curso do procedimento, mediante petição devidamente fundamentada, ofertada nos próprios autos e dirigida ao juiz da causa. É indispensável que o pedido seja motivado na presença dos pressupostos adequados para a responsabilização patrimonial dos sócios, administradores ou a sociedade (na hipótese de desconsideração inversa). A estrutura da petição lembra em muito àquela que é observada na confecção da petição inicial, devidamente adequada à condição de incidente (portanto, desprovida de indicação de valor da causa). Caberá ao requerente apontar quem se objetiva atingir com a postulação,apresentando sua adequada qualificação, de modo a permitir o competente ato citatório. Deverá ser exposta, ainda, a causa de pedir e os pedidos pertinentes ao escopo do incidente. Em síntese, é uma petição postulatória. Neste aspecto, Daniel Amorim Assumpção Neves critica a redação adotada no dispositivo legal, argumentando: "não foi feliz em prever que no requerimento cabe a parte demonstra o preenchimento dos pressupostos legais para a desconsideração, o que pode passar a equivocada impressão de que o requerente terá que apresentar prova pré-constituída e liminarmente demonstrar o cabimento da desconsideração", explicando: "na realidade o requerente não deve demonstrar, mas apenas alegar o preenchimento dos requisitos legais para a desconsideração, tendo o direito a produção de provas para convencer o juízo de sala alegação".34 Porém, como bem aponta Fredie Didier Jr. não basta a presença de afirmações genéricas de que a parte quer desconsiderar a personalidade jurídica da demandada em razão do princípio da efetividade ou da dignidade humana, pois "ao pedir a desconsideração, a parte ajuíza uma demanda contra alguém; deve, pois, observar os pressupostos do instrumento da demanda. Não custa lembrar: a desconsideração é uma sanção para a prática de atos ilícitos; é preciso que a suposta conduta seja descrita no requerimento, para que o sujeito possa defender-se dessa acusação".35 A legitimidade ativa para postular a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica é atribuída à parte interessada (credor), ou ao Ministério Público, A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 8 nos casos em que lhe couber intervir no processo. Os pressupostos para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica estão indicados nas regras de direito material, basicamente aqueles que constam da cláusula geral do art. 50 da Codificação Civil (desvio de finalidade ou confusão patrimonial), ou de alguma legislação esparsa que discipline a matéria objeto da demanda (como, v.g. a disposição do art. 28 da legislação consumerista). O procedimento previsto para o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, indicando a realização de contraditório prévio, não se mostra incompatível eventual concessão de tutela antecipada de urgência (art. 300 e ss. do CPC/2015 (LGL\2015\1656)), quando presentes os requisitos autorizados desta medida excepcional. Neste caso o contraditório ocorrerá de forma diferida. 4.1.1 Possibilidade de instauração ex officio A novidade da normatização do incidente de desconsideração traz à tona o debate sobre a possibilidade de ser efetivada de ofício pelo julgador, sem a necessidade, portanto, de provocação da parte interessada (ou do Ministério Público). Neste aspecto o caput do dispositivo normativo analisado é ratificado pela previsão contida no art. 795, § 4.º, dispondo que "Para a desconsideração da personalidade jurídica é obrigatória a observância do incidente previsto neste Código". Num primeiro momento parece bastante sedutora a adoção de um raciocínio mais simplista, adegado a estrita dicção legislativa, levando a conclusão de que a efetivação da disregard doctrine dependeria, sempre, da postulação da parte, conforme indicado no texto da lei. Nesta trilha seguem Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, defendendo que "segundo o CPC (LGL\2015\1656) 133, o juiz só analisará a possibilidade de desconsiderar a personalidade jurídica caso a parte interessada ou o MP requerer a providência. Não pode, pois, aplicar a desconsideração ex officio".36 Acreditamos que a questão deve ser focada com base na natureza do direito material envolvido na lide, o que nos afasta da aceitação de uma única solução, planificada para todas as matérias, independentemente do objeto envolvido na demanda. Tomemos como exemplo o direito do consumidor, qualificado por uma série de aspectos especiais que permitem que seja visualizado como direito de natureza indisponível, de modo a permitir a sua aplicação de ofício pelo julgador. A Constituição Federal, em seu art. 5.º, XXXII, eleva a defesa do consumidor à condição de Direito Fundamental; e no art. 179, V, coloca a matéria como princípio orientador da Ordem Econômica. No interior da legislação consumerista central há a indicação do Código de Defesa do Consumidor representar norma de ordem pública e interesse social (art. 1.º). Na oportunidade em que o Código de Consumidor regula a teoria da desconsideração da personalidade jurídica (art. 28), há indicação expressa no sentido de que "o juiz poderá aplicar a teoria", o que, como enfatiza Osmar Vieira da Silva, é norma dispositiva dirigida precipuamente ao juiz. E tudo, há que se concluir que a efetivação da desconsideração da personalidade jurídica nas demandas fundadas na defesa dos direitos do consumidor, o juiz poderá instaurar ex officio o incidente de desconsideração, tornando despicienda a necessidade de postulação do interessado ou do representante do Ministério Público.37 Seguindo-se a lição de Luis Alberto Reichelt "do ponto de vista hermenêutico, tem-se que, na dúvida entre duas ou mais interpretações resultantes do contraste entre o Código de Defesa do Consumidor e o projeto de novo Código de Processo Civil, impõe-se seja sempre adotada aquela que permita ao consumidor obter resultados mais satisfatórios ao seu interesse, sendo vedado o retrocesso".38 Note-se que nada impede que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica venha a ocorrer nas demandas que tenham por objeto relações de consumo, sendo instaurado por iniciativa do interessado ou do Ministério Público, quando então seguirá o procedimento consolidado na nova legislação processual. A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 9 4.2 Procedimento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica 4.2.1 Momento de instauração do incidente O texto normativo é enfático ao consignar que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica poderá ser instaurado em qualquer fase do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial. Tal previsão expõe claramente a intenção do legislador, no sentido de não estabelecer barreiras processuais para a efetivação da desconsideração da personalidade jurídica,39 alcançando inclusive a fase recursal.40 Embora o sentimento doutrinário pareça ser nitidamente favorável à sistemática perfilhada pelo novo Estatuto Processual, a adoção da técnica de permitir a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica na fase de conhecimento não foi recebida de forma pacífica pela doutrina. É possível visualizar no ambiente acadêmico certa dissidência, posicionando-se de forma a apenas aceitar o incidente da fase de cumprimento se sentença ou no processo de execução de título executivo extrajudicial. O argumento principal levantado por esta corrente doutrinária fundada é o fato da disregard doctrine visar estender a responsabilidade patrimonial aos membros da pessoa jurídica, ampliando a abrangência subjetiva do título executivo, o que somente encontraria razão de ocorrer na fase executiva. Nesta linha de raciocínio, o incidente de desconsideração, no processo de conhecimento, serviria apenas para declarar sobre a responsabilidade patrimonial do administrador, ou sócio (ou eventualmente da pessoa jurídica, na desconsideração inversa), não servindo para o condenar conjuntamente com o réu originário da demanda, eis que esta questão somente será definida na sentença que vier a julgar o feito. Nas palavras de Handel Martins Dias, o texto da nova Codificação Processual apresenta dois inconvenientes: "a) a dilação inapropriada do objeto do processo, em face da necessidade de se provar os requisitos para a desconsideração, quando sequer existe juízo de certeza de que a pessoa jurídica é devedorae/ou insolvente; e b) a eventual vã prestação de atividade jurisdicional, onerando em tempo e em dinheiro as partes e o Poder Judiciário, visto que a sentença pode não reconhecer o crédito cobrado da pessoa jurídica e/ou não se confirmar a insolvência dela", concluindo: "ao que parece, além do absoluto desvirtuamento do instituto (tornar obrigado quem não é), os riscos de se praticar inútil atividade jurisdicional, a evidente possibilidade de se ampliar indevidamente o tempo do processo e se tumultuar em vão a marcha processual não justificam o incidente durante o processo de conhecimento. Melhor seria admiti-lo apenas durante o processo de execução, quando há certeza de que a pessoa jurídica é devedora e se consubstancia a ausência de bens para satisfazer o crédito executado".41 Por outro lado, há aqueles que entendem ser o processo de conhecimento o momento mais oportuno para se debater a extensão da responsabilidade da pessoa jurídica aos seus membros ou administradores. Na doutrina argentina Leandro Javier Caputo rechaça el levantamiento del velo na fase de cumprimento de sentença, levando em consideração a limitação subjetiva que acompanha a coisa julgada, alcançando tão somente aqueles que participam da fase de cognitiva do feito, acrescentando, ainda que: "sin perjuicio de este reproche, puede alegarse en contra de esa posibilidad el curso de la prescripción, que no quedará suspendido ni interrumpido por la acción que se promueva contra la sociedad con fundamiento en las consecuencias de su actuación", e explicando: "vale dicir que, mientras el damnificado sigue el pleito contra la sociedad, podría estar curriendo el plazo de prescrición de la acción de imputación".42 A esta disposição normativa deve ser acrescida a indicação do art. 1.062 da nova codificação adjetiva, que permite o pedido de desconsideração da personalidade jurídica também nos processos de competência dos juizados especiais cíveis, o que é elogiado por Flávio Tartuce, afirmando: "como o incidente não traz grandes complexidades, não haveria qualquer óbice para a sua incidência nesses processos, constituindo-se em um A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 10 importante mecanismo que afasta a má-fé e pune sócios e administradores".43 Acompanhamos o autor nos elogios à inovação legislativa, mas acreditamos que a questão tenha que ser sopesada de forma tópica, pois nem sempre a investigação sobre a existência dos motivos ensejadores da aplicação da teoria da desconsideração irá se desenvolver sem grandes complexidades. É provável que o caso sob análise no juizado especial venha a impor a realização de prova pericial, incompatível com este procedimento simplificado, quando então a análise do feito deverá ser declinada para a justiça ordinária. Há que ser lembrada, ainda, a viabilidade deste incidente em sede de procedimentos especiais, como ocorre no processo de falência e nas demandas que envolvem processo coletivo. Sobre a viabilidade de efetivação da disregard doctrine nos autos da demanda falimentar, além de precedentes do STJ, que de longa data já perfilhavam esta orientação,44 há, inclusive, orientação do Fórum Permanente de Processo Civil, em seu enunciado 247, dispondo: "Aplica-se o incidente de desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar". Outro debate que surge em relação à extensão da aplicabilidade da teoria da desconsideração se dá em relação à sua aplicabilidade na esfera da Justiça do Trabalho. Este mesmo Fórum também apontou a viabilidade de extensão das regras do incidente de desconsideração da personalidade jurídica ao processo do trabalho, emitindo dois enunciados que consolidam esta orientação, o 124, dispondo que "A desconsideração da personalidade jurídica no processo do trabalho deve ser processada na forma dos arts. 133 a 137, podendo o incidente ser resolvido em decisão interlocutória ou na sentença" e o 126: "No processo do trabalho, da decisão que resolve o incidente de desconsideração da personalidade jurídica na fase de execução cabe agravo de petição, dispensado o preparo".45 Porém, não são poucas as críticas a esse posicionamento. Diversos estudiosos do direito laboral têm levantado argumentos em sentido contrário, com especial ênfase na incompatibilidade deste incidente com os princípios que direcionam o processo trabalhista. A título de demonstração colacionamos a doutrina trazida por Adalton Taglialegna, Serjana Campêlo e Rafael Carneiro, ao afirmarem que "o novo incidente de desconsideração da personalidade jurídica, previsto no Novo Código de Processo Civil, não é aplicável ao processo do trabalho porque, embora haja omissão de norma-regra na CLT (LGL\1943\5) (e não de norma-princípio), não passa pelo crivo das regras de contenção (CLT (LGL\1943\5), arts. 769 e 889) exigidas pelo direito processual do trabalho para o seu ingresso nesse universo, especialmente se considerarmos que não existe compatibilidade principiológica e tampouco utilidade do instituto para a efetividade do processo trabalhista", arrematando: "a simples omissão legal, em sentido estrito (norma-regra), não autoriza a atração do novo incidente porque não traz efetividade e muito menos simplicidade, características basilares do direito processual do trabalho".46 4.2.2 O pedido de desconsideração e a suspensão do processo A legislação indica que a instauração do incidente para aplicação da disregard doctrine deve ser comunicação ao setor encarregado da distribuição das demandas no órgão jurisdicional, para fim de realização dos devidos registros, o que representa decorrência natural da sua inserção deste incidente como forma de intervenção de terceiro. Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery observam que "a instauração do incidente justifica que seja transmitida informação a respeito ao distribuidor, não só para que ele possa ligar, pelo registro, o requerimento à ação de que se origina, mas principalmente para que conste dos registros a informação do pedido de desconsideração, o que pode interessar a eventuais outros credores da empresa".47 O legislador processual determinou que a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica acarretará a suspensão do processo até que este venha a ser decidido. O motivo desta imposição de suspensão processual é a necessidade de definição da dimensão subjetiva da lide, que somente será alcançada com o deslinde A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 11 deste incidente. Entretanto, José Miguel Garcia Medina mostra-se crítico a esta postura legislativa, argumentando que "não parece acertado suspender-se todo o processo, em razão da instauração do incidente. Mais adequado cingir-se eventual suspensão à questão da desconsideração - nada impedindo a prática de outros atos executivos, por exemplo, no curso do procedimento".48 Na mesma linha, Alexandre Freitas Câmara visualiza aqui forma de suspensão imprópria, explicando que não se esta frente a uma verdadeira e própria suspensão processual, sendo vedada apenas a prática de certos atos, ou seja, aqueles que não integram o procedimento do incidente.49 Portanto, o juízo irá concentrar as suas energias na prática de atividade procedimental relacionada à busca de solução ao pedido de aplicação da disregard doctrine, que no contexto assume a condição de verdadeira questão prejudicial ao regular prosseguimento do feito. 4.2.3 Citação do administrador, dos sócios ou da pessoa jurídica Atendendo ao princípio maior do contraditório, no pedido incidental de desconsideração da personalidade jurídica deverá ser realizada a citação do administrador, dos sócios ou da pessoa jurídica em relação ao qual se quer estender a responsabilidade patrimonial, para que venha ao processo e exerça o seu direito de defesa, trazendo as suas argumentações e requerendo a produção das provas que forem do seu interesse. A referidacitação é indispensável, sob pena de vir a se caracterizar a presença de grave nulidade processual. Entretanto, até o advento da nova codificação processual, o tema não se mostrava tranquilo em sede do STJ, onde conviviam decisões que reconheciam a nulidade da decisão de desconsideração pela ausência de contraditório prévio, com aquelas que se contentavam com a observância do contraditório diferido. Na Exposição de Motivos do Projeto do novo Código de Processo Civil, inicialmente apresentado no Senado, houve referência expressa à imposição da observância do contraditório prévio para a desconsideração da personalidade jurídica, dispondo: "a necessidade de que fique evidente a harmonia da lei ordinária em relação à Constituição Federal da República fez com que se incluíssem no Código, expressamente, princípios constitucionais, na sua versão processual. Por outro lado, muitas regras foram concebidas, dando concreção a princípios constitucionais, como, por exemplo, as que prevêem um procedimento, com contraditório e produção de provas, prévio à decisão que desconsidera da pessoa jurídica, em sua versão tradicional, ou 'às avessas'". O texto normativo demonstra haver a necessidade de citação tão somente daquele que poderá vir a ter o seu patrimônio atingido em caso de provimento do pedido de desconsideração (sócio, administrador ou pessoa jurídica), nada referindo sobre a intimação da parte passiva da demanda em que o incidente é instaurado. Acreditamos que deve ocorrer a intimação do réu para se manifestar em relação ao pedido de desconsideração, eis que é nítido interesse na questão, não podendo ser afastado do contraditório. A versão inicial do Projeto do novo Código Processual, inclusive, contava com a determinação de intimação da parte demandada no incidente de desconsideração ("art. 64. Requerida a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou o terceiro e a pessoa jurídica serão intimados para, no prazo comum de quinze dias, se manifestar e requerer as provas cabíveis"). Seguindo-se a sistemática na nova codificação processual, o prazo de 15 dias deverá ser contado em dias úteis. Caso o incidente implique no ingresso de mais de uma pessoa, o prazo terá início a partir da juntada aos autos do último mandado de citação cumprido. Terá aplicação, ao caso, a regra contida no art. 229 do CPC/2015 (LGL\2015\1656), no sentido de que os litisconsortes que tiverem diferentes procuradores, de escritórios de advocacia distintos, terão prazos contados em dobro para todas as suas manifestações, em qualquer juízo ou tribunal. A citação dos sócios ou da pessoa jurídica oportuniza a estes virem ao processo e defenderem os seus interesses, por meio de contestação. Na ausência de previsão específica a defesa do incidente de desconsideração seguirá a estrutura tradicional da peça contestatória do procedimento comum. Será a oportunidade da apresentação das A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 12 questões de fato e de direito capazes de afastar o acolhimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, como as preliminares relativas a questões processuais, como ilegitimidade, coisa julgada, dentre outros, além dos argumentos de mérito. Note-se que ainda não é o momento daquele que se quer atingir com o incidente (sócios, administrador ou pessoa jurídica) vir ao processo discutir amplamente a matéria objeto da causa principal, o que somente ocorrerá se o referido pedido vier a ser acolhido e, por consequência aquele que até então ostentava a condição de terceiro passa a assumir a posição de efetiva parte da demanda. Neste ponto, portanto, não concordamos com o conteúdo expressado no enunciado 248 do Fórum Permanente de Processo Civil, segundo o qual: "Quando a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, incumbe ao sócio ou a pessoa jurídica, na contestação, impugnar não somente a própria desconsideração, mas também os demais pontos da causa". A ausência da contestação produzirá os efeitos materiais e processuais da revelia. Serão considerados como verdadeiros os fatos alegados pelo autor do pedido de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica e não haverá a intimação do sócio ou da pessoa jurídica para os demais atos do processo. É importante frisar que o dispositivo em questão trata do incidente de desconsideração, determinado que se oportuniza a manifestação daqueles que virão a sofrer as consequências de eventual decisão de acolhimento do pedido de desconsideração. Situação diversa é aquela em que tenha ocorrido a penhora de bem pertencente a sócio ou administrador em execução promovida em função de dívida da entidade, quando a atividade processual adequada para discutir o ato de constrição é a figura dos embargos de terceiro. Da mesma forma, se a condenação na fase de conhecimento se deu somente em relação à pessoa jurídica, mas no cumprimento de sentença o julgador determinar a citação do sócio ou do administrador da sociedade, com atos de constrição dirigidos ao patrimônio destes, será caso de oferta de impugnação, eis que acabaram por assumir a condição de executados. Geralmente o deslinde do requerimento de aplicação da disregard of the legal entity dependerá da realização de instrução probatória, por meio de realização de perícia técnica, ou da averiguação de situações de fato que possam indicar a ocorrência de motivos para a desconsideração. Somente assim se estará valorizando o princípio do contraditório prévio inequivocamente priorizado pelo legislador. 4.2.4 A problemática probatória no incidente de desconsideração Conforme salientado anteriormente, a inserção do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no novo Estatuto Processual está diretamente vinculada aos princípios que serviram de base para a Codificação, mormente o comprometimento com o contraditório efetivo. Neste compasso, o incidente de desconsideração deverá promover a adequada atividade instrutória, capaz de permitir a análise da conduta daqueles que poderão ser atingidos em sua esfera patrimonial, com a realização de todas as provas que se mostrarem pertinentes. Frente à inexistência de regramento específico sobre a fase instrutória no incidente de desconsideração, deverão ser buscadas as regras ordinárias do novo Código de Processo Civil para orientar a atividade de investigação dos motivos alegados para a instauração do incidente. Neste âmbito, pelas características peculiares da matéria, que sói envolver sofisticadas atividades de manipulação negociais - na constituição da entidade ou em seus contratos - a aplicação da novidade prevista no § 1.º do art. 373 do CPC/2015 (LGL\2015\1656) ("Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos docaputou à A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 13 maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído") será oportuna, flexibilizando o encargo probatório e realizando a sua distribuição de forma dinâmica. Esta questão já foi alvo de análise pela doutrina argentina, país onde a teoria de las cargas probatórias dinámicas alcançou acentuada evolução. Na doutrina deste país Leandro Javier Caputo, após consignar que o prejudicado pela atuação irregular da entidade deverá demonstrar, além dos pressupostos típicos da responsabilidade, a ocorrência da entidade e a relação de causalidade entre o dano sofrido e a conduta dos agentes que abusaram da condições de uso da pessoa jurídica, esclarece que não se pode descartar a aplicação da teoria da carga dinâmica da prova, autorizando o julgador a exigir da entidadee das demais pessoas demandadas que fique incumbidas da realização de provas sobre a atuação endereçada aos fins lícitos e ao uso correto que se deu ao esquema formal da pessoa jurídica.50 O autor esmiúça, explicando "no se tratará, pues, de probar la realización de un aporte previsional sino de acreditar hechos que permitan concluir que la sociedad es utilizada para los fines que el legislador estabelece, esto es, que explora una empresa mediante la cual cumple el objeto social, satisface el interés de sus socios en cuanto a sus derechos con tales y, en el caso en particular, todos estos elementos estuvieron presentes".51 Não é diferente a lição trazida pelos também juristas argentinos Juan I. Alonso e Gustavo J. Giatti, ao se debruçarem especificamente sobre o tema dos aspectos processuais da teoria de la desestimación de la personalidad jurídica, afirmando: "siempre la sociedad, o quienes a administren, se encontrarán en una mejor posición al tener en su poder libros, balances, contratos con terceros etc., es decir, toda la documentación idónea para probar que aquélla realiza una actividad real, así como de qué forma el acto que realizaron está enderezado a satisfacer el interés social a través del cumplimiento del objecto de la sociedad, pues, nadie mejor que la propia sociedad y sus socios controlantes para acreditar la realidad del acto que se reputa aparente o en fraude a terceros".52 Acreditamos que a inovação trazida pela nova Codificação Processual, no sentido de permitir a dinamização do encargo probatório no âmbito do direito interno, permitirá que venhamos a seguir os passos da doutrina argentina, realizando, quando necessário, a sua aplicação aos feitos onde o assunto da disregard of the legal entity vier à tona. Analisando a aplicabilidade da cláusula geral da disregard doctrine contida na Codificação Civil, Fábio Ulhoa Coelho visualiza, no caso, duas formas de atuação probatória distintas. Quando o pedido de desconsideração da personalidade jurídica tiver fundamento em alegação de fraude ou abuso de direito, (o que designa como formulação subjetiva), haverá a necessidade do credor realizar a produção probatória suficiente para demonstra a intensão subjetivas daquele que poderá ser atingido com a aplicação da teoria da desconsideração, o que implica no reconhecimento de considerável dificuldade probatória. Porém, nos casos em que o pedido de efetivação da disregard doctrine for justificado na ocorrência de confusão patrimonial, designada pelo autor como formulação objetiva, o encargo probatório ficará mais aliviado, pois bastará a demonstração da existência de mistura patrimonial, presumindo-se a fraude. Nas palavras deste jurista: "se, a partir da escrituração contábil, ou da movimentação de contas de depósito bancário, percebe-se que a sociedade paga dívidas do sócio, ou este recebe créditos dela, ou o inverso, então não há suficiente distinção, no plano patrimonial, entre as pessoas. Outro indicativo eloquente de confusão, a ensejar a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, é a existência de bens de sócio registrados em nome da sociedade e vice-versa", concluindo: "ao eleger a confusão patrimonial como o pressuposto da desconsideração, a formulação objetiva visa realmente facilitar a tutela dos interesses de credores ou terceiros lesados pelo uso fraudulento do princípio da autonomia".53 A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 14 Há, ainda, que se recordar da possibilidade de inversão do ônus da prova nos casos em que a aplicação a desconsideração da personalidade jurídica é postada em face da proteção de direitos do consumidor, de forma que bastará a presença da hipossuficiência do consumidor ou da verossimilhança da alegação para que o encargo probatório seja repassado àqueles em relação a quem o incidente visa atingir. 4.3 Incidente de desconsideração em sede de tribunais Na sistemática inserida pelo novo Diploma Processual, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica também poderá ser instaurado, originariamente, em sede de tribunal. O legislador, aqui, realizou efetiva inovação na atuação instrumental sobre a disregard of the legal entity, pois até então a sua aplicação era essencialmente restrita ao juízo de primeiro grau, nas fases de conhecimento ou de execução em sentido amplo. Esta viabilidade de manuseio do requerimento incidental de aplicação da desconsideração será possível quando o feito seja levado ao tribunal mediante recurso, porém, não se pode descartar a sua instauração no curso de demandas de competência originária das Cortes de Justiça, como é ocaso da ação rescisória. A instauração do incidente em tribunal atribui ao relator a tarefa de processá-lo julgá-lo de forma monocrática, conforme expressamente consigna o art. 932, em seu inc. VI, da nova Codificação Processual. A atuação do relator, no caso, será semelhante à realizada pelo julgador de primeira instância no processamento do pedido incidental de desconsideração, exercendo o juízo de admissibilidade do referido pleito, suspendendo o feito em caso de admissão do incidente, determinado os registros competentes e proporcionado a citação daqueles que serão atingidos em caso de acolhimento do pedido de extensão de responsabilidade da pessoa jurídica. Analisando a atuação do rel. Alexandre Freitas Câmara anota que este terá, ainda, que conduzir a atividade instrutória do pedido incidental em questão, não obstante seja possível a expedição de carta de ordem para que o juízo de primeiro grau venha a realizar a coleta de determinada prova importante para o deslinde da questão.54 A previsão autorizadora do processamento do incidente de desconsideração ocorrer no âmbito de tribunal traz à luz o debate sobre a sua oportunidade nas Cortes Superiores, mormente no STJ e no STF. O enfrentamento da questão enseja inicialmente a necessidade de reconhecer que estas Casas de Justiça possuem competência recursal e originária. Na primeira o feito chega até elas mediante a evolução da cadeia recursal, via recurso especial ou extraordinário. Nestes casos o STJ e o STF não terão atribuição para processar e decidir incidente visando a efetivação da disregard doctrine, o que decorre do estreito objeto destas espécies excepcionais de impugnação de decisão judicial, que possuem fundamentação limitada a certas matérias que tenham sido analisadas na decisão hostilizada (correspondente ao requisito constitucional do prequestionamento). O afastamento do processamento de pedido incidental de desconsideração da personalidade jurídica neste momento processual também se justifica pelo fato da competência destas Cortes Superiores ser definida pela Constituição, que por sua vez não contempla a outorga de atribuição de julgar incidentes em sede julgamento de recursos especial e extraordinário. Entretanto, quando o processamento da lide for afeto à competência originária das Cortes Superiores, haverá a possibilidade de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, seguindo-se a regra do art. 134 da nova Codificação Instrumental, no sentido de que este poderá ser instaurado em qualquer momento da fase cognitiva do processo. Há ainda a hipótese específica em que o STJ e o STF funcionam como instâncias recursais comuns, o que ocorre no julgamento do recurso ordinário constitucional, caso em que entendemos pela viabilidade do incidente. Tal conclusão se justifica na medida em que esta espécie recursal recebe a aplicação supletiva das regras pertinentes ao recurso de apelação, onde haverá fundamentação livre e torna-se despiciendo o A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 15 prequestionamento. 4.4 A natureza da decisão que resolve o incidente de desconsideração e a forma recursal correspondente O incidente de desconsideração é resolvido por meio de decisão interlocutória, o que dá ensejo aoquestionamento sobre o instrumento recursal adequado para a sua impugnação. Levando-se em consideração que o incidente em questão poderá ocorrer em curso da demanda de primeiro grau ou em sede recursal, em cada um desses momentos haverá forma recursal adequada. De um modo geral o referido incidente ocorrerá no curso da demanda de primeiro grau, em qualquer de suas fases, sendo, nesta hipótese, aplicável a previsão contida no art. 1.015, IV, do CPC/2015 (LGL\2015\1656), que traz a previsão do recurso de agravo de instrumento (art. 1.015. "Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versem sobre: (...) IV - incidente de desconsideração da personalidade jurídica"). É importante ficar claro que o recurso de agravo de instrumento terá cabimento não somente em relação às decisões que acolhem ou negam o referido incidente ou o extingue face à constatação de alguma irregularidade formal, mas também serve para a impugnar qualquer ato decisório realizado no bojo deste incidente. Quando o pedido de desconsideração é formulado em sede recursal o texto normativo é expresso ao indicar o cabimento do recurso de agravo interno, que será processado nos termos indicados no art. 1.021 da CPC/2015 (LGL\2015\1656). Quando o debate sobre a desconsideração da personalidade jurídica for requerido na petição inicial de processo de conhecimento este pedido poderá ser acolhido ou negado no curso do procedimento, em decisão interlocutória, ou ser resolvido na sentença. No primeiro caso, se o pedido for acolhido, não caberá a interposição de recurso de forma imediata, cabendo a parte descontente manifestar a sua irresignação na oportunidade da apelação ou contrarrazões de apelação, nos termos do art. 1.009 do CPC/2015 (LGL\2015\1656). Se o pedido for indeferido no curso do feito de conhecimento, a decisão em questão equivalerá à exclusão de litisconsorte, cabendo a utilização do recurso de agravo de instrumento, por força do disposto no art. 1.015, VII, do CPC/2015 (LGL\2015\1656). Por fim, se a decisão de ampliação da responsabilidade da pessoa jurídica ocorrer apenas na oportunidade da sentença, dará azo ao recurso de apelação, em atenção ao princípio da singularidade (unirrecorribilidade ou unicidade) recursal. O STJ já teve oportunidade de debater sobre a legitimidade da pessoa jurídica parta impugnar mediante recurso a decisão que realiza a aplicação da disregard doctrine, para estender a responsabilidade ao patrimônio pessoal dos sócios ou administradores da entidade personificada. O caso em julgamento envolvia recurso sobre decisão que havia reconhecido a existência de encerramento irregular da atividade desenvolvida pela sociedade. Afastando precedentes anteriores,55 a 3.ª T. desta Corte Superior, em acórdão da lavra da Min. Nancy Andrighi, reconheceu a presença de interesse recursal à pessoa Jurídica, e a sua consequente legitimidade para manusear o instrumento recursal pertinente a propiciar o reexame da decisão sobre a desconsideração da personalidade societária, ressaltando que "o interesse na desconsideração ou na manutenção do véu protetor podem partir da pessoa jurídica, desde que, à luz dos requisitos autorizadores da medida excepcional, esta seja capaz de demonstrar a pertinência de seu intuito, o qual deve sempre estar relacionado à afirmação de sua autonomia, vale dizer, à proteção de sua personalidade".56 Aderimos a este entendimento, considerando-o como o mais adequado a pela efetivação do princípio maior do contraditório amplo, nitidamente adotado pela nova Codificação Processual, que em sucessivas vezes o coloca em destaque como linha mestra a ser observada no procedimento civil.57 José Miguel Garcia Medina defende a possibilidade da decisão que julga procedente ou improcedente o pedido de desconsideração da personalidade jurídica vir a ser sujeita à A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 16 ação rescisória, argumentando que: "por fazer juízo sobre a existência ou a inexistência ou o modo de ser da relação de direito material objeto da demanda, é considerada decisão de mérito".58 Em sendo acolhido o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, aquele que foi atingido em sua responsabilidade patrimonial passa a assumir a condição de litisconsorte passivo ulterior, na condição de corréu ou coexecutado, conforme o caso. Desta forma, a procedência do incidente de desconsideração, na fase de conhecimento, irá oportunizar ao novo responsável patrimonial a realização de contraditório em relação ao mérito da demanda principal, devendo ser intimado para oferecer contestação e ter assegurada a sua oportunidade probatória59. No cumprimento de sentença será oportunizada a impugnação e na execução os embargos do executado. 5 A disregard of the legal entity e a caracterização de fraude à execução Nos temos da dicção contida no art. 137 do CPC/2015 (LGL\2015\1656), acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação àquele que postulou a extensão da responsabilidade patrimonial. O dispositivo, portanto, permite a possibilidade de reconhecimento da ocorrência de fraude à execução em sede de incidente de desconsideração da personalidade jurídica. A sua interpretação, porém, deve ser realizada em conjugação com o disposto no art. 792, § 3.º da Codificação Adjetiva, estabelecendo: "nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar". É de fundamental importância, portanto, que fique bastante evidenciada a lógica proposta pela nova sistemática processual sobre o momento a partir do qual se poderá considerar a prática de atos de alienação ou oneração de bens, caracterizáveis como fraudadores à execução. O referencial temporal não é exatamente aquele em que o incidente de postulação de ampliação da responsabilidade da pessoa jurídica é instaurado, mas sim o da citação do responsável que se quer alcançar. Neste sentido é a dicção do enunciado 52 do Enfam, dispondo:"A citação a que se refere o art. 792, § 3.º, do CPC/2015 (LGL\2015\1656) (fraude à execução) é a do executado originário, e não aquela prevista para o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (art. 135 do CPC/2015 (LGL\2015\1656))". Na mesma direção seguem as lições de Guilherme Rizzo Amaral, ao afirmar "para definição da fraude à execução na hipótese de alienação de bens, seja da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar, seja dos terceiros cujo patrimônio será atingido pela desconsideração, considera-se como marco temporal a citação da desconsideranda", exemplificando: "sendo sociedade 'comercial' ré em um processo judicial, uma vez citada, tem-se que a partir daí a alienação de bens de seus sócios, ainda que não tenham sido citados, será considerada ineficaz em relação ao credor que move a ação, desde que, é claro, configuradas tanto algunas hipóteses de desconsideração (art. 50, do Código Civil (LGL\2002\400)) quanto de fraude à execução (art. 792, I a V)".60 O cuidado especial do legislador, com a efetiva proteção dos credores, é louvável e demonstra a preocupação que orienta a recente Codificação Processual, no sentido de obter um verdadeiro processo de resultado útil e efetivo. Tal conduta legislativa foi expressamente elogiada por Luis Alberto Reichelt, ao afirmar: "avança-se, aqui, em uma direção interessante, reconhecendo-se que os atos em sede de fraude à execução muitas vezes são praticados não pelos devedores principais, mas também por aqueles a quem a lei atribui responsabilidade pelo débito executado, e propõe avanço no combate a medidas orquestradas com o objetivo de frustrar a justa expectativa de satisfação do crédito".61 Cabe salientar que a desconsideração da personalidade jurídica não acarreta automático reconhecimento de ocorrência de fraudeà execução, sendo indispensável que se verifique alguma das hipóteses previstas no art. 792 do CPC/2015 (LGL\2015\1656) ("A A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 17 alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução: I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver; II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828; III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária o outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude; IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência; V - nos demais casos expressos em lei"). Elpídio Donizetti, ao comentar sobre o tema, observa que "ao terceiro adquirente de boa-fé, nada impede que este pleiteie, em ação de regresso contra o sócio, o ressarcimento dos valores pagos para aquisição do bem", acrescentando: "nesse caso, o terceiro adquirente ainda poderá requerer a desconsideração inversa da personalidade jurídica, a fim de atingir o patrimônio da sociedade caso se torne insolvente o sócio fraudador".62 A alienação ou oneração de bem realizada antes da citação da parte cuja personalidade jurídica se quis desconsiderar, poderá vir a configurar fraude a credores, dando ensejo ao ajuizamento da competente ação pauliana, observando-se, para tanto, os termos da legislação civil. 6 Considerações finais O novo Código de Processo Civil dá um grande passo no avanço do tratamento normativo na teoria da desconsideração da personalidade jurídica em nosso ordenamento positivo, passando a lhe dispensar normatização processual própria, em perfeita adequação com os ditames constitucionais e, em especial, realizando a concretização do postulado maior do duo process of law. A processualização da disregard doctrine chega, portanto, em momento oportuno, pois apesar do diálogo sobre a aplicação já se fazer presente no cenário da práxis judicial, o assunto ainda carecia de maior atenção por parte do legislador, pois a normatização de procedimentos representa pilar indispensável para a consolidação do ideal de segurança jurídica. Certamente, em repetição ao que se experimentou quando do aparecimento dos primeiros debates sobre o tema, mormente a partir da década de 80 do século passado, a consolidação das balizas, que irão delinear a interpretação da nova regulamentação processual da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, será construída, paulatinamente, pelo ativismo doutrinário e jurisprudencial dando corpo e movimento à estrutura normativa inserida pelo novo Código de Processo Civil. Esperamos ter deixado, aqui, a nossa singela contribuição, com o intuito de fomentar o debate necessário que o assunto merece e exige, dirigido a um futuro onde se possa usufruir de sua perfeita modulação. 7 Referências bibliográficas ALONSO, Juan I.; GIATTI, Gustavo J. Aspectos procesales de la aplicación de la teoria de la inoponibilidad de la personalidad Jurídica. Suplemento especial da Revista Jurídica Argentina La Ley. dez. 2004. AMARAL, Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do novo CPC (LGL\2015\1656). São Paulo: Ed. RT, 2015. BRUSCHI, Gilberto Gomes. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. CÂMARA, Alexandre Freitas. In: ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa; DIDIER JR., Fredie; A processualização da desconsideração da personalidade jurídica Página 18 DANTAS, Bruno. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. RT, 2015. ______. O novo processo civil brasileiro. São Paulo: Atlas. 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