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Cidade Quebrada: terra dividida, espaço comum - Livro Reportagem

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CIDADE 
QUEBRADA:
terra dividida, 
espaço comum
Lucas Mendes
Lucas Mendes
Cidade Quebrada:
terra dividida, espaço comum
Livro-reportagem de Bauru
“Cidade grande, que comporta tanta gente, 
eu vou chegar bem na moral e falar humildemente.
Eu vou até sair pro lado, pois eu posso me perder, 
mais que zuar em Bauru city, você pode até morrer”
Bauru City das Vilas - Desacato Verbal e Força Interior
Dados Catalográficos
MENDES, Lucas Eduardo Tozzi, 2017
Cidade Quebrada: Terra Dividia, Espaço Comum - 1ª ed. / Lucas Mendes 
- Bauru, SP.
1. Jornalismo 2. Livro-reportagem 3. Bauru 4. Desigualdade Social 
5. Urbanização 6. Resistência
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Arquitetu-
ra, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de 
Mesquita Filho”, como requisito parcial para obtenção do certificado de 
graduação em Comunicação Social – Jornalismo, sob a orientação do 
Prof. Dr. Juarez Tadeu de Paula Xavier.
Redação, edição, diagramação e fotos por Lucas Mendes
lucasmendes962@gmail.com
Sumário
Introdução ........................................................... 7
Bauru: Ficha Técnica ..........................................14
PARTE 1: Desigualdade social e de renda .......16
O nascimento da Tragédia
Pouco mudou ...................................................................................16
O dinheiro manda ...........................................................................20
Divergências nos alpes suíços ........................................................26
Com o suor do trabalho .................................................................29
Estado, mercado e sociedade ........................................................33
Proteção social bauruense .............................................................37
“Já me acostumei com a rua” ........................................................40
invisibilidade e ação .......................................................................43
PARTE 2: Moradia, habitação e urbanização...49
Ocupar e viver a cidade
A cidade como direito ...................................................................50
A cidade como finança .................................................................53
A cidade periferia ..........................................................................57
A vida no Minha Casa Minha Vida ............................................61
Lei escrita e direito conquistado .................................................67
Plano Diretor Participativo de Bauru .........................................70
Urbanismo para pessoas ...............................................................74
PARTE 3: Resistência e organização..................80
Canaã, a terra prometida ................................................................85
Protagonismo, cidadania e expressão ...........................................87
Tecnologia, Mídia radical e comunicação alternativa ................90
PARTE 4: Estado versus mercado.......................96
Notas....................................................................101
O momento da Movimentação ..................................................... 99
Construir e contar a própria história
Considerações finais
Audiência Pública na Câmara Municipal de Bauru para discutir mudanças 
no Plano Diretor Participativo. Presença de ativistas e movimentos sociais 
agitou os debates.
INTRODUÇÃO
 Desde meados dos anos 1970 acontece no mundo um 
processo de transformação nos modelos tradicionais de acumu-
lação do capital, motivados, segundo o geógrafo britânico e teó-
rico marxista David Harvey¹, por um processo do superacumu-
lação e pelas crises sistêmicas desse modo de produção.
 Segundo ele, o modelo de produção baseado no Fordis-
mo foi dissolvendo-se ao longo da década de 1960, sendo que 
o estopim para a mudança foi a crise internacional do petró-
leo-1973. A partir de então, passou-se a um modelo que ele cha-
mou de Acumulação Flexível do Capital.
 Nesse modelo os mercados de trabalho não são mais rí-
gidos — privilegiam-se contratos temporários, terceirizações e a 
incorporação da força de trabalho imigrante. Adota-se a produ-
ção “just in time” — a adequação da estocagem dos produtos con-
forme a demanda.
 Na análise do britânico, os países do centro do capitalis-
mo (Europa e EUA), tinham uma força de trabalho que dispu-
nha de poder político e de negociação, devido à estruturação dos 
sindicatos, fato que garantia salários cada vez mais altos para a 
classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, o Estado de Bem-Estar 
Social garantia uma rede de direitos sociais aos cidadãos. É aí 
que se dá a expansão do capital para o “Terceiro Mundo”. 
 A intensificação da globalização faz abrir novos merca-
dos ao redor do planeta, para absorver o investimento de capital 
gerado pela acumulação ao longo do século XX. Para Harvey, um 
importante meio de receber esse aporte foi (e ainda é) a urbani-
zação, que passou por um crescimento exponencial ao redor do 
globo. 
 O geógrafo também atribui ao avanço tecnológico o pro-
cesso de compressão da experiência do espaço-tempo, possibili-
Notas numeradas e autores, ver NOTAS no final do livro
Sobre Fordismo e as crises do capitalismo, ver https://goo.gl/ZMxuqb. 
Sobre financeirização da economia, ver https://goo.gl/9vmwgs. 7
tado por conta da aceleração das comunicações. Contudo, é a ex-
pansão da economia neoliberal que ele vê como principal legado 
da nova estrutura capitalista, pois ela atua na desregulamentação 
do mercado financeiro, contribuindo para a financeirização da 
economia.
 Todos esses fatores e seus reflexos na Cultura, com au-
mento do individualismo, despolitização e “desengajamento” foi 
chamado pelo pesquisador de a “condição pós-moderna” – mo-
mento em que as desigualdades sociais são acentuadas.
Desigualdade
 O processo de acumulação flexível e financeirização da 
economia legou ao século XXI, principalmente na periferia do ca-
pitalismo e no Sul Global, não apenas a manutenção mas a repro-
dução das desigualdades sociais e de renda, como afirma o econo-
mista francês Thomas Piketty2.
 Segundo ele, com a financeirização da economia, e por 
consequência o rentismo, aumenta-se a concentração de renda, 
perpetuando-se as desigualdades. O raciocínio é simples, uma vez 
que a taxa de retorno sobre o capital (no mercado financeiro) é 
maior que a taxa de crescimento da renda (o crescimento dos sa-
lários).
 Para Jessé de Souza3 , sociólogo e ex-diretor do IPEA (Ins-
tituto de Pesquisa Econômica Aplicada), os critérios de igualdade 
social e liberdade individual — pressupostos básicos de qualquer 
democracia — não foram universalizados, e num mercado de tra-
balho altamente competitivo, o que resta para população à mar-
gem do sistema são os trabalhos não-qualificados e a invisibilida-
de social.
 Nesse conjunto “desprivilegiado” está uma classe inteira 
de pessoas que estão abaixo dos princípios de dignidade e espo-
liadas dos seus direitos enquanto cidadãos. Em seu livro “Ralé 
Brasileira”, Jessé atesta que essa classe compõe ⅓ da população 
brasileira, formada por pessoas que são não só miseráveis econo-
micamente, mas também desprovidas das “pré-condições psico-
-sociais” para ganhar a vida no capitalismo competitivo. Isso re-
percute na divisão social da cidade e sua urbanização.
Sobre a tese de Piketty, ver https://goo.gl/J9gu8O.8
Moradia e Direito à cidade
 Na linha de pensamento de David Harvey, o efeito cola-
teral da superacumulação do capital é o crescimento exponencial 
das cidades no mundo e seus impactos na garantia da posse e sua 
função social.
 De acordo com texto de fundamentos do Plano Diretor 
Participativo de Bauru, “a Constituição brasileira de 1934 já es-
tabelecia que o direito de propriedade não poderia ser exercidocontra o interesse social ou coletivo. Porém, somente na Consti-
tuição Federal de 1988, é que a garantia ao direito de proprieda-
de, erigida em cláusula pétrea, condiciona-se expressamente ao 
seu uso, ou seja, ao exercício de sua função social”.
 Segundo consta na Relatoria de Moradia Digna das Na-
ções Unidas, processos predatórios, desiguais e autoritários de 
reurbanização, desapropriação e periferização tornam-se fre-
quentes na sociedade atual, principalmente nos países em desen-
volvimento — onde os marcos jurídicos não são claros e a juris-
prudência não garante a segurança da posse.
 Aliado a isso estão os processos de especulação imobili-
ária (estratégia de valorização de imóveis ou terrenos) e gentri-
ficação (fenômeno que altera a composição dos espaços, valori-
zando a região e afetando a população de baixa renda originária 
dali, que é obrigada a se mudar), como afirma a urbanista Raquel 
Rolnik4, livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo 
(FAU-USP).
 Para ela, esses fatores compõem o procedimento global de 
financeirização das cidades e dos direitos à terra e à moradia — a 
transformação de um direito humano num ativo negociável. Na 
sua opinião, o resultado mais recente disso foi a crise imobiliária 
americana de 2008, um episódio que demonstrou a inabilidade 
do Mercado em prover moradia adequada à população.
 Voltando-se para o Brasil, as Políticas de Habitação re-
centes (Minha Casa Minha Vida) pautam-se, segundo Rolnik, 
pelo financiamento como principal meio de acesso à casa pró-
pria — o imóvel é produzido através de grandes construtoras/em-
preiteiras e acessado pelas pessoas via crédito.
 De acordo com a urbanista, que também foi relatora da 
Sobre segurança da posse ver https://goo.gl/RQcg0N.
Sobre as opções de moradia, ver https://goo.gl/JPXc3O. 9
ONU para Moradia Digna, a realização plena do direito à mo-
radia não pode ser promovida exclusivamente com mecanismos 
financeiros, mas requer políticas de intervenção do Estado e uma 
diversificação de medidas, para além do financiamento à casa 
própria.
 Segundo ela, “a casa própria pode ser a melhor opção para 
muitos, mas conquistar moradia adequada para todos demanda 
uma variedade de soluções, como incentivos tributários, micro-
crédito, auto-gestão, cooperativas, urbanização de assentamentos, 
programas de locação, subsídios diretos para os pobres e moradia 
pública. Mercados, mesmo regulados, não podem prover moradia 
adequada para todos e um setor público ativo é fundamental”. E 
completa: Na cidade, sob a financeirização, a “Moradia se tornou 
sinônimo de mercadoria”, dividindo e segregando o espaço urbano.
Fraturas expostas nas cidades
 Nessa divisão, formam-se realidades distintas dentro de 
uma mesma cidade, numa relação que mostra as ligações estru-
turais entre riqueza e pobreza e no modo de vivência urbana par-
tir da conexão entre os grupos sociais privilegiados e os menos 
abastados, como teorizou Milton Santos5, geógrafo, pesquisador e 
escritor brasileiro.
 Na visão dele, configuram-se dois subsistemas urba-
nos — os circuitos Inferior e Superior da economia urbana.
 Enquanto existe a cidade “iluminada”, com largo uso de 
capitais e recursos diversos, ampla utilização de tecnologia e or-
ganização, existe também a cidade “opaca”, com atividades econô-
micas de menor escala, muitas com marcas da informalidade, com 
uma organização mais “fluída” e um uso criativo da tecnologia.
 Ambos sistemas relacionam-se dialeticamente, hierarqui-
zam-se e concorrem entre si, pois ocupam o mesmo espaço — a 
cidade, segundo Milton Santos. E é essa relação que permite ações 
de resistência e transformação da sociedade.
Resistência
 Nesse combate, eclodem ao redor do globo grupos e mo-
vimentos sociais de reivindicação de direitos, com novas ideias 
sobre o mercado financeiro (a exemplo dos protestos do “occupy 10
Sobre o discurso de Slavoj Žižek , ver https://goo.gl/9C1kqX
Wall Street”6, em Nova York) e propostas alternativas devido ao 
desencantamento com a política tradicional (auto organização, 
democracia participativa).
 São pressões por Políticas Públicas inclusivas e pelo di-
reito à cidade. É a apropriação criativa da tecnologia e dos mé-
todos alternativos de expressão e comunicação. Como afirmou 
o filósofo esloveno Slavoj Žižek7, no acampamento de manifes-
tantes em Wall Street, “qual organização social pode substituir o 
capitalismo vigente? De quais tipos de líderes nós precisamos? As 
alternativas do século XX obviamente não servem”.
 Grupos artísticos e culturais buscam articulação política 
para reivindicar suas demandas, para resistir e para mobilizar a 
juventude. Alicerçados pelo potencial da internet e da comuni-
cação em rede, tecem conexões e geram novas organizações. É 
a mídia radical, conceito do ensaísta americano John Downing8, 
que alarga a definição do que seria comunicação. Afinal, zines 
e panfletos também comunicam, assim como cartazes, graffitis, 
pixos, stencils, lambes, uma música de protesto. 
 São novas maneiras de se relacionar e de significar o 
mundo e a sociedade, num movimento articulado entre movi-
mentos sociais e comunicadores, já explícito no título do livro de 
Downing: “Rebeldia nas Comunicações e Movimentos Sociais”.
 Como afirma o jornalista e pesquisador Ricardo Gan-
dour9, “As redes sociais se transformaram em mega plataformas 
de distribuição”. A comunicação hegemônica através das mídias 
consolidadas possui ainda poder influenciador na sociedade, mas 
este não é mais um monopólio. As mídias alternativas oferecem 
visões disruptivas, contra-hegemônicas, abordam temas pouco 
ou nunca retratados por aí. 
 A abordagem da comunicação hegemônica também aca-
ba sendo reducionista. Na visão de Jessé Souza, a violência re-
tratada pela mídia tradicional é apenas uma faceta do problema. 
Segundo ele, a mídia repercute a ideologia hegemônica, pois as 
“ideias” que fazem a cabeça de jornalistas e formadores de opi-
nião são, em sua maioria, vindas de intelectuais propagadores de 
“um consenso social responsável por uma das mais injustas e per-
versas sociedades do planeta”. Pra ele, a “modernização periféri-
ca” vivenciada pelo Brasil “gera as sequelas como a desigualdade 
abissal, marginalidade e subcidadania”.
11
Bauru, a cidade e seus limites
 A modernização periférica, de que fala Jessé, difere da 
modernização experimentada pelos países do centro do capitalis-
mo. Ela trouxe para o Brasil e para os países do Terceiro Mundo 
uma nova configuração do capitalismo globalizado, que é baseado 
no consumo. Essa é a proposta do polonês e também sociólogo 
Zygmunt Bauman10. Segundo ele, a sociedade do consumo tem 
um caráter individualista, e “a classe marginalizada é consequen-
temente culpabilizada pelo seu próprio fracasso”. 
 Assim aumenta-se a desigualdade, e o desenvolvimento 
econômico passa a privilegiar apenas parte da população. Esses 
contrastes verificam-se na prática. 
 Em Bauru se encontra uma realidade social que permite, 
ao mesmo tempo, que a cidade possua o 21º maior PIB (Produto 
Interno Bruto) do Estado de São Paulo, segundo o IBGE, enquan-
to que mais de 100 mil pessoas — quase um terço de sua popula-
ção — viva em situação de baixa renda, dependendo de medidas assis-
tenciais do município, Estado ou da União para sobreviver, de acordo 
com o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA).
 Esse número representa 42.716 famílias, segundo dados 
de outubro de 2016 do MDSA. Elas estão no Cadastro Único para 
Programas Sociais, do Governo Federal, que reúne informações 
socioeconômicas das famílias brasileiras de baixa renda. 
 Financeiramente a cidade cresce. O PIB do município au-
mentou 63,9%, entre 2006 e 2010. Em 2012, atingiu 8,430 bilhões 
de reais, figurando entre as 30 maiores economias do Estado de São 
Paulo. O crescimento percentual foi superior ao verificado no próprioestado, que subiu pouco mais que 55%, também segundo o IBGE.
 O mecanismo de reprodução da desigualdade social que 
ocorre no país, explicitado por Jessé Souza, apresenta-se também 
em Bauru — “de fato, a cidade reproduz a profunda desigualdade 
de distribuição de renda da sociedade brasileira: 1/5 da população 
mais pobre detém 9% da renda, enquanto o 1/5 mais rico se apro-
pria de 42%”, segundo o Plano Diretor Participativo.
 Para ele, as diferenças estruturais de cada realidade apon-
tam não só para um contingente inteiro de indivíduos desprovi-
dos de capitais econômico e cultural, mas também privados de 
quaisquer pré-condições sociais, morais e culturais que permitam 
uma apropriação desses capitais ou de uma ascensão social atra-12
vés do seu trabalho.
 Como consta no diagnóstico do seu Plano Diretor Parti-
cipativo, Bauru, “não diferentemente das outras cidades brasilei-
ras, se urbanizou de forma muito rápida, visto que até a década 
de 40 a população urbana correspondia a 50% do total”. Esse nú-
mero sobe para 80% na década de 50 e, de acordo com o Censo 
Demográfico de 2010, tem 98,33% de sua população morando na 
área urbana, de um total de 343.937 habitantes.
 Aproximadamente 3 em cada 10 pessoas têm carteira as-
sinada na cidade, e 19% daqueles que tem alguma ocupação ga-
nha até um salário mínimo por mês. Além disso, o valor médio 
mensal da renda dos bauruenses é de R$ 1.775,49, sendo que os 
homens ganham, em média, 56% a mais do que as mulheres. To-
dos os dados são do MDSA, a partir das pesquisas do Censo de 
2010.
 Também na cidade persiste a lógica da financeirização da 
moradia e os problemas decorrentes da Política Habitacional do 
país. Empreendimentos do Minha Casa Minha Vida, principal-
mente aqueles voltados para as faixas de baixa renda, são coloca-
dos em locais distantes do centro da cidade, com pouco acesso à 
infraestrutura e serviços públicos básicos, como protesta o urba-
nista da Unesp José Xaides de Sampaio Alves11.
 Segundo ele exemplos disso são os residenciais Três 
Américas, Córrego da Grama, Colina Verde e Sant’Anna. Nesses 
locais encontram-se “problemas urbanísticos, técnicos, sociais, 
ambientais, de relação com o transporte público e políticos ad-
ministrativos”.
 Este último constatou “claramente, nos diversos setores, 
a exclusão social devido a vários fatores, como a dificuldade de 
acesso à moradia, falta de creches, carência de atividades de lazer e 
cultura, deixando à margem da vida social, grande parte da popu-
lação”.
 A cidade passa por um momento considerado histórico 
nas ocupações de terra pelo seu território, perfazendo, segundo 
estimativa do Jornal da Cidade, 3.222 famílias mobilizadas por di-
ferentes grupos e movimentos pelo direito à terra, como o MSL 
(Movimento Social de Luta) ou FNL (Frente Nacional de Luta), 
na “maior ocupação urbana da história de Bauru”.
Sobre a recente ocupação de terras em Bauru, ver https://goo.gl/JcJ7YX. 13
 Localizada na parte central do Estado de São Paulo, Bauru 
está implantada num “anfiteatro natural” de cerca de 5 km de raio, 
numa área de 674 Km², modelada por diversos cursos d’água for-
madores das cabeceiras do rio Bauru. 
 O relevo regional é de colinas amplas e suaves, seu solo é 
de característica predominantemente arenosa e pouco argilosa. As 
formas de relevo potencializam os processos erosivos regionais e 
locais, favorecendo a concentração de fluxo de água.
 O município confronta-se ao Norte com o município de 
Reginópolis, a Noroeste com Avaí, a Nordeste com Arealva, a Les-
te com Pederneiras, ao Sul com Agudos e Sudoeste com Piratininga.
 Em Bauru encontra-se o maior Terminal Multimodal hi-
drorrodoferroviário da América Latina. A cidade integra-se ao sis-
tema rodoviário nacional por meio das rodovias estaduais, é rota 
aérea, e entroncamento ferroviário da malha RFFSA – Rede Ferr-
roviária Federal Sociedade Anônima - da Novoeste e da Fepasa.
 Ocorre na região de Bauru chuvas tipicamente tropicais 
e convectivas, caracterizadas por temporais violentos (trombas 
d´água), pancadas intensas e de curta duração, geralmente no fi-
nal da tarde ou no início da noite.
 A área urbana encontra-se praticamente inteira na Bacia 
do Rio Bauru, divididas em 10 sub-bacias hidrográficas dos seus 
afluentes. As sub-bacias do Rio Bauru destacam-se como grandes 
fornecedoras de sedimentos, em geral pela implantação de con-
juntos habitacionais sem a infra-estrutura necessária, por rodo-
vias e grandes avenidas. 
 Destacam-se como grandes produtoras de sedimentos as 
sub-bacias dos córregos Vargem Limpa, Barreirinha, Água Com-
prida, da Grama e da Ressaca, muito afetadas por erosões prove-
nientes especialmente dos loteamentos. O assoreamento do Rio 
Bauru dentro da área urbana e as enchentes periódicas são resul-
tado do intenso processo de urbanização.
 A população é de 343.937 habitantes, segundo o Censo 
2010 do IBGE.
BAURU: Ficha Técnica
Fonte: Corghi, Fernanda Nascimento. Urbanização e segregação sócio-
-espacial em Bauru (SP): um estudo de caso sobre a Bacia hidrográfica do 
Córrego da Água Comprida -- Campinas,SP.: [s.n.], 2008.14
Faces da “cidade opaca” bauruense. No município, quase 1/3 da popula-
ção depende de benefícios assistenciais do Estado. Nas fotos, acampamento 
“Virgínia Rainha” e Seu Cardoso trabalhando.
15
PARTE 1- Desigualdade 
social e de renda: 
 O policial turco caminhava pela praia quando avistou o 
menino.
 “Meu Deus, espero que esteja vivo”, pensou.
 Enquanto andava em sua direção, a imagem do próprio fi-
lho, de 6 anos de idade, passou pela sua cabeça. Quando chegou 
perto, deteve-se. Elevou a Deus uma rápida oração e passou a pro-
curar algum sinal de vida no corpo da criança. Uma “dor indescrití-
vel” o esmagou por dentro naquela hora, quando percebeu que não 
havia resposta.
 O sargento Mehmet Ciplak1 foi agente de investigação cri-
minal por 18 anos. Ciente de seu trabalho, carregou cuidadosa-
mente o corpo sem vida do menino que, até então, parecia dormir 
tranquilamente na areia à beira-mar, com as águas do Mar Egeu 
acariciando seu rosto. 
 Nilüfer Demir2, uma repórter fotográfica, estava por ali e 
registrou o momento. Instantes depois, a foto já rodava o mundo 
inteiro. Além do menino Aylan Kurdi, de 3 anos, também morre-
ram seu irmão, de 5 anos, a mãe deles e mais 8 sírios, após o naufrá-
gio do bote com o qual almejavam chegar à ilha grega de Kos.
 Ao sul da Turquia asiática está Bodrum, banhada pelo Mar 
Egeu. Badalada e luxuosa, as praias da cidade costumam ser o des-
tino turístico das classes altas de Istambul, mesmo estando a quase 
700 km de distância. Naquela manhã de setembro de 2015, o local 
acabou virando um dos símbolos da crise humanitária envolvendo 
os refugiados que buscam reconstruir suas vidas na Europa.
Pouco mudou
 O frio do inverno atinge a Europa com rigor no início de 
o nascimento da tragédia
16
2017. Uma massa de ar polar ocasionou tempestades de neve, que 
avançam a partir das regiões central e sudeste do continente, fazendo 
as temperaturas despencarem até 27 graus negativos durante a noite. 
 Nas ilhas gregas de Samos, Chios e Lesbos, refugiados vindos 
principalmente de Síria, Afeganistão, Iraque e Líbia aguardam em 
instalações provisórias e superlotadas a oportunidade de desembar-
car na Grécia continental e, a partir daí, acessar o restante da Europa.
 A demora e o avanço do frio ameaçam a vida dos refugia-
dos, que correm o risco de morte por congelamento. A Agência da 
ONU para Refugiados (ACNUR) mobilizou-se e distribui cobertores 
térmicos, sacos de dormir, combustível para aquecimento e kits de 
proteção para o inverno. 
 Segundo a ONU, somente na ilha de Lesbos encontram-se 
5.500 imigrantes, sendo que a capacidade oferecida pelo governo gre-
go é de 3.500 pessoas. As estimativas de ONGs e agências internacio-
nais contam por volta de 62.000pessoas refugiadas vivendo apenas 
na Grécia, a maioria delas fugindo de guerras, conflitos e crises . No 
ano de 2015, mais de 1 milhão de refugiados chegou na Europa.
 Um dos países europeus mais atingidos pela crise econômica 
mundial de 2008, a Grécia vêm aplicando medidas de austeridade 
(corte de gastos) desde 2010, quando recebeu a primeira ajuda fi-
nanceira da União Europeia. O país reduziu o tamanho do governo 
e aumentou a idade mínima para a população se aposentar, dentre 
outras medidas de controle de despesas.
 Com sucessivas ajudas em dinheiro e apesar dos cortes de 
gastos, a economia grega não se recuperou, e o país apresenta o maior 
número de desempregados de toda Europa - com uma taxa de 23,1% 
dos cidadãos sem ocupação em setembro de 2016, segundo o es-
critório europeu de estatísticas Eurostat. Espanha, Itália e Portugal 
também apresentam taxas de desemprego maiores que a da Zona do 
Euro, que cravou, no final de 2016, a quantidade de 9,8% de sua po-
pulação sem trabalho.
 Diante desse cenário e com a crise despertada pelas movi-
mentações de refugiados, a União Europeia (UE), no mesmo setem-
bro da morte de Aylan Kurdi, firma um acordo para a redistribuição 
dos refugiados da Grécia e da Itália - as principais portas de entrada 
da Europa via Mar Mediterrâneo.
 A promessa era de movimentar em toda Europa 160.000 re-
Sobre desemprego na Europa, ver https://goo.gl/Q8ciyz. 17
fugiados dos dois países. Passados mais de 15 meses do acordo, ape-
nas 7.760 pessoas foram transferidas, segundo o ACNUR. O restante 
que ficou, continua nos abrigos, vulneráveis ao frio e em condições 
precárias.
 Em todo o mundo o cenário econômico foi afetado pela crise 
financeira de 2008, que explodiu dos Estados Unidos para o restante 
do planeta a partir do oferecimento de crédito para a sociedade. No 
país foram colocadas em prática políticas governamentais voltadas 
para estimular a aquisição de imóveis. Esse aumento na procura por 
imóveis — estimulado por um acesso facilitado aos financiamentos 
— acabou gerando um constante aumento no preço dos imóveis, o 
que fez do setor imobiliário um terreno atrativo à especulação finan-
ceira.
 Assim denominada pela imprensa internacional, a chama-
da “Bolha Imobiliária” estourou em 2008, fazendo com que bancos 
e mercados de todo o mundo sofressem seus impactos - uma vez 
que esta é a fase da globalização econômica e da financeirização dos 
mercados. Logo, os bens materiais, dívidas e ações de empresas são 
negociados a nível mundial.
 Nos Estados Unidos, um Bluesman caminhava pelas ruas de 
Crystal Springs, Mississippi. Era Robert Johnson. Em fins de 1929, a 
quebradeira geral que tomou conta do país atingia o nascente mer-
cado da música, e os convites para gravar discos escasseavam. Ali 
ele conhece Tommy Johnson, que viraria seu parceiro musical. Sem 
espaço para tocar e sem dinheiro, Tommy tinha voltado para a cida-
de natal e trabalhava apanhando algodão. Nos EUA o desemprego 
causado por aquilo que foi chamada de “Grande Depressão” chegou 
à marca de 4,6 milhões de trabalhadores só em 1929, segundo o his-
toriador britânico Eric Hobsbawm3. No Brasil, o governo comprava 
sacas de café e as queimava, para manter a produção e os preços.
 Desde a crise de 2008, considerada a maior desde a “Grande 
Depressão” de 1929, os países têm mostrado desempenhos econô-
micos diferentes para lidar com a situação. Passados pouco mais de 
8 anos desde essa última crise, seus reflexos são visíveis em vários 
setores da economia, principalmente no mundo do trabalho, em que 
se observa o número de trabalhadores disponíveis crescendo mais do 
que a criação de empregos.
 Mais de três milhões e quatrocentas mil pessoas perderão 
seus empregos em 2017, de acordo com relatório lançado pela Orga-
18
nização Internacional do Trabalho (OIT) - “Perspectivas sociais e do 
emprego no mundo - Tendências de 2017”. Esse aumento faz parte da 
taxa de desemprego no mundo, que hoje se situa em 5,8% da popula-
ção global.
 Ainda segundo o relatório, quase metade das pessoas ocu-
padas (42%) estarão desenvolvendo formas vulneráveis de trabalho 
- como trabalhadores familiares não remunerados e pessoas que tra-
balham por conta própria – essa porcentagem representa 1,4 bilhão 
de pessoas em todo o mundo. Nos países em desenvolvimento, como 
o Brasil, a previsão é de que nos próximos 2 anos, mais 5 milhões de 
pessoas vão compor a faixa de trabalhadores que ganham menos de 
3,10 dólares por dia, o que equivale a menos de dez reais, em valores 
de janeiro de 2017.
 O estrago econômico faz muitas pessoas migrarem de seus 
países de origem para outros locais, em busca de melhores opor-
tunidades de vida e trabalho. Pelos dados da pesquisa “Estimativas 
Globais da OIT sobre Trabalhadores Migrantes”, são 150 milhões de 
pessoas nessas condições no mundo, sendo que mais de 100 milhões 
estão no setor de serviços, diante de 43,4 milhões de trabalhadores 
migrantes na indústria e agricultura.
 No Brasil não é diferente. Em 2015, o país teve a maior perda 
salarial real de todo o continente americano, de acordo com o Relató-
rio Global sobre Salários 2016-2017, também da OIT. No país a situa-
ção fica crítica porque a crise econômica se juntou com o aumento da 
inflação, que faz o preço dos produtos e mercadorias subirem. Essa 
combinação faz com que os salários comprem cada vez menos coisas, 
enfraquecendo seu poder aquisitivo.
 Em divulgação do final de novembro de 2016, o Instituto 
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou resultados da 
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) de 2015, em 
que constatou-se queda média de 5,4% na renda do brasileiro (a pri-
meira queda em 11 anos). Desse valor, o recuo foi maior na popula-
ção que tem menores remunerações, ou seja, a mais pobre. Na parce-
la de 10% das pessoas com os menores salários (aqueles que ganham 
em média R$ 219 por mês), a queda foi de 7,8%. Já os 10% mais ricos, 
com renda de R$ 7.548 por mês, tiveram um encolhimento de 6,6% 
Sobre reletório da OIT, ver https://goo.gl/4waH7D.
Sobre perda salarial do Brasil, ver https://goo.gl/vVzzcN
Sobre queda na renda e divulgação do IBGE, ver https://goo.gl/zZhvbP 19
nos seus ganhos, entre 2014 e 2015.
 Essa queda acentuada nas faixas mais pobres faz aumentar 
a desigualdade salarial, conhecida como desigualdade de renda. No 
Brasil, desde o ano de 1974, os 10% mais ricos acabam recebendo 
em torno da metade a 2/3 de toda a renda do país, como apontou 
estudo de Pedro Herculano Souza4 e Marcelo Medeiros, ambos do 
IPEA.
O dinheiro manda
 Pra entender as desigualdades da sociedade brasileira, é 
preciso olhar para o desenvolvimento do capitalismo, o modo de 
produção em vigor atualmente. A acumulação de riqueza ao longo 
do tempo pelas pessoas que compõem a parcela de 1% mais rica do 
mundo cresce continuamente. Segundo o economista Thomas Pi-
ketty, em sua obra “O Capital no século XXI”, esse crescimento cons-
tante é a causa da desigualdade econômica, uma vez que a taxa de 
retorno sobre o capital é sempre maior do que a taxa de crescimento 
da renda. Esse fato mostra o desequilíbrio de poder entre o “mundo 
do capital” e o “mundo do trabalho”.
 “Piketty não possui uma abordagem marxista, mas sua pes-
quisa, com uma abundância de dados, confirma aquilo que os mar-
xistas de certa forma já sabem: sem contrapesos, o capital tende a se 
acumular incessantemente e isso é feito às expensas do trabalho”, afir-
ma Ilan Lapyda5, mestre em sociologia e autor de uma dissertação de 
mestrado sobre a financeirização no capitalismo contemporâneo. 
 Segundo David Harvey, a queda da participação do trabalho 
na composição da renda dos países se verifica mais intensamente 
a partir da década de 70. E esse é, inclusive, um momento para se 
entender os movimentos de capitais, renda e trabalho no mundo de 
hoje. Para ele, o sistemacapitalista gera crises econômicas porque 
tem uma tendência inerente de gerar superacumulação de capitais. 
E foi uma dessas crises que motivou mudanças nas economias dos 
países - que se repercutem até o presente.
 Autor de vários livros, Harvey discutiu suas ideias sobre as 
mudanças econômicas e sociais nas obras “Os Limites do Capital” 
(1982) e “Condição Pós-Moderna” (1989). Sua teoria é a de que 
Tese de mestrado “A ‘financeirização’ no capitalismo, ver https://goo.gl/t5NCZb
Sobre estudo do IPEA, ver https://goo.gl/E0f8B520
aconteceu uma transformação nos modelos tradicionais de acumu-
lação financeira, que passou de um modelo Fordista para uma Acu-
mulação Flexível de Capital.
 Trata-se de uma reestruturação da produção de bens e mer-
cadorias no capitalismo. Para o autor, essa mudança já vinha acon-
tecendo progressivamente ao longo da década de 1960, e foi ocasio-
nada por mais uma das crises de superacumulação. O símbolo da 
passagem foi o ano de 1973, quando ocorreu a crise internacional 
do petróleo - um boicote dos países exportadores de petróleo em 
comercializar o combustível, fazendo disparar a inflação mundial.
 Nesse regime flexível, o capital assume o protagonismo na 
organização das economias mundiais. Foi um tipo de resposta que a 
classe capitalista - aqueles que dirigem a economia, deram pra essa 
situação de crise. Como explica o teórico britânico, no regime flexí-
vel, uma das primeiras medidas a serem tomadas foi a “precarização 
da força de trabalho”. Nesse cenário passa a se dar preferência a uma 
menor rigidez nos contratos de trabalho. Começam a ser estimula-
dos os contratos temporários e as terceirizações de serviços aumen-
tam (como as empresas de limpeza, que prestam serviços a outras 
empresas). Também a força de trabalho imigrante passa a ser usada 
- já que quem está em outro país em busca de melhores condições de 
vida se torna uma mão-de-obra mais barata, quando se comparada 
aos habitantes nativos.
 Mas o regime flexível tem esse nome justamente por flexibi-
lizar todas as etapas do processo produtivo - trabalho, mercadorias e 
consumo. Na interpretação de Harvey, o mundo do capital busca re-
duzir ao máximos seus gastos, e então se intensifica o espalhamento 
de indústrias, fábricas e empresas ao redor do planeta, indo além dos 
países desenvolvidos. Essas empresas chegam aos países do chama-
do “Terceiro Mundo”, aquelas nações que não tinham um desenvol-
vimento econômico forte ou que ainda estavam se desenvolvendo, 
como era o caso do Brasil. No Terceiro Mundo as condições eram 
melhores do que nos países desenvolvidos, pois a mão-de-obra era 
mais barata, e um empresário poderia lucrar mais ao pagar um sa-
lário menor para seu funcionário fazer o mesmo trabalho que um 
operário do “Primeiro Mundo”.
 A acumulação flexível entrou em cena no lugar do fordis-
mo. Esse último foi o regime de produção que prosperou no mundo 
depois da Segunda Guerra Mundial (1945). O fordismo baseava-se 
nas inovações trazidas por Henry Ford6, empresário e inventor ame- 21
ricano, fundador da montadora de automóveis que leva seu o nome.
 Uma das maiores novidades do Ford foi a “linha de monta-
gem”, que seria uma revolução na indústria moderna. Ela possibilita 
a produção em massa “em menos tempo e a um menor custo”, como 
ele dizia. Ao mesmo tempo, a linha de montagem aliena o traba-
lhador daquilo que ele está produzindo, pois cada operário fica res-
ponsável apenas por uma função específica e pontual na fabricação. 
Como recompensa a esse trabalho, Ford garantiu aos seus emprega-
dos a jornada de trabalho de 8 horas e o salário de 5 dólares por dia, 
a partir de 1914.
 Na explicação de David Harvey, o fordismo dependia de 
enormes fábricas para acomodar seus estoques e os operários que 
ali trabalhavam, o que gera custos. Quando o fordismo começou a 
entrar em declínio, segundo Harvey já no final da década de 1960, o 
que se passou a pregar foi a produção Just in Time, uma adequação 
da fabricação de acordo com a demanda - “só se fabrica aquilo que 
foi encomendado”.
 Segundo o pensador britânico, um dos motivos para a ins-
talação de indústrias e empresas no Terceiro Mundo foi o poder que 
a força de trabalho organizada tinha nos países do centro do capi-
talismo (Europa e EUA). Nesses países o fordismo tinha possibilita-
do uma acumulação de capital, a partir do pós-guerra (1945), que 
proporcionou aos seus governos uma administração da economia 
que oferecesse à população uma rede de garantias e direitos sociais. 
Políticas de investimento governamental em transporte, equipamen-
tos públicos, previdência, assistência médica, educação, habitação. É 
o que ficou conhecido como Estado de Bem Estar Social, que teve 
como um dos principais formuladores o economista britânico John 
Maynard Keynes7, que passou a nomear esse modelo econômico: o 
Keynesianismo. 
 Como analisou Harvey, a classe trabalhadora se organizou 
durante o fordismo em torno dos sindicatos, que acabaram se bene-
ficiando da concentração de trabalhadores nas grandes indústrias, 
pois isso facilitava a organização, comunicação e articulação dos 
operários. Tal fato fez com que ao longo do século XX os trabalha-
dores conquistassem aumentos reais de salários (aumentos acima da 
inflação).
 Com sindicatos organizados e fortes e com a rede de pro-
teção do bem estar social, a classe trabalhadora conseguiu poder de 
barganha perante Estado e Mercado, e esse fato foi decisivo para a 22
mundialização do capital - seu espalhamento em direção ao Terceiro 
Mundo.
 Harvey também afirma outros fatores, como a necessidade 
do capital ampliar seus fluxos comerciais para além do mundo de-
senvolvido. Passou-se aí, segundo ele, a ocorrer a abertura de novos 
mercados ao redor do planeta, e na sua esteira, investimentos in-
ternacionais em infra-estrutura e urbanização. Formava-se a Era de 
Ouro do capitalismo fordista.
 Essa é a fase de internacionalização do capital, que foi acom-
panhada de uma nova divisão internacional do trabalho, de acordo 
com o entendimento de Hobsbawm. Nessa interpretação, os países 
do Terceiro Mundo deixam de ser apenas exportadores de matérias-
-primas não-industrializadas e passam a atuar também com produ-
tos fabris. Aumenta-se a disseminação de empresas multinacionais 
(ou transnacionais), a partir do centro do capitalismo para todo o 
globo.
 De acordo com Hobsbawm, “o surgimento de uma econo-
mia transnacional criou em grande parte os problemas que o capita-
lismo irá enfrentar a partir da década de 1970”. 
 Baseado na teoria de Karl Marx8 sobre as crises econômicas, 
David Harvey conclui que o avanço do processo de internaciona-
lização do capital gerou uma crescente competição internacional, 
levando a uma diminuição nas taxas de lucro dos empresários. Tam-
bém segundo ele, o financiamento da expansão do pós-guerra con-
tinuou no final da década de 1960, mesmo com a redução das áreas 
produtivas para receber esse investimento. Tal fato encheu o mundo 
capitalista de recursos financeiros sem aplicação na produção. Por 
sua vez, esse excesso causou inflação, o que trouxe uma crise de su-
peracumulação.
 É aí que entra 1973. Como afirma Hobsbawm, em seu livro 
“A Era dos Extremos”, “um dos motivos pelos quais a Era de Ouro foi 
de ouro é que o preço do barril de petróleo saudita custava em média 
menos de dois dólares durante todo o período de 1950 a 1973, com 
isso tornando a energia ridiculamente barata, e barateando-a cada 
vez mais”.
 Os israelenses tinham sido surpreendidos no feriado judaico 
do Yom Kippur, o “dia do perdão”. Às 14h daquele 6 de outubro, tropas 
do Egito e Síria invadem o país, respectivamente no Canal de Suez e 
nas Colinas de Golã - ambos territórios anexados por Israel na “Guer-
ra dos Seis Dias”, de 1967. Segundo acervo do portal de notícias ale- 23
mão Deutsche Welle, o conflito durou mais que os anteriores,pois os 
dois lados estavam sendo “abastecidos” pelas superpotências da época: 
Israel pelos EUA e Egito-Síria pela União Soviética. Foram necessários 
mais 15 dias de guerra para as Nações Unidas conseguirem conclamar 
uma trégua, em 22 de outubro de 1973.
 Nesse mesmo ano os países que compunham a Organização 
dos Países Exportadores de Petróleo9 (OPEP) fizeram um boicote aos 
EUA, Europa Ocidental e Japão - o centro do capitalismo. Formado 
por países árabes, o grupo passou a exigir um preço mais alto aos com-
pradores de petróleo. Politicamente, o boicote teve o pano de fundo da 
Guerra de Yom Kippur, pelo apoio do ocidente capitalista à Israel. 
 Harvey chamou esse episódio de “Primeiro Choque do Pe-
tróleo”, que fez disparar a inflação no mundo capitalista, até o ponto 
no qual ele afirma que o período 1965-1973 tornou evidente a inca-
pacidade do fordismo e do keynesianismo para conter as contradições 
internas do capitalismo. E essa incapacidade traduzia-se por uma pa-
lavra: rigidez.
 Segundo Harvey, o principal legado da crise do fordismo foi 
a transformação que ocorreu nos mercados financeiros, através da 
desregulamentação das transações de moedas, do crédito e de investi-
mentos. Para o geógrafo, tal fato serviu de base para a financeirização 
da economia, ou seja, um aumento de importância e quantidade das 
transações financeiras por conta da liberalização e desregulamentação 
dos mercados e atividades financeiras, servindo de base para o flores-
cimento da “cultura pós-moderna”, pautada pela “desmaterialização” 
do dinheiro, pelo teor efêmero da referência monetária e pela instabi-
lidade econômica, abrindo-se as portas ao Neoliberalismo. 
 Para Lapyda, a financeirização não poderia ter se espalhado 
no mundo sem a abertura dos países e a desregulamentação dos mer-
cados, sobretudo financeiros. Esse fato permitiu que o capital pudesse 
se movimentar sem restrições, aumentando as possibilidades de seu 
investimento. “Além disso, o neoliberalismo contribuiu para justificar 
e implementar tanto políticas econômicas ortodoxas como a diminui-
ção de direitos sociais”, afirma o pesquisador.
Sobre a Guerra de Yom Kippur, ver https://goo.gl/nQxpGF24
Pra situar: Garotos de chicago, austríacos e Neoliberalismo
 “Ali pelo final dos anos 1960, ficou claro para vários capita-
listas que eles precisavam fazer alguma coisa a respeito do excessivo 
poder do trabalho. Por isso, Keynes foi excluído do panteão dos eco-
nomistas respeitáveis”, analisa David Harvey. No momento em que 
caiu o fordismo, ascendia outro posicionamento político e socioe-
conômico: o Neoliberalismo. De acordo com os sociólogos Antonio 
de Ponte Jardim e Otair Fernandes de Oliveira, o “neoliberalismo 
representa um movimento político filosófico que surgiu, após 1945, 
mediante as críticas ao Estado de Bem-Estar Social apresentadas pe-
las idéias de economistas como Milton Fridman10, Friedrich Haye-
ck11 e Robert Nozick”. Caracteriza-se pelo retorno ao individualis-
mo contra o Estado coercitivo e centralizador de direitos sociais e 
coletivos. Esta posição teve como principal influência as idéias de 
filósofos como John Stuart Mill12 e Jeramy Bentham13 considerados 
próceres do pensamento liberal contemporâneo”.
 O Neoliberalismo tem origem nas proposições da Escola 
Austríaca de economia, cujas bases vieram de nomes como Friedri-
ch von Hayek e Ludwig von Mises. E também da Escola de Chicago 
e seus membros (conhecidos como “Chicago Boys”), que contribuiu 
para seu desenvolvimento a partir do pensamento de Milton Frie-
dman. Como explica Harvey, o Neoliberalismo veio na missão de 
estabilizar ou reduzir os impostos, desconstruir o Estado social e 
“disciplinar as forças do trabalho”. Conforme interpreta Ilan Lapyda, 
financeirização e neoliberalismo são indissociáveis, sendo que este 
último atuaria como um “modo de regulação” do regime de acumu-
lação flexível/financeirizado.
 No início da década de 1970, o chamado “receituário ne-
oliberal” foi aplicado no Chile sob a ditadura do general Augusto 
Pinochet. A partir da década de 1980 a Grâ-Bretanha de Margaret 
Thatcher e os Estados Unidos de Ronald Reagan também adotam 
a política neoliberal. Em 1989 o neoliberalismo passa a ser uma 
recomendação de instituições financeiras, como o Fundo Monetá-
rio Internacional (FMI), devido ao “Consenso de Washington”14. 
Com isso o FMI elabora seus Planos de Ajustamento Estrutural 
(PAE), receituário macroeconômico para orientar as economias 
“em desenvolvimento” durante os anos 90, como o Brasil.
25
Divergências nos alpes suíços
 “Nosso ponto é: se há desigualdade excessiva, isso é contra-
producente para o crescimento sustentável dos membros do G20”, 
disse a diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine 
Lagarde, durante um debate, em janeiro de 2017, no Fórum Econô-
mico Mundial, realizado anualmente em Davos, na Suíça.
 O posicionamento veio logo em seguida à fala de Henrique 
Meirelles, ministro da Fazenda do governo de Michel Miguel Elias 
Temer Lulia (PMDB). Segundo Mirelles, a chave para a melhora da 
economia do país seria a retomada do crescimento econômico. “A 
saída para uma economia como a do Brasil é voltar a crescer, voltar a 
criar empregos, modernizando a economia e abrindo o mercado, de 
forma a se tornar mais eficiente”, pontuou.
 Lagarde completou sua fala, alegando que “se nós queremos 
um pedaço maior da torta, nós precisamos de uma torta maior para 
todos. A desigualdade excessiva está impondo uma pausa a esse cres-
cimento sustentável”. E seguindo com a argumentação, criticou: “Há 
forte reação dos economistas, que dizem que esse tipo de coisa não 
é problema deles. Inclusive na minha própria instituição, que tem 
sido convertida a aceitar a importância de estudar a desigualdade e 
promover políticas em resposta a ela”, afirmou. Por fim, sugeriu que 
“há coisas que podem ser feitas: reformas fiscais e políticas monetá-
rias. Mas elas devem ser graduais, regionais. E isso provavelmente 
quer dizer maior distribuição de renda do que o que nós temos no 
momento.” 
 Entretanto, em outubro de 2016, a mesma Lagarde, em visita 
ao Brasil, defendeu a aprovação da Proposta de Emenda à Consti-
tuição (PEC) que limita o crescimento dos gastos públicos, a PEC 
do teto de gastos, afirmando que a medida vai ampliar a confiança 
na economia e o crescimento do país, segundo a Revista Exame. “A 
aprovação destas medidas [PEC do teto de gastos] em um período 
razoável de tempo vai ajudar a fortalecer a credibilidade do arcabou-
ço da política macroeconômica, ampliar a confiança na economia e 
apoiar um retorno de crescimento forte, inclusivo e sustentável no 
Brasil”, disse em comunicado enviado pelo FMI à imprensa.
 O debate colocou em perspectiva dois lados para a supera-
ção das crises financeiras: a do ajuste fiscal (corte de gastos) e a do 
Sobre debate no Fórum Econômico Mundial, ver https://goo.gl/v56oS0
Para declaração na Revista Exame, ver https://goo.gl/E4gQEZ26
aumento da receita do Estado aliado à melhor distribuição de renda. 
No Brasil a disputa se materializou em torno das discussões sobre a 
aprovação da PEC do teto de gastos, em pauta no cenário político 
nacional desde o impeachment da Presidenta Dilma Vana Rousseff 
(PT), no final de agosto de 2016. Aprovada em dois turnos, tanto 
na Câmara dos Deputados como no Senado Federal, a PEC foi pro-
mulgada em dezembro de 2016. Ela é uma das medidas centrais do 
governo Michel Temer para combater a crise econômica no Brasil. 
 De acordo com o relatório “Situação Econômica Mundial e 
Perspectivas 2017”, divulgado pela ONU em janeiro de 2017, o Bra-
sil deve ter fraca retomada do crescimento econômico, enquanto o 
crescente desemprego e o ajuste fiscal em curso continuam pesando 
sobre a consumo interno. O documento é considerada a principal 
publicação da ONU para tendências da economia global. Nele tam-bém foi ressaltado que o desemprego em alta no Brasil e a política 
fiscal “apertada” vão continuar atingindo a economia. “Medidas de 
austeridade fiscal que incluem profundos cortes de gastos ameaçam 
minar a sustentabilidade fiscal futura ao criar um ciclo vicioso: os 
cortes de investimento causam menor crescimento, o que por sua 
vez leva a uma maior redução dos gastos públicos”, conclui o docu-
mento. Segundo as Nações Unidas, a taxa de desemprego brasileira 
encerrou o terceiro trimestre de 2016 em 11,8%, frente a 6,5% regis-
trados no fim de 2014. 
 Dez anos atrás, em fevereiro de 2007, a mesma ONU lan-
çava a publicação “Flat World, Big Gaps” (Um Mundo Plano, Gran-
des Disparidades, em tradução livre), editado por Jomo Sundaram, 
secretário-geral adjunto da organização para o Desenvolvimento 
Econômico, e Jacques Baudot, economista especializado em temas 
de globalização.
 No livro se concluía que as alavancas do crescimento - glo-
balização e liberalização, não foram capazes de reduzir desigualda-
des e a pobreza. Segundo os pesquisadores, as duas ferramentas do 
crescimento econômico fizeram aumentar a desigualdade na renda 
per capita em países da OCDE (Organização para a Cooperação e o 
Desenvolvimento Econômico). A proposta era de que a desregula-
ção dos mercados teve como resultado uma maior concentração do 
poder econômico.
Para relatório Situação Econômica Mundial e Perspectivas 2017”, 
ver https://goo.gl/Ecn7qA
Para publicação “Flat World, Big Gaps”, ver https://goo.gl/n0RdSK 27
 Já em junho de 2016 o FMI protagonizava outro capítulo 
no debate acerca do neoliberalismo e das medidas de austeridade. 
Três economistas da entidade publicaram o artigo intitulado “Neoli-
beralism: Oversold?”, no qual discutiam os efeitos de duas políticas 
da chamada “agenda neoliberal”, a saber: a liberalização do capital e 
a consolidação fiscal (“austeridade” para reduzir déficits fiscais e o 
nível da dívida), segundo afirmaram os economistas brasileiros Luiz 
Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo, em artigo na revista Valor Eco-
nômico.
 Segundo eles, o artigo do FMI chegou à conclusão de que os 
fluxos de capitais nas economias emergentes não necessariamente 
levam ao crescimento econômico. A avaliação veio após a análise 
de 150 perturbações econômicas, em 50 mercados emergentes desde 
1980. No que diz respeito à austeridade, Belluzzo e Galípolo expli-
cam que, “o estudo do FMI indica: a elevação de impostos ou o corte 
de gastos para reduzir a dívida pode ter um custo muito maior do 
que a mitigação do risco de crise prometido pela sua redução”. Além 
disso, na interpretação dos brasileiros, a austeridade gera “substan-
ciais custos” na oferta de bem-estar à população, e também enfra-
quece o consumo e a taxa de empregos. A experiência prática não 
comprova que o aumento da confiança do setor privado para investir 
num país (e, por consequência, gerar mais empregos e crescimento 
econômico) esteja atrelada à consolidação fiscal (a garantia de supe-
rávit primário e controle da dívida pública e do déficit fiscal). “Epi-
sódios de consolidação fiscal foram seguidos por reduções mais do 
que expansões no crescimento”, afirmam.
 As abordagens econômicas que levam em conta a renda e 
a desigualdade apontam para um consenso: o de que está havendo 
uma mudança na estrutura da desigualdade mundial. Essa é a opi-
nião de Pedro Herculano Souza, doutor em Sociologia e pesquisador 
do IPEA. Para o pesquisador, até pouco tempo atrás as desigualda-
des entre países tinham mais importância do que as desigualdades 
internas de cada país, para se “medir” a desigualdade global. Isso, 
segundo ele, está mudando. Souza entende que a tese central de Pi-
ketty é uma previsão, ou seja, é a explicação do porquê as desigual-
dades permanecem e tendem a aumentar, mas “esse mecanismo não 
é o mais importante para explicar o aumento da desigualdade em 
alguns países até aqui”, pondera. Eventos extraordinários no século 
Para o artigo “Neoliberalism: Oversold?”, ver https://goo.gl/YTzmB6
Sobre análise de Belluzzo e Galípolo, ver https://goo.gl/22BzY128
XX, como a Segunda Guerra Mundial, fizeram balançar os meca-
nismos econômicos e alterar os caminhos da reprodução da desi-
gualdade. Segundo Souza, não existe consenso sobre a trajetória da 
desigualdade e nem a teoria econômica nem a sociologia são capazes 
de prever isso”.
Com o suor do trabalho
 “Meu patrão mesmo, quer fechar mais cedo hoje, porque 
cansa né, semana inteira trabalhando. Aí é correria aqui, correria pra 
chegar lá. Isso aqui cê pensa que é fácil, mas cê anda pra caramba”.
 Aparecido Cardoso tem 60 anos de idade. Durante os dias 
da semana divide espaço com automóveis na rua, puxando um car-
rinho de 2 metros de comprimento por 1 metro de largura que usa 
para catar material reciclado - principalmente papelão, plástico e 
alumínio. Tem um corpo magro, barba rala e cabelo curto, úmido de 
suor. Sua pele tem o tom de queimada pelo sol. 
 “Eu ando catando aí. Tem lugar que tenho ‘freguesia’, tem lu-
gar que não tem o que pegar”, explica ele. “Pego o que eu acho na rua, 
em caçamba - os donos de caçamba acha até bom que você pegue, 
porque aí dá pra eles por mais coisa dentro”.
 Seu Cardoso trabalha catando recicláveis nas ruas centrais 
de Bauru. O carrinho, seu instrumento de trabalho, não é dele, per-
tence ao dono do ferro velho onde ele deixa os materiais que pega 
nas ruas. “Ele [patrão] paga a carga que você leva até lá”. Além de 
fornecer o material de trabalho, o dono do ferro velho, que Cardoso 
considera ser seu “patrão”, fornece abrigo para ele e outros catadores. 
“Aqui em Bauru eu moro sozinho, mas moro dentro do ferro velho”, 
diz. “Mora mais gente lá também, tudo catador”, explica ele, que diz 
receber apoio do patrão. “O patrão não cobra nada pra morar lá. Até 
tenho lugar pra ir, mas lá ele dá o carrinho pra trabalhar e não cobra 
moradia, então ele ajuda a gente. Até a comida, por exemplo, lá eu 
tenho minha janta todo dia”.
 Segundo o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LE-
NAD), uma pesquisa elaborada pela Unifesp em 2012, o consumo 
de álcool entre as pessoas mais pobres é maior que o do restante da 
população. O estudo apontou que 70% dos brasileiros que ganham 
Sobre o LENAD, ver https://goo.gl/7CIuil. Obs.: Consumo abusivo é considerado 
beber ao menos cinco doses de bebida em um período de duas horas, para homens, e 
quatro doses em duas horas, para mulheres. Uma dose equivale a uma lata de cerve-
ja, uma taça de vinho ou uma dose de pinga 29
menos que mil reais por mês bebem de forma abusiva. Os resultados 
da pesquisa mostraram um padrão entre a renda da pessoa e o con-
sumo de álcool - quanto menores os ganhos, maior será o consumo 
excessivo de álcool. Nas contas do levantamento, 71% das pessoas da 
classe E bebem com exagero, seguidos de 60% na classe C, 56% na B 
e 45% na classe A. O estudo foi feito a partir de informações de 4.607 
pessoas com mais de 14 anos, coletados em 149 municípios. 
 O dinheiro que vem com os reciclados pode garantir a sobre-
vivência, como conta Seu Cardoso, mas depende muito da pessoa. “Se 
for um cara que ele consegue segurar o dinheiro… mas a maioria da 
peãozada aqui … cê sabe como que é né, num preciso nem falar”, diz 
ele, referindo-se ao uso de drogas e abuso do álcool. “Eu mesmo não 
uso droga nem nada, mas a pinguinha eu gosto de beber, e eu tenho 
que parar bicho. Olha aqui como é que eu tô”. Ele mostra várias feri-
das espalhadas pelo seu corpo, principalmente nas juntas, como co-
tovelo e joelho. As chagas de tamanhos diferentes acumulam sangue, 
que vai secando ao seu redor, e são difíceis de cicatrizar. Apesar dos 
rumores que ouviu, ele não sabe dizer se os ferimentos têm relação 
com o álcool. “Não sei se é a pinga, me falaram que é por causa dela, 
do tal do corote”. conta. “Isso aqui vicia, mas fumar eu não fumo, o 
problemaé a pinga mesmo”.
 As diferenças de classe se refletem no consumo de drogas, 
mas vão além. O sociólogo Jessé Souza considera, no seu livro “A Ralé 
Brasileira”, que a “renda” econômica é “efeito” e não “causa” das dife-
renças entre as classes. Portanto, na sua análise, as diferenças na renda 
dos brasileiros se dão pois a sociedade já é previamente dividida em 
classes socioeconômicas diferentes. 
 No seu estudo, Jessé chega à conclusão de que tanto a igual-
dade social como a liberdade individual não foram universalizados 
no país. Esse dois fatores, para o pesquisador, são os critérios básicos 
que devem existir em qualquer país que se proponha ser democráti-
co. Como ele sustenta, “se vimos que toda a atribuição de “respeito” 
e de “reconhecimento social” na modernidade depende da idéia de 
“trabalho produtivo útil”, como ficam aquelas sociedades que não lo-
graram universalizar os pressupostos para o trabalho produtivo e útil 
para todas as classes?”
 Para classificar os diferentes tipos de trabalho, a OIT criou o 
conceito de “trabalho decente”. Segundo os indicadores de trabalho 
no anuário de 2015 do Departamento Intersindical de Estatística e 
Estudos Socioeconômicos (DIEESE), o trabalho decente é definido 30
Para a OIT, a noção de trabalho decente se apoia em quatro pilares estratégicos: a) 
respeito às normas internacionais do trabalho; b) promoção do emprego de qualida-
de; c) extensão da proteção social; d) diálogo social 
como aquela atividade que tenha uma remuneração adequada, exer-
cida em condições de liberdade e segurança e que possa viabilizar 
uma vida digna. “É uma condição fundamental para a superação da 
pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governa-
bilidade democrática e o desenvolvimento sustentável”, diz o texto. 
 Nesse sentido, existe a categoria de “trabalho formal”. Nesse 
anuário, considerando como emprego formal aqueles que tenham car-
teira assinada, funcionários públicos, e contribuintes da previdência 
social, o DIEESE avaliou um crescimento na taxa de formalidade da 
população brasileira. Pegando a população de 16 a 59 anos de idade, a 
taxa passou de 51,4% em 2009 para 57,3% em 2014.
 Apesar do crescimento, ainda persistem no Brasil não só os 
trabalhos informais, mas até mesmo aqueles que refletem condições 
semelhantes à escravidão. Segundo o Ministério do Trabalho e Pre-
vidência Social (MTPS), o trabalho realizado em condição análoga 
à de escravo “constitui uma séria violação de direitos humanos que 
deve ser combatida com todo vigor pelo Estado brasileiro”. Em le-
vantamento do próprio ministério, de 2009 a 2014 foram feitas 1.334 
denúncias de trabalhos nas condições de escravidão.
 As condições de trabalho e da pobreza estão ligadas com a 
ascensão do capitalismo global. Pelo menos é o que garante Zygmunt 
Bauman. Segundo o polonês, quando se dá o desmonte do Estado 
de Bem Estar Social para uma ordem pautada pelo Neoliberalismo, 
começa a se instalar na sociedade um entendimento de “negação do 
Estado”, aliado ao elogio do mérito individual. Com isso, segundo 
ele, constituiu-se uma classe marginal que não possui função social. 
“Como a sociedade do consumo possui caráter individualista, a clas-
se marginalizada é consequentemente culpabilizada pelo seu próprio 
fracasso”, afirma no livro “Trabalho, Consumismo e Novos Pobres”.
 Na mesma linha vem Jessé Souza, trazendo as especificidades 
do Brasil. Na sua compreensão, a passagem do Brasil de uma socie-
dade escravocrata para uma sociedade de classes deixou como mar-
ca uma nova ordem de valores do capitalismo, que são estruturados 
pela competição e pela ideologia do mérito, a meritocracia. Segundo 
o autor, essa mudança também deixou “uma massa de inadaptados às 
demandas de Estado e mercado”, fazendo com que eles ficassem “to-
talmente excluídos”, formando aquilo que ele chamou de Ralé Estru-
31
tural. O termo “ralé” é usado pelo sociólogo para designar a parcela 
de “subcidadãos”, ou cidadão de segunda categoria. No seu raciocí-
nio, a sociedade não reconhece a ralé como sendo “cidadã efetiva”. No 
estudo feito por ele nesse livro, a Ralé Estrutural representa cerca de 
1/3 da população do Brasil.
 Nessa parcela à margem da cidadania, as pessoas sobrevivem 
a partir da informalidade. Conforme dados do Ministério do Desen-
volvimento Social e Agrário (MDSA) a partir do Censo do IBGE, 
15,6% da população bauruense de 16 anos ou mais está em situação 
de informalidade, sendo que no município, ao todo, 5.461 pessoas 
estão em situação de extrema pobreza, o que significa uma renda do-
miciliar per capita abaixo de R$ 70,00.
 “As raízes das desigualdades estão assentadas no modo de or-
ganização do trabalho”, considera Adriana Brito da Silva, conselheira 
estadual do Conselho Regional do Serviço Social - CRESS/SP. Segun-
do ela, existe uma apropriação privada da riqueza que é socialmente 
construída. “Por exemplo, como se justifica que um trabalhador, após 
anos de trabalho árduo na construção civil não consiga por meio do 
seu salário comprar e, portanto, morar num apartamento de luxo bem 
localizado que ele mesmo ajudou a construir?”, questiona.
 Pedreiro e carpinteiro, Timóteo Lima, com 62 anos de idade, 
carpe sarjeta para não passar fome. Diz ter trabalhado “pra um punha-
do de safado” que não pagou pelo serviço na construção. “Você precisa 
trabalhar, mas dignamente” assegura. “Eu por exemplo, cobro 30 conto 
o metro de tijolo, e tem gente que faz por 10. Eu cobro 15 o metro de 
reboque, mas tem gente que faz por 5. Eu acho desonesto”, admite. Em 
Bauru desde 1984, ele está hoje no Parque Jaraguá, zona norte da cida-
de. “Mora eu e Deus”, diz.
 Na análise de Jessé Souza, o mercado de trabalho atual tem 
a característica de ser altamente competitivo. Portanto, segundo ele, a 
população que já está à margem da sociedade - como é o caso da Ralé 
Estrutural, não tem outra opção a não ser sobreviver com os trabalhos 
informais, e passar pela “invisibilidade social”. Nesse conjunto “despri-
vilegiado” está um grupo inteiro de pessoas abaixo dos princípios de 
dignidade, que são miseráveis economicamente e que não possuem, 
segundo Jessé, aquilo que torna possível “ganhar a vida” dentro do ca-
pitalismo, que são as “pré-condições psico-sociais” de um indivíduo 
- as capacidades e habilidades transmitidas de pais para filhos e as con-
dições materiais do desenvolvimento humano, que garantem primeiro 
o sucesso escolar e depois o profissional. 32
Pra situar: Desmontando a meritocracia
 A negação do caráter de classe da desigualdade social é o “se-
gredo” mais bem guardado do mundo moderno, afirma Jessé Souza. 
Segundo ele, toda a “legitimação” social e política de qualquer socie-
dade moderna, seja ela central ou periférica, reside nesse fato. Assim 
para poder ser “legítima” a desigualdade deve assumir uma forma 
“individual” – essa artimanha, criada para esconder a forma estrutu-
ral da desigualdade – é a “ideologia da meritocracia”. Nela, justifica-se 
a desigualdade pela diferença no mérito individual de cada um. “Se 
alguém produz 50 vezes mais que outra pessoa, nada mais justo que 
essa pessoa também, por exemplo, receba um salário 50 vezes maior 
que a outra que produz também 50 vezes menos”, diz Jessé. 
 Para o autor, a desigualdade econômica é legítima no capita-
lismo por causa da influência cotidiana da meritocracia. O que essa 
ideologia esconde é que a dominação social moderna possui caráter 
de “classe” e não de “mérito”, ou seja, as classes sociais determinam o 
tamanho do sucesso individual. “Desde que se demonstre que o aces-
so ao conhecimento útil e, portanto, à dignidade do trabalho útil e 
produtivo exige pressupostos desigualmente distribuídos por perten-
cimento de classe, ou seja, por privilégios de nascimento e de sangue 
e não decorrentes de mérito ou talento individual, então podemos 
criticar toda a desigualdadesocial produzida nessas condições como 
‘injusta’ e ‘ilegítima’”.
Estado, mercado e sociedade
 Duzentos e dois milhões setecentos e sessenta e nove mil. 
Essa era, segundo o IBGE, a população do Brasil em 2014. No mes-
mo ano, também segundo o instituto, o PIB brasileiro - a soma de 
todas as riquezas produzidas pelo país em 12 meses, teve o valor de 
mais de R$ 5,6 trilhões. Dividindo-se esse dinheiro pela população 
do país, têm-se o “PIB per capita”. Em 2014 o valor das riquezas na-
cionais por habitante foi de R$ 28.046,00.
 No Brasil, os mais ricos ficam com a maior parte da renda 
gerada anualmente no país. Essa realidade se mostra a partir dos 
dados do IBGE, divulgados pelo DIEESE no Anuário do Sistema Pú-
Para o PIB e PIB per capita, ver IBGE: https://goo.gl/JP0cTY 33
blico de Emprego, Trabalho e Renda 2015, no volume que trata do 
mercado de trabalho. Referente ao ano de 2014, a pesquisa revelou 
(*) que a parcela de trabalhadores composta pelos 10% mais ricos 
ganham duas vezes mais que os 50% mais pobres dos trabalhadores. 
Em números, isso significa que 40,3% da renda do trabalho vai para 
o décimo mais rico da população enquanto 19,3% da renda é desti-
nada à metade mais pobre dos trabalhadores.
 Ainda considerando o ano de 2014, outra informação do 
anuário ressalta a distância entre ricos e pobres. Também com base 
em dados do IBGE, a pesquisa mostrou que os 10% mais pobres da 
população ganhavam até R$ 400,00 por mês. Na parcela dos 10% 
mais ricos, os rendimentos chegavam a R$ 3.500,00 mensais.
 Para Herculano Souza, acreditar que o crescimento econô-
mico sozinho vai resolver os problemas da pobreza e desigualdade 
“não deu certo antes e não vai dar certo agora”. Conforme ele explica, 
“o desafio é promover o crescimento sustentado ao mesmo tempo 
em que implementamos ou reformamos políticas públicas para tor-
nar o Estado mais redistributivo, capaz de prestar serviços essenciais 
com maior qualidade e amparar os grupos mais excluídos”.
 “Minha família tá toda bem de vida, e olha como é que eu 
tô”, lamenta Seu Cardoso. “Já trabalhei em empresa multinacional, 
mas aí você sabe como que é né? Pinga e muierada”, confessa o ca-
tador. Segundo ele, estava “bem de vida” e tinha conta no banco. 
Recentemente tentou se aposentar, mas revelou que não conseguiu, 
por não ter atingido o tempo de serviço.
 “Tinha aquele negócio de trabalhador temporário, agora 
nem tem mais, você entra numa firma e já te registram”, conta. Car-
doso levanta suspeitas quanto aos seus trabalhos ao longo da vida, 
pois segundo ele já deveria estar aposentado. “Eles falam que contam 
lá, mas acho que é mentira. Os cara mete a mão em você. Eles dão 
holeriti, diz que marca no INSS, mas acho que é mentira. A gente 
não tá vendo...”
 Seu Cardoso conta que contribuiu quando trabalhava na 
agricultura. Depois ficou sem emprego, “por causa do maquinário”. 
Agora como catador, tenta “encostar” pelo INSS. “É foda bicho, eu 
trabalhei pra caramba já”, protesta.
 As “pré-condições sociais” de que fala Jessé continuam sen-
do as maiores barreiras para o desenvolvimento da sociedade. “O 
(*) Pesquisa baseada no rendimento mensal de todos os trabalhos dos ocupados de 
14 anos ou mais de idade com rendimentos34
desafio de toda sociedade moderna é garantir a igualdade social e a 
liberdade individual. A universalização das condições de acesso ao 
“trabalho útil e digno” é, no fundo, a realização concreta do ideal 
de igualdade; enquanto a realização da expressividade individual é 
a única forma de garantir o exercício efetivo de uma liberdade de 
ação individual que não se confunde com mero consumo”, aponta o 
pesquisador.
 Essas diferentes condições revelam as diferentes oportuni-
dades que as pessoas tiveram ao longo da vida. Nesse ponto de vista, 
as desigualdades vão muito além dos fatores econômicos, e já estão 
presentes na própria família, em contextos de vulnerabilidade social.
 “Às vezes a gente pega uma criança, e aí falam ‘nossa, meu 
Deus do céu, que criança rebelde!’, mas aí você vai e conhece o his-
tórico familiar dela: a mãe bebe, o pai está preso, a mãe bate. É aí 
que você começa a entender o porquê que essa criança tem toda essa 
agressividade, porque que tudo que você fala ela responde. A criança 
vê os pais nessa situação, aí tem também o bairro que ela mora, que 
muitas vezes tem a presença das drogas, então é complicado”.
 É o que afirma Fabiane Couti da Silva, assistente social da 
entidade “Pequenos Obreiros de Curuçá” (POC), com atuação na 
região da Vila Dutra, zona oeste de Bauru. A instituição oferece um 
serviço de convivência e fortalecimento de vínculos para crianças 
e adolescentes da periferia da cidade. Com uma atuação que vem 
desde 1995, atualmente são 155 jovens atendidos, e a percepção que 
se tem é que a demanda sempre aumenta, principalmente devido ao 
desenvolvimento do bairro. “O bairro cresce, então a demanda tam-
bém cresce. Aí a gente tenta suprir essa necessidade. Além do POC 
tem outras entidades, às vezes até próximas entre si”, explica ela.
 Marli Aparecida Álvares é assistente social e trabalha no 
POC há 16 anos, tendo já coordenado o projeto em seu início. É 
também funcionária da Secretaria Municipal do Bem Estar Social 
(SEBES). Para ela, o principal é trabalhar com a auto estima dos jo-
vens. “Tem muitas crianças que vêm pra cá com esse sentimento de 
‘não tenho mais nada a perder, minha vida dá tudo errado’, e ela en-
tra na adolescência assim. Então se você começa a trabalhar a auto 
estima e você deixa ela participar, ela se sente valorizada aqui dentro, 
e isso vai formando um cidadão”, relata. Essa valorização, segundo 
Marli, se torna ferramenta para a mudança - tanto individual como 
coletivamente: “Ela se acha capaz de escolher, de decidir algumas 
coisas. E se ela se sente valorizada, ela vai querer mudar o ambiente 35
em que está inserida. A gente percebe que isso faz diferença tanto 
dentro da família como na postura como cidadão”, explica.
 A temática da vulnerabilidade social surgiu nos anos 1990, 
com o desgaste pelo qual passaram os estudos sobre a pobreza, que 
se reduzia a questões econômicas, explica a assistente social Simone 
da Rocha Monteiro, doutora pela PUCRS e professora adjunta na 
Escola de Serviço Social-UFF, em seu artigo “O marco conceitual da 
vulnerabilidade social”.
 Segundo ela, o conceito veio para o centro das análises so-
ciais a partir de organismos internacionais, como a ONU e o Banco 
Mundial, a fim de ser uma alternativa ao conceito de “exclusão so-
cial”. No artigo, a pesquisadora explica que as políticas públicas são 
fundamentais para a consolidação da proteção social. “A diminuição 
dos níveis de vulnerabilidade social pode se dar a partir do fortale-
cimento dos sujeitos para que possam acessar bens e serviços, am-
pliando seu universo material e simbólico, além de suas condições 
de mobilidade social”, expõe.
 A partir desse entendimento, pode-se compreender a políti-
ca de assistência social como uma política pública de proteção social, 
explica Simone. E essa política, segundo a pesquisadora, deve se ca-
racterizar como um dos instrumentos de garantia de direitos, condi-
ções dignas de vida, emancipação e autonomia. No entanto, segundo 
ela, a política de assistência social aponta para o empoderamento 
dos sujeitos, o fortalecimento de suas potencialidades e capacidades, 
“numa lógica paliativa, atrelada aos sujeitos e não à estrutura social”.
 Essa concepção faz com que a ideia de vulnerabilidade so-
cial não leve em conta a estrutura da sociedade capitalista e não 
problematize a superação das suas contradições, pois não considera 
que essas contradições sejam um produto das desigualdades sociais. 
“Logo, toda a possibilidade de enfrentamento se dá dentro desta ló-
gica, sem confrontar seus condicionantes”, ressalta a pesquisadora.
 Para a conselheira do CRESS-SP, utilizaro termo “vulnera-
bilidade” para tratar de questões de necessidades de sobrevivência 
dos trabalhadores da sociedade brasileira envolve um posiciona-
mento político. “É um conceito ideológico comumente adotado na 
área social para mistificar o conteúdo político e econômico respon-
sável pelas inúmeras desigualdades”, elucida.
 Na opinião da Marli Aparecida, no combate à essa vulne-
rabilidade social existem vários atores. “Entra o papel da família e 
do Estado, que na verdade acabou terceirizando todo o papel dele”, 
36
alega. “A gente tenta atuar, mas você vê que existe muita falta de vaga 
em creche, as escolas estão superlotadas. Na televisão eles falam que 
tem ‘tantas’ crianças nas escolas, mas vira um depósito de criança. 
Dentro do nosso “Padrão Normativo” consta que a criança tem que 
interagir, por exemplo, mas se você não toma cuidado, você transfor-
ma uma entidade dessas [POC] num depósito de criança”, adverte a 
assistente.
Proteção social bauruense
 A cidade de Bauru possui uma secretaria especial para o 
planejamento, organização e articulação da proteção social. É a Se-
cretaria Municipal do Bem Estar Social, conhecida como SEBES. Ela 
tem a missão de fazer a inclusão social da população em situação 
de vulnerabilidade e risco. Essa atuação se dá de maneira direta, em 
que a própria secretaria mantém locais de atendimento e funcioná-
rios - como é o caso dos Centros de Referência da Assistência Social 
(CRAS) ou dos Centro de Referência Especializado de Assistência 
Social (CREAS). Mas também existe a atuação indireta, a partir da 
Rede Cofinanciada - na qual a Prefeitura de Bauru firma convênios 
com organizações da sociedade civil que prestam atendimento à po-
pulação. Com esses convênios é repassada uma verba pública para 
essas entidades atuarem prestando esse serviço, que deve obedecer a 
parâmetros e diretrizes conhecidos como “Padrões Normativos”.
 Cerca de 30 entidades fazem parte do sistema cofinancia-
do. Essa atuação do poder público juntamente com a sociedade civil 
compõe a Rede de Proteção Social do município. Ela está dividida 
em dois segmentos, dependendo do grau de complexidade dos ser-
viços e atendimentos: a rede de proteção básica e a rede especial.
 O repasse de recursos públicos municipais para as entidades 
do setor privado vem de duas fontes: o Fundo Municipal dos Direi-
tos da Criança e do Adolescente (FMDCA) e o Fundo Municipal 
da Assistência Social (FMAS). Ambos são abastecidos com recursos 
financeiros das esferas de governo Municipal, Estadual e Federal. 
 Através da Lei 6.467, de dezembro de 2013, o repasse de di-
nheiro público (nas três esferas) foi assim dividido entre as duas re-
des de proteção no ano de 2014: R$ 11,7 milhões para a básica e R$ 
11,4 milhões para a especial, repartidos entre todas as instituições 
Para consultar os Padrões Normativos de serviços, ver https://goo.gl/QSLAJZ
Para a Lei 6.467, ver https://goo.gl/dXH5CZ 37
que atuam na cidade.
 Como afirma Andrea Ferreguti, coordenadora da Funda-
ção Toledo (Fundato, uma das entidades prestadoras do serviço de 
assistência social), na rede básica o atendimento se concentra nas 
pessoas em situação de vulnerabilidade social, na qual “embora seus 
direitos estejam ameaçados, ainda não foram rompidos”, explica. 
“Na proteção especial esses direitos e os vínculos familiares já foram 
rompidos”.
 Segundo informa a SEBES, o conjunto de ações, programas, 
serviços e projetos na assistência social é orientado por políticas pú-
blicas municipais, que por sua vez devem ser norteadas pelo SUAS 
- o Sistema Único de Assistência Social, responsável por regular a 
política de assistência social no país.
 Com 50 anos de existência e atuação na cidade de Bauru, a 
Fundato atende cerca de 1000 pessoas todo mês. Segundo Andrea, 
houve uma melhora nas condições gerais da população, principal-
mente nos últimos 10 anos, em que se percebeu uma emancipação 
maior das pessoas. “Eu percebo que hoje houve sim uma emancipa-
ção e um realinhamento dentro da própria política. Com o passar 
dos anos eu acho que o poder de compra dessa população melhorou 
bastante. O acesso aos benefícios e ao mundo do trabalho melhorou 
também”, pontua. Essa mudança impacta até mesmo a dinâmica das 
classes sociais no país. “Ás vezes eu até fico me perguntando aonde 
é que está essa classe média? Porque hoje eu não consigo perceber 
essa classe média: ou é pobre ou é rico. O pobre hoje tem um poder 
de consumo. A não ser o miserável, que já é uma outra linha, uma 
outra demanda”, revela.
 De acordo com dados de outubro de 2016 do MDSA, Bau-
ru possuía 42.716 famílias que estavam no Cadastro Único para 
Programas Sociais, do Governo Federal, uma central de registros 
que reúne informações socioeconômicas das famílias brasileiras de 
baixa renda. É por meio desse cadastro que as pessoas podem soli-
citar os benefícios assistenciais do governo, como o Bolsa Família. 
O número de famílias cadastradas equivale a 104.490 pessoas, das 
quais 30.480 estão em famílias com renda per capita mensal de até 
R$ 85,00.
 Segundo relatório do mesmo MDSA, em abril de 2016 o 
município tinha em seu território os seguintes serviços de assistên-
Para os dados nacionais do MDSA, acessar https://goo.gl/vao9jF38
cia social: 5 Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), 2 
Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CRE-
AS), 1 Centro de Referência Especializado de Assistência Social para 
População em Situação de Rua (Centro POP) e 100 vagas em Servi-
ços de Acolhimento para População em Situação de Rua, todos os 
locais recebendo verbas federais para sua manutenção.
 Apesar da recente emancipação financeira das pessoas, An-
drea observa que nos últimos 2 anos as demandas na sua instituição 
aumentaram, principalmente por pessoas que até então nunca ti-
nham procurado o serviço. “São pessoas que tinham o seu trabalho, 
levavam uma vida simples e estavam inseridas no mercado formal, 
mas vieram a perder esse serviço e hoje procuram a assistência so-
cial”, diz. “Agora, se nós pegarmos de 10 anos pra cá, a gente percebe 
que no município de Bauru houve uma melhora no poder de com-
pra, na diminuição da vulnerabilidade e do risco”, completa.
 Conforme dados do IBGE no Censo Demográfico de 2010, 
o município possuía uma População Economicamente Ativa (PEA) 
de 185.226 pessoas. A PEA mede o número de habitantes de um 
determinado lugar que estão aptas para o trabalho - empregadas ou 
não - e, portanto, que podem contribuir produtivamente para a so-
ciedade. Desse total mencionado, 173.663 pessoas estavam ocupa-
das, das quais 58,6% com carteira assinada e 11.563 estavam deso-
cupadas. Na cidade, duas em cada cinco pessoas que tem ocupação, 
ganham mais de 2 salários mínimos e 41% ganham de 1 a 2 salários.
 Em Bauru, o ramo que mais emprega é o de serviços, sendo 
que vendedores dos comércios e mercados somam 30.544 pessoas, o 
que equivale a 17,6% da população ocupada. Logo atrás, 28.207 esta-
vam em ocupações elementares (segundo o IBGE são os trabalhado-
res domésticos, ajudantes de cozinha, pessoal de limpeza, vendedo-
res ambulantes), seguidos de profissionais das ciências e intelectuais 
com 21.989, ou 12,7%, de acordo com os dados do IBGE.
 “A crise econômica aumenta mesmo o fluxo, é uma coisa 
natural, e aí mais pessoas acabam batendo na porta da assistência 
social”, diz o secretário municipal do Bem Estar Social, José Carlos 
Augusto Fernandes. “Muitas vezes a pessoa tá desempregada e sabe-
mos que não é por falta de procurar emprego. Nós entendemos que 
o momento é atípico e foge um pouco da normalidade. Aqui no Bra-
sil nós nunca tivemos pleno emprego, mas já tivemos uma situação 
de quase chegar a isso”, contextualiza ele.
 Fernandes assumiu a pasta em janeiro de 2017, nomeado 39
pelo prefeito eleito Clodoaldo Gazzetta (PSD). Bacharel em Ciências 
Contábeis, é

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