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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Joceval Andrade Bitencourt Descartes e a morte de Deus DOUTORADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2008 2 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Joceval Andrade Bitencourt Descartes e a morte de Deus Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia sob a orientação do Prof. Doutor Carlos Arthur R. do Nascimento. SÃO PAULO 2008 3 Agradecimentos Meus mais profundos agradecimentos: Ao Prof. Dr. Carlos Arthur R. do Nascimento, pela competência e paciência que demonstrou ter na orientação deste trabalho. A Ana Paloma Miranda Costa, pela presença afetiva e solidária durante todo o percurso dessa caminhada intelectual. 4 Banca Examinadora _____________________________ _____________________________ _____________________________ _____________________________ _____________________________ 5 ÍNDICE Resumo ____________________________________________________ 6 Introdução ___________________________________________________ 9 1 – Descartes sem metafísica ___________________________________ 17 2 – Deus na Física cartesiana (uma física em busca de uma metafísica) ______________________________________________ 125 2.1 – Segunda parte do segundo capítulo _______________________ 216 2.1.1 – Impasses da metafísica cartesiana ____________________ 248 3 – Descartes: origem da morte de Deus __________________________ 266 Conclusão __________________________________________________ 363 Bibliografia _________________________________________________378 Anexo______________________________________________________400 6 RESUMO O presente trabalho buscou mostrar as possibilidades e os limites da metafísica cartesiana, tendo como alvo principal, mas não único, investigar se é possível creditar à filosofia de Descartes a postura através da qual se inaugura na cultura ocidental a "morte de Deus". O resultado final, seja da ciência, seja da metafísica cartesiana, é a afirmação do homem como centro em torno do qual deve gravitar todo conhecimento, que tem na autonomia da razão natural sua causa originária. O cogito ao afirmar, através dos fundamentos do método inspirado nas leis da matemática, a primeira verdade, subordina todas as outras, quer sobre Deus, quer sobre o mundo, a essa primeira verdade. Descartes excluiu Deus de sua ciência; essa se processa à revelia de qualquer instância exterior à ordem da razão natural. Se há um Deus na metafísica cartesiana, não é possível identificá-lo com o Deus cristão: mistério transcendente, que se revela e se dá a conhecer ao homem que o acolhe na fé. O Deus da metafísica cartesiana é tão somente um princípio lógico, um funda- mento racional, requerido pelas normas do método, ao qual encontra-se subordinado. Assim, o Deus que Descartes apresenta ao mundo, através de sua metafísica, já não é o Deus da religião; é, segundo a expressão de Pascal, o Deus dos sábios e dos filósofos. A morte de Deus se apresenta então como uma conseqüência direta da afirmação do homem, referência legitimadora de todo conhecimento verdadeiro, principalmente daquele que busca apresentar-se 7 como ciência. Deste modo, a morte de Deus estaria diretamente vinculada à filosofia de Descartes. Teria sido na metafísica cartesiana, em sua própria estruturação, que, mesmo não sendo essa a intenção explícita de Descartes, a morte de Deus teve lugar pela primeira vez na história do pensamento filosófico ocidental. Palavras-chave: Descartes, metafísica, Deus, epistemologia Abstratc The present work attempts to show the possibilities and limits of the cartesian metaphysics. It has as its main aim, but not the only one, to investigate the possibility of assining to the philosophy of Descartes the posture through which the death of God is inaugurated in western culture. The final result, either in science or in cartesian metaphysics, is the assertion of man as the centre around which all knowledge has to gravitate, knowledge that has in natural reason’s authonomy its original cause. The cogito affirming, through the fundaments of the method inspired by mathematical laws, the first truth, subordinates all the other truthes, either about God or about the world, to this first one. Descartes has excluded God from his science. This last one proceeds, notwithstanding any instances external to natural reason’s order. If there is a God in cartesian metaohysics, it is not possible to identify him to the Christian God, transcedent 8 mistery, who reveals himself to man, who receives him in faith. The cartesian methaphysics’ God is only a logical principle, a rational fundament, required by the rules of the method, to which he is subordinated. Thus, the God whom Descartes presents to the world through his metaphysics, is already not the God of religion; he is, according to Pascal’s expression, the God of the wise and of the philosophers. The death of God appears, them, as a direct consequence of man’s affirmation; legitimating reference of all true konowledge, mainly that which claims to present it self as science. It would be in cartesian metaphysics, in ist own structuration, even if this was not Descartes’ own explicit intention, that, for the first time, the death of God happened in western philosophical thought. Key words: Descartes, metaphysics, God, epistemology, 9 INTRODUÇÃO “Descartes c’est un homme terrible à prendre pour maître; son oeil semble dire - ‘Encore un qui va se ‘tromper’”1. Este trabalho inicia-se consciente dos riscos que se apresentam para quem pretende conhecer e interpretar a obra de Descartes como um todo ou mesmo um tema particular no interior desta. Não é recomendável tomar Descartes como tema de reflexão sem ter em conta a epígrafe desta introdução. De fato, Descartes parece anunciar, previamente, a todo aquele que pretende decifrar a ordem de sua trama filosófica, o fracasso de tal empreitada. O mar é revolto, o risco é sempre iminente; apesar disso, é preciso ir em frente, é preciso, tomando os devidos cuidados, lançar-se ao mar e navegar, regido pela esperança de que os ventos conduzam a nau em direção ao porto seguro e que o marinheiro possa, ao cair da tarde, contemplar a terra firme da razão cartesiana. Nesta empreitada, muitos são os guias que se apresentam para conduzir, estabelecer e interpretar a direção “correta” da nau filosófica de Descartes. Mas qual guia escolher? Em princípio, nenhum. A multiplicidade de intérpretes e interpretações, quase sempre divergentes, em torno da obra de Descartes, não recomenda que se tome um intérprete ou uma perspectiva particular de interpretação como norte de pesquisa. Neste encontro filosófico, grande parte dos mais ilustres e reconhecidos intérpretes da vida e da obra de Descartes1 ALAIN, Histoire de mes pensées, p. 253. 10 encontram-se presentes, entretanto, a nenhum, em particular, será oferecida a cabeceira da mesa. Depois de mais de trezentos anos de reflexão filosófica sobe a obra de Descartes, ainda é possível encontrar um nicho não explorado, esquadrinhado, conquistado pelos seus intérpretes, que possa servir de tema para uma investigação conducente a uma tese de Doutorado? A resposta aparentemente óbvia seria um rotundo não. Descartes seria terra conquistada, demarcada e cercada - com arame farpado - pelos desbravadores das veredas filosóficas. Neste sentido, parece que Descartes não teria mais nada a dizer que já não se encontre sob pleno domínio de seus mais ilustres intérpretes. Já não seria mais possível fazer falar os silêncios dos textos cartesianos, pois já não haveria mais silêncios; tudo que tinha a ser dito, já foi dito. Descartes deixou-se revelar por inteiro. Engana-se quem assim interpreta as possibilidades oferecidas pelo conjunto das reflexões filosóficas que Descartes legou aos humanos. Talvez, não seja excesso afirmar que esse se apresenta, ainda hoje, com o mesmo vigor filosófico, com o mesmo espírito provocativo com o qual se apresentou na aurora do século XVII. Descartes é um daqueles autores que não envelhece nunca; apesar da distância no tempo, provoca o espírito crítico de quem busca entender a grande fábula do mundo, entender e dar respostas às provocações intelectuais de um mundo já antigo, que se apresenta, a cada instante, cada vez mais complexo, cada vez mais novo. Retornar a Descartes para melhor decifrar 11 a trama com a qual tece sua filosofia, para melhor entender a ordem de seu próprio sistema, é buscar entender o tempo de hoje; é buscar entender as grandes questões filosóficas da atualidade que, apesar da passagem do tempo, eram também questões de Descartes. Querendo ou não o homem contemporâneo, em suas mais distintas e diversas manifestações intelectuais, é herdeiro do cogito cartesiano. Descartes é moderno, Descartes é contemporâneo; sua filosofia instaurou a modernidade e, até hoje, não se pode deixar de reconhecer que as raízes da árvore que alimenta o espírito filosófico do homem contemporâneo, encontram-se nos princípios da filosofia cartesiana. Retomando Martial Gueroult, pode-se realmente afirmar que os mil canais da filosofia moderna têm sua cabeceira na filosofia cartesiana. Mas qual Descartes será tomado como objeto de reflexão neste trabalho? O Descartes da ciência, sem metafísica? O Descartes que subordina a ciência à metafísica? Ou o Descartes que busca, através da moral, a paz, a felicidade e o bem estar do homem nesta vida? É possível dizer que essas três vertentes do cartesianismo tornam-se alvo e unificam-se como objeto de reflexão deste trabalho. Assim, Descartes será acompanhado nestes três momentos, que se a princípio parecem independentes e distintos, estão, na verdade, inter- relacionados, de modo que a compreensão de cada um deles em particular só se justifica quando relacionada e articulada ao conjunto da obra do Meditador. Descartes busca estabelecer uma unidade de todas as formas de conhecimento, uma só ciência que possa abarcar e unificar todo o saber humano. Conseqüentemente, a filosofia de Descartes encontra-se toda ela interligada, as partes encontrando seu sentido na ordem lógica do todo e o todo, por sua vez, encontrando nas partes que o conceituem a base onde se justifica e se esclarece. 12 Fracassaria quem desejasse destacar um tema particular e dar conta dele separadamente, sem contemplar a ordem do todo, o conjunto da obra de Descartes. Se o tema escolhido for Deus e sua relação com a filosofia cartesiana, a situação torna-se ainda mais complexa, pois tal tema percorre toda a obra do Meditador, alcançando, inclusive, sua volumosa correspondência. Sabe-se, desde já, que a pretensão pode parecer excessiva e os riscos não menores; entretanto, é preciso ir em frente, é preciso acompanhar todos os passos e movimentos que Descartes impõe à idéia de Deus no traçado filosófico de seu racionalismo. Sobre a presença de Deus na filosofia cartesiana, têm-se, neste momento, muito mais perguntas que respostas; espera-se que estas sejam oferecidas ao longo deste trabalho. Qual, verdadeiramente, é a função de Deus na filosofia cartesiana? Sua presença aí compromete a autonomia do sujeito no processo de construção da verdade? A filosofia de Descartes, seja na ciência, seja na metafísica, precisa realmente de Deus para garantir sua ordem de verdades? Quais os impasses lógicos enfrentados por Descartes para garantir e justificar a presença de Deus na ordem de seu sistema metafísico? A presença de Deus na metafísica cartesiana é uma necessidade lógica ou uma concessão político- religiosa? Ao justificar a presença de Deus na ordem de seu sistema filosófico, não teria Descartes preparado as condições teóricas para se afirmar a “morte de Deus”? Depois de Descartes, ainda é possível falar de Deus como fonte 13 legitimadora da verdade? Perguntas que podem ser unificadas em uma única: quais as possibilidades e os limites da metafísica cartesiana? Os três capítulos que compõem este trabalho buscam responder essas questões, sem pretensão de esgotar o assunto ou mesmo apresentar uma resposta definitiva. Em filosofia, melhor, no conhecimento humano, não existem respostas definitivas. Para o próprio progresso do conhecimento humano melhor que elas continuem não existindo. Assim, o que ora começa a ser apresentado não é um fato, mas só uma interpretação, uma perspectiva do problema, nem a única, nem a melhor; só mais uma forma, mais uma possibilidade de contemplar o livre vôo da ave de Minerva da filosofia cartesiana. Para tanto, buscou-se, através dos três capítulos que se seguem, percorrer de forma abrangente o território filosófico de Descartes, procurando entender o esforço intelectual deste, bem como as conseqüências desse esforço, para justificar e legitimar a presença de Deus na ordem das razões do homem. No primeiro capítulo, Descartes sem metafísica, buscar-se-á mostrar que Descartes, antes de ser um metafísico, é um cientista. Em sua reflexão está preocupado em dar conta do mundo físico, em construir um novo sistema do mundo a partir de uma reflexão puramente racional, sem nenhuma especulação metafísica, sem nenhum interesse sobre a natureza de Deus ou a imortalidade da alma. Buscar-se-á mostrar que, neste primeiro momento, Descartes não precisa de Deus para legitimar as conquistas de sua ciência. Poder-se-ia dizer que a intenção principal, não a única, deste capítulo é buscar entender os 14 caminhos percorridos por Descartes para fundar uma ciência na qual a presença de um Deus justificador e legitimador de todo conhecimento verdadeiro não se faz necessária. O segundo capítulo, Deus na física cartesiana - uma física em busca de uma metafísica, será desenvolvido em duas etapas. Primeiro buscar-se-á mostrar, de forma quase descritiva, sem acentuar a intervenção crítica sobre o assunto, o processo através do qual Descartes constrói sua metafísica. No segundo momento, de forma mais reflexiva e crítica, buscar-se-á entender a virada filosófica de Descartes, isto é a ordem lógica, as possibilidades, as dificuldades e os limites enfrentados por Descartes ao tentar fazer da metafísica o fundamento da ciência. Quais as dificuldades, impasses lógicos, encontrados por ele para fazer de Deus a base de sustentação de sua física. A orientação deste capítulo tem como alvo responder às seguintes perguntas: para além dasquestões gnosiológicas, haveria questões políticas presentes na metafísica cartesiana? Qual o papel que o cogito e Deus desempenham na metafísica cartesiana? O cogito inviabiliza a presença de Deus como causa primeira na metafísica cartesiana? Deus inviabiliza a presença do cogito como causa primeira na metafísica cartesiana? A presença de Deus na filosofia cartesiana comprometeria a autonomia da razão? Seria a razão que se encontra subordinada a Deus ou é Deus que se encontraria subordinado à razão? Buscar responder a estas interrogações é buscar entender as possibilidades e os limites da metafísica cartesiana. Ao final deste capítulo estarão preparadas as condições gnosiológicas para, no primeiro momento, compreender-se a natureza do Deus cartesiano, bem como, como este justifica-se na ordem lógica de sua metafísica; no segundo momento, preparam-se as condições para 15 o capítulo seguinte no qual buscar-se-á identificar, na metafísica cartesiana, a origem da idéia da “morte de Deus” na razão Ocidental. O terceiro capítulo, Descartes: a origem da morte de Deus. Buscar-se-á neste capítulo entender a natureza do Deus da metafísica cartesiana. Cabe-lhe buscar respostas para alguns questionamentos. É o Deus de Descartes o Deus dos cristãos ou um Deus da razão, um Deus dos filósofos? Descartes, ao subordinar Deus à ordem lógica, derivada da razão natural, não teria criado as condições teóricas para afirmar a morte de Deus na ordem da razão? A presença de Deus na metafísica cartesiana é uma necessidade lógica ou uma concessão político-religiosa? Descartes teria deixado suas convicções religiosas alcançarem suas convicções filosóficas? Não teria sido depois de Descartes que, entre as mais diversas correntes filosóficas, estabeleceu-se a autonomia da razão em relação ao conhecimento verdadeiro, à construção de uma ciência que encontra na pura racionalidade humana sua base de sustentação, não sendo mais possível falar de um Deus que se afirma e se reconhece como o único Ser justificador e legitimador de todo conhecimento verdadeiro, de todo conhecimento que busca ser reconhecido como ciência? O Deus da revelação cristã teria como, sem perder sua aura de mistério, sobreviver no universo estritamente lógico-matemático da metafísica cartesiana? É possível dizer que Descartes, mesmo que essa não tenha sido sua intenção originária, tornou-se o filósofo responsável por expulsar o Deus da revelação cristã do território da razão? Não teria sido Descartes o filósofo que fez Deus retornar ao território que lhe é próprio, o do mistério, da fé, da crença, ou mesmo da superstição? Descartes estaria realmente preocupado em construir uma metafísica ou o que busca, verdadeiramente, é construir uma ciência que possibilite ao homem o 16 domínio da natureza, o conforto e a felicidade nesta vida? Por fim, uma última questão, que orientou os três capítulos deste trabalho: seria, de fato, Descarte o autor a quem pode e deve ser creditada a autoria da “morte de Deus” na ordem do pensamento filosófico Ocidental? Responder a essa questão seria dar contar globalmente da filosofia de Descartes, supor um percurso de sua reflexão, perceber e percorrer os caminhos percorridos pelo Meditador na construção de seu projeto filosófico. Tal é a intenção deste trabalho. 17 PRIMEIRO CAPÍTULO DESCARTES SEM METAFÍSICA “O universo não é uma idéia minha. A minha idéia do universo é que é uma idéia minha.” (Fernando Pessoa) “Todavia, esses nove anos escoaram-se antes que eu tivesse tomado qualquer partido, com respeitos às dificuldades que costumam ser disputadas entre os doutos, ou começado a procurar os fundamentos de alguma Filosofia mais certa do que a vulgar”2. Descartes dá a público estas linhas em 1637, data da publicação do Discurso do Método, mas, refere-se a um período anterior, que corresponde aos anos de 1619-1628. Período em que se deu a tomada de 2 DESCARTES, R. Discurso do Método, Obra Escolhida, p. 65. Neste trabalho, será adotada para as citações dos textos de Descartes, em primeiro lugar, a edição de Charles ADAM e Paul TONNERY. Paris: VRIN, 1996, 11 vols.; em segundo lugar, a edição de Ferdinand ALQUIÉ. Paris: Garnier, 1997, 3 vols. Por uma questão prática, todas as vezes que for citada a edição de Charles ADAM e Paul TONNERY, será usada a abreviatura costumeira, qual seja AT.; bem como, quando for citada a edição de Ferdinand ALQUIÉ será usada a abreviatura: Alq. Entretanto, quando citandos textos traduzidos para o português, principalmente no que diz respeito ao Discurso do Método e às Meditações, será utilizada a Obra Escolhida, São Paulo: Ed. Bertrand Brasil, 1973, tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. Dando prioridade às edições, bem como à tradução citada, recorrer-se-á a outras traduções, em português ou em outras línguas, quando necessário. Informa-se ainda que as citações obtidas de edições francesas ou em outros idiomas, não serão traduzidas para o português. Acrescente-se que certas variações de grafia provêm das traduções utilizadas e em nada interferem com o conteúdo dos textos. 18 decisão de Descartes de abandonar os livros e o convívio com os homens cultos para viajar em busca de entender a comédia que se desenrola no grande teatro do mundo. “E, em todos os nove anos seguintes, não fiz outra coisa senão rolar pelo mundo, daqui para ali, procurando ser mais espectador do que ator em todas as comédias que nele se representam”3. Entre 1629 e 1633, Descartes escreve o Le Monde ou Traité de la lumière. Nestes anos, desde 1619, toda a preocupação especulativa de Descartes está voltada para as ciências4. Seus interesses intelectuais estão direcionados para a matemática, a geometria analítica, a óptica, a física, os fenômenos atmosféricos, a biologia e a fabricação de lunetas5. O que interessa a Descartes é compreender e dar conta da ordem do mundo físico, construir um novo sistema do mundo a partir de uma reflexão puramente científica, sem nenhuma especulação metafísica6. “As preocupações metafísicas aparecem bastante tarde no pensamento de Descartes”7. Desta forma é possível afirmar, que há um bom indício de que a reflexão científica de Descartes é anterior a sua reflexão metafísica8. Ele faz 3 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 64-65. 4 “Desde el descubrimiento del criterio metodológico fundamental - que una noticia del diario de Descartes nos permite situar en el 10 de noviembre de 1619 - trascurren nueve años, los quales aparecem totalmente ocupados – así lo atestigua el Discours de la méthode – con estudios físicos y matemáticos. Durante estos años van definiéndose y afianzándose, según cabe demostrar hasta en sus últimos detalles, los rasgos fundamentales del sistema del conocimiento, antes de que ningún problema metafísico aparezca en los horizontes de la especulación”. CASSIRER, E. El Problema del conocimiento, I, p. 452. 5 “Si l’on voulait exposer la physique de Descartes, au point de vue de sa contribution effective à l’histoire de cette science, il conviendrait d’isoler de la métaphysique, dans laquelle il a voulu les impliquer, un certain nombre de découvertes, qui, par leur origine, en sont tout à fait indépendantes, puisqu’elles sont antérieures à 1627, c’est-à-dire à l’époque ou il chercha dans la métaphysique un appui à sa physique”. BRÉHIER, E. Histoire de la philosophie, II, p. 86-87. 6 Neste período, “Descartes ocupa-se mais de ciência que de filosofia. Interessa-se pelasmatemáticas (a solução que propõe do problema de Papus é o ponto de partida da geometria analítica), pela óptica (descoberta das leis de refração), pela física (problema da queda dos corpos), pelos fenômenos atmosféricos (problema dos parélios ou “falsos sóis”), pela biologia (pratica inúmeras dissecações), pela fabricação de lunetas, etc. É nessa época, entre 1629 e 1633, que Descartes escreve o tratado que será publicado depois de sua morte com o título Le Monde ou Traité de la lumière (O Mundo ou Tratado da Luz), cujo fim é constituído pelo texto conhecido pelo nome de Traité de l’homme (Tratado do Homem)”. PASCAL, G. Descartes, p. 5. 7 KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 57. 8 “Si l’on voulait expreser la physique de Descartes, au point de vue de sa contribution effective à l’histoire de cette science, il conviendrait d’isoler de la métaphysique, dans laquelle il a vaulu les impliquer, un certain nombre de découvertes, qui par leur origine, en sont tout à fait indépendantes, puisqu’elles sont antérieures à 19 ciência, sem, em nenhum momento, buscar os seus fundamentos últimos9. Assim, nesta época, está ausente da reflexão de Descartes qualquer interesse filosófico pelas razões justificadoras da natureza de Deus e da Imortalidade da Alma. Reflexões desse tipo só aparecerão bem mais tarde, mais especificamente, no Discours de la méthode (1637), de forma ainda restrita, e nas Meditationes de Prima Philosophia (1640), de forma madura e plena. É para o período anterior, que pode ser identificado como “Descartes sem metafísica”, que estará voltada a reflexão deste primeiro capítulo. Período em que Descartes constrói sua cosmologia, buscando estabelecer uma origem racional para o universo, sem recorrer à idéia de um Deus para estabelecer as bases de sustentação da ciência. Nesse enfrentamento entre a pura ordem da razão natural e as leis que regem o universo, sem nenhum embasamento metafísico, encontram-se os fundamentos da ciência. Se a ciência cartesiana busca, mais tarde, encontrar na metafísica, melhor em Deus, uma base segura e certa para sua sustentação, isto não interessa neste momento; esse é um assunto que será tratado no segundo capítulo deste trabalho. Por hora, interessa unicamente entender os caminhos percorridos por Descartes para fundar a ciência na qual a idéia de um Deus justificador da ordem da razão e do mundo não se faz necessária10. 1627, c’est-à-dire à l’époque ou il chercha dans la métaphysique un appui à sa physique”. BRÉHIER, É. Histoire de la Philosophie, II, p. 87. 9 “Descartes constrói a ciência sem se interessar sobre os seus fundamentos e declara, aliás, que não se atrevia a afirmar ‘que os princípios que utiliza sejam os princípios verdadeiros da natureza’; mas, acrescenta, ‘eles satisfazem-me quando os tomo por princípios das minhas investigações’”. ALQUIÉ, F. A Filosofia de Descartes, p. 36. 10 “No início da sua indagação, Descartes não parece ter se preocupado muito em encontrar fundamentos filosóficos para o seu método e a sua ciência. (...) Por outras palavras, Descartes principiou por abraçar o mecanicismo como puro cientista e sem se interrogar acerca da sua relação com a metafísica”. ALQUIÉ, F. Galileu, Descartes e o mecanicismo, p. 31. “Si l’on voulait exposer la physique de Descartes, au point de vue de se contribution effective à l’histoire de cette science, il conviendrait d’isoler se la métaphysique, dans laquelle il a voulu les impliquer, un certain nombre de découvertes, qui, par leur origine, en sont tout à fait indépendantes, puisqu’elles sont antérieures à 1627, c’est-à-dire à l’époque ou il chercha dans la métaphysique un appui à sa physique”. BRÉHIER, É. Histoire de la philosophie, II, p. 86-87. 20 Não é tarefa fácil enfrentar o pensamento de Descartes. Parece que, antecipadamente, esta-se condenado ao fracasso. Remetendo-se a Descartes, no mordaz comentário que faz sobre a maioria dos intérpretes de Aristóteles, pode- se também dizer que se voltasse a esse mundo, com certeza não se reconheceria e não validaria muitas das interpretações de sua filosofia ao longo desses três séculos de história do cartesianismo11. Será mesmo culpa só dos seus intérpretes ou também Descartes tem uma parcela de culpa nos deslizes de interpretação cometidos por aqueles que se debruçam sobre sua obra, tentam interpretar sua filosofia e decifrar seus enigmas? Mas Descartes é, como afirma Koyré, “um homem prudente e dissimulado que pensa no que diz, mas não diz 11 Escreve Descartes: “A maioria daqueles que nesses últimos séculos quiseram ser filósofos seguiram cegamente Aristóteles, de forma que frequentemente corromperam o sentido de seus escritos, atribuindo-lhe diversas opiniões que ele não reconheceria como suas se retornasse a este mundo”. DESCARTES, R. Carta prefácio dos princípios da filosofia, p. 12. A crítica de Descartes tem endereço certo: ele dirige-se aos escolásticos, que a partir do século XII tomaram Aristóteles como referência, denominando – O Filósofo. “O próprio Aristóteles – assim sentencia Leonardo Bruni, tradutor da Política e da Ética a Nicômaco – não reconheceria seus livros depois da transformação que sofreram por obra da Escolástica, do mesmo modo que Acteão não foi reconhecido por seus próprios cachorros, depois de ter sido transformado em cervo”. Apud, CASSIRER, E. Indivíduo e cosmos na filosofia do renascimento, p. 4. Acrescenta-se que Leonardo Bruni fez duras críticas a Guilherme de Moerbeke, que no século XIII tinha traduzido a Política e revisto a tradução de Roberto Grosseteste da Ética a Nicômaco. Cf. NASCIMENTO, C. A. R. do. “O Comentário de Tomás de Aquino à “Política” de Aristóteles e os inícios do uso do termo Estado para designar a forma do poder político”, Veritas, v. 38, p. 248. Descartes, ao se dirigir aos seus futuros leitores e intérpretes solicita que eles não cometam com ele o mesmo erro que alguns seguidores e intérpretes cometeram com Aristóteles e sua obra. Eis o que diz Descartes: “O que é tão verdadeiro, nesta matéria, que, embora tenha muitas vezes expli- cado algumas de minhas opiniões a pessoas de ótimo espírito, e, enquanto eu lhes falava, pareciam entendê-las mui distintamente, todavia, quando as repetiam, notei que quase sempre as mudavam de tal sorte que não mais podia confessá-las como minhas. A esse propósito, muito estimo pedir aqui, aos nossos vindouros, que jamais creiam nas coisas que lhes forem apresentadas como vindas de mim, se eu próprio não as tiver divulgado. E não me espantam de modo algum as extravagâncias que se atribuem a todos esses antigos filósofos, cujos escritos não possuímos, nem julgo, por isso, que os seus pensamentos tenham sido muito desarrazoados, visto serem os melhores espíritos de seu tempo, mas apenas julgo que nos foram mal relatados. Porque se vê também que quase nunca aconteceu que algum de seus sectários os haja superado: e estou seguro de que os mais apaixonados dos que seguem agora Aristóteles, crer-se-iam felizes, se tivessem tanto conhecimento da natureza quanto ele o teve, embora sob a condição de nunca o terem maior. São como a hera, que não tende a subir mais alto que as árvores que a sustentam, e que muitas vezes mesmo torna a descer, depois de ter chegado ao seu topo; pois me parece que também voltam a descer, isto é, se tornam de certa forma menos sapientes do que se se abstivessem de estudar, aqueles que, não contentes em saber tudo o que é inteligivelmente explicado no seu autor, querem, além disso, encontrar nele a solução de muitas dificuldades, a cujo respeito nada disse e nas quais nuncatalvez pensou. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 97-98. 21 o que pensa”12. Não bastasse isso, Descartes seria também um pensador cujo campo de reflexão abarca como que a totalidade do conhecimento humano disponível em sua época: física, matemática, fisiologia, anatomia, moral, metafísica, teologia13. O que Descartes pretende é uma tarefa quase sobre- humana. Ele próprio, em carta a Beeckman, de 26 de março de 1619, reconhece que seu projeto intelectual não pode ser alcançado por uma só pessoa: “l’oeuvre, il est vrai, est infinie, et ne peut être accomplie par un seul”14. Torna- se quase impossível que alguém, como intérprete do pensamento cartesiano, possa acompanhar em plenitude todos os passos dados por Descartes nessa caminhada em busca de uma ordem universal do saber. Como conseqüência, seus intérpretes, grande número de vezes, acabam por fragmentá-lo, esquartejá- lo, priorizando parte ou aspectos de seu pensamento em detrimento do todo. Com isso, perde-se a visão de conjunto de sua obra e, a partir desse pequeno território demarcado, tenta-se compreender e dar conta deste grande campo aberto que é sua filosofia. Cada um de seu canto, de sua base restrita, acaba por afirmar seu pensamento, sua interpretação como a mais adequada, como aquela que deve servir como referência paradigmática para todo aquele que busca entender o percurso da filosofia cartesiana15. Assim, ao fim e ao cabo, termina- se por ter um Descartes para cada herdeiro ou intérprete, cada um construindo seu próprio Descartes16: o Descartes de Baillet, o Descartes de Leibniz, de 12 KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 16. 13 “De uma forma que há muito tempo deixou de ser possível em nossa era moderna especializada, [Descartes] tentou resolver os grandes problemas estruturais da metafísica e da epistemologia, criou uma teoria geral sobre a natureza e as origens do mundo físico, elaborou um trabalho detalhado em matemática pura e aplicada, escreveu tratados em mecânica e em fisiologia, investigou a natureza do homem e as relações entre a mente e o corpo e publicou reflexões abrangentes em psicologia e em ética”. COTTINGHAM, J. Dicionário - Descartes, p.11. 14 DESCARTES, R. Correspondência; Alq., I, p. 39; AT., X, p. 157. 15 “Com efeito, os escritores costumam ter um espírito tal que, todas as vezes que se deixam arrastar por uma credulidade irrefletida a tomar uma posição crítica numa controvérsia, sempre se esforçam em nos atrair a ela com os seus mais sutis argumentos”. DESCARTES, R. Regras para a orientação do espírito, reg. III, p. 11. 16 [...] Et elle a donné naissance à toutes sortes de courants divers, voire opposés: du cartésianisme est issu Spinoza, mais aussi Malebranche, mais aussi Leibniz; et, pour une bonne part, Arnauld, sans compter Régis; 22 Espinosa, de Kant, de Hegel, dos fenomenólogos, dos existencialistas, etc. Deixando os herdeiros e voltando-se para alguns de seus intérpretes, tem-se: o Descartes de Gueroult, o Descartes de Alquié, o de Leroy, de Gilson, de Turró, de Koyré, Laporte, Hamelin, só para ficar em alguns que se tornaram referência obrigatória. Há, portanto, uma pluralidade de Descartes, ao ser este contemplado a partir da margem da qual cada um desses intérpretes lança seu olhar em direção à obra filosófica deste17. Qual Descartes deve-se tomar como referência, como guia de orientação para a reflexão? De que porto é preciso partir para, com segurança, se navegar em busca de uma correta interpretação da filosofia de Descartes? Ao se escolher uma linha de interpretação, não se está correndo o risco de tomar um porto de partida inadequado? Como já se disse, as escolhas definem o ser. Aqui, a escolha define o tipo de interpretação que será proposta ao longo do trabalho. Não seria talvez sábio não escolher, não priorizar nenhum dos intérpretes e tomar o próprio Descartes como guia primeiro de reflexão? Já que não é possível não escolher, escolha-se ou opte-se, o quanto possível, por Descartes. Não que se tenha a pretensão de poder abandonar ou não levar a sério tudo que foi pensado e dito sobre Descartes. Seria abandonar mais de trezentos anos de investigação do pensamento pour une bonne part également, Locke, puis Berkeley, puis Hume; et Condillac, et La Mettrie; et encore Kant et Hegel; et Maine de Biran; et Auguste Comte; et Husserl. Tous ces gens-là se reclament de Descartes; tous sont, à quelque égard, ses disciples. Descartes les comprend et les dépasse tous”. LAPORT, J. Le rationalisme de Descartes, p. VII. 17 “Voilà Descartes embrigadé par les adversaires de la religion (les morts ont bon dos) comme il l'avait été, vers le milieu de sa vie, par ses défenseurs. Les membres de la Constituante et de la Convention décréteront qu'il fut un de leurs précur-seurs. La foi qu'il proclame? Les pages qu'il écrit pour démontrer l'existence de Dieu? «Ruse de style». Les saint-simoniens, les positivistes, les marxistes se réclament de ses disciplines. Cependant Víctor Cousin affirme qu'il est le fondateur du spiritualisme moderne, et Charles Adam que le dernier mot de sa physique est l'idealisme. Alain et Liard voyaient en lui un rationaliste libéral; Jean Laporte nous dépeint un empiriste, Gilson un théologien medieval. On nous a présenté un Descartes champion de l'Église apostolique et romaine, un Descartes huguenot, un Descartes masqué et dissimulateur conscient, un Descartes mystique et Rose-Croix, un Descartes des sociétés secrètes, un Descartes révolutionnaire, un Descartes avocat de l'ordre bourgeois. Pour les uns c'est la plus géniale expression de l'intelligence occidentale; pour les autres, une sorte de pedant qui sait tout mais rien de plus, le gardien du «Bon Marché de la Sagesse », le plus imbécile des rationalistes, le fossoyeur de tout art et de toute poésie, le principal responsable de la dissolution de notre culture. Autant de Descartes-Protée que der commentateurs. Après en avoir lu dix ou vingt, nous ne savons plus du tout qui il était”. FRÉDÉRIX, P. Monsieur René Descartes en son temps, p. 9-10. 23 cartesiano. Não seria apenas descuido, mas uma arrogância desnecessária. Não se pode ter e não se tem a pretensão de ser o Adão da filosofia cartesiana, isto é, o próprio Descartes. Apesar das profundas e constantes divergências de interpretação de seu pensamento, não se pode negar que cada um dos intérpretes, segundo sua perspectiva, está a dialogar com a razão instaurada por Descartes no século XVII; está a buscar saídas para as lacunas e os silêncios deixados na ordem da razão cartesiana, que buscava, através da filosofia, entender racionalmente a ordem do universo. Assim, esses intérpretes do pensamento de Descartes se farão presentes neste trabalho à medida em que, na dinâmica da elaboração do próprio texto, a interpretação de um ou de outro se fizer necessária para que seja possível ter melhor compreensão na exegese do pensamento cartesiano. O que equivale a dizer que, mesmo quando se recorrer a seus intérpretes, ter-se-á sempre como solo de sustentação os próprios textos de Descartes, buscando compreender, passo a passo, a lógica de sua filosofia; como cada peça foi colocada; como cada traço foi riscado na arquitetura de seu projeto filosófico. Seguindo suas veredas, seus grandes caminhos, deixando-se guiar por ele, sem interferir ou forçar arbitrariamente asserções que atenderiam muito mais a interesses que eventualmente direcionam a pesquisa do que à ordem de seu pensamento e à intenção do autor. Agindo assim, espera-se atender a uma exigência do próprio Descartesa todos aqueles que pretendem lê-lo ou interpretá-lo18. Compreender um autor é compreender o tempo 18 Depois de ter desabonado a interpretação que Régio fez de sua obra, Descartes faz a seguinte solicitação aos seus futuros leitores e intérpretes: “que nunca me atribuam alguma opinião se não a encontrarem expressamente em meus escritos; e que não aceitem nenhuma como verdadeira nem em meus escritos nem em outros se não a virem clarissimamente ser deduzidas dos verdadeiros princípios”. DESCARTES, R. Carta-Prefácio dos princípios da filosofia, p. 29. “Múltiplas vezes, Descartes adverte seu leitor – nas Respostas às Objeções e nas Cartas: retirar, ou modificar, ou deslocar uma peça do sistema é correr o risco de pô-lo abaixo. É preciso, pois, em primeiro lugar, ler Descartes, levando a sério o encadeamento de suas razões, acompanhando seus passos, como ele quis que se fizesse”. GRANGER, G.-G.; Introdução, In: Descartes - Obra escolhida, p. 10. 24 histórico no qual este se encontra inserido19. Se isso vale como regra geral para qualquer pensador, vale mais ainda para um pensador como Descartes que, acima de tudo, foi um filósofo encarnado no seu tempo, filho de seu tempo; um autor que tomou para si o papel e a responsabilidade de responder e superar as grandes questões filosóficas, epistemológicas e morais, que emergiram da crise cultural do entardecer do mundo antigo e medieval e do amanhecer do Renascimento20 e do mundo moderno. Em toda sua obra, bem como em sua correspondência, o que se vê é Descartes assumindo o papel de protagonista, de timoneiro no cenário histórico do século XVII21. Segundo Hegel, “nunca será exagero ressaltar a ação desse homem (Descartes) sobre seu século e sobre os tempos novos”22. Quais são então, a largos traços, as principais características desse tempo, em que Descartes nasceu, viveu e, acima de tudo, assumiu a responsabilidade de findar e lançar as bases do tempo vindouro, de um novo mundo; de ser o agente através do qual nasce o mundo moderno? O século XVII é marcado por profundas transformações, período de crises em todos os 19 “Os historiadores da filosofia, que estudam doutrinas mais do que os homens, idéias mais do que pensamentos, dedicam em geral pouca importância ao intinerário pelo qual alguém se torna filósofo. [...] Os filósofos não nascem filósofos. A história em que começam por entrar não é a da filosofia, mas a da sua nação, da sua família, e também das crenças e da ciência do seu tempo, e é precisamente rompendo com essa história que descobrem a filosofia.[...] A ruptura de Descartes com os seus professores, com a sua família, com o seu país, e a sua solidão na Holanda, não serão, com efeito, os sinais da solidão do seu pensamento e daquela ruptura essencial pela qual escolheu ser filósofo?”. ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 59. 20 É interessante a interpretação que Châtelet faz sobre o Renascimento. “(...) Critico o termo ‘renascimento’... Na verdade, o que se chama ‘renascimento’ não passa da brutal radicalização de uma série de progressos feitos nos séculos precedentes. De uma só vez, todos esses progressos – que, por motivos e causas múltiplas, se acumularam de maneira um tanto secreta, sem entrar em contato uns com os outros – interagem subitamente entre si. Isto cria o evento maior que se chama habitualmente ‘Renascimento’. Talvez fosse mais justo chamá- lo ‘aparecimento’ ou ‘afloramento’ da modernidade”. CHÂTELET, F. Uma história da razão, p. 52. 21 “Afirma-se muitas vezes que o espírito de Descartes foi o próprio espírito do seu século, há quem se compraza em descobrir analogias entre os temas cartesianos e aqueles que os escritores clássicos desenvolveram, considera-se que Descartes exerceu uma influência decisiva, não apenas sobre a ciência e a filosofia do seu tempo, mas ainda sobre a sua literatura: não se supõe esta, depois de 1660, como finalidade suprema, a procura e a expressão da verdade? Não tem ela o culto da razão? De fato, apesar da hostilidade da escola, de numerosos sábios (como Fermat e Reberval), da maioria dos jesuítas, do próprio Parlamento de Paris, as idéias de Descartes difundiram-se largamente, não se pode traçar a história do pensamento francês e até europeu, a partir de 1650, sem lhe atribuir um importantíssimo lugar”. ALQUIÉ, F. A Filosofia de Descartes, p. 141. 22 HEGEL, citado por HUISMAN, D. Dicionário dos filósofos, p. 269. 25 campos da cultura: na política, na teologia, na filosofia, nas ciências e nas artes. Crise de ruptura, de mutação, entre o pensamento antigo, que ainda não se fora completamente, e o pensamento novo, que ainda não se afirmara inteiramente. Contudo, é um dos momentos mais ricos na história do pensamento ocidental. O mundo está “de cabeça para baixo”, nada mais se encontra no seu “devido lugar”, o homem se encontra, como que perdido, sem referência, sem verdade, sem norte; parece o fim dos tempos, como bem afirma o Pe. Mersenne: “não vos parece – escreve ele a Ruarus – o anúncio do fim do mundo?”23. Pascal, por sua vez, se apavora com “o silêncio dos espaços infinitos”24. O poeta John Donne, em 1611, sintetiza, de forma exemplar, o estado de crise em que vive o homem desse período: “A nova filosofia põe tudo em dúvida, O elemento do fogo está completamente extinto, O sol está perdido, e também a terra, E nenhum espírito humano tem com o que se orientar para A procurar. E os homens confessam livremente que este mundo está em Ruínas, quando entre os planetas e o firmamento eles Procuram tantos mundos novos; Eles vêem então que tudo está de novo pulverizado em Átomos, Tudo está em pedaços, toda a coerência perdida (...)25. Neste cenário de incertezas, de dúvidas, de um quase pavor diante da completa desordem referencial do mundo, renasce uma filosofia típica dos períodos de crise; o ceticismo, em que as certezas e as verdades perdem o domínio sobre a 23 Apud, LENOBLE, R. História da idéia de natureza, p. 263. 24 “O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora”. PASCAL, B. Pensamentos, frag. 206, Col. Os pensadores, p. 91. 25 DONNE, J. An anatomy of the world. Apud, DOMINGUES, I. O grau zero do conhecimento, p. 34. 26 representação do mundo material e espiritual; em que a verdade, ordenadora do real, com a qual se constrói uma determinada imagem do mundo, perde sua força de representação, tornando-se vulnerável às críticas e às incertezas: “tudo é possível, nada é verdadeiro. E se nada é seguro, só o erro é certo”26. O ceticismo, que renasce no final da Idade Média, tem como seus mais ilustres representantes: Agrippa (1485-1535), Sanchez (1523-1601), Charron (1541- 1603) e Montaigne (1533-1592). Mantendo suas diferenças, têm uma orientação comum: negar não só as verdades das filosofias dogmáticas, como também negar a própria possibilidade de se conhecer a verdade sobre qualquer coisa. A Europa está em crise. A síntese feita por G. Granger retrata as crises políticas e religiosas, que tornaram o século em que viveu Descartes, um século conturbado. “Poderia talvez haver a tendência de confundir o meio século em que viveu Descartes com o período faustoso do ‘Grande Século’. Entre 1598, ano da separação dos Países-Baixos da Coroa da Espanha, e 1650, data da nomeação de João Witt como grande Pensionário da Holanda, são cinqüenta anos, não de equilíbrio e de Classicismo, mas de perturbações, de conflitos e de expressão barroca: é a época, não de Luíz XIV, mas da Mãe Coragem. Em 1619, estoura a guerra nascida de uma revolta protestante dos tchecos contra o Imperador, e que devia durar trintaanos, devastando as Alemanhas. As alianças se entrecruzam entre países católicos e protestantes, potências marítimas e potências terrestres. A política interior dos Estados não é menos conturbada: contestação do poder real em França pela nobreza e pela burguesia togada: é a 26 KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 19. 27 Fronda; luta nas Províncias Unidas entre os clientes da Família de Orange e os grandes burgueses holandeses; revoluções na Inglaterra e ditadura de Cromwell. E, por cima, os conflitos religiosos que opõem reformistas e católicos e, muitas vezes mesmo, em cada confissão, duas tendências violentamente antagônicas: uma liberal, a outra rigorista. É o caso do calvinismo holandês entre os partidários liberais de Arminius e os de Gomar, ferozmente ortodoxo. É também um pouco o caso do catolicismo francês, em que o Cardeal de Bérulle se apresenta como um reformador. Sem dúvida é sob esta forma religiosa que se manifestam então na consciência dos contemporâneos os antagonismos mais profundos”27. J. Moutaux acrescenta por sua vez: “o feudalismo desagrega-se e o cristianismo, já tendo enfrentado muitos cismas, começa a se cindir mais uma vez; a autoridade da Igreja Católica romana é contestada no seu próprio seio; a cristandade, união do cristianismo e do feudalismo, se desloca”28. A ciência de Aristóteles, que tão bem serviu à escolástica, começa a perder sua força de representação verdadeira sobre o mundo; os navegantes retornam de longas viagens e anunciam a descoberta de novos mundos29; a imprensa propaga, por todos os cantos, essas novas conquistas e, assim, tanto estas como as concepções que as acompanham se espalham por todos os cantos. O conhecimento e o saber se libertam das clausuras clericais. Agora, tudo pode ser conhecido, discutido, contestado, não só por uma elite intelectual, mas também pelo homem comum que não tinha acesso à língua culta. A imprensa, de certa forma, traduzindo e 27 GRANGER, G.-G. Introdução, In: DESCARTES, R. Obra escolhida, p. 28-29. 28 MOUTAUX, J. Introdução, In: A Utopia – um convite à filosofia, p. 15. 29 Referindo-se às grandes conquistas marítimas dos portugueses, escreve Eduardo Bueno: “Para muitos historiadores, é justamente a ‘abertura’ do mundo desencadeada pelos navegadores de Portugal que estabelece, mais que o advento da imprensa ou a queda de Constantinopla, o legítimo início da Era Moderna. Ao se aventurarem ‘por mares nunca dantes navegados’, os portugueses derrubaram os mitos da geografia arcaica e provaram, com adorável arrogância, que o ciclo do saber não estava fechado a sete selos. Sua aventura marítima foi o primeiro processo humano de dimensões planetárias”. Brasil: uma História; p. 28-29. 28 divulgando as novas idéias, democratiza a razão: todos os homens são capazes de ler, entender e interpretar a ordem do mundo – o bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada30. A democratização da razão retira da Igreja o papel que exerceu com “divina autoridade”, de, sozinha, traduzir e revelar ao homem a verdade sobre o mundo. Sem exagero, pode-se dizer que a perda do domínio da verdade corresponde à perda do domínio do mundo. Entre os séculos XV e XVII, período em que, sem muita precisão, inicia-se o nascimento do mundo moderno e o fim do mundo que o precede, processa-se uma verdadeira revolução na história da humanidade. Muitos são os movimentos transgressores ocorridos nesse período31. Talvez não seja de todo despropositado afirmar que perpassa por eles um espírito de reforma: querem emendar, melhorar, aliviar, mas retomando os fundamentos, voltando aos princípios, querem re-formar, re-fazer, re-fundar32. Há conquistas que iniciadas no século XIV se estendem até o século XVII. Idéias e atitudes que já anunciam o declínio da Idade Média, que alimentam o espírito humanista e que contribuem para o surgimento de um novo tempo: Dante (1265-1321), Petrarca (1304-1374) e Boccaccio (1313-1375), por exemplo, tornam o uso do “vulgar” tão respeitado quanto o latim e, assim, alargam o alcance de seus escritos. Textos gregos são retraduzidos ou 30 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 41. 31 “(...) pelo menos no que toca à filosofia da natureza, o historiador é levado a sentir que, na parte final do século dezesseis, um consenso essencialmente aristotélico se dissolveu para ser substituído, não por uma, mas por uma multiplicidade de escolas: atomistas, cartesianos, hermetistas e paracélsicos, helmontianos, matemáticos platônicos e pitagóricos, ecléticos e individualistas de muitos tipos”. HALL, A. R. A Revolução na Ciência 1500 -1750, p. 247. 32 Cf. MOUTAUX, J. Introdução, In: A Utopia – um convite à filosofia, p. 15. 29 traduzidos pela primeira vez (a totalidade dos Diálogos de Platão, por exemplo); a Reforma luterana marca a divisão do cristianismo ocidental; Copérnico (1473-1543), Galileu (1564-1642) e Kepler (1571-1630) renovam a astronomia. Acrescenta-se a matematização da natureza. Pode se dizer que tendencialmente dá-se uma dessacralização do mundo e instaura-se o homem como senhor e possuidor da natureza e da história. O teocentrismo começa a declinar e anuncia-se o antropocentrismo como referência a partir da qual o homem e o mundo adquirem sentido. Sobre essa denominada revolução científica do século XVII, escreve Koyré: “Uma tal mutação – uma das mais importantes, senão a mais importante depois da invenção do cosmos pelo pensamento grego – foi, decerto, a revolução científica do século XVII”33. É neste burburinho cultural que se encontra Descartes, trabalhando silenciosamente34, a ruminar o seu tempo, a buscar saídas para a reconstrução, melhor, a construção de um novo edifício do saber, que possa superar e, ao mesmo tempo, suportar as grandes questões emergidas da grande crise deste período. Caberá a Descartes, de certo modo, o papel de fechar as portas do passado e abrir as do futuro; caberá a ele a tarefa de traçar a nova cartografia da razão, a cartografia que indicará os caminhos a serem percorridos pela 33 KOYRÉ, A. Estudos galilaicos, p. 14. 34 Até 1637, ano da publicação do Discurso do Método, nada da filosofia de Descartes tinha vindo a público; encontrava-se trabalhando em silêncio, comunicando os resultados das suas pesquisas unicamente a uns poucos amigos com os quais se correspondia. 30 humanidade no final do século XVII35. Reconhecendo essa caracterísitica originária da filosofia de Descartes, escreve Hegel: “Con Cartesio entramos, en rigor, desde la escuela neoplatónica y lo que guarda relación con ella, en una filosofía propia e independiente, que sabe que procede sustantivamente de la razón y que la conciencia de sí es un momento esencial de la verdad. Esta filosofía erigida sobre bases proprias y peculiares abandona totalmente el terreno de la teología filosofante, por lo menos en cuanto al principio, para situarse del otro lado. Aquí, ya podemos sentirnos en nuestra casa y gritar, al fin, como el navegante después de una larga y azarosa travesía por turbulentos mares: terra!”36. No entanto, é preciso não se deixar levar pura e simplesmente pelas declarações explicitas de Descartes. De fato, este parece fazer tabula rasa de todo saber filosófico que o antecedeu, não reconhecendo, neste, nenhum valor a partir do qual se possa fundamentar o conhecimento certo e verdadeiro sobre qualquer coisa. É preciso começar do zero como se ninguém antes tivesse filosofado. Por outro lado,parece reconhecer que não pretende reformar nada além dos seus próprios pensamentos: “nunca o meu intento foi além de procurar reformar meus próprios pensamentos, e construir um terreno que é todo meu”37. Koyré comenta: “Descartes por mais que queira – muito sinceramente, sem dúvida – 35 “De fato, apesar de toda a vigorosa influência contrária de Newton, a luz lançada por Descartes iria estender- se até ao clarão mais vasto do Iluminismo setecentista e à Encyclopédie Diderort-Dalembet que constitui o seu principal monumento. Além disso, Descartes foi um matemático puro de gênio que também produziu trabalhos de imortal valor na física matemática – se não tivesse sido filósofo continuaria a ter grande dignidade na história da ciência. Em todos os aspectos menos num, a investigação experimental sistemática, Descartes destacava-se por altura da sua morte, e posteriormente aos olhos de todos os que nessa época eram capazes de compreender os seus livros, como o grande luminar, o homem que abriria um vasto caminho à posteridade”. HALL, A. R. Op. Cit., p. 248. 36 HEGEL, G.W.F. Lecciones sobre la historia de la filosofía, p. 352. 37 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 51. 31 restringir-lhe [da sua filosofia] o alcance, por mais que nos assegure que nunca quis fazer outra coisa senão reformar as suas próprias idéias, com as quais, no fim de contas, é livre de fazer o que lhe apetecer, não pode deixar de se dar conta que acaba de aperfeiçoar a mais formidável máquina de guerra – guerra contra a autoridade e a tradição – que o homem alguma vez possuiu”38. Quanto à sua postura de filosofar, como se antes sequer tivesse existido filosofia, projeto que o leva a negar toda a filosofia que o antecedeu, não se reconhecendo como herdeiro de nenhuma delas, é preciso ter em conta pelo menos os conhecidos trabalhos de Étienne Gilson, como por exemplo, os Études sur le rôle de la pensée médiévale dans la formation du système cartésien39. Na Carta-Prefácio dos Princípios da Filosofia, Descartes faz uma avaliação crítica de todas as filosofias, bem como dos filósofos que o antecederam. O resultado dessa avaliação é terrível e até cruel. Todos sucumbem à sua apreciação crítica: “Ora, desde sempre houve grandes homens que buscaram encontrar [...] as primeiras causas e os verdadeiros Princípios de que se pudessem deduzir as razões de tudo o que somos capazes de saber; e são particularmente aqueles que trabalharam nisso que foram chamados de Filósofos. Todavia, que eu saiba ninguém até o presente teve sucesso nesse intento”40. Considerando o pensamento grego e, neste, seus dois maiores representantes, Platão e Aristóteles, Descartes os destitui de qualquer relevância filosófica que possa ser, verdadeiramente, levada a sério, creditando- lhes incertezas e até mesmo uma certa falta de sinceridade no ato de filosofar: 38 KOYRÉ, A. Considerações sobre Descartes, p. 16-17. 39 Descartes se excedeu, exagerou, ao negar ser herdeiro de qualquer contribuição filosófica do passado, particularmente do mundo medieval. O próprio Gilson escreve, logo no início deste livro: “Les recherches recentes poursuivies autour de Descartes ne permettent guère de mettre en doute l’influence que certains mouvements théologiques ont exercé sur sa pensée. La conception cartésienne de la liberté divine, la doctrine du mal, de l’erreur et du jugement, la conception de la liberté humaine enfin, ne s’expliquent pas complètement si l’on néglige la considération de ce que l’enseignement de la Flèche, la lecture de S. Thomas et la fréquentation des néo-platoniciens de l’Oratoire peuvent y avoir introduit”. p. 9. 40 DESCARTES, R. Carta-prefácio..., p. 9, (grifo nosso). 32 “Os primeiros e principais de que temos os escritos são Platão e Aristóteles, entre os quais não houve outra diferença senão que o primeiro, seguindo as pegadas de seu mestre Sócrates, ingenuamente confessou que nada procurava encontrar de certo, e contentou-se em escrever coisas que lhe pareceram ser verossimilhantes, imaginando para tal feito alguns Princípios com os quais buscava explicar as outras coisas; ao passo que Aristóteles teve menos franqueza e, se bem que tivesse sido por vinte anos discípulo daquele e não tivesse outros princípios senão os dele, mudou inteiramente a forma de enunciá-los e os propôs como verdadeiros e seguros, embora não haja nenhum sinal de que os tenha alguma vez estimado como tais”41. Não menos crítico é Descartes ao se referir à escolástica medieval42: “... a maioria daqueles que nestes últimos séculos quiseram ser filósofos seguiram cegamente Aristóteles, de forma que freqüentemente corromperam o sentido de seus escritos, atribuindo-lhe diversas opiniões que ele não reconheceria como suas se retornasse a este mundo (...)”43. Mesmo aqueles que, segundo Descartes, não seguiram a filosofia de Aristóteles, “dentre os quais estiveram vários dos melhores espíritos”, não obtiveram qualquer êxito no filosofar, pois não puderam se livrar da influência de Aristóteles, “já que [as opiniões deste] são as únicas ensinadas nas escolas”44. Portanto, de forma direta ou indireta, todos estão condenados à influência da filosofia de Aristóteles e, como conseqüência, não foram capazes de chegar “ao conhecimento dos verdadeiros princípios 41 Idem, p. 9-10. 42 “Às portas do século XIII, um fato novo se produz na história das escolas: a emergência de uma instituição – a Universidade – na qual mestres eclesiásticos especialistas da cultura se associam para formar um corpo profissional segundo o modelo das corporações de ofício. Consagrado pelo papa, esse corpo é englobado pela Igreja a título de instituição autônoma que, subtraída à jurisdição dos bispos e dos senhores, está submetida unicamente ao poder pontifício e a seu controle doutrinário. Essa nova instituição desenvolve-se de início em Paris e em Oxford (o studium de Bolonha é um caso à parte) e não é separável da emergência da cultura – fortemente organizada e privilegiada de maneira exclusiva – que chamamos ‘escolástica’”. GOFF, J. le.; SCHMITTA, J.-C. Dicionário – temático e técnico – Medieval. v. I, verbete: escolástica, p. 367. 43 DESCARTES, R. Carta-Prefácio..., p. 12. 44 Idem, ibidem. 33 (...)”45. Depois de ter reconhecido como estéril todo o terreno filosófico que o antecedeu, Descartes anuncia que aquele que nunca filosofou, que não recebeu nenhuma influência da tradição filosófica, é o que está melhor preparado para conhecer a verdadeira filosofia, ou seja, a nova filosofia que ele pretende anunciar ao mundo. “Donde é necessário concluir que aqueles que menos aprenderam de tudo quanto foi até aqui nomeado Filosofia são os mais capazes de aprender a verdadeira”46. Logo em seguida, Descartes apresenta onde se encontra a verdadeira filosofia, os verdadeiros princípios, através dos quais é possível um conhecimento verdadeiro e certo sobre todas as coisa. “Depois de fazer entender bem essas coisas, gostaria de acrescentar aqui as razões que servem para provar que os verdadeiros Princípios pelos quais se pode chegar ao mais alto grau de sabedoria, no qual consiste o soberano bem da vida humana, são os que pus neste livro”, isto é, Os Princípios da Filosofia47. Feita a apreciação crítica de toda a filosofia que o antecedeu, Descartes volta-se para si mesmo, buscando avaliar criticamente o próprio processo de formação intelectual. O resultado da apreciação, tal qual foi o resultado da apreciação da tradição filosófica, não será muito positivo. Descartes, também aqui, não encontra quase nada que possa ter valorrepresentativo. Depois de reconhecer que foi “nutrido nas letras desde a infância”48, que teve os melhores mestres de seu tempo49, que estudou “numa das mais célebres escolas da Europa”50, 45 Idem, ibidem. 46 Idem, p. 14. 47 Idem, ibidem, (grifo nosso). 48 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 43. 49 “El nombre del profesor de filosofía de Descartes fué encontrado por el P. Rochemonteix con ayuda de la fecha para los estudios de Filosofía de Descartes (1609 – 1612), proporcionada por Baillet, y una lista de todos os profesores de La Flèche, que se conserva en los archivos de Gesù en Roma. Este profesor era el P. Francisco Véron. Antes sólo se conocía, por una carta de Descartes, el nombre de su pasante, el P. Nöel”. HAMELIN, O. El Sistema de Descartes, p. 24. 34 Descartes parece encontrar-se de posse, não de sólidos conhecimentos, mas, ao contrário, cheio de dúvidas e incertezas: “me achava enleado em tantas dúvidas e erros, que me parecia não haver obtido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância”51. Todo o conhecimento adquirido era disperso, peças soltas que não possibilitavam uma unidade sistemática52. Tendo avaliado os conhecimentos oferecidos pela teologia53, pela filosofia54, pelas diversas ciências, pelos conhecimentos originários ou derivados da astrologia, da alquimia e mesmo da 50 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 43. Descartes tinha uma profunda admiração, não só pelo colégio de la Flèche, bem como por seus antigos mestres. Em uma carta, de 12 de setembro de 1638, respondendo à consulta de um amigo sobre a escolha de um bom colégio para os estudos filosóficos de seu filho, diz Descartes: “Or encore que mon opinion ne soit pas que toutes les chose qu’on enseigne en philosophie soient aussi vraies que l’Évangile, toutefois, à cause qu’elle est la clef des autres sciences, je crois qu’il est très utile d’en avoir étudié le cours entier, en la façon qu’il s’enseigne dans les écoles des Jésuites, avant qu’on entreprenne d’élever son esprit au-dessus de la pédanterie, pour se faire savant de la bonne sorte. Et je dois rendre cet honneur à mes maitres, que de dire qu’il n’y a lieu au monde, où je juge qu’elle s’enseigne mieux qu’à la Flèche”. DESCARTES, R. Correspondência, Alq., II, p. 89-90; AT., II, p. 377-378. “De 1604 à 1612, il est élève au collège de la Flèche, fondé par Henri IV et dirigé par les Jésuites. Il y reçu, dans les trois dernières années, un enseignement de la philosophie, consistant en exposés, résumés ou commentaires des oeuvres d’Aristote: l’Organon dans la première année, les livres physiques dans la seconde, la Métaphysique et le De anima dans la troisième; enseignement qui, selon la tradition, était destiné à préparer à la théologie. Dans la seconde année, il étudie en outre les mathématiques et l’algèbre dans le traité récent du P. Clavius. En 1616, il passe à Poitiers ses examens juridiques”. BRÉHIER, E. Histoire de la philosophie, v. II, p. 46. Sobre a exatidão das datas que correspondem aos estudos de Descartes no colégio de La Flèche, existe discordância entre seus intérpretes. Parece bastante confiável a datação feita por Geneviève Rodis-Lewis: “René Descartes entrou para o colégio de la Flèche na Páscoa de 1607 e saiu dali em setembro de 1615. Às vezes ainda se discutem essas datas, embora tenham sido finalmente abandonadas as de Baillet, que para lá o enviara pouco depois do irmão mais velho, Pierre, já em 1604, ano da abertura do colégio, onde os dois teriam permanecido até 1612”. Descartes – uma biografia, p. 25. 51 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 43. 52 “O ensino recebido por Descartes foi um ensino sem unidade, porque a cultura do século XVII, que então começava, era uma cultura sem unidade”. ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes, p. 17. 53 “Eu reverenciava a nossa Teologia e pretendia, como qualquer outro, ganhar o céu; mas, tendo aprendido, como coisa muito segura, que o seu caminho não está menos aberto aos mais ignorantes do que aos mais doutos e que as verdades reveladas que para lá conduzem estão acima da nossa inteligência, não ousaria submetê-las à fraqueza de meu raciocínio, e pensava que, para empreender o seu exame e lograr êxito, era necessário ter alguma assistência do céu e ser mais do que homem”. DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 46, (grifo nosso). 54 “Da filosofia nada direi, senão que, vendo que foi cultivada pelos mais excelsos espíritos que viveram desde muitos séculos e que, no entanto, nela não se encontra ainda uma só coisa sobre a qual não se disputa, e por conseguinte que não seja duvidosa, eu não alimentava qualquer presunção de acertar melhor do que os outros; e que, considerando quantas opiniões diversas, sustentadas por homens doutos, pode haver sobre uma e mesma matéria sem que jamais possa existir mais de uma que seja verdadeira, reputava quase como falso tudo quanto era somente verossímil”. Idem, ibidem. 35 tradição55, Descartes reconhece que, à parte a matemática56, nenhum conhecimento adquirido em todo seu processo de formação constitui base segura e certa para fundar um conhecimento verdadeiro sobre qualquer coisa. Descartes toma então uma atitude drástica; resolve fechar o livro do passado, desconhecer todos os conhecimentos adquiridos e, contando apenas consigo mesmo, lançar-se em uma nova aventura de aprendizagem, na leitura do grande livro do mundo57, esperando encontrar neste um conhecimento mais sólido e verdadeiro do que todo aquele que lhe foi ensinado em seus quase dez anos no colégio la Flèche58: “Foi por isso que, mal a idade me permitiu sair da sujeição dos meus preceptores, deixei completamente o estudo das letras. E resolvendo-me a não procurar mais outra ciência senão a que pudesse descobrir em mim próprio, ou então no grande livro do mundo, empreguei o resto da minha juventude a viajar, a ver cortes e exércitos, a freqüentar pessoas de diversos humores e condições, a recolher diversas experiências, a experimentar-me a mim próprio nos encontros que a sorte me proporcionava e 55 “Depois, quanto às ciências, na medida em que tomam seus princípios da filosofia, julgava que nada de sólido se podia construir sobre fundamentos tão pouco firmes. E nem a honra, nem o ganho que elas prometem, eram suficientes para me incitar a aprendê-las; pois não me sentia, de modo algum, graças a Deus, numa condição que me obrigasse a converter a ciência num mister, para alívio de minha fortuna; e conquanto não fizesse profissão de desprezar a glória como um cínico, fazia, entretanto, muito pouca questão daquela que eu só podia esperar adquirir com falso título. E enfim, quanto às más doutrinas, pensava já conhecer bastante o que valiam, para não mais estar exposto a ser enganado, nem pelas promessas de um alquimista, nem pela predição de um astrólogo, nem pelas imposturas de um mágico, nem pelos artifícios ou jactâncias de qualquer dos que fazem profissão de saber mais do que sabem”. Idem, ibidem. 56 “Comprazia-me sobretudo com as Matemáticas, por causa da certeza e da evidência de suas razões; mas não notava ainda seu verdadeiro emprego, e, pensando que serviam apenas às artes mecânicas, espantava-me de que, sendo seus fundamentos tão firmes e tão sólidos, não se tivesse edificado sobre eles nada de mais elevado”. Idem, p. 45. 57 A metáfora do “livro do mundo” tem uma longa história, desde os Padres da Igreja e os doutores medievais. Descartes e Galileu a usam, reinterpretendo-a, em sentidos distintos: Galileu a aplica ao mundo da natureza (“A filosofiaencontra-se escrita neste ‘grande livro’ que continuamente se abre aos olhos [isto é, o universo] ...” – GALILEU, G. O Ensaidor, p. 21) e Descartes à sociedade humana (“cortes, exércitos, pessoas de diversos humores e condições” – cf. nota 71). 58 “Descartes deixa o colégio em 1614. Em 1616 faz em Poitiers o seu bacharelado e a sua licenciatura em direito. Em 1618 alista-se nos Países Baixos no exército de Maurício de Nassau”. ALQUIÉ, F. A Filosofia de Descartes, p. 18. 36 por toda parte a refletir sobre as coisas que se me apresentassem, de modo que delas pudesse tirar algum proveito”59. Esta apreciação de Descartes sobre sua formação intelectual, seja a adquirida com a leitura dos filósofos do passado, seja a recebida nos bancos escolares, serve para mostrar seu ponto de partida. Pode se chamar esse ponto de partida de o marco zero do conhecimento ou, como dirão mais tarde os empiristas, a página em branco do conhecimento. É uma total suspensão dos conhecimentos adquiridos, uma verdadeira epoché intelectual. É a partir desse marco zero que Descartes enuncia os primeiros fundamentos ou os primeiros princípios que fundamentarão todo o saber humano. Assim, Descartes propõe-se, não só a apresentar uma nova forma de filosofar, como também a reavaliar as verdades já identificadas pela tradição filosófica e apresentar uma nova forma de ver, interpretar e utilizar a herança do passado: “Ainda que todas as verdades que ponho entre meus Princípios tenham sido conhecidas desde sempre por todo o mundo, não houve todavia ninguém até o presente, que eu saiba, que as tenha reconhecido como os Princípios da Filosofia, isto é, como tais que se possa delas deduzir o conhecimento de todas as outras coisas que há no mundo”60. O que evidencia a estratégia usada por Descartes para mostrar que todo o conhecimento que pretende construir a partir desse momento, tem nele, unicamente nele, sua fonte originaria. Apesar de sua alardeada humildade intelectual, Descartes sustenta que mesmo aquilo que herdou dos predecessores ou aprendeu com alguém recebe de sua parte um novo sentido e uma nova função. Quer, assim, evidenciar duas coisas: primeiro, que cabe a ele a 59 DESCARTES, R. Discurso do Método, p. 47. 60 DESCARTES, R. Carta prefácio dos princípios da filosofia, p.16. 37 responsabilidade de sozinho ter descoberto toda a ordem do universo; segundo, que toda sua filosofia (ou melhor, A filosofia) lhe pertence integralmente, é toda sua, nada nela é propriamente herança ou resultado de qualquer contribuição do saber que o antecedeu ou que lhe era contemporâneo. É o que ilustra a carta de Descartes, de 17 de Outubro de 1630, dirigida a Beeckman, na qual rejeita em termos contundentes a possibilidade de ser devedor de alguma contribuição intelectual, mesmo que esta contribuição venha de alguém como Beeckman; além de ter sido seu amigo61, foi sob influência desse que Descartes se entusiasmou e foi iniciado nas ciências mecanicistas. “Car je ne pouvais en aucune façon m’imaginer que vous fussiez devenu si stupide, et que vous vous méconnussiez si fort que de croire en effet que j’eusse jamais rien appris de vous, ou même que j’en pusse jamais apprendre aucune chose, si ce n’est de la façon que j’ai coutume d’apprendre de toutes les choses qui sont en la nature, voire même des moindres fourmis, et des plus petits vermisseaux”62. Entre os anos de 1616, em que Descartes conclui o seu bacharelado em direito, e 1625, encontra-se cumprindo a promessa de conhecer e entender o grande livro do mundo. Nesse período, serve o exército de Maurício de Nassau; encontra-se com Beeckman; escreve um Compêndio de música; vai à Dinamarca e à Alemanha, se junta ao exército do duque da Baviera. De todas as 61 Em novembro de 1618, Descartes se encontra, de maneira meramente casual, com Beeckman; desse encontro nascerá, por um longo tempo (o primeiro encontro entre Descartes e Beeckman ocorre em 1618, e a carta citada é dirigida a Beeckman em 1630 – ano em que se dá a ruptura entre eles) uma grande amizade, graças à qual Descartes receberá uma grande influência, mesmo que, como de hábito, não a reconheça. Com Beeckman, Descartes trocará uma longa correspondência e é para este que encaminha uma de suas primeiras produções intelectuais: um breve Tratado de música. “Essa amizade é excepcional, porque contribuiu para modificar toda a orientação de Descartes. Beeckman exerceu sobre o filósofo uma fascinação intelectual, dando à espontânea atração que ele sentia pelas matemáticas um alcance científico bem mais aberto do que aquelas aplicações técnicas consideradas tão pouco elevadas”. RODIS-LEWIS, G. Descartes – uma biografia, p. 42. 62 DESCARTES, R. Correspondência, Alq., I, p. 273; AT., I, p. 157-158. 38 experiências ao longo desses anos, uma delas tem particular interesse, pois é a partir dela que Descartes toma mais uma decisão importante em sua vida: construir os “mirabilis scientiae fundamenta”. Trata-se do ocorrido no dia 10 de novembro de 1619 em que, na pequena vila de Ulm na Baviera, Descartes, aos 23 anos, depois de passar todo o dia agitado com seus pensamentos, à noite ao adormecer, tem três sonhos reveladores63. Escreve Baillet (1649- 1706), 63 Primeiro Sonho – “Depois de adormecer sua imaginação se sentiu tocada pela representação de alguns fantasmas que se apresentaram a ele, e que o aterrorizaram de tal forma que, acreditando caminhar pelas ruas, era obrigado a se revirar sobre o lado esquerdo, para poder avançar no lugar onde queria ir, porque sentia uma grande fraqueza no lado direito sobre o qual não podia se sustentar. Envergonhado de andar assim, fez um esforço para se endireitar; mas sentiu um vento impetuoso, que carregando-o numa espécie de turbilhão, o obrigou a fazer três ou quatro voltas sobre o pé esquerdo. Não foi ainda o que o aterrorizou. A dificuldade que tinha para se arrastar, fazia com que acreditasse tombar a cada passo, até que tendo avistado um colégio aberto, sobre o seu caminho, entrou lá, para ali achar um abrigo, e um remédio para o seu mal. Ele tentou alcançar a igreja do colégio, onde seu primeiro pensamento era de fazer sua oração; mas percebendo que passara um homem seu conhecido, sem o cumprimentar, quis voltar sobre seus passos para ser cordial, e foi repelido com violência pelo vento que soprava contra a igreja. Ao mesmo tempo, viu no meio do pátio do colégio uma outra pessoa que o chamou por seu nome em termos polidos e corteses, e lhe disse que, se quisesse achar senhor N. ele tinha algo para lhe dar. O senhor Descartes imaginou que fosse um melão, que haviam trazido de algum país estrangeiro. Porém o que mais o surpreendeu, foi perceber que os que se juntavam a essa pessoa em redor dele para conversar, estavam retos e firmes sobre seus pés, embora ele estivesse sempre curvado e cambaleante sobre o mesmo solo, e que o vento, que pensara derrubá-lo muitas vezes houvesse diminuído bastante”. Segundo Sonho - “Nessa situação ele adormeceu de novo, depois de um intervalo de quase duas horas com pensamentos diversos sobre os bens e os males do mundo. Logo lhe veio um novo sonho no qual acreditou ter ouvido um barulho agudo e forte que tomou como uma trovoada”. “O pavor que teve o acordou de imediato, e, abrindo os olhos, percebeu muitas fagulhas de fogo espalhadas pelo quarto. Isto já lhe acontecera várias vezes em outros tempos e não lhe era incomum despertando no meio da noite ter os olhos muito brilhantes de modo a lhe permitir entrever os objetos mais próximos dele. Mas, nessa última ocasião, ele quis recorrer a razões emprestadas da filosofia
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