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A LITERATURA BRASILEIRA A PARTIR DO SÉCULO XX Pré-modernismo e Modernismo Prof. Glaudistone Ferreira de Almeida O período que antecedeu à realização da Semana de Arte Moderna (1902 – 1922) revelava uma preocupação em denunciar a realidade brasileira por parte de alguns autores, descortinando um Brasil não oficial, dos marginalizados, abrangendo o sertão nordestino, os subúrbios cariocas e a região do Vale do Paraíba, em São Paulo. Os Sertões foi a primeira obra a negar o Brasil romantizado pelos escritores do séc. XIX. A obra, publicada em 1902, mostrou os contrastes entre o Brasil europeizado, litorâneo, e um outro Brasil, sertanejo, cheio de problemas, composto de “extraordinários patrícios”. Numa mistura saudável de crítica, análise e humor “Triste fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto, publicado em 1911, traz à tona o nacionalismo – absurdo, porém honesto - do Major Quaresma, figura quixotesca, caricaturada ao extremo pelo autor, que intenciona mostrar um nacionalismo perigoso, quando manipulado por mãos de ferro, como as do Marechal Floriano Peixoto. Monteiro Lobato, na década de 1910, é o caso típico do intelectual eclético e com um só objetivo: debater as desigualdades do Brasil para tentar entendê- lo, sempre na busca de caminhos para a construção do futuro. Além da literatura adulta e infantil a que se dedicou, Lobato foi pioneiro na área de exploração de minérios. Apesar de o Pré-Modernismo não constituir uma “escola literária”, por apresentar individualidades muito fortes, com estilos às vezes antagônicos – como é o caso, por exemplo, de Euclides da Cunha e de Lima Barreto -, percebem-se alguns pontos comuns às principais obras desse período. CARACTERÍSTICAS COMUNS ÀS OBRAS PRÉ-MODERNISTAS Denúncia da realidade brasileira: nega-se o Brasil literário herdado do Romantismo e do Parnasianismo; o Brasil não-oficial – do sertão nordestino, dos caboclos interioranos, dos subúrbios – é o grande tema do Pré- Modernismo. Regionalismo: monta-se um vasto painel brasileiro – o Norte e o Nordeste com Euclides da Cunha; o vale do Paraíba e o interior paulista com Monteiro Lobato; o Espírito Santo com Graça Aranha; o subúrbio carioca com Lima Barreto. Tipos humanos marginalizados: o sertanejo nordestino, o caipira, os funcionários públicos, os mulatos. Ligação com fatos políticos, econômicos e sociais contemporâneos: diminui a distância entre a realidade e a ficção. São exemplos: Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto (retrata o governo de Floriano e a Revolta da Armada), Os Sertões, de Euclides da Cunha (um relato da Guerra de Canudos), Cidades mortas, de Monteiro Lobato (mostra a passagem do café pelo Vale do Paraíba paulista). Ruptura com o passado: com o academicismo; há certo caráter inovador em determinadas obras: a linguagem de Augusto dos Anjos, por exemplo, ponteada de palavras “não poéticas” (como cuspe, vômito, escarro, vermes), era uma afronta à poesia parnasiana ainda em vigor. Euclides da Cunha, a denúncia de um massacre Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha (1866-1909) formou-se em engenharia e fez carreira militar, ainda nos anos finais da Monarquia. Positivista e republicano foi expulso do Exército; mais tarde, com a proclamação da República, retornou para a Escola Superior de Guerra. Em 1896, discordando dos rumos dos governos republicanos, abandonou definitivamente a carreira militar. Em 1897 foi enviado a Canudos como correspondente do Jornal O Estado de S. Paulo, na volta, escreveu Os sertões. Teve fim trágico: foi assassinado por motivos nunca devidamente esclarecidos, misturando-se vida pessoal e política. Lima Barreto, uma crítica ao nacionalismo exagerado e aos preconceitos Afonso Henrique de Lima Barreto (1881-1922) era filho de pai português e mãe escrava. Chegou a cursar Engenharia na Escola Politécnica, mas foi obrigado a abandoná-la para cuidar de seu pai, que enfrentava distúrbios mentais. Mulato, pobre e socialista, vítima de toda a espécie de preconceitos, com o pai louco, viveu intensamente todas as contradições do início do século XX e passou por profundas crises depressivas. Alcoólatra, teve passagens pelo Hospício Nacional. Escreveu artigos para jornal em que defendia a Revolução Russa e o voto feminino. Monteiro Lobato e suas metáforas de Brasil José Bento Monteiro Lobato (1882-1948), formado em Direito, herdou uma fazenda de seu avô, localizada em sua região natal: o Vale do Paraíba paulista. Após o inverno seco de 1914, cansado de enfrentar as diversas queimadas praticadas por seus empregados, escreve um artigo intitulado “Velha Praga”, que sai publicado no jornal O Estado de S. Paulo, logo seguido de outro, intitulado “Urupês”. Nascia, assim, o seu primeiro livro e a figura simbólica de Jeca Tatu. Lobato foi uma figura, empreendedora em todos os sentidos: fundou a primeira editora nacional; impressionado com a importância do petróleo, fundou o Sindicato do Ferro e a Companhia Petróleos do Brasil e se dedicou à exploração mineral; criticou violentamente a política de exploração mineral do governo Getúlio Vargas, o que lhe valeu seis meses de detenção e o exílio na Argentina; produziu abundante literatura tanto para o público adulto como para o infantil. Alguns de seus personagens são verdadeiras metáforas do Brasil. O Pessimismo de Augusto dos Anjos Augusto dos Anjos foi um dos autores que mais estavam distanciados da proposta do Pré-Modernismo. Percebe-se profundas influências parnasianas e simbolistas - além de pessimistas - em seus poemas, que foram publicados, mas somente depois de sua morte que foram vendidos com sucesso. Em seu auge parnasiano, publicou a coleção de poemas Eu. Sua obra é cientificista e profundamente pessimista, onde a morte é sempre vista como algo de que não se pode escapar jamais. Trabalhou, assim como parnasianos e simbolistas, com sonetos e verso decassílabo. Sua visão de mundo e a interrogação do mistério da existência e do estar-no-mundo marcam esta nova vertente poética. Há uma aflição pessoal demonstrada com intensidade dramática, além do pessimismo. Constância da morte, desintegração e os vermes. Percebe-se, também, grande ausência do lirismo presente na maioria das poesias da época. PSICOLOGIA DE UM VENCIDO Eu, filho do carbono e do amoníaco, Monstro de escuridão e rutilância, Sofro, desde a epigênesis da infância, A influência má dos signos do zodíaco. Profundissimamente hipocondríaco, Este ambiente me causa repugnância… Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia Que se escapa da boca de um cardíaco. Já o verme — este operário das ruínas — Que o sangue podre das carnificinas Come, e à vida em geral declara guerra, Anda a espreitar meus olhos para roê-los, E há-de deixar-me apenas os cabelos, Na frialdade inorgânica da terra! A semana de Arte Moderna São Paulo, Teatro Municipal, fevereiro de 1922. Para entendermos a Semana de Arte Moderna e o modernismo dos anos 1920, um bom caminho é pensar em três fatos: o melhor palco para a Semana, indiscutivelmente, era a cidade de São Paulo; dentro da cidade, o melhor local era o Teatro Municipal e o evento não poderia acontecer nem 1921, nem em 1923 – necessariamente teria de ser em 1922. O ano era de comemoração do primeiro centenário da Independência; uma independência política e não econômica e muito menos cultural. O Teatro Municipal, inaugurado em 1911, idealizado para as grandes apresentações de óperas, era orgulho da elite paulistana. São Paulo dos anos 20 era a cidade que melhor apresentava condições para a realização de tal evento. Tratava-se de uma próspera cidade, que recebia grande número de imigrantes europeus e modernizava-se rapidamente, com a implantação de indústrias e reurbanização.Era, enfim, uma cidade favorável a ser transformada num centro cultural da época, abrigando vários jovens artistas. Mário de Andrade, na conferência O movimento modernista, pronunciada em 1942, explicava por que só São Paulo reunia as condições para sediar a semana: É só mesmo uma figura como ele [Paulo Prado e uma cidade grande, mas provinciana como São Paulo, poderiam fazer o movimento modernista e objetivá-lo na Semana. (...) São Paulo era espiritualmente muito mais moderna, porém, fruto necessário da economia do café e do industrialismo consequente. São Paulo estava, ao mesmo tempo, pela sua atualidade comercial e sua industrialização, em contato mais espiritual e mais técnico com a atualidade do mundo.” ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In: Aspectos da literatura brasileira. 5. Ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974. A semana As primeiras informações sobre a realização de uma semana de arte foram veiculadas pela imprensa paulista em 29 de Janeiro de 1922; nessa data, o Jornal Correio Paulistano noticiou a organização da Semana e relacionou todos os prováveis participantes do evento. Durante os primeiros dias de fevereiro, várias outras notícias criaram um clima de expectativa em torno do acontecimento; tal fato explica a enorme afluência de público ao primeiro espetáculo, na noite de 13 de fevereiro. “Ode ao burguês” é um dos poemas do livro Paulicéia desvairada, lançado em 1922. Mário de Andrade declamou alguns poemas no palco do Teatro Municipal. Em 1942, ele confessava: “Como tive coragem para participar daquela batalha! Mas como tive coragem para dizer versos diante duma vaia tão barulhenta que eu não escutava no palco o que Paulo Prado me gritava da primeira fila das poltronas?”. Mário de Andrade, com suas conferências, leituras de poemas e publicações em jornais foi uma das personalidades mais ativas da Semana. Ode ao burguês Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, o burguês-burguês! A digestão bem-feita de São Paulo! O homem-curva! o homem-nádegas! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, é sempre um cauteloso pouco-a-pouco! Eu insulto as aristocracias cautelosas! Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros! que vivem dentro de muros sem pulos, e gemem sangue de alguns milréis1 fracos para dizerem que as filhas da senhora falam o francês e tocam os “Printemps”2 com as unhas! Eu insulto o burguês-funesto! O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Fora os que algarismam os amanhãs! Olha a vida dos nossos setembros! Fará Sol? Choverá? Arlequinal3! Mas à chuva dos rosais O êxtase fará sempre Sol! Morte à gordura! Morte às adiposidades cerebrais! Morte ao burguês-mensal! ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi4! Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano! “- Ai, filha, que te darei pelos teus anos? - Um colar... – Conto e quinhentos!!! Mas nós morremos de fome!” Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma! Oh! purée5 de batatas morais! Oh! cabelos nas ventas6! oh! carecas! Ódio aos temperamentos regulares! Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia! Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados7! Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos, Sempiternamente8 as mesmices convencionais! De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia! Dois a dois! Primeira posição! Marcha! Todos para a Central do meu rancor inebriante! Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio! Morte ao burguês de giolhos9, cheirando religião e que não crê em Deus! Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico! Ódio fundamento, sem perdão! Fora! Fu! Fora o bom burguês!... ANDRADE, Mário de. Mário de Andrade – poesias completas. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993. P 88. 1réis: na grafia oficial, mil-réis, unidade monetária brasileira até 1942. 2Printemps(“prentan” = primavera): obra clássica do compositor francês Claude Le Jeune (1528-1601) 3arlequinal: relativo a Arlequim, personagem de antigas comédias italianas, caracterizado por roupa multicolorida, geralmente feita de losangos. 4tíburi: antigo veículo de duas rodas, puxado por um cavalo. 5purée: o mesmo que purê, alimento pastoso, feito de batatas amassadas. 6ventas: nariz. 7secos e molhados: expressão que designa alimentos, respectivamente sólidos e líquidos; por extensão, local onde se vendem esses alimentos. 8sempiternamente: eternamente. 9giolhos: joelhos. Manuel Bandeira, mesmo distante, provocou inúmeras reações de agrado e de ódio devido a seu poema "Os Sapos", que fazia uma sátira do Parnasianismo, poema esse que foi lido durante o evento por Ronald de Carvalho. Os sapos Enfunando os papos Em ronco que aterra, Saem da penumbra, Berra o sapo-boi: Aos pulos, os sapos. - “Meu pai foi à guerra!” A luz os deslumbra. - “Não foi!” – “Foi” – “Não foi!” O sapo-tanoeiro, Brada em um assomo Parnasiano aguado, O sapo-tanoeiro: Diz: - “Meu cancioneiro - “A grande arte é como É bem martelado. Lavor de joalheiro. Vede como primo Ou bem de estatuário, Em comer os hiatos! Tudo quanto é belo, Que arte! E nunca rimo Tudo quanto é vário, Os termos cognatos Canta no martelo”. O meu verso é bom. Outros, sapos-pipas Frumento sem joio. (Um mal em si cabe), Faço rimas com Falam pelas tripas: Consoantes de apoio - “Sei!” – “Não sabe!” – “Sabe!” Vai por cinqüenta anos Longe dessa grita, Que lhes dei a norma: Lá onde mais densa Reduzi sem danos A noite infinita A fôrmas a forma. Verte a sombra imensa; Clame a saparia Lá, fugido ao mundo, Em críticas céticas: Sem glória, sem fé, Não há mais poesia, No perau profundo Mas há artes poéticas...” E solitário, é Urra o sapo-boi: Que soluças tu, - “Meu pai foi rei” – “Foi!” Transido de frio - “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!” Sapo-cururu Da beira do rio... BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985. P. 158. O modernismo e suas fases O Brasil depois de 1922 Na década de 1920, a economia mundial caminhava para um colapso, que se concretizaria com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929. O Brasil vivia os últimos anos da chamada República Velha, ou seja, o período de domínio político das oligarquias ligadas aos grandes proprietários rurais. O período de 1922 a 1930 também se caracteriza por definições no quadro político partidário: em 1922, sob o impacto da Revolução Russa, foi criado o Partido Comunista, que contava, entre seus fundadores, com vários elementos egressos das lutas anarquistas; em 1926, surgiu o Partido Democrático, de larga penetração entre a pequena burguesia paulista e que teve, entre seus fundadores, Mário de Andrade. Manifesto da Poesia Pau-Brasil O manifesto escrito por Oswald de Andrade foi inicialmente publicado no jornal Correio da Manhã, edição de 18 de março de 1924; no ano seguinte, uma forma reduzida e alterada do texto abria o livro de poesias Pau-Brasil. No manifesto e no livro Pau-Brasil (ilustrado por Tarsila do Amaral), Oswaldo propunha uma literatura extremamente vinculadaà realidade brasileira, a partir da redescoberta do Brasil. Verde-Amarelismo (Escola da Anta) Em 1926, como uma resposta ao nacionalismo do Pau-Brasil, surge o grupo do Verde-Amarelismo, formado por Plínio salgado, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo. O grupo criticava o “nacionalismo afrancesado” de Oswald de Andrade e apresentava como proposta um nacionalismo primitivista, ufanista e identificado com o fascismo, que evoluiria, no início da década de 1930, para o Integralismo de Plínio Salgado. Parte-se para a idolatria do tupi e elege-se a anta como símbolo nacional. Oswald de Andrade contra-ataca em sua coluna Feita das Quintas, publica no Jornal do Comércio, com o artigo “Antologia”, datado de 24 de fevereiro de 1927. Nele, Oswald faz uma série de brincadeiras, utilizando palavras iniciadas ou terminadas com anta. Em 1928, o mesmo Oswald escreve o Manifesto Antropófago, que surgiu como uma nova etapa do nacionalismo Pau-Brasil, ainda como resposta aos seguidos da Escola da Anta. Alguns trechos do manifesto Antropófago: · Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. · Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. · Tupi or not tupi, that is the question. · Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. · Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade. · Contra o índio tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz. · A alegria é prova dos nove. · Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituição e sem penitenciária do matriarcado de Pindorama. Oswald de Andrade Em Piratininga. Ano 374 de Deglutição do Bispo Sardinha. ANDRADE, Oswald. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo: Secretaria da Cultura do Estado, 1990, p. 47. A geração dos anos 1920 Mário de Andrade Mário Raul de Morais Andrade (1893-1945), o chamado “papa do Modernismo”, estréia em 1917 com Há uma gota de sangue em cada poema, sob o impacto da Primeira Guerra Mundial; são poemas que refletem influência parnasiana. A adesão absoluta aos padrões modernos se manifesta em Paulicéia desvairada, com poemas inspirados na cidade de São Paulo (o primeiro poema, “Inspiração”, brada: “São Paulo, comoção de minha vida.../ Galicismo a berrar nos desertos da América!”); demonstrando não ter sofrido influência alguma, Mário de Andrade dedica o livro a seu grande mestre, seu Guia, seu Senhor: ele mesmo, Mário de Andrade! Em 1928, lança a prosa antropofágica de Macunaíma, num estilo muito pessoal, que é um marco em nossa leitura. Oswald de Andrade José Oswald de Sousa Andrade (890-1954) foi figura fundamental dos principais acontecimentos da via cultural brasileira da primeira metade do século XX. Homem polêmico, irônico, gozador, teve vida atribulada não só no que diz respeito às artes como também à política e aos sentimentos: foi o idealizador dos principais manifestos modernistas, militante político de esquerda, teve profundas amizades e inimizades, rumorosos casos de amor e vários casamentos (com destaque para dois: com Tarsila do Amaral e com Patrícia Galvão, a Pagu). Oswald de Andrade talvez fosse um dos artistas que melhor representavam o clima de ruptura que o evento procurava criar. Amor humor Oferta Quem sabe Se algum dia Tiraria O elevador Até aqui O teu amor Relicário No baile da Corte Foi o conde d’Eu quem disse Pra Dona Benvinda Que farinha de Suruí Pinga de Parati Fumo de Baependi É comê bebê pitá e caí Azorrague - Chega! Peredoa! Amarrados na escada A chibata preparava os cortes Para a salmoura Medo da senhora A escrava pegou a filhinha nascida Nas costas E se atirou no Paraíba Para que a criança não fosse judiada Vício na fala Para dizerem milho dizem mio Para dizerem melhor dizem mio Para pior pio Para telha dizem teia Para telhado dizem teiado E vão fazendo telhados O capoeira - Qué apanhá sordado? - O quê? - Qué apanhá? - Pernas e cabeças na calçada. ANDRADE, Oswald de. Poesias reunidas. 5. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. P. 89, 94, 95, 157, 166. Manuel Bandeira Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho (1886-1968) teve sua vida determinada por uma ocorrência: estudante de arquitetura em São Paulo, foi acometido de tuberculose, o que o levaria a afirmar que era “um tísico profissional”. Desde os 18 anos de idade desenganado pelos médicos, viveu para as letras e preparando-se para a morte. Consoada Quando a Indesejada das gentes chegar (Não sei se dura ou caroável) Talvez eu tenha medo, Talvez sorria, ou diga: - Alô, iniludível! O meu dia foi bom, pode a noite descer. (A noite com seus sortilégios.) Encontrará lavrando o campo, a casa limpa, A mesa posta, Com cada coisa em seu lugar. *consoada: pequena refeição noturna; a ceia de natal. BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985. p. 307. Os anos 1930 A Revolução de 30, que levou Getúlio Vargas a um governo provisório, contava com o apoio da burguesia industrial, dos setores médios e dos tenentes responsáveis pelas revoltas na década de 1920(exceção feita a Luís Carlos Prestes, que no exílio, havia optado claramente pelo comunismo). Desenvolve- se uma política de incentivo à industrialização e à entrada de capital norte- americano em substituição ao capital inglês. Uma tentativa contra-revolucionária partiu de São Paulo, em 1932, como resultado da frustração dos paulistas com a Revolução de 30: a oligarquia cafeeira sentia-se prejudicada pela política econômica de Vargas; as classes médias e a burguesia temiam as agitações sociais; e, para coroar o descontentamento, Vargas havia nomeado um interventor pernambucano para São Paulo. A chamada Revolução Constitucionalista explodiu em 9 de julho, mas não logrou êxito. Nos primeiros anos da década de 1930, a ideologia fascista encontra ressonância no nacionalismo exacerbado do Grupo Verde-Amarelo, liderado por Plínio Salgado, fundador da Ação Integralista Brasileira. Ao mesmo tempo, crescem no Brasil as forças de esquerda. Os choques tornavam-se inevitáveis, explodiam manifestações revolucionárias e o governo Vargas obteve um pretexto para endurecer o regime. Iniciou-se assim, em 1937, o Estado-Novo getulista, um regime ditatorial que se estendeu até 1945. A poesia Carlos Drummond de Andrade Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) formou-se em Farmácia, mas vivia, em Itabira (MG), das aulas de Português e Geografia. Na década de 1930, transferiu-se para o Rio de Janeiro e iniciou a carreira no funcionalismo público federal. A partir dos anos 1950, passou a se dedicar integralmente à produção literária; além de novos livros de poesias, contos e algumas traduções, intensificou seu trabalho de cronistas, tendo seus textos publicados nos maiores jornais do país. No meio do caminho No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra Carlos Drummond de Andrade© Graña Drummond www.carlosdrummond.com.br Murilo Mendes Murilo Monteiro Mendes(1901-1975) estreou em 1930 e seus primeiros poemas apontavam a influência dos modernistas da primeira hora, notadamente Oswald de Andrade. Por volta de 1935, sua poética assumiu outroscontornos: em parceria com Jorge de Lima, voltou-se para a “poesia em Cristo”, sem, contudo abandonar as questões sociais que marcam esse período histórico; compartilhando com Ismael Nery rumos vanguardistas, produziu belíssimos poemas surrealistas. Jorge de Lima Jorge Mateus de Lima (1895-1953) estreou na literatura em 1914, ainda fortemente influenciado pelo Parnasianismo, com XIV alexandrinos, o que lhe valeu mais tarde o título de Príncipe dos Poetas Alagoanos. Em 1926, já formado em Medicina, ingressou na vida política, elegendo-se deputado estadual pelo Partido Republicano; em 1930, por motivos políticos, foi obrigado a abandonar Alagoas, indo viver no Rio de Janeiro. Em 1946, com a redemocratização do país, elegeu-se vereador do Rio de Janeiro pela UDN. Sua obra apresenta duas vertentes: os poemas que refletem o Nordeste e sua estrutura fundiária e escravocrata; e os poemas voltados para a “poesia em Cristo”, em parceria com Murilo Mendes. Essa negra fulô Ora, se deu que chegou (isso já faz muito tempo) no bangüê dum meu avô uma negrinha bonitinha chamada negra Fulô. Essa negra Fulô! Essa negra Fulô! Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da Sinhá) - Vai forrar minha cama, pentear os meus cabelos, vem ajudar a tirar a minha roupa, Fulô! Essa negra Fulô! (...) Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da Sinhá) vem me ajudar, ó Fulô, vem abanar o meu corpo que estou suada, Fulô! vem coçar minha coceira, vem me catar cafuné, vem balançar minha rede, vem me contar uma história, que eu estou com sono, Fulô! Essa negra Fulô! (...) Fulô? Ó Fulô? (Era a fala da Sinhá Chamando a Negra Fulô) Cadê meu frasco de cheiro Que teu Sinhô me mandou? - Ah! Foi você que roubou! Ah! Foi você que roubou! (...) Ó Fulô? Ó Fulô: Cadê meu lenço de rendas cadê meu cinto, meu broche, cadê meu terço de ouro que tenho Sinhô me mandou? Ah! Foi você que roubou. Ah! Foi você que roubou. Essa negra Fulô! Essa negra Fulô! O Sinhô foi açoitar sozinho a negra Fulô. A negra tirou a saia E tirou o cabeção, De dentro dele pulou nuinha a negra Fulô Essa negra Fulô! Essa negra Fulô! Ó Fulô? Ó Fulô? Cadê, cadê teu Sinhô que nosso Senhor me mandou? ah! foi você que roubou, foi você, negra Fulô? Essa negra Fulô! Lima, Jorge de. Poesia completa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira,1980.p.119. Cecília Meireles Cecília Benevides de Carvalho Meireles (1901-1964) formou-se, em 1917, na Escola Normal do Rio, dedicando-se ao magistério primário. Estreou um livro com Espectros (1919), sob a influência dos poetas que formariam o grupo da revista Festa, de inspiração neo-simbolista. Ao lado de uma linguagem que valoriza os símbolos e de imagens sugestivas com constantes sensoriais, uma das marcas do lirismo de Cecília Meireles é a musicalidade de seus versos. A prosa dos anos 1930 a 1945 Manifesto Regionalista de 1926 A partir da década de 1930, o regionalismo nordestino resultou em brilhantes obras literárias, com Graciliano Ramos, José Lins do Rego, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, e Jorge Amado, no romance. Rachel de Queiroz Rachel de Queiroz (1910-2003) iniciou sua carreira publicando crônicas em jornais cearenses em 1927. Em 1930, publicou seu primeiro romance, O Quinze; nos anos seguintes militou no PCB, tendo sido presa em 1937 pela política de Getúlio. De 1940 em diante dedicou-se à crônica jornalista, ao teatro e à produção de romances. Em 1964, apoiou o golpe militar e, nos últimos anos de sua vida, renegou seu passado esquerdista. Em 1977, quebrou uma tradição: tornou-se a primeira mulher a assumir uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Jorge Amado Jorge Amado de Farias (1912-2001) estreou em 1931 com País do Carnaval. De 1931 a 1946, foram doze romances retratando ora a zona urbana de Salvador com seus marinheiros, meninos abandonados, malandros, ora a zona cacaueira do sul da Bahia (Itabuna, Ilhéus). Sua atuação política se inicia em 1932 quando, levado por Rachel de Queiroz, filia-se ao Partido Comunista Brasileiro; por suas posições políticas, vai para a cadeia e para o exílio. Em 1946, com a redemocratização pós-Getúlio, elege-se deputado pelo PCB. A partir de 1958 dedica-se a uma produção metódica, o que lhe permite viver profissionalmente da literatura. José Lins do Rego José Lins do Rego Cavalcanti (1901-1957) passou a infância num engenho da Paraíba. Em 1918, mudou-se para o Recife, onde cursou Direito. Nesse tempo, travou amizade com José Américo de Almeida, e principalmente, com Gilberto Freire, que muito o influenciaria. Em 1935, transferiu-se definitivamente para o Rio de Janeiro, onde colaborou para alguns jornais e exerceu cargos diplomáticos; alinhou-se com o governo Vargas. Elegeu-se para a Academia Brasileira de Letras em 1955. Graciliano Ramos Graciliano Ramos (1892-1953), jornalista e político, chegou a exercer o cargo de prefeito da cidade de Palmeira dos Índios, interior de Alagoas. Estreou em livro em 1933, com o romance Caetés; nessa época, trabalhou em Maceió, dirigindo a Imprensa Oficial e a Instrução Pública, e travou conhecimento com José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Jorge Amado. Em março de 1936 foi preso por atividades consideradas subversivas, sem, contudo, ter sido acusado formalmente; após sofrer humilhações de toda sorte e percorrer vários presídios, foi libertado em janeiro do ano seguinte. Essas experiências pessoas são retratadas no livro Memórias do cárcere. Em 1945, com a queda da ditadura de Getúlio Vargas e a volta do país à normalidade democrática, Graciliano filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro, o qual integrou até 1947, quando o partido foi novamente considerado ilegal. Em 1952, viajou para os países socialistas do Leste Europeu, experiência descrita em Viagem. A tensão permeia toda a obra de Graciliano Ramos: evolui de Caetés até Vidas Secas, num crescendo que passa por São Bernardo e Angústia. Acentua- se ainda mais na passagem da ficção à realidade, atingindo o ápice no livro em que relata suas experiências na cadeia, o qual, entretanto, ultrapassa o plano pessoal para retratar o Brasil em importante momento histórico, quando a convivência homem/meio social torna-se impossível. Graciliano Ramos é autor de enredos que envolvem a seca, o latifúndio, o drama dos retirantes, a caatinga, a cidade. Seus personagens são seres oprimidos, moldados pelo meio – Luís da Silva, pela cidade; Paulo Honório e Fabiano, pelo sertão. E, dentro das estruturas vigentes, não há nada a fazer a não ser aceitar a força do “inevitável”. Vidas secas – Último romance de Graciliano Ramos, publicado em 1938, constituído, na realidade, de um conjunto de episódios da vida precária de uma família típica de nordestinos, castigada pela seca (Fabiano, Sinhá Vitória, os dois meninos), da qual também faz parte a cachorrinha Baleia, aqui elevada à categoria de personagem. A original estrutura da obra – série de quadros, praticamente autônomos, correspondentes aos capítulos (alguns foram publicados isoladamente, como verdadeiros contos) – não quebra sua unidade, como a crítica, sem discrepância, tem reconhecido. Ao contrário de outros romancistas que versaram o tema das secas, Graciliano Ramos não focalizou aqui os defeitos do flagelo nas populações das extensas áreas críticas; preferiu narrar diversas situações vividas por essa família, vítima não só dos rigores do tempo, mas da desonestidade do patrão e das arbitrariedades de uma autoridade ignorante. Os raros momentos de satisfação não adormecem as perspectivas sombrias de novas provações e sofrimentos, e o seu destino fica sujeitoà vontade do proprietário das terras e aos caprichos da natureza. A estória cronologicamente se desenvolve num período intermediário de duas estiagens, e a característica cíclica do fenômeno está muito bem simbolizada pelos capítulos extremos, que se denominam apropriadamente “Mudança” e “Fuga”. Os do meio retratam momentos da existência simples, sem mistério, transcendência ou grandes esperanças desses pobres viventes. MOISÉS, Massaud; PAES, José Paulo(Org).Pequeno dicionário de literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1969. p. 261. O Brasil depois de 1945 A principal marca da poesia pós-1945 foi a pesquisa formal, a pesquisa estética. Os anos finais da década de 1940 e toda a década de 1950 foram marcados por uma incessante busca de rumos tanto para o verso discursivo, mais tradicional, quanto para uma poesia que promovesse uma ruptura radical, incorporando conceitos do poema-objeto, poema concreto, conforme pregação dos concretistas: “abolição da tirania do verso e proposta de uma nova sintaxe estrutural, na qual o branco da página, os caracteres tipográficos e sua disposição no papel assumam relevo, embora se mantenha ainda o discurso e mesmo o verso, apenas dispersado”. A partir de 1945 ganha corpo uma geração de poetas que se opõe às conquistas e inovações dos modernistas de 1922. Negando a liberdade formal, as ironias, as sátiras e outras “brincadeiras modernistas, os poetas de 45 se dedicam a uma poesia mais “equilibrada e séria”, distante do que eles chamam de “primarismo desabonador” de Mário de Andrade e Oswald de Andrade. A preocupação primordial é o “restabelecimento da forma artística e bela”, os modelos voltando a ser parnasianos e simbolistas. O Concretismo, movimento lançado em meados dos anos 1950, liderado por Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, pregava o aproveitamento do espaço tipográfico, a dissolução e o reagrupamento dos vocábulos, o jogo semântico, visual, acústico. Quanto à prosa, ao lado da permanência de autores consagrados, dois nomes roubam a cena literária brasileira: Clarice Lispector, produzindo literatura de caráter introspectivo, e Guimarães Rosa, que abriu novos horizontes para a literatura regionalista e revolucionou a linguagem da prosa. João Cabral de Melo Neto João Cabral de Melo Neto (1920-1999) estreou em livro no ano de 1942 com o volume Pedra do sono, em que é nítida a influência de Drummond e Murilo Mendes. Em 1945 publicou O engenheiro, em que se manifestam os rumos definitivos de sua obra. Nesse mesmo ano, prestou concurso para a carreira diplomática, servindo na Espanha, Inglaterra, França e no Senegal. Em 1969, foi eleito por unanimidade para a Academia Brasileira de Letras. Morte e vida Severina (Auto de Natal pernambucano) Morte e vida severina é um longo poema para “ser lido em voz alta”, como o define o autor. Numa sequência de cenas – ora monólogos, ora diálogos -, acompanhamos a caminhada de um retirante que sai de Pernambuco, nas proximidades da nascente do rio Capibaribe, em direção ao Recife. O retirante explica ao leitor quem é e a que vai - O meu nome é Severino, não tenho outro de pia1. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco? há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias lá da serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filho de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte de fome um pouco por dia (de franqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, algum roçado da cinza. Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida passo a ser o Severino que em vossa presença emigra. Lêdo Ivo Lêdo Ivo (Maceió,AL-1924). Poeta, romancista, contista, cronista, jornalista e ensaísta. Em 1940, transfere-se para o Recife e, influenciado pelo ambiente intelectual da cidade, publica poemas e artigos na imprensa local. Três anos mais tarde, muda-se para o Rio de Janeiro, e estuda na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Passa a trabalhar na imprensa carioca como jornalista profissional, colaborando com textos literários e reportagens. Em 1944, publica seus primeiros poemas no livro As Imaginações. Os anos subsequentes veem sua obra literária ganhar corpo com o lançamento de poesias, romances, contos, crônicas e ensaios. Em 1949, forma-se em direito, mas não exerce a profissão de advogado, preferindo a carreira jornalística e de literato. É eleito em 1986 para ocupar a cadeira número 10 da Academia Brasileira de Letras - ABL. Em 2004 é lançada a primeira edição de suas obras completas, com seis décadas de poesia e prosa. Para os críticos e historiadores literários, Ivo filia-se à terceira geração do modernismo, com evidente preocupação com a linguagem e o retorno a sensos estéticos anteriores à fase experimental do movimento. Em 2006, doa seu arquivo pessoal, reunindo correspondências, manuscritos, recortes de jornais e fotografias, ao Instituto Moreira Salles - IMS, de São Paulo. Ferreira Gullar José Ribamar Ferreira (1930-), o poeta Ferreira Gullar, estreou em livro em 1954 com Luta corporal (a particular distribuição gráfica de seus poemas resultou em desavenças com os tipógrafos) e tomou contato com o grupo concretista (do qual se afastaria em 1957). Em 1959 lançou o “Manifesto neoconcreto”. Militante de esquerda, produziu literatura engajada e participou de movimentos de cultura popular durante os anos da ditadura militar. Traduzir-se Uma parte de mim Uma parte de mim é todo mundo: almoça e jantar: outra parte é ninguém: outra parte fundo sem fundo se espanta Uma parte de mim Uma parte de mim é multidão: é permanente outra parte estranheza outra parte e solidão. se sabe de repente. Uma parte de mim Uma parte de mim pesa, pondera: é só vertigem: outra parte outra parte, delira. linguagem. Traduzir uma parte na outra parte - que é uma questão de vida ou morte – será arte? FERREIRA GULLAR. Toda poesia(1950-1999). 9. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000. P. 335. Guimarães Rosa João Guimarães Rosa(1908-1967), de uma família de pecuaristas, formou-se médico em Belo Horizonte e passou a trabalhar em várias cidades do interior mineiro, sempre demonstrando profundo interesse pela natureza, por bichos e plantas, pelos sertanejos e pelo estudo de línguas. Em 1934, iniciou carreira diplomática, prestando concurso para o Ministério do Exterior – serviu na Alemanha durante a Segunda Guerra e, posteriormente, na Colômbia e França. Sagarana, livro de contos, foi publicado em 1946; dez anos depois, publicou Corpo de baile e, em seguida, Grande sertão: veredas. A partir de então, tornou-seuma unanimidade. Foi eleito, em 1963, membro da Academia Brasileira de Letras; no entanto supersticioso, adiou a posse. Finalmente assumiu a cadeira na ABL em 19 de novembro de 1967. Morreu três dias depois. O sertão, por João Guimarães Rosa Grande sertão: veredas (fragmentos) O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde um criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucúia vem dos montões oestes. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniões... O sertão está em toda parte. Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso.. O sertão é o mundo. O senhor sabe: sertão onde manda quem é forte, com as astúcias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso... É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Sertão: esses seus vazios. O Senhor vá. Alguma coisa ainda encontra. ROSA, João Guimarães. João Guimarães Rosa – ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. vol. 2. Clarice Lispector Clarice Lispector (1920-1977) nasceu na Ucrânia. Com dois meses de idade, veio com a família para o Brasil, fixando-se em Recife. Em 1937 transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde terminou o secundário e cursou Direito. Estudante ainda, escreveu seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, publicado em 1944. Daí em diante, consagrou-se como o nome mais importante da prosa brasileira da segunda metade do século XX, ao lado de Guimarães Rosa. Produções contemporâneas Produções contemporâneas são obras e movimentos surgidos nas três últimas décadas e que refletem um momento histórico caracterizado inicialmente pelo autoritarismo, por uma rígida censura e enraizada autocensura, só amenizados a partir de meados da década de 1980, quando se verificou uma progressiva normalização da vida democrática no país. As condições adversas desse período não mergulharam o país numa calmaria cultural; pelo contrário, assistimos a uma produção cultural bastante intensa em todos os setores. Em relação aos anos que marcaram a virada do século, percebe-se a quase onipresença da sociedade tecnológica e do capitalismo globalizado, seja nos recursos utilizados, seja como matéria de reflexão. Na poesia, duas constantes: o aprofundamento da reflexão sobre a realidade e a busca de novas formas de expressão. Mantendo a tradição da poesia discursiva, permanecem nomes consagrados como Ferreira Gullar e Adélia Prado, ao lado de novos poetas que procuram aparar arestas em suas produções. Verifica-se ainda a permanência da poesia concreta. O aproveitamento dos espaços em branco na folha de papel e dos recursos gráficos, a sonoridade das palavras, as relações entre significado e significante continuam a desafiar tanto poetas consagrados quanto jovens talentos. Deve-se salientar ainda a importância da poesia marginal, que se desenvolve fora dos grandes esquemas industriais e comerciais de produção de livros. No romance, o regionalismo continua um filão muito rico e produtivo na pena consagrada de Mário Palmério, Bernardo Élis, Antônio Callado, Josué Montello e José Cândido de Carvalho. Ainda na prosa, as últimas décadas assistiram à consagração das narrativas curtas – a crônica e o conto. O desenvolvimento da crônica está intimamente ligado ao espaço aberto a esse gênero na imprensa, não há grande jornal ou revista de circulação nacional que não inclua em suas páginas crônicas de Carlos Heitor Cony, Lourenço Diaféria e Luis Fernando Veríssimo, entre outros. Referências bibliográficas ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In: Aspectos da literatura brasileira. 5. Ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1974. ANDRADE, Oswald. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo: Secretaria da Cultura do Estado, 1990. BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985. p. 307. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1999. BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo brasileiro: Antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1971 CADERMATORI, Lígia. Períodos Literários. São Paulo. Ática, 2000. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975. COELHO, Nelly Novaes. Literatura & Linguagem. São Paulo. Quíron, 1980. COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. São Paulo: Global, 1997. MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 2002. SALLES, Fritz Teixeira de. Das coleções do Modernismo. Rio de Janeiro: Brasileira, 1974. TELLES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e Modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1978.
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