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Trabalho e alienação

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Capítulo 3
Trabalho e alienação
A história dos esforços humanos para subjugar a natureza é também a história da subjugação do homem pelo homem.
Max Horkheimer
 
No Capítulo 1 – Natureza e cultura, vimos a importância do trabalho e da linguagem, por meio dos quais o ser humano entra no mundo da cultura e se distingue do animal.Além de humanizar a natureza, além de proceder à "comunhão" (à união) das pessoas, o trabalho transforma o próprio ser humano. "Todo trabalho trabalha para fazer um homem ao mesmo tempo que uma coisa", disse o filósofo personalista francês Emmanuel Mounier. Pelo trabalho, o indivíduo se autoproduz: desenvolve habilidades e imaginação; aprende a conhecer a natureza para melhor fazer uso dela; conhece as próprias forças e limitações: convive com pessoas e experimenta os afetos de toda relação; impõe-se uma disciplina. Com o trabalho, o ser humano não permanece o mesmo, porque modifica a percepção do mundo e de si próprio.
Se em um primeiro momento a natureza se apresenta como destino, o trabalho será a condição da superação dos determinismos: nesse sentido, a liberdade humana não é dada, mas resulta da ação transformadora, a partir de projetos. No entanto, nem sempre prevalece essa concepção positiva, sobretudo quando as pessoas se encontram enredadas em dificuldades nascidas das relações econômicas que as lançam no desconforto do trabalho alienado.
PRIMEIRA PARTE - Trabalho e Lazer
1. História do trabalho
A concepção de trabalho sempre esteve ligada a uma perspectiva negativa. Na Bíblia, Adão e Eva vivem felizes até que o pecado provoca sua expulsão do Paraíso e a condenação ao trabalho com o "suor do rosto".A Eva coube também o "trabalho" do parto. A palavra trabalho deriva etimologicamente do vocábulo latino tripaliare e do substantivo tripalium, aparelho de tortura formado por três paus, ao qual eram atados os condenados, e que também servia para manter presos os animais difíceis de ferrar. Daí a associação do trabalho com tortura, sofrimento, pena, labuta.
Na Antiguidade grega, o trabalho manual é desvalorizado por ser Feito por escravos, enquanto as pessoas da dite, desobrigadas de se ocuparem com a própria subsistência, dedicam-se ao "ócio digno", que, para os gregos, significa a disponibilidade de gozar do tempo livre e cultivar o corpo e o espírito. Não por acaso, a palavra grega scholé, da qual deriva "escola", significava inicialmente “ócio". Para Platão, por exemplo, a finalidade das pessoas livres é justamente a "contemplação das idéias", na medida em que a atividade teórica é considerada a mais digna, por representar a essência fundamental de todo ser racional. Voltaremos a analisar esse aspecto no Capítulo 10 - Teoria do conhecimento.
Também a Roma escravagista desvaloriza o trabalho manual. É significativo o fato de a palavra negotium indicar a negação do ócio: a ênfase posta no trabalho como "ausência de lazer" o distingue do ócio, prerrogativa das pessoas livres.
Na Idade Média, Santo Tomás de Aquino procura reabilitar o trabalho manual, dizendo que todos os trabalhos se equivalem, mas, na verdade, a própria construção teórica de seu pensamento, calcada na tradição grega, tende a valorizar a atividade contemplativa. Muitos textos medievais consideram a ars mechanica (arte mecânica ou trabalho mecânico) uma ars inferior.
Cena de trabalho medieval, detalhe do Teto de Poccetti. Na Idade Média, muitos artesãos trabalhavam em casa, auxiliados pelas pessoas da família, situação que foi alterada com o advento das fábricas.
Na Idade Moderna, a situação começa a se alterar: o crescente interesse pelo trabalho justifica-se pela ascensão dos burgueses, vindos de segmentos de antigos servos, acostumados ao trabalho manual, que compram sua liberdade e dedicam-se ao comércio.
A burguesia nascente procura novos mercados, estimulando as navegações. No século XV os grandes empreendimentos marítimos culminam com a descoberta de outro caminho para as Índias e das terras do Novo Mundo. O interesse prático em dominar o tempo e o espaço faz com que sejam aprimorados os relógios e a bússola. Com o aperfeiçoamento da tinta e do papel e a descoberta dos tipos móveis, Gutenberg inventa a imprensa. Todas essas mudanças indicam a expectativa com relação a novas formas do agir e do pensar humanos, às quais se acrescentam, no século seguinte, as revoluções do comércio e da ciência.
No século XVII, Pascal inventa a primeira máquina de calcular; Torricelli constrói o barômetro; surge o tear mecânico. Galileu, ao valorizar a técnica e a experiência, inaugura o método das ciências da natureza, fazendo nascer duas novas ciências: a física e a astronomia. A máquina exerce tal fascínio sobre a mentalidade moderna que Descartes explica o comportamento dos animais como se fossem máquinas e vale-se do mecanismo do relógio como modelo característico do Universo. Deus seria "o grande relojoeiro".
Como se vê, está ocorrendo uma mudança de enfoque na relação entre o pensar e o fazer. Enquanto na Idade Média uma hierarquia privilegia o saber contemplativo em detrimento da prática, no Renascimento e na Idade Moderna dá-se a valorização da técnica, da experimentação, do conhecimento alcançado por meio da prática.
2. Nascimento das fábricas
Na passagem do feudalismo para o capitalismo, ocorrem marcantes transformações na vida social e econômica, como o aperfeiçoamento das técnicas e a ampliação dos mercados. O capital acumulado torna possível a compra de matérias-primas e de máquinas, obrigando muitas famílias, que desenvolviam o trabalho doméstico nas antigas corporações e manufaturas, a disporem de seus antigos instrumentos de trabalho e, para sobreviver, a venderem sua força de trabalho em troca de salário.
Com o aumento da produção, aparecem os primeiros barracões das futuras fábricas, onde os trabalhadores são submetidos a uma nova ordem, a da divisão do trabalho com ritmo e horários preestabelecidos. O fruto do trabalho deixa de pertencer aos trabalhadores e a sua produção passa a ser vendida pelo empresário, que retém os lucros. Está ocorrendo o nascimento de uma nova classe: o proletariado.
No século XVIII, a mecanização no setor da indústria têxtil sofre impulso extraordinário na Inglaterra, com o aparecimento da máquina a vapor, que aumenta significativamente a produção de tecidos. Outros setores se desenvolvem, como o metalúrgico; também no campo se processa a revolução agrícola.
No século XIX, o resplendor do progresso não oculta a questão social, caracterizada pelo recrudescimento da exploração do proletariado e das condições subumanas de vida. A nova classe é submetida a extensas jornadas de trabalho, de dezesseis a dezoito horas, sem direito a férias, sem garantia para velhice, doença e invalidez. As condições de trabalho nas fábricas são insalubres, por serem elas escuras e sem higiene.
Embora todos sejam mal pagos, crianças e mulheres são arregimentadas como mão-de-obra mais barata ainda. Os trabalhadores moram em alojamentos inadequados e apertados, nos quais não se consegue evitar a promiscuidade.
Em decorrência desse estado de coisas, surgem no século XIX os movimentos socialistas e anarquistas, que denunciam a exploração e propõem formas para a modificação das relações de produção.
3. Taylorismo e fordismo
Nos sistemas domésticos de manufatura, era comum o trabalhador conhecer todas as etapas da produção, desde o projeto até a execução. A partir da implantação do sistema fabril, no entanto, isso deixa de ser possível, devido à crescente complexidade da divisão do trabalho.
Chamamos dicotomia concepção-execução do trabalho ao processo pelo qual um pequeno grupo de pessoas concebe, cria, inventa o produto, inclusive a maneira como vai ser produzido, enquanto outro grupo é obrigado à simples execução do trabalho, sempre parcelado, pois a cada um cabe apenas parte do processo.
No final do século XIX, o norte-americano Frederick Taylor (1856-1915), no livroPrincípios de administração científica, já estabelecera os parâmetros do método cientifico de racionalização da produção. Esse método, daí em diante conhecido como taylorismo, visa o aumento de produtividade com economia de tempo, supressão de gestos desnecessários no interior do processo produtivo e utilização máxima da máquina.
A divisão do trabalho foi intensificada por Henry Ford (1863-1947), que introduziu a linha de montagem na indústria automobilística, procedimento que mais tarde ficou conhecido como fordismo.
O sistema foi implantado com sucesso no início do século XX nos EUA e logo extrapolou os domínios da fábrica, alcançando as empresas, os esportes, a medicina a escola e até a atividade da dona-de-casa. Por exemplo, um ferro de passar é fabricado de acordo com os critérios de economia de tempo e de gasto de energia; na cozinha, a localização da pia e do fogão visa favorecer a mobilidade; os produtos de limpeza devem ser eficazes em um piscar de olhos.
Taylor parte do princípio de que o trabalhador é indolente, gosta de "fazer cera" e realiza movimentos de forma inadequada. Ao observar seus gestos, estuda a simplificação deles, de tal forma que a devida colocação do corpo, dos pés e das mãos possa aumentar a produtividade. Também a divisão e o parcelamento do trabalho se mostram importantes para a maior rapidez do processo. São criados cargos de gerentes especializados em treinar operários e vigiá-los cronometrando o desempenho de suas funções. Os bons funcionários são estimulados com recompensas, os indolentes, sujeitos a punições.Taylor tentava convencer os operários de que tudo isso era para o bem deles, porque, em última análise, o aumento da produção reverteria em beneficio de todos, gerando a sociedade da opulência.
4. A flexibilização da produção
Com a implantação da tecnologia avançada da automação, da robótica, da microeletrônica, surgem novos padrões de produtividade, a partir das décadas de 1970 e 1980. A tendência nas fábricas é de quebrar a rigidez do fordismo, caracterizada pela linha de montagem e produção em série, e do taylorismo, centrado na produção em massa. Essa mudança já vinha sendo impantada em diversos lugares, mas costuma-se destacar a atuação da fabrica de automóveis Toyota, no Japão, ao criar novo método de gerenciamento que passou a ser conhecido como toyotismo.
Essa revolução administrativa adaptou-se melhor à economia global e ao sistema produtivo flexível, evitando a acumulação de estoques ao atender aos pedidos à medida da demanda, com planejamentos a curto prazo. Para tanto, ao contrário do que se defendia no taylorismo e no fordismo, privilegia-se o trabalho em equipe, a descentralização da iniciativa, com maior possibilidade de participação e decisão, além da necessidade de poIivalência da mão-de-obra, já que o trabalhador passa a controlar diversas máquinas ao mesmo tempo.
Apesar da atuação mais participativa do trabalhador e da exigência de sua melhor qualificação - o que pressupõe a maior intelectualização do trabalho -, o sistema capitalista depende de uma imponderável "lógica do mercado" para as decisões fundamentais sobre "o que fazer, quanto e quando fizer", fatores que ainda cerceiam a autonomia do trabalhador. Além disso, como a flexibilização depende da demanda flutuante, algumas tarefas são encomendadas a empresas "terceiras" subcontratadas. Essa terceirização atomiza os empregados, antes unidos nos sindicatos, o que provocou seu enfraquecimento no final da década de 1980, repercutindo negativamente na capacidade de reivindicação de novos direitos e manutenção das conquistas realizadas. Os temores mais freqüentes dessa nova geração de trabalhadores da era da automação são o desemprego e o excesso de trabalho decorrente do "enxugamento" realizado pelas empresas em processo de "racionalização" de atribuição das tarefas.
5. A sociedade pós-industrial
Vimos que o capitalismo provocou importantes alterações sociais, advindas da implantação do sistema fabril, por meio da qual se deu o deslocamento da centralização no setor primário (agricultura) para o setor secundário (indústria). A partir de meados do século XX, porém, surge o que chamamos de sociedade pós-industrial, caracterizada pela ampliação dos serviços (setor terciário). Isso não significa que os outros setores tenham perdido importância, mas que as atividades agrícolas e industriais também dependem do desenvolvimento de técnicas de informação e comunicação. O cotidiano de todos nós, seja no campo ou na indústria passa a ser marcado pelo consumo de serviços de publicidade, comunicação, pesquisa, comércio, finanças, saúde, educação, lazer, turismo etc.
A mudança de enfoque descentraliza a atenção, antes voltada para a produção (capitalista versus operário), e orientando-a agora para a informação e o consumo. A atividade da maioria dos trabalhadores se encontra nos escritórios, ampliada por uma comunicação ágil, quase instantânea, veiculada em âmbito mundial pela expansão das redes de telefonia e das info-vias. Os recursos da microeletrônica têm provocado outra transformação, qual seja, a do teletralho (trabalho a distância), possibilitando aos empregados adquirirem mais autonomia e flexibilidade de horário e desobrigando-os de se dirigirem diariamente a locais fixos, o que, em alguns casos, viabiliza a realização do trabalho no próprio domicílio.
Outra novidade está no esforço de algumas empresas para garantir formas mais solidárias de relacionamento, além da preocupação com a ética e o compromisso com a qualidade de vida. Se essas intenções podem co-existir com o espírito capitalista, centrado desde sempre no lucro, é o que se verá com o tempo. O importante é destacar que, pelo menos em termos de discurso, exigências desse tipo têm sido objeto de reflexões.
Desde as décadas de 1980 e 1990, outra tentativa em direção à ética e à qualidade de vida está na efetiva ampliação das empresas do terceiro setor, assim chamadas por não serem gestadas nem pelo setor governamental (o Estado) nem pelo mercado econômico, que visa lucro. Trata-se das organizações não-governamentais (ONGs) que representam uma forma de atuação privada, mas com funções públicas e sem fins lucrativos. Tais instituições ocupam-se do atendimento de causas coletivas e sobrevivem de doações, que são aplicadas nas atividades-fins e no pagamento dos especialistas contratados.
Na segunda parte deste capítulo, veremos os riscos da alienação no trabalho e no lazer, mas também os esforços de reflexão para que a humanidade possa garantir o gosto pelo trabalho e pelo ócio criativo.
6. O lazer
O lazer é uma criação da civilização industrial e aparece como fenômeno de massa com características específicas que nunca existiram antes do século XX, ou seja, como contraponto explícito ao período de trabalho. Já vimos que, na Grécia Antiga e na Idade Média, o “ócio criativo” era privilégio da nobreza. Em contraposição, cabia aos escravos ou aos servos, conforme a época, ocuparem-se com as atividades manuais penosas.
Na Idade Moderna, os burgueses enriquecidos pelo comércio também podiam se dar ao luxo de aproveitar o tempo livre expandido. Enquanto isso, os artesãos e camponeses que viviam antes da Revolução Industrial seguiam o ritmo da natureza: trabalhavam desde o clarear do dia e paravam ao cair da noite, já que a deficiente iluminação não permitia outra escolha. Obedeciam à seqüência das estações: a semente exige o tempo de plantio, tanto quanto a colheita deve ser feita na época certa. Nos "dias sem trabalho" podiam repousar, embora não muito, pois geralmente os feriados, previstos pela Igreja, exigiam a participação em práticas religiosas e rituais. As festas dos dias santos ou as que marcavam o fim da colheita eram atividades coletivas de importante sentido na vida social.
O advento da era industrial e o crescimento das cidades alteram o panorama. Com a introdução do relógio, o ritmo do trabalho deixa de ser pessoal. A mecanização, divisão e organizaçãodas tarefas exigem que o tempo de trabalho seja cronometrado, e as extensas jornadas de dezesseis a dezoito horas mal deixam tempo para a recuperação fisiológica. As reivindicações dos trabalhadores, porém, vão lentamente obtendo alguns êxitos. A partir de 1850 é estabelecido o descanso semanal; em 1919 é votada a lei das oito horas: progressivamente a semana de trabalho se reduz para cinco dias. Depois de 1930, outras conquistas, como descanso remunerado, férias e, concomitantemente, a organização de "colônias de férias" fazem surgir no século XX o tempo do "após-trabalho". É o início de uma nova era, que tende tomar contornos mais definidos com a intensificação da automação do trabalho. Estamos nos dirigindo a passos largos para a "civilização do lazer".
No Brasil, a legislação trabalhista demorou mais tempo, uma vez que também o processo de industrialização brasileiro foi posterior ao de países com economia mais avançada. Foi tardia igualmente a organização sindical, que ocorreu de forma paternalista apenas na década de 1930, no governo populista de Getúlio Vargas, quando os trabalhadores conquistaram a regulamentação de oito horas diárias de trabalho e outros benefícios.
A diminuição da jornada de trabalho cria o tempo liberado, que não pode ser confundido ainda com o tempo livre, pois aquele é gasto com transporte, obrigações familiares, sociais, políticas ou religiosas, afazeres domésticos, higiene, alimentação e sono, às vezes até com um "bico" para ganhar mais alguns trocados. O tempo propriamente livre, de lazer, é aquele que sobra após a realização de todas as funções que exigem obrigatoriedade.
O que é lazer, então? Segundo o sociólogo francês Dumazedier, "o lazer é um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda, para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora, após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais".�
Há, portanto, três funções solidárias no lazer:
descanso e, em decorrência, liberação da fadiga;
divertimento, recreação, entretenimento e, conseqüentemente, uma complementação que dá equilíbrio psicológico, compensando o esforço no trabalho; o lazer oferece, no bom sentido da palavra, a evasão pela mudança de lugar, de ambiente, de ritmo, quer seja em viagens, jogos ou esportes ou ainda em atividades que privilegiam a ficção, tais como cinema, teatro, romance, e que exigem o recurso à exaltação da nossa vida imaginária;
participação social mais livre e, com isso, possibilidade de desenvolvimento pessoal; procura desinteressada de amigos, de aprendizagem voluntária, o que estimula a sensibilidade e a razão e favorece o surgimento de condutas inovadoras.
De tudo isso, fica claro que o lazer autêntico é ativo – não resulta de um "deixar passar o tempo" livre –, mas requer uma atividade em que a pessoa escolhe algo que dá prazer e que a modifica como ser humano. O que não significa simplesmente separar de antemão aquilo que seria uma boa ou má ocupação do tempo livre: podemos participar ativamente de qualquer tipo de lazer quando assumimos uma atitude seletiva, somos sensíveis aos estímulos recebidos e procuramos compreender o que vemos, sentimos e apreciamos.
A questão da utilização do tempo de lazer tem adquirido importância cada vez maior, configurando-se como um grande desafio do terceiro milênio. Embora os prognósticos de que a automação diminuiria o tempo de trabalho nem sempre tenham se configurado como uma realidade, continuam a haver fortes indícios de que o tempo de lazer tende a se ampliar. Mais do que nunca será preciso refletir sobre a utilização desse tempo de maneira criativa, a fim de prevenir o surgimento de graves distúrbios psicológicos e sociais.
Voltaremos a essa questão no final da segunda parte deste capítulo.
 
Leitura complementar
�
Trabalho e vida
	
Quando trabalhamos,
devemos trabalhar. Quando nos
divertimos, devemos nos divertir. De nada
serve procurar misturar as duas coisas.
O único objetivo deve ser aquele de executar
o trabalho e ser pago por tê-Io executado.
Quando o trabalho termina, então
pode vir a diversão, não antes.
Henry Ford
Quem é mestre na arte de
viver distingue pouco entre o
trabalho e o seu tempo livre, entre a
sua mente e o seu corpo, a sua
educação e a sua recreação, o seu amor
e a sua religião. Dificilmente sabe o que
cada coisa vem a ser. Persegue
simplesmente a sua visão de excelência
em qualquer coisa que faça, deixando
aos outros decidir se está trabalhando
ou se divertindo. Ele pensa sempre
em fazer ambas as coisas juntas.
Pensamento Zen
Pessoalmente, creio que muitas das atuais disfunções da família, da sociedade e dos indivíduos decorram mesmo da forçada separação entre trabalho e vida, imposta pelo modo de produção industrial.
Ter amontoado durante duzentos anos os operários nas fábricas, os empregados e executivos nos escritórios condicionou não apenas a sua atividade profissional, mas toda a sua existência. Com o tempo ocorreram muitas mudanças na organização empresarial, mas, embora profundas, elas nunca afetaram a separação entre locais de trabalho e de vida. Essa separação não indolor, que destruiu famílias, comunidades e personalidades, estava implícita na estrutura e na cultura da indústria. Junto com os muitos danos causados, ela diligenciou também o progresso de que todos nós podemos gozar hoje.
Mas, enfim, para milhões de trabalhadores cada vez mais escolarizados e capazes de trabalhar autonomamente, o trabalho transformou-se em imaterial e ubíquo, as tecnologias habituais transformaram-se em eletrônicas, as matérias-primas a manejar consistem exclusivamente em informações. Hoje, portanto, é possível trabalhar e viver como e onde se prefere. Muitas pessoas que vemos telefonando com celulares - no carro, na rua, nas praias, nos estádios - são teletrabalhadores sem o saber, exatamente como o personagem de Molière que não sabia falar em prosa. Para todas essas pessoas o trabalho e o tempo livre já são uma coisa só, entrelaçada e cômoda.
Essa desestruturação do tempo e do espaço representa uma nova revolução existencial que, junto com a organização do trabalho, mudará também a organização e a qualidade da vida. Mesmo porque, radical e global, essa revolução aterroriza, embora seja salvadora.
Os peixes de aquário habituam-se a girar na estreita bolha de vidro que os aprisiona e por algum tempo continuam a nadar em círculo quando soltos no mar aberto. Do mesmo modo, milhões de colarinhos brancos continuam a rodar na reclusão do seu aquário mesmo que as mil amigáveis tecnologias eletrônicas lhes permitam perambular pelo mundo e adequar-se aos seus biorritmos.
Quando as organizações respirarem, a ferida que separa o trabalho da vida cicatrizará e as nossas esquizofrenias serão aplacadas.
DE MASI, Domenico. O futuro do trabalho, fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. Rio de Janeiro, José Olympio/ Brasília, Ed. da UnB. 1999. p. 276-277.�
�
Atividades
Questão de compreensão
Os tópicos relacionados a seguir visam verificar a compreensão dos temas abordados no capítulo, Explique cada um deles:
conceito antropológico do trabalho;
taylorismo, fordismo e toyotismo;
a sociedade pós-industrial;
o lazer.
Questões de interpretação e problematização
Pesquise sobre as histórias a respeito da origem do trabalho: por exemplo, a expulsão do Paraíso, segundo o relato bíblico, ou o mito grego de Prometeu.
A partir do texto seguinte, responda às questões 3 e 4.
"O poeta Mário Quintana, no poema “Das ampulhetas e das clepsidras”, diz: "Antes havia os relógios d'água, antes havia os relógios de areia, O Tempo fazia parte da natureza. Agora é uma abstração unicamente denunciada por um tic-tac mecânico,como o acionar contínuo de um gatilho numa espécie de roleta-russa. Por isso é que os antigos aceitavam mais naturalmente a morte".
Aplique a referência do poeta ao uso do cronômetro fazendo uma avaliação do sistema taylorista das fábricas.
“Aceitar mais naturalmente a morte" seria uma forma de morrer bem. Em que sentido, a partir do novo ritmo de trabalho estaríamos condenados a "morrer mal?”.
Se o trabalho humaniza, discuta em que medida o movimento feminista, ao desencadear a ênfase na necessidade de profissionalização da mulher, foi responsável também por sua valorização pessoal, social e política.
Considerando ainda a proposta da questão anterior, discuta em que sentido podemos rebater afirmações tradicionais que atribuem o trabalho doméstico a uma vocação "feminina".
Segundo um relatório de 1990, enquanto na Bélgica um operário da indústria automobilística dispendia cerca de 1.600 horas por ano de trabalho, na fábrica japonesa da Toyota esse tempo se estendia a 2.300 horas. Não por acaso, de acordo com Ricardo Antunes, uma decorrência das condições de trabalho no Japão é o karoshi, expressão que significa "morte súbita no trabalho, provocada pelo ritmo e intensidade, que decorrem da busca incessante do aumento da produtividade".� A partir desse exemplo, comente em que medida o sistema de produção tem desvirtuado o significado humano do trabalho.
O advento da era da flexibilização do trabalho exige que os trabalhadores sejam todos alfabetizados, mas também que seja desenvolvido outro tipo de educação para os jovens, diferente do tradicional. Explique por quê.
Faça uma pesquisa sobre as organizações não-governamentais (ONGs), esclarecendo as formas de seu funcionamento e dando exemplos de atividades-fins de que se ocupam. Discuta também de que maneira essas atividades representam nova estrutura de trabalho.
Comente a frase do filósofo das ciências, Alexandre Koyré: "Não é do trabalho que nasce a civilização: ela nasce do tempo livre e do jogo".
Questões sobre a leitura complementar
Tendo em vista a leitura complementar, e as citações que a antecedem, responda às questões 11 e 12.
Leia a frase de Henry Ford e explique em que difere do pensamento Zen.
 De Masi confia que uma nova organização do trabalho poderá melhorar a qualidade de vida do trabalhador. Uma parte da classe argumentará a favor da posição do autor e a outra se posicionará contra.
Dissertação
Tema: "Escolher uma profissão: e agora?"
Seminário
Tema: a atuação dos trabalhadores nos sindicatos.
Dividir a classe em grupos e incumbir cada um de pesquisar determinado assunto referente ao tema proposto, Por exemplo: sindicatos (surgimento); sindicatos (situação atual); conquistas trabalhistas; características e funções das greves etc.
SEGUNDA PARTE - A alienação
A primeira razão pela qual os homens servem com boa vontade é porque nascem servos e como tal são criados. Como é que o chefe ousaria pular em cima de vós, se vós não estivésseis de acordo?
Étienne de Ia Boétie
A desvalorização do mundo humano aumenta em proporção direta com a valorização do mundo das coisas.
Karl Marx
Introdução
Hegel, filósofo alemão do século XIX, faz uma leitura otimista da função do trabalho na célebre passagem "do senhor e do escravo", descrita na Fenomenologia do espírito. O filósofo se refere a dois indivíduos que lutam entre si e um deles sai vencedor, podendo matar o vencido; este, no entanto, prefere se submeter, não ousando sacrificar a própria vida. A fim de ser reconhecido como senhor, o vencedor "conserva" o outro como "servo". Depois disso, é o servo submetido que tudo faz para o senhor; mas, com o tempo, o senhor descobre que não sabe fazer mais nada, porque, entre ele e o mundo, colocou o escravo, que domina a natureza. O ser do senhor se descobre como dependente do ser do escravo e, em compensação, o escravo, aprendendo a vencer a natureza, recupera de certa forma a liberdade. O trabalho surge, então, como expressão da liberdade reconquistada.
Marx retoma a temática hegeliana, mas critica essa visão otimista do trabalho, demonstrando como o objeto produzido pelo trabalho se torna estranho ao produtor, não mais lhe pertencendo: trata-se do fenômeno da alienação.
Hegel também tratara do conceito de alienação, mas, segundo sua perspectiva, ela corresponde ao momento em que o espírito "sai de si" e se manifesta na construção da cultura. A cisão provocada pelo espírito que se exterioriza na cultura – por meio do trabalho – é superada pelo trabalho da consciência. Segundo Marx, ao privilegiar a consciência, Hegel perde a materialidade do trabalho, o que se compreende se considerarmos o caráter idealista do pensamento hegeliano.
A posição de Marx sobre a alienação não significa que o trabalho deixe de ser visto como condição da liberdade. Ao contrário, esse é o ponto central do seu raciocínio. Para ele, a pessoa deve trabalhar para si – o que não significa trabalhar sem compromisso com os outros, pois todo trabalho é tarefa coletiva –, no sentido de que deve trabalhar para fazer-se a si mesma um ser humano. Ora, o trabalho alienado desumaniza. Vejamos portanto em que consiste a alienação no trabalho.
1. Conceito de alienação
Há vários sentidos para o conceito de alienação:
juridicamente, significa a perda do usufruto ou posse de um bem ou direito pela venda, hipoteca etc.; nas esquinas da cidade costumamos ver cartazes chamando a atenção dos motoristas: "Compramos seu carro, mesmo alienado";
do ponto de vista da psiquiatria, o alienista é o médico de alienados mentais;
a alienação religiosa e um fenômeno de idolatria, quando um povo cria ídolos e a eles se submete;
segundo a concepção política de Rousseau, a soberania do povo é inalienável, isto é, pertence somente ao povo, que não deve outorgá-la a nenhum representante, devendo ele próprio exercê-la. É este o ideal da democracia direta;
na linguagem comum, alienadas são as pessoas desinteressadas de assuntos importantes, tais como questões políticas e sociais.
Em todos os sentidos, há algo em comum no uso da palavra alienação: no sentido jurídico, perde-se a posse de um bem; para a psiquiatria, o alienado mental é aquele que perde a dimensão de si na relação com os outros; pela idolatria, perde-se a autonomia; segundo a concepção de Rousseau, o povo não deve perder o poder; a pessoa alienada perde a compreensão do mundo em que vive e torna-se alheia a segmentos importantes da realidade em que se acha inserida. Etimologicamente a palavra alienação vem do latim alienare, alienus, "que pertence a um outro". Alius é o outro. Portanto, sob determinado aspecto, alienar é tornar alheio, transferir para outrem o que é seu.
Para Marx, que analisou esse conceito básico, a alienação não é puramente teórica, manifesta-se na vida real, a partir da divisão do trabalho, quando o produto do trabalho deixa de pertencer a quem o produziu. Todo o resto é decorrência disso. Retomando a discussão da Primeira parte deste capítulo, ao se confinar o operário à fabrica, retirando dele a posse do produto, é ele próprio que perde o centro de si mesmo. Não escolhe o salário – embora isso lhe apareça ficticiamente como resultado de um contrato livre –, não escolhe o horário nem o ritmo de trabalho e passa a ser comandado de fora, por forças que lhe são estranhas. Ocorre então o que Marx chama de fetichismo da mercadoria e reificação do trabalhador.
O fetichismo� é o processo pelo qual a mercadoria, um ser inanimado, passa a ser considerada como se tivesse vida. Assim, os valores de troca (o que a mercadoria vale no mercado) se tornam superiores aos valores de uso (o que a mercadoria vale por sua utilidade) e determinam as relações humanas, ao contrário do que deveria acontecer. Ou seja, a relação entre produtores não aparece como relação entre eles próprios (relação humana), mas entre os produtos do seu trabalho (a mercadoria). Por exemplo,as relações que prevalecem não são aquelas entre alfaiate e carpinteiro, mas entre casaco e mesa.
A mercadoria adquire valor superior ao indivíduo ao serem privilegiadas as relações entre coisas que, por sua vez, vão definir relações materiais entre pessoas. Com isso, a mercadoria assume formas abstratas (o dinheiro, o capital), que deixam de ser intermediárias entre indivíduos para se converterem em realidades soberanas e tirânicas. Em conseqüência, a "humanização" da mercadoria leva à desumanização da pessoa, à sua coisificação, à reificação (do latim res, "coisa"), sendo ela própria transformada em mercadoria.
As discussões a respeito da alienação preocuparam autores marxistas como Lukács, Erich Fromm e Althusser, entre outros, e filósofos como o existencialista Sartre, o cristão personalista Mounier e o não-marxista Heidegger, que descreveram os modos inautênticos do existir humano.
A seguir, examinaremos a alienação na produção, no consumo e no lazer.
2. Alienação na produção
Na Primeira parte deste capítulo, vimos que as propostas de racionalização do taylorismo e do fordismo, que introduziram, entre outras coisas, a linha da montagem na produção fabril, acentuam a dicotomia concepção-execução do trabalho. Com isso, o setor de planejamento se desenvolve, provocando intensa burocratização. O planejamento e a burocracia se apresentam com a imagem de neutralidade e eficácia da organização, como se estivessem baseados em um saber objetivo, competente, desinteressado. Essa imagem de neutralidade mascara um conteúdo ideológico eminentemente político: trata-se, na verdade, de uma técnica social de dominação.Vejamos por que.
Não é fácil submeter o operário ao trabalho rotineiro e repetitivo, reduzindo-o a gestos estereotipados. Se não compreendemos o sentido da nossa ação e se o produto do trabalho não é nosso, é bem difícil nos dedicarmos com empenho a qualquer tarefa. O taylorismo substitui as formas de coação visíveis, de violência direta, pessoal, de um "feitor de escravos", por exemplo, por maneiras mais sutis que tornam o operário dócil e submisso. É um sistema que impessoaliza a ordem, que não aparece mais, com a face de um chefe que oprime, diluindo-a nas ordens de serviço vindas do "setor de planejamento". Retira toda iniciativa do operário, que cumpre ordens, modela seu corpo segundo critérios exteriores," científicos", e cria a possibilidade da interiorização da norma, cuja figura exemplar é a do operário-padrão, até a um certo tempo atrás objeto de prêmios e modelo a ser seguido por todos. Ainda hoje o recurso a gratificações e promoções para se obter índices cada vez maiores de produção gera a "caça" aos postos mais elevados na empresa e estimula a competição em vez da solidariedade. A fragmentação dos grupos e do próprio operário facilita ao dono da empresa o controle do produto, final.
O ser humano, reduzido a gestos mecânicos, tornado “esquizofrênico" pelo parcelamento das tarefas, foi retratado em tempos modernos, filme clássico de Charles Chaplin, o popular Carlitos. Nessa comédia, datada de 1936, o artista denuncia a desumanização do operário.
É interessante lembrar que não foram apenas os países capitalistas a lançar mão do taylorismo. A racionalização da produção também foi introduzida na antiga URSS por Lênin.
Com a justificativa de que o produto do trabalho não seria apropriado pelo capitalista–já que a propriedade privada dos meios de produção fora eliminada com a revolução de 1917 - e que, portanto, o sistema não seria utilizado para a exploração do trabalhador, mas para sua libertação. O que resultou desse empenho, porém, não foi a empresa burocratizada, foi o próprio Estado burocrático. Não faltaram críticas de grupos anarquistas, de 'intelectuais de esquerda em geral, acusando Lênin de ter esquecido o princípio da realização do socialismo a partir de organizações de base, ao introduzir relações hierárquicas de poder dentro do próprio processo de trabalho.
A chamada racionalização do processo de trabalho traz em si uma irracionalidade básica, na medida em que desvaloriza o sentimento a emoção o, desejo.
As pessoas que aparecem nas fichas do setor de pessoal são vistas de modo impessoal, sem amor nem ódio. O burocrata-diretor torna-se um profissional que as manipula como se fossem cifras ou coisas.
Talvez pudéssemos pensar que a situação do trabalhador seria outra nos processos de trabalho mais flexíveis como no toyotismo, conforme tratamos anteriormente neste capítulo, isso porque esse novo gerenciamento exige um trabalhador qualificado participativo, capaz de tomar iniciativa, o que rompe com a rígida hierarquia do fordismo. No entanto, como vimos, o trabalho não deixa de ser alienado, na medida em que as decisões não dependem do trabalhador. mas da "lógica do mercado". Mesmo porque, com a difusão das redes mundiais de empresas nem sempre se pode falar em um "patrão" responsável pelo controle do processo de produção.
3. Alienação no consumo
Marx viveu no período em que a exploração capitalista sobre o proletariado era muito explícita. e por isso achava que o antagonismo entre as classes chegaria ao ponto crucial em que o crescente empobrecimento do operariado levaria á tomada de consciência da dominação e à conseqüente superação dela por meio da revolução. Na chamada "sociedade opulenta" dos países economicamente mais desenvolvidos (não pensemos em termos de Brasil!) deu-se, ao contrário, a tendência de diminuição da exploração econômica das massas tal como tinha sido conhecido no século XIX.
Com a ampliação do setor de serviços aumentou a classe media, multiplicaram-se as profissões de forma inimaginável e nos aglomerados urbanos os escritórios passaram a abrigar milhares de funcionários executivos e burocratas em geral. Na nov'a organização acentuam-se as características de individualismo que levam à atomização e à dispersão dos indivíduos, o que faz aumentar o seu interesse pelos assuntos da vida privada, enquanto diminui o envolvimento pessoal com as questões públicas e políticas.
Além disso, acentua-se a procura hedonista da busca de prazer, da satisfação imediata e da fruição do prazer, talvez justamente porque a alegria lhes tenha sido negada no trabalho alienado.
Assim a exploração e a alienação, embora continuem existindo não aparecem como atributos da esfera da produção, mas da esfera do consumo. Ao prosperarem materialmente, os trabalhadores compartilham do "espírito do capitalismo", sucumbindo aos apelos e promessas da sociedade de consumo, como veremos a seguir. A ato do consumo é um ato humano por excelência pelo qual atendemos necessidades mais amplas que não se restringem simplesmente às orgânicas.
De subsistência. De fato, as necessidades humanas nunca são apenas aquelas essenciais à sobrevivência, mas também as que facilitam o crescimento humano em suas múltiplas e imprevisíveis direções e dão condições para a transcendência. No ato de consumo participamos como pessoas inteiras, movidas pela sensibilidade, imaginação, inteligência e liberdade. Por exemplo, não comemos e bebemos apenas para matar a fome ou a sede, mas escolhemos nossas refeições, temos preferências e usamos de imaginação para criar novos pratos e bebidas. Igualmente, quando compramos roupas, diversos fatores são considerados: a proteção do corpo contra o frio e o calor; o resguardo por pudor ou a busca de uma maneira para nos sentirmos mais bonitos ou para atrair olhares; usamos de imaginação na combinação das peças, mesmo quando seguimos as tendências da moda; desenvolvemos um estilo próprio de vestir; não compramos apenas uma peça, procuramos variar cores e modelos ou, então, passamos a nos vestir de forma despojada, dando pouca importância a esse tipo de preocupação.
Nesse sentido, as necessidades de consumo variam conforme a cultura e também dependem de cada indivíduo. Enfim, o consumo consciente supõe, mesmo diante de influências externas, que a pessoa mantenha a possibilidade de escolhaautônoma, não só para estabelecer suas preferências como para optar por consumir determinado artigo ou não. Além disso, o consumo não-alienado nunca é um fim em si, mas sempre um meio para outra coisa qualquer.
No mundo em que predomina a produção alienada, no entanto, também o consumo tende a ser alienado. A produção em massa tem por corolário o consumo de massa. a problema da sociedade de consumo é que as necessidades são a artificialmente estimuladas, sobretudo pelos meios de comunicação de massa, levando os indivíduos a consumirem de maneira alienada.
A organização dicotômica do trabalho a que nos referimos - pela qual se separam a concepção e a execução do produto - reduz as possibilidades de o empregado encontrar satisfação na maior parte da sua vida, enquanto se sente obrigado a realizar tarefas desinteressantes.
Daí a importância que assume para ele a necessidade de se dar prazer pela posse de bens.
Vimos que na sociedade pós-industrial a ampliação do setor de serviços desloca a ênfase da produção para o consumo de serviços. Multiplicando-se as ofertas de possibilidade de consumo. A única coisa a que não se tem escolha é não consumir. Os centros de compras se transformam em "catedrais do consumo", verdadeiros templos cujo apelo constante ao novo torna tudo descartável e rapidamente obsoleto. Vendem-se coisas, serviços, idéias. Basta ver como em tempos de eleição é "vendida" a imagem dos políticos.
O modelo vermelho, René Magritte, 1953, óleo sobre tela, 55,9 X 45,8 em. Nesta pintura, vemos a metamorfose de um pé, que se transforma em sapato (ou vice-versa?) Na sociedade de consumo nosso corpo também é transfigurado pela roupa que veste.
A estimulação artificial das necessidades provoca aberrações do consumo: monta-se uma sala completa de som, sem se gostar de música; compra-se biblioteca "a metro", deixando volumes intocados nas estantes; adquirem-se quadros famosos, sem saber apreciá-los (ou para mantê-los no cofre). A obsolescência dos objetos, rapidamente postos "fora de moda", exerce tirania invisível, instigando a compra de televisão, refrigerador ou carro porque o design se tornou antiquado ou porque nova engenhoca se mostra "indispensável". Quando se escolhe o refrigerante, nem sempre se bebe com o paladar: bebe-se o slogan, muitas vezes o costume de outras terras, imitando o estereótipo de “jovens cheios de vida e alegria”.
O consumo se torna alienado quando passa a ser um fim em si e não um meio, criando dessa forma desejos nunca satisfeitos, um sempre querer mais, um poço sem fundo. A ânsia do consumo perde toda relação com as necessidades reais, o que faz com que as pessoas gastem sempre mais do que têm. O comércio Facilita a realização dos desejos propiciando o parcelamento das compras, o uso de cartões de crédito promovendo liquidações e ofertas de ocasião instituindo dias dedicados às mães, às crianças às secretárias etc.
Como contraponto importante de consumo supérfluo e artificial - notado não só na propaganda, mas nos programas e nas novelas televisivos - descobrimos uma grande parcela da população com baixo poder aquisitivo, reduzida apenas ao desejo de consumir. O que faz com que essa massa desprotegida não se revolte? Mecanismos na própria sociedade impedem a tomada de consciência: as pessoas têm a ilusão de que vivem numa sociedade com mobilidade social e que, pelo empenho no trabalho, pelo estudo, será possível a mudança, ou seja, acreditam que "um dia se chega lá". E se não se chega, "é porque não se teve sorte ou competência". É preciso não esquecer, também, que essa mesma visão acaba favorecendo a opção de alguns pelos caminhos tortuosos da corrupção e por outras formas que garantem o enriquecimento ilícito.
Por outro lado, uma série de escapismos na literatura descompromissada e nas telenovelas t1zem com que as t1ntasias dessa massa de desfavorecidos sejam realizadas de forma imaginária; isso sem falar na esperança semanal de enriquecimento pelas loterias. Além disso, há sempre o recurso ao ersatz, ou seja, à imitação barata da roupa, da jóia, da louça fina da rica senhora.
O torvelinho produção-consumo em que nos achamos mergulhados nos impede de ver com clareza essa exploração e essa perda de liberdade, de tal forma ficamos reduzidos a uma só dimensão, segundo o conceito de unidimensionalidade do filósofo Frankfurtiano Marcuse. Ao deixarrmos de ser o centro de nós mesmos, perdemos a dimensão de contestação e crítica, destruindo-se em nós a possibilidade de fazermos oposição nos campos da política, da arte, da moral. Talvez por isso, seja tão difícil nesse mundo achar um lugar para a filosofia, que é, por exceIência, o discurso ela contestação.
4. Alienação no lazer
No mundo em que a produção e o consumo são alienados, é difícil evitar que o lazer também não o seja. A passividade e o embrutecimento nessas atividades repercutem no tempo livre. Sabe-se que pessoas submetidas a trabalho mecânico e repetitivo tem o tempo livre ameaçado mais pela fadiga psíquica do que física, tornando-se incapazes de se divertir. Ou, então, exatamente ao contrário, procuram compensações estimulantes e até violentas que as recuperem do amortecimento dos sentidos.
A propaganda da bem-montada indústria do lazer, ao contribuir, por sua vez, com esse processo de alienação, orienta as escolhas e os modismos, manipula o gosto, determinando os programas. Dependendo da época, elegem-se atividades, como boliche, patinação esportes radicais, destacam-se danceterias e barzinhos específicos, filmes da moda, locais de viagem.
Até aqui, tratamos de determinado segmento social que dispõe do tempo e do dinheiro para o lazer. Resta lembrar, ainda, que as cidades não oferecem infra-estrutura que garanta aos mais pobres a ocupação do seu escasso tempo livre em atividades gratuitas: lugares onde ouvir música, praças para passeios, várzeas para o joguinho de futebol, clubes populares, locais de integração social espontânea. Essa restrição torna muito reduzida a possibilidade do lazer ativo, não-alienado, ainda mais se lembrarmos que as pessoas se encontram submetidas a várias formas de massificação pelos meios de comunicação.
Vimos que o lazer ativo se caracteriza pela participação integral da pessoa como ser capaz de escolha e de crítica. Dessa forma, o lazer ativo permite a reformulação da experiência, o que não ocorre com o lazer passivo, no qual a informação recebida ou a ação executada não se reorganizam, de modo que nada acrescentam de novo, ao contrário, reforçam comportamentos mecanizados. É bom lembrar que o caráter de atividade ou passividade nem sempre decorre do tipo de lazer em si. Assim, duas pessoas que assistem ao mesmo filme podem ter atitude ativa ou passiva, dependendo da maneira pela qual se posicionam como capazes ou não de comparar. apreciar,julgar e decidir por si mesmas e não influenciadas por modismos ou propagandas massificantes.
5. Crítica à sociedade administrada
Ao tratarmos da produção humana, fizemos referência ao poder de transformar a natureza e usáIa em função de nossos interesses. E desde que a ciência possibilitou a revolução tecnológica, esse poder vem sendo ampliado enormemente. Se até aqui demos conta apenas dos prejuízos que a técnica pode causar à pessoa submetida à alienação, é preciso não esquecer que a própria natureza tem sofrido com o abuso exercido sobre ela. A exaltação indiscriminada do progresso quase nunca rem respeitado a sua integridade. a ponto de organizações de defesa do meio ambiente denunciarem desde muito tempo as ameaças à sobrevivência do planeta.
Chegamos ao impasse que nos deixa perplexos diante técnica - apresentada de início como libertadora - e que pode se mostrar, afinal, artífice de uma ordem tecnocrática opressora. Ao se submeter passivamente aos critérios de produtividade e desempenho no mundo competitivo do mercado, o indivíduo perde muito do prazer em sua atividade produtora, que passa a ser regida por princípios aparentemente "racionais". Maisainda na sociedade da total administração, segundo a expressão de Horkheimer e Adorno, os conflitos foram dissimulados, pois a oposição deixa de acontecer, na medida em que o ser humano perdeu sua dimensão de crítica.
Sem assumirmos a posição ingênua da acusação gratuita da técnica, é preciso nos preocuparmos com a absolutização do "espírito da técnica": essa razão instrumental é predominantemente técnica, usada na organização das forças produtivas que visam atingir níveis altos de produtividade e competitividade. Onde a técnica se torna o princípio motor, a pessoa se encontra mutilada, porque reduzida ao anonimato, às funções que desempenha, e nunca é um fim, mas sempre meio para qualquer coisa que se acha fora dela. Enquanto prevalecerem as funções divididas daquele que pensa e do que só executa, será impossível evitar a dominação, pois sempre existirá a idéia de que só alguns sabem e são competentes e portanto decidem, enquanto a maioria que nada sabe é incompetente e deve obedecer.
O filósofo alemão Habermas, herdeiro da tradição da Escola de Frankfurt, detém-se na análise dos efeitos perversos do sistema de produção, opondo os conceitos de razão instrumental e razão comunicativa, referentes a dois aspectos distintos da realidade social. Para ele, a lógica da razão instrumental não é a mesma da razão vital, que prevaleceria no mundo vivido das experiências pessoais e da comunicação entre as pessoas. Ora, a irracionalidade no mundo moderno - e a sua patologia - decorre da sobreposição da lógica da razão instrumental em setores que deviam ser regidos pela razão comunicativa.
Dessa forma não se pretende negar o valor da razão instrumental, mas resgatar o que foi perdido em termos de humanização, quando a razão técnica se sobrepõe à razão vital. Nem se pretende considerar o ser humano indefeso diante de um determinismo a que não pode fugir. A questão fundamental, hoje, é a da necessidade da reflexão moral e política sobre os fins das ações humanas no trabalho, no consumo, no lazer, nas relações afetivas, observando se estão a serviço do ser humano ou da sua alienação.
 
Atividades
Questão de compreensão
	
Os pontos a seguir visam verificar a compreensão dos temas abordados no capítulo. Explique cada um deles: conceito de alienação; alienação na produção, no consumo e no lazer; condições para superar a alienação.
Questões de interpretação e problematização
Dentre as fábulas de La Fontaine, "A cigarra e a formiga" é bem representativa da ênfase burguesa no trabalho e na condenação do ócio: Explique como essa fábula faz sentido na época em que foi criada (século XVIII) e como hoje a cigarra poderia ser reabilitada e a formiga ser vista com outros olhos.
O Brasil é pioneiro na elaboração do Código de Defesa do Consumidor. Informe-se sobre sua importância não só no efetivo cumprimento da lei, mas também por ter ampliado a consciência dos direitos do consumidor.
A partir do conceito de alienação no consumo, interprete o que o poeta Thiago de Mello diz no Artigo XIII de Os estatutos do homen: “Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras”.
Comente a frase de Goethe no romance Werther: "A espécie humana é de uma desoladora uniformidade; a sua maioria trabalha durante a maior parte do tempo para ganhar a vida, e, se algumas horas lhe ficam, horas tão preciosas, são-lhe de tal forma pesadas que busca todos os meios para as ver passar. Triste destino o da humanidade!".
Discuta a diferença entre a arte e o entretenimento da cultura de massa, a partir da seguinte citação: "Contra a concepção de natureza como objeto disponível e manipulável para a exploração, os frankfurtianos propõem a gratuidade da fruição estética e da arte. [...] A arte é testemunha de um outro princípio de realidade que não o da submissão à produtividade, ao desempenho no mundo competitivo do trabalho e da renúncia ao prazer. Trata-se de um princípio que reconcilia o homem com a natureza exterior, interior e com a história". (Olgária Matos)
Dissertação
Tema: "A desvalorização do mundo humano aumenta em proporção direta com a valorização do mundo das coisas.” (Marx)
Seminário
O lazer no século XXI.
Discutir sobre a importância do aproveitamento do tempo de lazer, diante da possibilidade da ampliação do tempo de ócio e da multiplicação das formas de ocupar o tempo livre.
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Capítulo 5
A ideologia
Jogamos os jogos da vida, obedecendo a livros de regras escritos com letra invisível ou com um código secreto.
Arthur Koestler
 
1. Senso comum e bom senso
Chamamos senso comum ao conhecimento adquirido por tradição, herdado dos antepassados e ao qual acrescentamos os resultados da experiência vivida na coletividade a que pertencemos.Trata-se de um conjunto de idéias que nos permite interpretar a realidade, bem como de um corpo de valores que nos ajuda a avaliar, julgar e, portanto, agir. O senso comum, porém, não é refletido e se encontra misturado a crenças e preconceitos. É um conhecimento ingênuo (não-crítico), fragmentário (porque difuso, assistemático e muitas vezes sujeito a incoerências) e conservador (resistente às mudanças).
Com isso não queremos desmerecer a forma de pensar do indivíduo comum, mas apenas enfatizar que o primeiro nível de conhecimento precisa ser superado em direção a uma abordagem crítica e coerente, características que não precisam se restringir necessariamente às formas mais requintadas de conhecer, tais como a ciência ou a filosofia.
Em outras palavras, o senso comum precisa ser transformado em bom senso, entendido como elaboração coerente do saber e como explicitação das intenções conscientes dos indivíduos livres. Segundo o filósofo Gramsci, o bom senso é "o núcleo sadio do senso comum". Qualquer pessoa, estimulada no exercício de compreensão e crítica, torna-se capaz de juízos sábios, porque vitais, isto é, orientados para sua humanização.
Geralmente os obstáculos à passagem do senso comum ao bom senso resultam da exclusão do indivíduo das decisões importantes na comunidade em que vive. Em sociedades não democráticas, as informações não circulam igualmente em todas as camadas sociais, por isso nem todos têm igual possibilidade de consumir e produzir cultura. No Brasil, por exemplo, muitas crianças em idade escolar estão excluídas da educação, isso sem falar da pirâmide educacional, dos que não conseguem permanecer na escola no decorrer do processo, fazendo restar uma porcentagem muito pequena de estudantes que atingem os níveis superiores de escolarização.
No entanto, não são apenas as pessoas menos instruídas que nem sempre conseguem passar do senso comum para o bom senso. Funcionários de empresas, empresários, sacerdotes, professores cientistas, especialistas de qualquer área, podem estar restritos a formas fragmentárias do senso comum quando, em determinados setores de sua vida pessoal, encontram-se presos a preconceitos, a concepções rígidas, sucumbindo à ação massificante dos meios de comunicação ou ao peso da tradição.
Outras vezes, renunciamos ao exercício do bom senso quando nos submetemos ao poder dos tecnocratas, seduzidos pelo "saber do especialista". Basta observar a timidez de decisão dos pais que, ao educarem os filhos, delegam poderes a psicólogos, pedagogos, pediatras. Ao dizer isso, não estamos desvalorizando a importante contribuição de cientistas e técnicos, apenas ressaltamos que o leigo não precisa permanecer passivo diante do saber do técnico,demitindo-se de certas ações quando ele próprio poderia exercê-las. Ele tem o direito, por exemplo. De informa-se ativamente a respeito do tratamento médico a que se acha submetido e sobre seus efeitos. Em.última análise, convém desmistificar. a tendência de cultuar as pessoas "estudadas" em detrimento das que são "sem letras" ou simplesmente não-especialistas.
Qualquer indivíduo, se não foi ferido em sua liberdade e dignidade, será capaz de desenvolver a autoconsciência,de elaborar criticamente o próprio pensamento e de analisar a situação em que vive. É sob esse aspecto que o bom senso se aproxima de filosofia. Da filosofia de vida, como entendemos no Capítulo 8 – A reflexão filosófica. Porém, não é automática a passagem do senso comum ao bom senso e um dos obstáculos ao processo encontra-se na difusão da ideologia, entendida no seu sentido restrito como abordaremos no item 3 deste capítulo.
2. Ideologia: sentido amplo
 
Há vários significados para a palavra ideologia. Em sentido amplo, é o conjunto de idéias, concepções ou opiniões sobre algum ponto sujeito a discussão. Quando perguntamos qual é a ideologia de determinado pensador. estamos nos referindo à doutrina, ao corpo sistemático de idéias e ao seu posicionamento interpretativo diante de certos fatos. É assim que falamos em ideologia liberal ou ideologia marxista.
Ainda podemos considerar a ideologia como teoria, no sentido de organização sistemática dos conhecimentos que antecedem a ação efetiva, tal como nos referimos à ideologia de uma escola, que orienta a prática pedagógica; á ideologia religiosa, que dá regras de conduta aos fiéis; à ideologia de um partido político. que fornece diretrizes de ação a seus filiados. A expressão “atestado ideológico” nos remete à declaração exigi da sobre a filiação partidária de alguém. No Brasil, durante o recrudescimento do poder autoritário da ditadura militar. órgãos como o Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) exigiam em certas circunstâncias – inclusive para ser contratado para o serviço público, como professor, por exemplo – a apresentação de atestados desse tipo, a fim de controlar a adesão às ideologias marxistas, então consideradas perigosas à segurança nacional.
3. Ideologia: sentido restrito
O conceito de ideologia tem outros sentidos mais específicos, elaborados por autores como Destutt de Tracy, Comte, Durkheim, Weber, Manheim.Mas é sobretudo com Marx que a explicitação do conceito veio enriquecer o debate em torno do assunto e de sua aplicação. Para ele, diante da tentativa de explicar a realidade e dar regras de ação, é preciso considerar também as formas de conhecimento ilusório que levam ao mascaramemo dos conflitos sociais. Segundo a concepção marxista, a ideologia adquire um sentido negativo, como instrumento de dominação.
Isso significa que a ideologia tem influência marcante nos jogos do poder e na manutenção dos privilégios que plasmam a maneira de pensar e de agir dos indivíduos na sociedade. A ideologia seria de tal forma insidiosa que até aqueles em favor de quem ela é exercida não perceberiam o seu caráter ilusório.
A concepção de Gramsci
Segundo o filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937) é preciso distinguir entre ideologias orgânicas e ideologias arbitrárias. As primeiras são historicamente necessárias porque”organizam as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquire consciência de sua posição, lutam etc.". Para Gramsci, pode-se dar ao conceito de ideologia "o significado mais alto de uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas"� e que tem por função conservar a unidade de todo o bloco social.
Portanto, Gramsci considera que, em um primeiro momento, como concepção de mundo, a ideologia tem a função positiva de atuar como cimento da estrutura social. Quando incorporada ao senso comum, ela, ajudará a estabelecer o consenso, conferindo hegemonia a determinada classe, que passará a ser dominante. Evitando a concepção mecanicista, Gramsci considera que os dominados não permanecem submissos indefinidamente, já que podem desenvolver elementos de bom senso e de valores de pertencimento à classe, que, por sua vez, formarão aos poucos a sua ideologia. Daí a necessidade de intelectuais da própria classe subalterna capazes de organizar coerentemente a concepção de mundo dos dominados.
 
Conceituação de ideologia
Vejamos agora a definição dada pela professora Marilena Chaui: "a ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na esfera da produção. Pelo contrário, a função da ideologia é a de apagar as diferenças, como as de classes, e de fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a Humanidade. a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado"�.
Observamos então que a ideologia é apresentada com as seguintes características fundamentais:
Constitui um corpo sistemático de representações que nos “ensinam” a pensar e de normas que nos “ensinam” a agir;
Assegura determinada relação dos indivíduos entre si e com suas condições de existência, adaptando-os às tarefas prefixadas pela sociedade;
As diferenças de classe e os conflitos sociais são camuflados, ora com a descrição da "sociedade una e harmônica", ora com a justificação das diferenças existentes;
Assegura a coesão social e a aceitação sem críticas das tarefas mais penosas e pouco recompensadoras, em nome da "vontade de Deus" ou do "dever moral" ou simplesmente como decorrência da "ordem natural das coisas";
Mantém a dominação de uma classe sobre outra.
É interessante observar que a ideologia não é uma mentira que os indivíduos da classe dominante inventam para subjugar a classe dominada, porque também os que se beneficiam dos privilégios sofrem a influência da ideologia, o que lhes permite exercer como natural sua dominação, aceitando como universais os valores específicos de sua classe. Portanto, a ideologia se caracteriza pela naturalização, na medida em que são consideradas naturais situações que na verdade resultam da ação humana e, como tal, são históricas e não naturais: por exemplo, quando se considera natural que a sociedade esteja dividida em ricos e pobres ou que uns mandem e outros obedeçam.
Outra característica da ideologia é a Universalização, pela qual os valores de quem detém o poder são estendidos aos que a ele se submetem. É assim que a empregada doméstica "boazinha" não discute salário nem reclama se trabalha além do horário. Também os missionários que acompanhavam os colonizadores às terras conquistadas certamente não percebiam o caráter Ideológico da sua ação ao imporem a religião e a moral estranhas às do povo dominado.
A universalidade das idéias e dos valores resulta de uma abstração, ou seja, as representações ideológicas não se referem ao concreto, mas ao aparecer social. Por exemplo, a "sociedade una e harmônica" é uma abstração, porque, ao analisarmos concretamente as relações sociais, descobrimos a divisão de classes e os conflitos de interesses.
A universalização e a abstração supõem uma lacuna ou o ocultamento de alguma coisa que não pode ser explicitada sob pena de desmascaramento da ideologia. Por isso a ideologia é ilusória, não no sentido de ser "falsa" ou "errada", mas como aparência que oculta a maneira pela qual a realidade social foi produzida. Sob o aparecer da ideologia existe a realidade concreta que precisa ser descoberta pela análise da gênese do processo.
Vejamos outros exemplos.
A afirmação de que "o trabalho dignifica" é difícil de ser contestada. Como já vimos em outro capítulo, nós nos distinguimos do animalpelo trabalho, com o qual humanizamos a natureza e a nós mesmos. No entanto, essa afirmação torna-se ideológica quando se baseia em uma abstração, ou seja, quando consideramos apenas a idéia de trabalho, independentemente da analise da situação concreta e histórico-social em que é de fato realizado. Nesse caso, o que descobrimos pode ser exatamente o contrário: o embrutecimento e a reificação (“coisificação”) do ser humano, e não a condição de sua dignidade.
Ao dizer que “o salário paga o trabalho”, podemos estar diante de uma lacuna quando analisando a gênese do trabalho assalariado, descobrimos a mais-valia� e, portanto, o artifício do qual deriva a exploração do trabalhador, que produz a sua alienação e oculta a diferença de condição de vida das pessoas da comunidade.
“A educação é um direito de todos“ é uma verdade e até indica uma obrigação do Estado, já que há exigência legal de todo cidadão completar o ensino fundamenta. Mas essa afirmação se torna abstrata e lacunar ao apresentar como universal o que, de fato, não beneficia a todos: as estatísticas confirmaram a evasão e o baixo índice de freqüência escolar por parte dos segmentos sociais desfavorecidos. Mesmo que sejam dadas explicações para esse insucesso, em função das dificuldades de adaptação, da necessidade de trabalhar desde cedo e até do desinteresse ou preguiça dos alunos, o que permanece oculto é que há contradição entre os que produzem a riqueza material e cultural com seu trabalho e os que se apossam dessas riquezas, de cujo beneficio são excluídos os seus produtores. Portanto, a educação aparece como direito de todos. mas, analisando a gênese da produção e o usufruto dos bens, descobre-se que a educação está restrita, em grande parte, aos, que detêm o poder.
Além disso, a ideologia representa a realidade invertida, ou seja, o que seria a origem da realidade é posto como produto e vice-versa; o que é efeito passa a ser considerado causa, o que é determinado é tido como determinante. Para a ideologia burguesa, por exemplo, a desigualdade social resulta de diferenças individuais: a desigualdade natural seria a causa da desigualdade social. Ora, na verdade, as desigualdades sociais estabelecidas pela divisão social do trabalho e pelas relações de produção é que e de fato são causas das desigualdades individuais. Por exemplo, se o filho de operário não melhora o padrão de vida, isto é explicado como resultado da sua incompetência, falta de força de vontade ou disciplina, quando na realidade ele joga um “jogo de cartas marcadas” em que suas chances de melhorar não dependem dele, mas de quem detém os meios de produção.
Com isso, não desconsideramos as diferenças que de fato existem entre indivíduos, em termos de interesse, aptidão, inteligência. Pelo enfoque ideológico, porém, o sucesso das pessoas parece depender apenas da competência do indivíduo, sem que sejam levadas em conta as dificuldades decorrentes da divisão de classes.
Outra inversão própria da ideologia é a maneira pela qual se estabelecem as relações entre teoria e prática, em que a teoria é considerada superior à prática, porque a antecede e "ilumina". As idéias tornam-se autônomas e são consideradas causa da ação humana, e não o contrário. A divisão hierárquica entre o pensar e o agir se encontra também na dicotomia da sociedade, em que um segmento se dedica ao trabalho intelectual e outro, ao trabalho manual. Sob esse esquema, uma classe “sabe pensar”, enquanto a outra "não sabe pensar" e portanto só executa o que lhe mandam fazer. Dessa forma, aos indivíduos dos segmentos privilegiados cabe decidir, porque "sabem", e, aos demais, apenas obedecer.
4. O discurso não-ideológico
A ação e o pensamento humanos nunca se acham totalmente determinados pela ideologia. Sempre haverá espaços de crítica e fendas que possibilitem a elaboração do discurso contra ideológico. Não é simples, no entanto, o trabalho de desvelamento do real, porque a ideologia penetra em setores insuspeitados: na educação familiar e escolar, nos meios de comunicação de massa, nas igrejas, nos hospitais psiquiátricos, nas prisões, nas indústrias, impedindo de todas as formas a flexibilidade entre o pensar e o agir, determinando a repetição de fórmulas prontas e acabadas.
Por outro lado, exatamente nesses mesmos espaços que veiculam a ideologia é que poderá ser iniciado o processo de conscientização. O que distingue, portanto, o discurso ideológico do não-ideológico, ao qual podemos chamar simplesmente de teoria?
Se o discurso ideológico é abstrato e lacunar, faz uma análise invertida da realidade e separa o pensar e o agir, o discurso não-ideológico é aquele que visa o preenchimento das lacunas pela procura da gênese do processo. Isso não significa que se deva contrapor ao discurso lacunar um discurso "pleno", mas sim a elaboração da crítica, do contradiscurso que revele a conrtradição interna do discurso ideológico e que o faça explodir. Além disso, a teoria estabelece uma relação dialética com a prática, ou seja, uma relação de reciprocidade e simultaneidade, e não a relação hierárquica, como no discurso ideológico. Explicando: existe uma relação indissolúvel entre teoria e prática, porque todo agir humano é antecedido por um projeto, da mesma forma que a teoria não é algo que se produza independentemente da prática, pois seu fundamento é a própria prática. Nós conhecemos as coisas na medida em que as produzimos, daí toda teoria se torna lacunar - e portanto ideológica -, sem o vai-e-vem entre o fato e o pensado.
Ora, o saber que resulta do trabalho é um saber instituinte e, portanto, vivo, móvel, com toda a força decorrente do processo dinâmico de se fazer. Ao contrário, o saber ideológico é o saber instituído que, se não for acompanhado pelo vigor da crítica, poderá se tornar esclerosado. Por isso, é importante o papel da filosofia para romper as estruturas petrificadas que justificam as formas de dominação.
Se a ideologia permeia o tecido social e se radica em instâncias insuspeitadas das relações humanas, é preciso reconhecer, no entanto, que não se torna de uma força a que as pessoas se submeteriam de maneira irrevogável. Cabe ao empenho aplicado em diversos espaços - na família, na escola. no trabalho, na mídia etc. - fazê-los funcionar como micropolíticas voltadas para a democratização das relações humanas e não para a manutenção de formas hierarquizadas e imobilistas.
Na seqüência deste capítulo, veremos com mais detalhes como a ideologia se enraíza em diversos setores do nosso cotidiano.
5. A ideologia em ação
A ideologia na escola
Desde o final do século XIX e na primeira metade do século XX, pedagogos influenciados pelas teorias da chamada escola nova defenderam a idéia otimista de que a educação teria função democratizadora, como fator de mobilidade social. Ao contrário das expectativas, porém. constataram-se altas taxas de repetência e evasão escolar, sobretudo nas camadas mais pobres da sociedade. Embora os índices fossem mais perversos nos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, essa distorção acontecia também em outras regiões do mundo.
Por volta de 1970, teóricos franceses passaram a admitir que a escola não é equalizadora, mas reprodutora� das diferenças sociais. Segundo alguns desses pensadores, o próprio funcionamento da escola repetiria a estrutura hierarquizada do sistema, reproduzindo as relações autoritárias existentes fora dela. Mais ainda, ao acentuar a dicotomia entre teoria e práxis, a escola desvaloriza o trabalho manual, privilegia o trabalho intelectual. Como também torna a própria teoria estéril, já que a mantém distanciada da prática. Em decorrência dessas concepções pessimistas a respeito da atuação da escola, outros estudiosos passaram a investigar o caráter ideológico da produção da literatura infanto-juvenil e dos livros didáticos.
A partir dessa análise, porém, não devemos generalizar apressadamente, reduzindo a escola e o material didático em instrumentos de ideologia.por ser uma posição por demais redutora. Se os teóricos crítico-reprodutivistas nos alertaram para o Fato de a práxis educativa não ser neutra, mas se achar vinculada à sociedade em que atua, às relações de produção, ao sistema político. isso não significa que ficamos reduzidos a peças de engrenagem e sem força de ação, uma vez que ninguém é joguete passivo de mistificação,
Além disso, as boas escolas são críticas do sistema e cada vez mais buscam aproximar ensino e vida; e os bons autores, tanto de livros didáticos como de ficção, ao lado da discussão sobre valores humanos considerados importantes, têm sabido abordar, com sutileza, sem moralismos, os temas que revelam os riscos e perigos dos desvios em que envereda muitas vezes a humanidade. Sempre haverá na escola e nos livros a possibilidade de professores, autores e alunos inventarem práticas que se tornem críticas da inculcação ideológica.
A escola é um espaço possível de luta, de ,denúncia da domesticação e de procura de soluções criativas.
 
A ideologia nas histórias em quadrinhos
Os quadrinhos são um fenômeno característico da cultura de massa e têm sua principal, divulgação no século XX, quando começam a aparecer nas publicações diárias dos jornais. Como expressão complexa da produção contemporânea, além da função de entretenimento lazer, têm também a função mítica e fabuladora típica das obras de ficção, além de preencherem funções estéticas, representantes que são de urna nova linguagem artística.
Nossa abordagem do tema parte da reflexão acerca da ambigüidade de toda produção cultural: ao mesmo tempo que serve à consciência, pode servir à alienação; tanto leva ao conhecimento como à escamoteação da realidade; tinto pode ser criativa como paralisadora.
No início de 1970 - na mesma década em que os teóricos da educação desenvolveram a tese da escola reprodutora do sistema -, dois chilenos, ArieI Dorfman e Armand Mattelart�, defenderam a tese de que a leitura das histórias em quadrinhos não era tão inocente assim como se pensava. Fizeram impiedosa crítica aos quadrinhos, da qual não escaparam desde os super-heróis até os aparentemente inofensivos personagens de Walt Disney.
Esses autores denunciam a ideologia subjacente aos quadrinhos, nos quais as histórias escamoteiam os conflitos. transmitem uma visão deformada do trabalho e levam à passividade política. Para eles, na maioria das histórias em quadrinhos a sociedade aparece como una, estática e harmônica e a "ordem natural" do mundo é quebrada apenas pelos vilões, que, encarnando o mal, atentam geralmente contra o patrimônio (roubo de bancos, jóias e caixas-fortes). A defesa da legalidade dada e não-questionada é feita pelos "bons", com a morte dos "maus" ou com a integração desses à norma estabelecida.
Resulta dai um Maniqueísmo� simplista, que reduz todo conflito à luta entre o bem e o mal; sem considerar quaisquer nuanças de uma sociedade em que as pessoas e os grupos possam ter opiniões e interesses divergentes.
Segundo essa visão crítica elaborada na década de 1970, o que é observado para as histórias em quadrinhos pode ser estendido para a produção literária dos chamados romances B (de puro entretenimento), para o cinema e programas de tevê, sejam novelas ou quadros humorísticos.
A fim de não sermos injustos com a imensa variedade de produção artística, convém atenuar essa leitura que, muitas vezes, se torna extremamente simplista. No campo dos quadrinhos, por exemplo, é preciso considerar aqueles que não são ideológicos, na medida em que, mesmo sem perder a dimensão de divertimento e prazer, propiciam uma visão crítica da sociedade e de nós mesmos.
Um exemplo já clássico é o da Mafalda, de Quino, pseudônimo do argentino Joaquim Salvador Lavado (1932) que, de forma bem-humorada, questiona os costumes, a política, o conformismo e os preconceitos humanos, na esperança de um mundo melhor. Seus amiguinhos representam os estereótipos criticáveis da alienação, do excessivo pragrnatismo e do egocentrismo, bem como os tipos da contestação e da criatividade.
Nos Estados Unidos, Charles M. Schulz (1927-2000) criou histórias que revelam as dificuldades de relacionamento humano, a partir de personagens como Charlie Brown, menino de bom coração, mas tímido, desastrado e um pouco deprimido; Snoopy, o cão beagle que age como um adulto bem-sucedido e capaz de "filosofar" sobre a vida; Lucy, mandona, egoísta e sarcástica; Linus, inseguro, com seu inseparável cobertorzinho. Outro quadrinheiro famoso é Bill Watterson que, com a dupla Calvin e seu tigre Haroldo, faz críticas ao mundo adulto. Não por acaso, o nome do menino rebelde Calvin foi inspirado em Calvino, líder religioso protestante do século XVI, e na versão original o nome do tigre é Hobbes, menção explícita ao filósofo do século XVII que tinha uma visão pessimista da natureza humana.
No entanto, nos países em "vias de desenvolvimento", continua a dificuldade de implantação dos quadrinhos nacionais, devido à força de difusão das multinacionais dos quadrinhos. Apesar disso, muitos artistas. tais como Angeli, Glauco, Fernando Gonsales, Ziraldo, irmãos Caruso, Laerte, seja em tiras ou em charges, recuperam nossa realidade vivida, com o aproveitamento de temas e situações a partir do imaginário nacional. Além disso, esse trabalho se efetiva não apenas como reprodução do “pensar brasileiro”, mas também como questionamento dele.
Outros espaços de ação ideológica
A ideologia se faz presente nos mais diversos Campos de atuação. Um deles é a propaganda. Como vimos no Capítulo 3 - Trabalho e alienação, vivemos em uma época de consumismo explícito, em que as pessoas são levadas a comprar muito mais do que necessitam e pressionadas por desejos artificialmente estimulados.
Tudo bem que possamos entender a propaganda como uma maneira de divulgar ao provável consumidor a variedade e a qualidade do que é produzido, o que por sinal é muito bem feito pelas competentes agências de propaganda. No entanto, estamos aqui falando das situações em que o indivíduo perde o centro de si mesmo e passa a depender de valores de posse que acabam por determinar outras escolhas importantes de sua vida pessoal, como nas áreas do trabalho e das relações afetivas.
A propaganda não vende apenas produtos, mas também idéias. Compramos o "sonho americano", o desejo de "subir na vida", os estilos de vida, as convicções políticas e éticas que de certa forma são veiculadas sub-repticiamente nos comerciais. Isso sem falar nas campanhas de governos ou no marketing dos candidatos a qualquer cargo público.
O impacto do "mundo dos produtos" em nossas vidas tem se acelerado, na medida em que vem se acentuando o processo de globalização, pelo qual é modelado um tipo de cultura calcado na produção e no consumo. Não se trata mais de um país fabricar um produto inteiro, mas, por questões econômicas e de variações locais, os produtos passam a ser fabricados em partes e em vários lugares: “Um carro esporte Mazda é desenhado na Califórnia, financiado por Tóquio o protótipo é criado em Worthing (Inglaterra) e a montagem é feita nos Estados Unidos e México. usando componentes eletrônicos inventados em Nova Jérsei, Fabricados no Japão. [...] Um ’filme-global’, realizado para um público, alvo mundial, é produzido [...] em Hollywood, dirigido por um cineasta europeu, financiado pelos japoneses, contém no elenco vedetes internacionais, e a cenas passam por vários lugares do planeta�”.
Evidentemente, a essa padronização na produção, que torna o mundo cada vez idêntico, corresponde um esforço de propaganda para atingir o público em todos os lugares, seja pela veiculação de campanhas publicitárias universais. seja pela adaptação do produto a certas especificidades nacionais, mas sempre tendo em vista a sua inserção no mercado mundial. Como conseqüência, dá-se uma homogeneização dos hábitos de consumo.
Outro espaço possível de ação da ideologia é o da mídia, pela qual tomamos conhecimento dó noticiário,

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