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Emmanuel Levinas el. de antr. filosófica

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Emmanuel Levinas – elementos de antropologia fil. na obra Totalidade e Infinito
(Antr. fil. II – 2016/2º - p. Pivatto)
Introdução
Levinas, discípulo de Husserl e Heidegger, mostra-se incansável em retornar aos textos de seus mestres, meditá-los, confrontar-se com eles, extraindo riquezas e possíveis novidades, verificando fragilidades ou lacunas e confrontando posições/convicções que, aos poucos emergem, tomam corpo e dão forma a um pensamento original e próprio. 
Para quem quiser aprofundar-se no filosofar de Levinas, pode descobrir a lenta e progressiva maturação do seu pensar, percorrendo suas obras, desde a primeira, uma após outra. Seu pensamento mais elaborado e unificado aparece nas obras Totalidade e Infinito e Outramente que ser ou mais além da essência. 
Num artigo denso intitulado Intencionalidade e metafísica (publicado na obra Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger), Levinas revisita a obra de Husserl, e aponta para duas observações que se tornam importantes para compreender o seu pensamento: (a) insistência sobre a vida concreta intencional para compreender a existência humana, e (b) a questão da exterioridade. Para compreender a exterioridade, Husserl serve-se da contribuição kantiana da transcendentalidade que se mantém por operações espirituais inerentes ao movimento racional que leva à objetividade; mas renova a idéia da transcendentalidade ao perceber que seu movimento se revela intencional. É a partir desta contribuição husserliana que Levinas tira a idéia de uma exterioridade que não é objetiva. As operações transcendentais constituem um ‘fora’, mas elas não constituem este fora (ou este outro que eu). Levinas elabora e apresenta a ideia de uma exterioridade não objetiva – a exterioridade de outrem. Nesta nova ideia, a relação cognoscitiva sujeito-objeto não é mais adequada para se obter sua compreensão. Assim, superando-se a conjuntura da adequação sujeito-objeto, desinstala-se o sujeito idealista que reduzia tudo a objeto e se mantinha senhor de todas as operações intelectivas, nada escapando ao seu controle representacional. O ataque contra o pensamento objetivante é claro: este pensamento estaria esquecendo “os homens vivos”, concretos - alteridade.
Em 1957, Levinas publica o artigo A filosofia e a idéia do Infinito (que se encontra no mesmo livro acima citado). Nele aparece já o essencial da obra Totalidade e Infinito: várias questões são postas à tradição filosófica; modo de filosofar em que aparece com freqüência a expressão “il faut = é preciso”; articulações novas em relação à linguagem; e traça seu próprio caminho, nas pegadas de Husserl e Heidegger que vão ficando para trás. Ao desenvolver o tema da idéia do infinito (encontrada na 3ª Meditação cartesiana), relê questões da tradição filosófica ocidental, questiona-as, toma posição firme e contundente, apresentando suas teses principais ao ligar a idéia do infinito com o rosto de outrem, com o desejo e com a consciência moral. Ao fazer isto, desloca o discurso filosófico para um lugar esquecido da tradição e, para não poucos, um lugar novo. Na primeira frase deste artigo, Levinas afirma: “Toda filosofia procura a verdade” (DEHH, p. 165). Mas há caminhos variados para esta busca. Entre os vários caminhos, o autor percorre aquele que busca a verdade em ligação com a experiência, na relação com o outro, e não apenas como processo intelectivo/racional. Ora, a experiência conduz-nos para além de nós mesmos, deixa o meio familiar e acolhe o estranho/estrangeiro, exterior/transcendente. Diz Levinas: “A filosofia ocupar-se-ia do absolutamente outro, ela seria a própria heteronomia” (DEHH, p. 165). Se a filosofia segue o caminho da experiência, e a experiência é um movimento total de saída de si mesmo, então a filosofia é metafísica e a ética é primeira, precede a ontologia. Ao mesmo tempo, ele critica a filosofia do Mesmo por não se deixar questionar, por não sair de si, por reduzir toda alteridade à mesmidade, tornando-se imperialista, usurpadora e alienante. A filosofia ocidental privilegiou o Eu, seus processos de identificação e representação, sua autonomia/liberdade. E assim toda filosofia acaba sendo uma egologia que anula toda alteridade.
	Levinas serve-se da idéia do infinito, encontrada em Descartes, interpreta-a a sua maneira e faz uma leitura/interpretação surpreendente, ao afirmar: “A experiência, a idéia do infinito, acontece na relação com Outrem. A idéia do infinito é a relação social” (DEHH, 172). Indo além da interpretação cartesiana, Levinas vê na ideia do infinito um ultrapassamento da capacidade do eu que procura reduzir tudo à adequação. Escreve: “A idéia do infinito é um pensamento que a todo instante pensa mais do que pensa. Um pensamento que pensa mais do que pensa é Desejo. O Desejo “mede” a infinidade do infinito” (DEHH, 174). “O rosto é experiência pura, experiência sem conceito” (DEHH, 177). 
	Nesses dois artigos, Levinas apresenta alguns lineamentos da obra Totalidade e Infinito, dando uma primeira idéia de conceitos como exterioridade, desejo, infinito, alteridade, relação social, entre outros. A seguir, vamos entrar na obra mesma. 
Totalidade e infinito. Ensaio sobre a exterioridade.
	O título da obra é enigmático e pressupõe a tradição filosófica ocidental. Sua compreensão só se torna possível com a leitura e penetração de toda a obra; mesmo assim não poucas perguntas permanecem. Mas nela aparece claramente o pensamento levinasiano sobre a subjetividade humana e as grandes questões que a interrogam nos dias atuais, a ela ligadas, como natureza e espírito, identidade e diferença, mesmo e outro. O esforço maior do autor consiste na busca de uma saída da “totalidade” da “mesmidade”, em direção à exterioridade/alteridade. Para tanto, não teme redefinir conceitos, questionar axiomas tradicionais, discutir interpretações de autores clássicos e atuais, e previne os leitores sobre as agruras e perplexidades que emergem neste novo caminhar. Quem começar a leitura deste livro não se deixe desencorajar pela audácia do estilo, pelo modo de conduzir o pensamento e de fazer ligações entre idéias não raro desconcertantes, por conceitos inusitados que vão tomando relevo e deslocando eixos de sustentação, por relações e ênfases que provocam impacto e até reticências. Mas, ao fim do percurso, temos a sensação de ter acompanhado o nascer e o amadurecer de um novo filosofar, donde se descortina um novo horizonte para não poucos problemas humanos, horizonte que permite releituras da história e da subjetividade humanas, filosofar provocador que desafia para uma nova ética... Além disso, neste filósofo que se esforça por abrir caminhos novos e mostra as dificuldades encontradas para dizer a especificidade da humanidade do homem, aparece o testemunho de um profeta que desacomoda e incomoda, que desafia e convida a ir além da animalidade e a construir relações sociais melhores. 
A seção primeira leva o título: O Mesmo e o Outro; e se subdivide em quatro subtítulos, dos quais o primeiro é: Metafísica e transcendência; este, por sua vez, se desenvolve em cinco pontos, dos quais o primeiro se intitula: Desejo do invisível (p. 19-21).
O grande e decisivo embate acontece entre o mesmo e o outro. Como pensar e entender a relação justa e verdadeira entre eles? Haverá outro problema mais importante do que este? Como ele foi pensado e resolvido, ao longo da história, pelos filósofos e outros pensadores, inclusive pelas religiões? Terá sido sempre em favor do eu? Qual o sentido da expressão Vae victis? Toda a primeira seção mostra o confronto de posições neste debate. É evidente que o eu, o mesmo, deve existir e se constituir para haver possibilidade de encontro com o Outro. Importa, pois, manter e expor esta constituição do eu – o que vai aparecer em filigrana ao longo da primeira seção -, e será objeto de descrição e análise pormenorizadas na 2ª seção – Interioridade e economia (p. 99-177). O egoísmo é descrito como uma virtude – é preciso ver em que sentido se deve tomar esta proposição. A constituiçãodo eu acontece pela identificação. Significa dizer que não há outro se não houver um eu, como ponto de entrada da relação, que se mantém firme. Percebe-se a tentativa de Levinas de redefinir o homem concreto, uma subjetividade concretamente existencial, social, não isolada, apriórica, idealizada. Além disso, não há além-mundo. As relações acontecem no cenário social, político, econômico, histórico, não há outras relações, estas são as únicas relações, são relações fundadoras. É esta socialidade “originante” que Levinas considera. É o eu ou o mesmo que fala ao outro, entrando assim em relação com ele. O discurso do eu é apologia, isto é, discurso sempre na primeira pessoa: é o eu que fala e não outra pessoa, nele, acima dele, mais profundo que ele, como estrutura anônima, evolutiva, condicionamento cultural, super-ego, “id’ freudiano ou alguma reencarnação... O eu está no mundo e este mundo é sua casa, seu meio, seu lugar, mas não é exterioridade, não é o outro do homem. 
NB - Após esses elementos introdutórios sumários, apresentamos alguns lineamentos que, eventualmente, podem ajudar a leitura e alguma compreensão do pensamento de Levinas que aparece no primeiro capítulo deste livro. Nada mais pretendem do que oferecer alguma ajuda; não dispensam de modo algum a leitura pessoal, o estudo refletido e a retomada dos textos. É preciso dar atenção especial aos conceitos-chave operatórios, pois o autor desconstrói sentidos comuns e elabora sentidos novos... Nem se pretende oferecer uma interpretação indiscutível; como se sabe, a interpretação não acaba nunca, ainda mais quando se trata de filosofar a existência humana em sua complexidade/novidade. 
1.Desejo do invisível
 No primeiro ponto – desejo do invisível – Levinas começa com uma afirmação contundente: “A verdadeira vida está ausente”. Mas nós estamos no mundo. Diante deste dilema, discute o conceito de metafísica, introduzindo o conceito “outro”, “alteridade”, ao qual liga o “desejo” metafísico, distinguindo-o de “besoin”, aqui traduzido por necessidade. Importa tomar consciência clara da diferença entre desejo metafísico e “besoin” – pois estes conceitos vão articular e dinamizar a proposta de Levinas sobre a relação entre Eu e Outro, totalidade e exterioridade. Ao desejo metafísico convém a bondade: o Desejado não o completa (comble), mas o escava por dentro (creuse). (Levinas apresenta uma exterioridade incompletável, irredutível).
O desejo vai em direção ao desejado (aqui nada é dito sobre o desejado, só apontado); aparece o fenômeno da relação suscitada pelo desejo; como é esta relação? Parágrafo denso que se precisa meditar e meditar. Veja-se a proposição: “O desejo é absoluto se o ser desejante é mortal e o Desejado, invisível”. A invisibilidade não indica ausência de relação; ela implica relações com o que não é dado, do qual não há idéia... Levinas propõe a discussão do privilégio dado à visão na tradição ocidental... A visão é adequação... Mas a relação com o invisível revela outro tipo de relação... “inadequação” que não é negativa ou insuficiente... mas precisamente aponta para outra dimensão – a desmedida do desejo... que “entend” o afastamento, a alteridade e a exterioridade do outro... e do Altíssimo... (Se alguém quer ver melhor a discussão de Levinas a propósito do privilégio dado à visão na tradição ocidental, veja na 3ª seção, o primeiro item: Rosto e sensibilidade)
Levinas não propõe uma visão idealista de homem, situa o ser humano no entrevero social histórico. Miséria, animalidade fazem parte do homem..., ao lado de proposições exaltantes. Ver a contundência do realismo do último parágrafo deste item. Importa não se enganar, não fechar os olhos sobre a dura realidade humana; mas importa mais ainda não cruzar os braços qual pateta; urge aproveitar o tempo para “evitar e prevenir o instante de inumanidade” (p. 21). Este adiamento perpétuo da hora da traição – “ínfima diferença entre o homem e o não-homem” – requer a bondade, o desejo metafísico, a nobreza, a alteridade. Levinas rompe com toda a tradição filosófica e abandona a reversibilidade dos termos, abandona o paradigma da complementaridade (válido para necessidades, não para o desejo metafísico, contra Platão). Assim, o Outro não é aquele que me falta; o eu e o outro não são complementares, não são integráveis em um sistema; sequer há um terceiro termo que permite ver e sintetizar a relação entre eu e Outro. O desejo metafísico rompe definitivamente esta trama. A relação entre eu e outro é interpretada por Levinas como linguagem. O mesmo fala ao Outro e assim entra em relação com ele. 
2.Ruptura da totalidade
	
A distinção entre necessidade e desejo metafísico é essencial. Não se trata apenas de uma Idéia, de um movimento da alma, de uma intencionalidade ou de um desejo cujo elâ termina no ardor desejante. O ser desejante e o desejado (metafísico) não se totalizam, não formam sistema, não são adequáveis em uma conjuntura sinóptica. Assim se pode compreender a afirmação: “... o metafísico e o Outro não se totalizam. O metafísico está absolutamente separado” (p. 22). E a única verdadeira alteridade é a do Outro.
“Um termo só pode permanecer absolutamente no ponto de partida da relação como eu” (p. 22) é a afirmação central das páginas iniciais da primeira seção. A alteridade radical só é possível se o Outro permanece sempre outro em relação a um termo cuja essência é estar firme como ponto de partida, servindo de “entrada” na relação. A porta de entrada é o eu. Levinas esmera-se em descrever este eu inaugural, termo absoluto, irredutível, não sintetizável num discurso ou sistema. Vem a pergunta: quem é este eu inintegrável se não se fala mais a linguagem hegeliana, se se critica a linguagem heideggeriana? Quem é este eu tão importante, já que a “alteridade só é possível a partir de mim”? (p. 26)?
Nos vários parágrafos destas páginas, o autor descreve quase fenomenologicamente as peripécias do eu no processo de identificação. “Ser eu... é ter a identidade como conteúdo... não permanece sempre o mesmo... ser cujo existir consiste em se identificar, reencontrar sua identidade através de tudo o que lhe sobrevém. É a identidade por excelência, a obra original da identificação” (p. 22-23). Como opera esta identificação? Bem simplesmente, pelo “concreto do egoísmo” (p. 24), isto é, pelo corpo, casa, trabalho, economia, eros, sem os quais a metafísica não é possível (todos estes pontos são longa e fenomenologicamente descritos na 2ª seção desta obra). A metafísica inscreve-se no concreto. Levinas fala sempre da “relação do mesmo e do outro”. O ponto de partida é o mesmo; não há outro sem o eu, não há relação ao outro sem linguagem ou discurso, não há discurso sem apologia. 
Após descrever o processo de identificação do mesmo, o autor repropõe a questão: “Como o Mesmo, produzindo-se como egoísmo, pode entrar em relação com um Outro sem desde logo o privar de sua alteridade? De que natureza é a relação?” (p. 25) Não se trata de representação, de constituição transcendental, de outro espaço ou distância – todas estas formas acabam por cair sob o poder do Mesmo no múltiplo e diversificado exercício de identificação. Levinas fala de uma “alteridade anterior” (p. 25), que não limita nem se opõe ao eu, alteridade é o próprio conteúdo do outro, invisível de fora. Não há sequer gênero comum – gênero humano – em que o eu, o tu, nós, vós, eles formariam unidade numérica ou genérica da raça, da sociedade, da humanidade, distintos apenas pela individuação material e que formariam totalidade... A única forma de relação é “linguagem”; e começa sempre do eu, vai do eu ao outro, relação face a face (p. 26). Levinas insiste: esta relação não se basta de idéias ou sentimentos ou intenções; tal relação deve acontecer no ser, isto é, a relação de transcendência só é relação metafísica se um dos termos da relação – o eu – realiza o movimento de transcender indo ao encontro do outro. Parafraseando: seria o movimento de Abraão: deixa a tua terra, sai, vai para... A audácia de Levinasvai mais longe: não bastam idéias, representações, elevações quiçá místicas... “Nós só conhecemos esta relação... na medida em que a realizamos. O “pensamento”, a “interioridade” são a própria fratura do ser e a produção (não o reflexo) da transcendência” (p. 26). 
É notável a inflexão de conceitos, de relações, que Levinas propõe e que obrigam a pensar e repensar nossa maneira habitual de pensar. Interessa-lhe a ruptura da totalidade. Agora, o pensamento não é uma idéia, “o pensamento consiste em falar” (p. 27) face a face com outro na transcendência. Propõe chamar religião o laço que se estabelece entre o Mesmo e o Outro, sem constituir uma totalidade. Nem sequer a história, no esforço hegeliano de compreender a natureza, a liberdade, o ser e o espírito num mesmo movimento dialético unificante, será capaz de abolir a transcendência que se preserva no seio da história.
3.A transcendência não é negatividade
A primeira frase deste item é essencial para a sua compreensão: “O movimento de transcendência distingue-se da negatividade pela qual o homem descontente recusa a condição em que está instalado” (p. 27). No pano de fundo estão os conceitos de “besoin” e “désir” que, na tradição ocidental, propulsam o ser humano que nunca se satisfaz. Levinas serve-se da negatividade para desenhar e descrever o Mesmo: “Esta maneira de negar, ao mesmo tempo em que se refugia no que se nega, desenha os contornos do Mesmo ou do Eu” (p. 28). 	O pano sobre o qual opera a negatividade é aquele do sim e do não: não é o plano da metafísica. A condenação radical da negatividade ressoa nesta asserção franca e severa: “A negatividade é incapaz de transcendência” (p. 28). A seguir, Levinas precisa a transcendência, que é como a recusa da relação pensável e pensada sobre o modo da absorção. Trata-se de uma relação com uma realidade infinitamente distante (não se trata de espaço e tempo), que não desaparece nem jamais apaga esta infinita distância, como se a condição de possibilidade da proximidade residisse na manutenção desta distância. Assim o Mesmo permanece o Mesmo na relação, sua identidade se mantém e também sua apologia. Acrescenta a seguir: tal relação é antes da proposição negativa ou afirmativa, é ela que instaura a linguagem em que nem o não e nem o sim são a primeira palavra. E acrescenta: “descrever esta relação constitui o próprio tema destas pesquisas” (p. 29). Aparece aqui um termo central do vocabulário de Levinas: “avant” – antes. Fazer aparecer, procurar descrever este antes é o objeto de todas estas páginas, e isto indica a originalidade do filosofar que se ensaia e abre caminho. Ele vai descrever este antes, que é essencialmente antes do sistema, da totalidade, do ser. Se esquecemos o ser, com suas conseqüências, talvez tenhamos esquecido, ignorado este antes. Tornar-se atento a ele, levará a descobrir um outro sujeito – ou um sujeito outro – um sujeito humano que não será absorvido no e pelo sistema. 
4.A metafísica precede a ontologia
Este 4º ponto é árduo, exige muita atenção, discute com filósofos, contrapõe-se a teses clássicas, afirma o primado da ética a partir do desejo metafísico que mantém a exterioridade – alteridade do outro.
A primeira afirmação é importante para se compreender a posição de Levinas: A relação teórica foi o esquema preferido da relação metafísica (na trad. filosófica ocidental). Isto vale para todo conhecimento, seja de objetos, de relações ou de seres humanos e até de Deus. A conseqüência maior desta preferência teórica foi o desvanecimento da alteridade do ser conhecido, por meio de um conceito, que serve como meio que absorve e exprime a relação-encontro entre o Mesmo e o Outro. Se esta relação vale para o conhecimento do mundo em geral, valeria ela também para o encontro entre o Mesmo e o Outro? Da história da filosofia, Levinas serve-se de três exemplos para confirmar sua interpretação: Sócrates, Berkeley e, sobretudo, Heidegger, em cuja filosofia vê a síntese de todo filosofar ocidental. Vê na ontologia heideggeriana a redução do Outro ao Mesmo por meio do termo neutro ser. Tal ontologia renuncia “ao desejo metafísico, à maravilha da exterioridade de que vive o Desejo”. O aspecto essencial da metafísica que aqui opera está na preocupação crítica; a operação crítica não conduz a uma regressão ao infinito, mas questiona o exercício egologizante do Mesmo. O questionamento não provém de uma tomada de consciência do Mesmo a partir e sobre suas operações teóricas, mas provém do Outro; é o Outro em relação que questiona o Mesmo. Esta relação-questionamento do Outro sobre o Mesmo é a “ética”, “que realiza a essência crítica do saber”. Metafísica e ética são inseparáveis e constituem o verdadeiro saber que torna possível o respeito à alteridade, a justiça e a verdade.
“A filosofia ocidental foi mais frequentemente uma ontologia: uma redução do Outro ao Mesmo, por meio de um termo médio e neutro que assegura a inteligência do ser”, escreve Levinas. A redução e a mediação podem valer para o conhecimento das coisas e seres em geral; mas valem também para um conhecimento respeitoso do Outro? A lógica formal que coloca termos auto-suficientes permite compreender a relação entre Eu e Outro? Será o ser humano uma coisa, um objeto, um ser como os outros seres em geral, para cuja intelecção pode servir o esquema teórico representacional? Como compreender o ser humano e como expressar tal compreensão para além da objetivação/representação? Husserl já se tinha colocado o problema na quinta das suas famosas Meditações cartesianas, por Levinas retomada, em parte criticada e agora desenvolvida em novo esquema. 
Merece destaque a análise sintética de Ser e tempo (obra de Heidegger publicada em 1927), em que aparece um resumo surpreendente feito por Levinas em torno de alguns conceitos, entre outros: o privilégio do ser do ente, a fosforescência, a luminosidade...; tudo é sublinhado, ao mesmo tempo em que se anunciam objeções: “Ser e tempo tenha, talvez, sustentado uma só tese: o ser é inseparável da compreensão do ser (que se desenvolve como tempo); o ser é já apelo à subjetividade”. Qual é esta subjetividade? Como defini-la? Levinas quer mostrar que o que interessa mesmo é “a relação com alguém que é um ente (relação ética)”; é esta relação que ele pretende descrever – relação entre pessoas -, para não cair nem numa neutralização do ente, nem numa “primazia do Mesmo” como aconteceu na filosofia ocidental. Convém notar certos termos usados por Levinas para enquadrar a filosofia que ele combate: redução, neutralização, autarcia, supressão, possessão, negação, apropriação, exploração, filosofia do poder, violência, totalidade, tirania do Estado... O que interessa a ele é mostrar como a subjetividade humana com sua originalidade ficou reduzida..., como o ser humano ficou objetivado, caído no anonimato, submerso na totalidade – formas antigas e novas de inumanidade/animalidade. Em resumo, a crítica essencial feita à esta ontologia e à tradição ontológica ocidental consiste no fato de nunca ter posto em questão o privilégio do Mesmo, de repousar sobre “um movimento no Mesmo antes de obrigação para com o Outro”.
A tarefa que Levinas se impõe torna-se clara: trata-se de sair deste primado do teórico e do anonimato; trata-se de entrar, sem medo e sem temor no que a tradição, aqui reencontrada, denominou opinião: “A ética em que o mesmo toma em consideração a irredutibilidade do Outro”. Esta relação ética refuta a qualificação de opinião, tradicionalmente pejorativa, pois esta relação vai na direção da verdade. Outrem não é um ser cujo ente tem uma silhueta, mas perdeu sua face: “Ele faz sempre face” ou está de frente. Esta relação com outrem é primeira, inclusive comanda a compreensão do ser: “ela é a relação última no ser” (isto é, a mais profunda ou primeira). Aparece claramente o projeto de Levinas: a relação com o Outro é antes, precede o ser e a ontologia, a ontologia e filosofia decorrem de relação primeira entre o Mesmo e Outro. “A ontologia supõe a metafísica”. Levinas pensaque só assim se salva a subjetividade, a originalidade específica da humanidade do homem, sem reduções, objetivações e comparações.
5.A transcendência como idéia do Infinito
Relembramos o que Levinas escreveu no início do ponto n. 4: “A relação teórica não foi por azar o esquema preferido da relação metafísica. O saber ou a teoria significa primeiramente uma relação com o ser tal que o ser cognoscente deixa o ser conhecido manifestar-se, respeitando sua alteridade e sem marcá-lo, em nada, por esta relação de conhecimento”. No ponto 5, Levinas vai mostrar a possibilidade de tal relação, analisando e desenvolvendo a ideia do infinito e desafiando os privilégios ‘onto-lógicos’, sobretudo o privilégio maior da representação na qual a relação entre o Mesmo e o Outro não pode ser realizada nem dita pela linguagem da representação que formaliza a relação antes de ela acontecer. É a análise da idéia do infinito que vai clarear este ponto e abrir novas perspectivas. Como o ponto n. 4, também este ponto n. 5 vai requerer muita atenção, meditação e destemor em relação à ruptura de interpretações comuns. 
A idéia de infinito é uma idéia excepcional, excessiva, transbordante, que pensa mais do que pensa, que abraça mais do que abraça e que permite, paradoxalmente, medir o que não se pode medir: a infinitude do eu. Se abandonamos o registro da representação, a razão é simples: o que temos a pensar não é um objeto. Outrem que está diante de mim – relação face a face – mão pode ser pensado como o objeto A em relação com o objeto B. Levinas abre outro modo de pensar: “A diferença entre objetividade e transcendência vai servir de indicação geral a todas as análises deste trabalho”. Abandonar o reino da representação é abandonar o pensamento solitário ou econômico, e entrar no novo, entrever o Desejo. Levinas sabe que constrange, por isso dá espaço às objeções e dialoga, desenvolvendo a idéia cartesiana do infinito, a seu modo. A novidade consiste na conservação da exterioridade total que a relação não relativiza. À objeção platônica, encontrada também em Merleau-Ponty, segundo a qual o absoluto se entra em relação com o relativo fica relativizado , Levinas responde por um verbo raro no jargão filosófico: “s’absoudre”: O absoluto “s’absout” na relação em que se apresenta – isto é, se absolve (composição do termo: ab+soluto – a partícula ab estaria a indicar relação sem-relação, e o termo soluto indica soltura total (possibilidade de afirmação sem relação).
Com vai se produzir esta relação do infinito com o finito? Como Desejo, Desejo do Infinito, como Bondade. Mas o desejo e o desejado não formam correlação, por conseguinte, alguma objetividade? Mais uma vez, Levinas se confronta com teses clássicas da filosofia. Escreve: “Mas o Desejo e a Bondade supõem concretamente uma relação em que o desejável pára a “negatividade” do Eu exercendo-se no Mesmo, o poder, a tomada”. Assim, a relação entre o Mesmo e o Outro não será uma relação em que o Outro vai ser integrado na hegemonia do Mesmo. O que é então o Eu se a negatividade não o define? O Eu possui um mundo que ele “pode oferecer ao Outro, isto é, como uma presença em face a um rosto”. O eu só perde a avidez do seu olhar pela generosidade/bondade. O eu não aborda o outro com mãos vazias; ele lhe fala – relação de linguagem. O rosto do Outro efetua assim o ultrapassamento da idéia do Outro em mim. O Outro desfaz sempre esta idéia, não se cansa de desnudar o eu em sua pretensão de domínio objetivador. Arranca o eu do seu fechamento, do seu círculo de Mesmo. Quando Outrem se apresenta ao Eu opera-se neste como um transbordamento, abertura, por onde ele “se exprime”. O Rosto não se desvela (contra Heidegger), não é um neutro impessoal. O eu recebe do Outro mais do que pode pensar, supera sua capacidade; em outras palavras: tenho a idéia do infinito. Si, o eu é ensinado. Após ter abandonado a representação, agora Levinas despede também a maiêutica e abre o espaço filosófico à exterioridade total em que se manifesta o rosto de Outrem. Conduz a razão a uma posição algo inabitual e esquecida: “receber”. Em vez de voltar o eu para o passado (reminiscência), o rosto direciona o eu para o futuro, apresentando-se e oferecendo em sua própria expressão. A epifania do rosto, no sentido estrito, não anuncia nada além do próprio rosto, vestígio do infinito. 
Várias conseqüências importantes derivam: “Enfim o infinito transborda a idéia do infinito, põe em xeque a liberdade espontânea em nós. Ele comanda-a e a julga e a conduz à sua verdade. A análise da idéia do infinito à qual só se tem acesso a partir de um Eu, terminará pelo ultrapassamento do subjetivo”. Já sabemos que o ponto de partida só pode ser um eu. Agora entrevemos que o ponto de chegada não será o eu, nem seu desaparecimento, mas, talvez, uma nova posição, uma nova condição para o eu. O eu fica assim exposto a uma alteração que introduz a uma nova maneira de pensar a subjetividade. As perspectivas que se abrem permitem novas tomadas de posição: a exterioridade do rosto conduz a afirmar “a anterioridade filosófica do ente sobre o ser”. O poder e a iniciativa do eu não são primeiros e não decidem tudo. A relação face a face não é o contato desvelador, mas a imediatez/linguagem. 
O último parágrafo deste ponto 5, que conclui o capítulo intitulado Metafísica e transcendência, relaciona-se e responde ao primeiro parágrafo com que iniciou o ponto 1. Apresenta-se como uma síntese e uma retomada de todo o capítulo e chama para um envio. Aparece aí todo o esforço na elaboração de uma nova proposta. Por um lado, uma filosofia da transcendência que visa um além; por outro, uma filosofia da imanência que refere tudo ao termo da história. Entre os dois, a proposição levinasiana: “... descrever no desenrolar da existência terrestre, da existência econômica como nós a chamamos, uma relação com o Outro, que não conduz a uma totalidade divina ou humana, uma relação que não é uma totalização da história, mas a idéia do infinito. Tal relação é a própria metafísica”. A história que integra, que totaliza, é injustiça e crueldade, pois ignora a transcendência do outro em relação a mim. Outrem não é aquele que o eu integra, mas aquele a quem o eu fala. A história totalizadora é inumana; trata-se de deixar vir à luz o sujeito humano, nesta obra que tenta dizer a exterioridade. 
B – Separação e Discurso (cap. II, da 1ª seção)
1.O ateísmo ou a vontade
Vimos que a separação entre o Mesmo e o Outro não é negatividade, não entra no esquema ontológico, não é uma oposição, mas é suposta pela ideia do infinito. A oposição, dialética ou não, está sempre sob o dinamismo de totalização. Em vez de oposição, Levinas prefere “separação”. Com este conceito, o autor visa a uma relação não integrável num todo maior, rompendo o esquema tradicional que situa e pensa o eu e o outro numa correlação/adequação. Diz o autor: “A correlação não é uma categoria suficiente à transcendência”. Uma relação correlativa acaba pospondo o Outro (objetivado/representado) em favor do Mesmo que o identifica, representa e integra no esquema da adequação. Por isso, Levinas força como que um abandono do esquema correlativo, para ele insuficiente para uma relação de transcendência que respeite o outro enquanto outro, em sua alteridade.
Mais: Levinas rompe com o esquema da simetria entre eu e outro, simetria em que tanto o eu como o outro estariam no mesmo nível, seriam iguais. Para tanto, Levinas invoca a experiência moral, segundo a qual eu não posso exigir do outro o que eu exijo de mim mesmo – ruptura da simetria. Conforme o autor: “Esta experiência moral... indica uma assimetria metafísica: a impossibilidade radical de se ver de fora e de falar no mesmo sentido de si e dos outros; por conseqüência, também impossibilidade da totalização”. O Mesmo é, portanto, separado, e esta separação na encontrará solução num terceiro termo exterior, por exemplo o ser, o conceito. Mas a separação não cairia numa solidão absoluta,sem possibilidade de relação, sem saída, fechado em si mesmo como uma mônada? Levinas vai dizer que a separação não é um mal, não é um defeito; ela é um movimento positivo, mesmo sendo radical. Como acontece a separação? (Aqui aparece uma idéia bem original e interessante, vale segui-la e considerá-la) “A separação do Mesmo é produzida sob as espécies de uma vida interior, de um psiquismo”, psiquismo que “constitui um acontecimento no ser, é uma maneira de ser”. Ele articula a separação, produzida pelo pensamento. “A função original do psiquismo não consiste, com efeito, em refletir somente o ser; sua maneira de ser é resistência à totalidade. 
A totalização é sempre assunto de sobreviventes, de historiadores que estabelecem uma equivalência entre o desenrolar cronológico da história e o ser em si. Neste caso, a interioridade não é nada. Ora, o conceito de separação afirma o inverso: não há outro lugar de sentido fora da experiência interior, compreendida não como puro solipsismo, mas como relação a outrem. A história relata o acontecimento da morte no tempo objetivo, universal e sempre universalizável. A interioridade ou psiquismo recusa esta transformação do indivíduo em um puro passivo. A morte não é contabilizável. A interioridade é ‘aggiornamento’ perpétuo: “A interioridade instaura uma ordem diferente do tempo histórico em que se constitui a totalidade, uma ordem em que tudo é pendant=durante, em que permanece sempre possível o que, historicamente, não é possível. O nascimento de um ser separado que deve provir do nada, o começo absoluto, é um acontecimento historicamente absurdo. Assim como a atividade provinda de uma vontade que, na continuidade histórica, marca, a todo instante, a ponta de uma nova origem. Estes paradoxos são superados pelo psiquismo”. 
A memória ocupa um lugar central nesta concepção, e se, “como inversão do tempo histórico, ela é a essência da interioridade”, é porque ela permite ao sujeito fundar-se logo depois, assumindo o que havia sido recebido como uma fatalidade. A memória é constitutiva do sujeito, faz com que ele saia do tempo da história que o engloba sem escrúpulo. A morte é aqui um acontecimento absoluto, mas não irremediável. Levinas põe a possibilidade de vitória sobre a morte pela “ressurreição no filho onde se engloba a ruptura da morte”. Ela não pode, portanto, se resumir em um número na longa lista interminável dos historiógrafos. A opção de Levinas é precisa: não é o primado da história que permite a compreensão do ser, mas o segredo – secret -, sem o qual não há pluralismo. Isto leva a considerar não o tempo das obras – em que o indivíduo é tomado como ser histórico entre outros -, mas o tempo das vontades. Assim, o real pode existir como pluralidade, e não apenas como unidade-uniformidade, lugar do idêntico e do não-idêntico. “A vida interior é a maneira única para o real de existir como uma pluralidade”. 
A separação é ruptura da tese clássica de participação; esta ruptura tão profunda recebe o nome de “ateísmo”: “Vive-se fora de Deus, em casa, se é eu, egoísmo. A alma, a dimensão do psíquico – realização da separação, é naturalmente ateia”. É mister compreender bem esta afirmação para não cair em erro ou contra-senso. Diz ele: “Por ateísmo compreendemos uma posição anterior à negação como à afirmação do divino, compreendemos a ruptura da idéia de participação a partir da qual o eu se põe como o mesmo e como eu”. Tal eu é vontade, isto é, “um ser condicionado de tal maneira que sem ser causa sui, ele é o primeiro em relação a sua causa. O psiquismo é sua possibilidade”. Este psiquismo é egoísmo, é princípio de individuação. A relação entre a sensibilidade e o eu é fundamental, pois ela constitui este egoísmo do eu: “Trata-se do sentiente (daquele que sente) e não do sentido (objeto do sentir) (em outras palavras, trata-se da noese e não do noema). Ao sistema, Levinas opõe a sensação. Há, portanto, uma constituição positiva do ego, com as noções de psiquismo, interioridade, gozo. A fundação do sujeito tem lugar no criado, e este sujeito é absolutamente singular, separado; é contente, é feliz. Este sujeito não é semelhante a nada e a ninguém, é a partir de si mesmo.
2.A verdade
O lugar da produção da separação é o gozo, e a independência absoluta desta separação “realiza-se plenamente na existência econômica”. A entrada do Outro não será destruição, negação desta positividade radical e essencial que é a independência, pois esta é a condição de possibilidade da relação indicada pela idéia do infinito. Levinas chega ao paradoxo, na afirmação: “A separação ateia é exigida pela idéia do infinito”, pois esta idéia não anula nem a separação nem a relação entre o ser metafísico e o Outro absolutamente separado. A vontade de sair do registro da participação, essencialmente pagão para Levinas, o conduz a estas afirmações paradoxais e rigorosas. É, portanto, a separação que permite acontecer a busca da verdade, permite a produção desta relação entre o Mesmo e o Outro, enquanto o esquema da participação não sai do ser, não rompe a unidade, não torna possível o pluralismo. A verdade será procurada com riscos e incertezas, e ela não encontrará seu termo numa totalidade feliz que viria extenuar ou apagar os passos difíceis da busca. Levinas separa-se de Heidegger: não há “prévio enraizamento no ser” necessário a esta verdade: “A busca da verdade desenrola-se na aparição das formas”. Em nome da separação, Levinas recusa o enraizamento, e a participação não é mais uma categoria soberana do ser. 
O modo de relação ao Outro enquanto outro difere do modo de participação, pois estão, na relação, não respeita sua alteridade, integrando-o numa totalidade. A separação visa à um modo de relação em que se respeita a alteridade, sua entidade não fica subsumida no conceito de ser. Significa que a separação tem uma exigência: o eu, o ser como eu deve existir independentemente, a partir dele mesmo. O eu existe antes de ser reconhecido, sua independência é feliz. Mas isto tem um preço: é a “eventualidade de todos os crimes impunes”. Por conseguinte, por ela mesma, a separação não garante nada: erro e verdade são possíveis. 
É assim que a busca da verdade tem como ponto de partida o psiquismo como separado. Outrem não me faz falta; é o desejo que me conduz a ele. O eu suficiente, autônomo, não é o ponto origem da idéia do infinito. A idéia do Infinito revela-se no sentido forte do termo. Ora, tal revelação só é possível se se rompe o esquema da participação, se se for além do esquema das necessidades, se se mantiver firme a separação. O conhecimento que esta revelação traz é “excepcional” e não é mais “objetivo”. 
Mas este Infinito, como entendê-lo? “O desejável, o que suscita o desejo, em outras palavras, o que é aproximável por um pensamento que pensa que a todo instante pensa mais do que pensa”. Este desejo ‘mede’ o Infinito não mensurável. E Levinas vê bem que poderíamos cair em desvanecimento. Ele conduz então o desejo em direção ao mais concreto do concreto, ao mais humano do humano: “A desmedida medida pelo desejo é rosto”. Nada mais e nada menos. Este ponto é um ponto de apoio importante do texto, pois ao abandonar conscientemente o esquema teorético, Levinas aponta para o rosto. A desmedida do desejo, possível loucura, encontra sua medida no olhar o rosto – outrem que se lhe revela e fala. Pode-se dizer então que não há desejo se não houver seu objeto = rosto (abertura da relação metafísica), ao passo que há sempre necessidade (besoin) a partir do momento em que há sujeito (eu), este sujeito cuja alma é marcada pelo vazio. No entanto, esta distinção levanta uma questão: o que se tornará este sujeito (eu) quando encontrar outrem, quando este outrem se revelar a ele? Qual será a aventura deste sujeito (eu) após tal revelação? 
 Aparece agora uma nova conjuntura na qual Levinas situa a questão da busca da verdade - questão clássica da filosofia. Nesta situação nova, o ser separado busca a verdade, sem ser impulsionado pela carência/falta ou vazio ou nostalgia(besoin = necessidade). “A verdade surge lá onde um ser separado do outro não se afunda nele, mas lhe fala”. A nova relação é linguagem. Três verbos qualificam esta linguagem: interpelar, comandar, obedecer. Diz Levinas: “Separação e interioridade, verdade e linguagem – constituem as categorias da idéia do infinito ou da metafísica.” Estes quatro termos vão permitir definir o eu, o sujeito. 
Na separação, o eu ignora o outro; mas, isto não é um mal, pois o ser separado é feliz; o egoísmo é felicidade. É pelo psiquismo do gozo, pelo egoísmo e felicidade que o eu se identifica e se define; é um eu ateu, e o desejo não pode vir à luz senão num eu feliz. Levinas não se ilude: o eu pode sacrificar seu ser pura e simplesmente a esta felicidade – possibilidade sempre aberta, pois ele existe num sentido eminente, acima do ser. Mas – e aqui aparece a novidade levinasiana – “no Desejo, o ser do Eu aparece ainda mais alto, pois ele pode sacrificar a seu Desejo sua própria felicidade”. Ser é gozar; mas, desejo e justiça levam acima do ser, da pura permanência no ser e abrem o acesso à bondade. O ser transcende a ele mesmo, e isto se torna possível pelo Desejo: “Nele (Desejo), o ser torna-se bondade: no apogeu do seu ser, desabrochado em felicidade, no egoísmo, pondo-se como ego, ei-lo batendo seu próprio recorde, preocupado com outro ser”. Nesta altura, Levinas fala de uma inversão, pois o ser interrompe o movimento que lhe é mais espontâneo, o movimento de existir para ele mesmo, de só se preocupar com a manutenção de seu próprio ser-gozar – e passa a um novo sentido.
É importante não se enganar a propósito deste novo sentido, animado pelo Desejo. Este Desejo é insaciável, incompletável, não porque responde a uma fome infinita, mas porque não é apelo por alimento, como no caso das necessidades. O desejo só se produz num ser já “absolutamente “em pé”, isto é, num ser autóctono, autônomo e satisfeito. 
3-4. Linguagem
Interessa-nos, sobretudo, acompanhar e destacar, no pensamento de Levinas, os aspectos referentes à sua concepção antropológica. Um ponto importante refere-se à linguagem que, agora, vai merecer nossa atenção. Como Levinas pensa a linguagem? 
A linguagem é naturalmente vista como uma relação em que o pólo chamado eu, em contato com o pólo relativo oposto, retorna a si mesmo com a ideia do outro reduzido a objeto. Em face de este movimento quase natural da filosofia que, pela linguagem, consegue reduzir o Outro ao Mesmo, Levinas toma posição privilegiando a interpelação, concebendo a linguagem como possibilidade de manutenção do Outro sem reduzi-lo à objeto. Neste sentido, a linguagem instaura uma relação entre o Mesmo e o Outro, sem redução, sem objetivação; a linguagem, instaurando a relação, é revelação do Outro. Sendo assim, a clássica relação sujeito-objeto não é mais o modelo da relação Eu-Outrem; a linguagem como sistema de sinais não precede a revelação, mas nela se constitui. Não há, portanto, linguagem sem interlocutor, sem pluralidade, e a relação que se instaura é ética. Como não há linguagem sem interlocutor, não há ética sem linguagem. Antes da linguagem, portanto, a separação é radical, um mundo sem linguagem. É a linguagem que constitui o que é comum a mim e a outrem. Supõe a separação, a transcendência, e ela se situa como relação na transcendência. Isto faz com que Levinas escreva: “A linguagem (discurso) é assim experiência de algo absolutamente estranho, “conhecimento” ou “experiência” pura, traumatismo da admiração”. Não é apenas intercâmbio de palavras, mas é surpresa, revelação de outrem como outrem. O eu não se admira diante do mundo, do ser, mas fica admirado pelo outro que lhe fala dirigindo-se a ele. O que é admirável é precisamente esta maravilha da exterioridade que é outrem, maravilha que anima a vida do Desejo. 
No entanto, esta admiração não deixa ficar no êxtase, no pasmo. O discurso é ensinamento; ensinamento este que é o outro como ser perfeitamente nu. E se outrem é este “ser perfeitamente nu”, é porque ele é livre, estrangeiro; nenhum gênero pode englobá-lo/objetivá-lo. Assim, falar é estar em relação com “um ser que não está em relação comigo senão na medida em que ele está inteiramente em relação a si, kat’auto”. Pela linguagem, obra e vontade convergem e chegam a se exprimir conjuntamente. A obra que é a linguagem exprime a vontade do eu. A nudidade com a qual o eu entra em relação pela linguagem é rosto, ela reside no movimento do rosto que se voltou em direção a mim: “Ele (o rosto) é por ele mesmo, e não por referência a um sistema”. E ele é tal porque o eu, o sujeito, é igualmente tal: por ele mesmo. São como dois mundos absolutamente separados que, agora, se encontram, e esta relação é revelação-linguagem. 
É importante exercer um pouco a capacidade de reflexão. Pois, vejamos: o eu absolutamente separado começa a viver no puro “há” que, por graça, é harmônico ao vivente. Não há nenhuma teoria prévia de causa-efeito, de evolução-condicionamento, etc., não há estruturas. Tudo é “dado” nu. A coisa é nua, o rosto é nu; mas a relação entre o eu e a coisa e entre o eu e o rosto não é igual. O eu não conhece o rosto de outrem como conhece um objeto. Outrem é liberdade e miséria, outrem é estrangeiro, e ele se apresenta ao eu autóctone, “sempre privilegiado em sua casa”. É preciso visitar esta casa se quisermos descobrir quem é o eu e onde ele repousa, antes de compreender como ele se fissure no e pelo encontro de outrem. A relação entre o eu e o outro está além da retórica, pois o eu reconhece uma fome. A dimensão de altura é inseparável do encontro com o outro. O reconhecimento não passa pela luta à morte própria da relação mestre-escravo (Hegel), mas reconhecendo a fome de outrem, o eu doa. Mas, o dom não é comiseração: o eu doa ao “mestre, ao senhor, àquele que é abordado como “vós”, numa dimensão de altura”. Assim, outrem, por sua presença, por seu olhar, pela indigência de seu olhar questiona “minha gozosa posse do mundo” – isto é, o egoísmo do eu. Assim, o eu sai de sua posição egoísta por esta generosidade provocada por outrem, e este dom instaura a comunidade, a universalidade. Outrem corta, interfere na gozosa posse do mundo que constitui o eu. Outrem é, portanto, princípio do mundo comum: não há objetividade sem a epifania do outro: “A generalidade do Objeto é correlativa à generosidade do sujeito que vai em direção ao Outro, para além do gozo egoísta e solitário, e fazendo desabrochar, assim, na propriedade exclusiva do gozo, a comunidade dos bens deste mundo”. A relação entre o objeto e o sujeito tem lugar por este movimento do sujeito em direção a outrem. Só há generalidade se houver generosidade. 
Levinas retoma e trabalha a linguagem estabelecida: fala de reconhecimento... e nosso ouvido está habituado a este idioma familiar. Mas, de novo, ele arremete e, por assim dizer, perfura esta palavra e suas ressonâncias. Diz: “Reconhecer outrem é, pois, alcançá-lo através do mundo das coisas possuídas, mas, simultaneamente, instaurar pelo dom a comunidade e a universalidade”. Convém notar a força dos verbos alcançar e instaurar, pois o reconhecimento não é apenas um movimento que segue um processo lógico já estabelecido do qual se verificaria os diversos momentos na própria relação. Pelo contrário, nada está decidido; tudo está por acontecer; e isto se opera pela linguagem: “A linguagem é universal porque ela é a passagem mesma do individual ao geral, porque oferece coisas minhas a outrem. Falar é tornar o mundo comum, criar lugares comuns. A linguagem não se refere à generalidade dos conceitos, mas lança as bases de uma posse em comum. Ela abole a propriedade inalienável do gozo”. Compreende-se, assim, que a linguagem tem uma função essencialmente dinâmica, construtiva, doadora; instaura o mundo comum e a relação a outrem. A linguagem é criadora. 
Na separação, o mundo é “minha casa onde tudo me é dado”. No discurso (linguagem), o mundo é “o que eu dou – o comunicável, o pensado, o universal”. O discurso não é, portanto,“patética confrontação”, não é o amor. O eu pode não responder ao olhar do estrangeiro, isto é, pode não doar. A relação acontece pela mediação das coisas: “É a relação do Mesmo com o Outro, é minha acolhida do Outro que é o fato último e onde acontecem as coisas, não como o que se edifica, mas como o que se doa”. O fato último, isto é, o primeiro.
5-6. Ética, metafísica e o humano
É preciso meditar e procurar compreender bem estes pontos essenciais, onde se condensa todo o movimento de exposição esboçado até aqui, na primeira seção, e que contêm teses essenciais do pensamento de Levinas. Pode-se perceber que há quatro momentos que marcam estas páginas realmente densas.
- “A revelação é discurso”, quer dizer, palavra que se sustenta por ela mesma. Ela supõe interlocutores, supõe a separação, em outras palavras, a separação como santidade. Só é possível revelação se houver separação, em outras palavras, ateísmo. Ateísmo não deve ser entendido como oposição a Deus, mas como existência humana que se mantém por ela mesma: “O eu ... permanece separado e mantém sua parte”. Portanto, a revelação não é do domínio do objetivável; mas, é relação, manutenção e afirmação da diferença. Sendo discurso, ela é o que “instaura, para além de um conhecimento de objeto, a experiência pura da relação social em que um ser não tira sua existência de seu contato com o outro”. 
- “A dimensão do divino abre-se a partir do rosto humano”: não há, portanto, inteligência direta do divino e, para Levinas, esta é impossível. Não pode haver intuição, nem idéia e nem participação em uma vida qualificada de sagrada, como se ao homem fosse possível transportar-se a outro mundo. Significa dizer também que o conhecimento teórico, tematizante, não é o proceder adequado para conhecer o transcendente. Sempre retorna o tema do ver e Levinas vai abandonando o primado da visão.
A passagem obrigatória pelo rosto humano introduz uma diferença digna de nota. Ser obrigado a retornar à nudidade do rosto é ser obrigado a retornar àquilo que é, ao mesmo tempo, mais e menos que um objeto , mais fraco porque sempre pode não ser considerado tal, e mais forte porque sempre livre, meu mestre, não capturável, inapreensível. O transcendente tem o mesmo estatuto: “estrangeiro e pobre”, ausente, quase despercebido e, contudo, presente, como se fosse preciso que o outro homem estivesse presente para que Deus se manifeste. Por diversas vezes, Levinas afirma que não há religião natural, pois a natureza não pode representar uma verdadeira exterioridade. Com isto, Levinas quer dizer que o homem não é naturalmente religioso, que ele pode viver e se basta sem Deus; mais, esta é a condição para aceder à religião no sentido entendido por Levinas. Significa dizer também que a abertura à dimensão do divino é da ordem do desejo: ela é dom, surplus, excesso, sendo o desejo esta “inversão fontal” de todo nosso ego que, primeiramente se manifesta como captador, mestre de si, conquistador. Esta dimensão do divino nem por isso é extrínseca: a idéia do infinito em nós é seu vetor, idéia que outrem vai despertar. 
- “É preciso obra de justiça – a equidade (droiture) do face a face – para que se produza a passagem que conduz a Deus; a “visão” coincide aqui com esta obra de justiça”. A primazia é reconhecida e dada ao ato de justiça, ato que nos leva na verdade em direção ao conhecimento do absoluto. Ato mais fecundo que a visão, porque esta obra de justiça implica uma responsabilidade a partir de nós mesmos, uma aventura pessoal que vai mais longe que a simples visão teórica, precisamente porque este ato é para o outro: o eu é tomado por outrem, além de si mesmo; é investido por outrem que é irredutível. Outrem, portanto, não é um mediador que nos aproxima de Deus. O mediador isentar-nos-ia de nossa responsabilidade. Neste sentido, o outro em nada é mediador: é, sim, investidura de nossa liberdade. E como um paradoxo que não é senão aparente, este quase-êxodo por outrem, esta saída de si que passa “necessariamente por meio das coisas”, é o caminho que conduz a um Deus pessoal: “A ética é a ótica espiritual. A relação sujeito-objeto não a reflete; na relação impessoal que a ela conduz, o Deus invisível, mas pessoal, não é abordado fora de toda presença humana”. Só há Deus pessoal no encontro com outrem. Só há sujeito verdadeiramente sujeito pelo encontro de outrem. O eu da separação, se ele é um eu auto-suficiente, que se mantém sobre seus pés, é um eu incompleto: ele pode permanecer no mundo do gozo. A ética então é ótica espiritual, pois concebida fundamentalmente como relação a outrem; ela abre o reino do espírito, pensado não como visão da essência, mas como tomando o aspecto prático do ultrapassamento de si, de seus próprios limites, em direção ao que nunca é mundo, natureza, em direção ao outro.
- Enfim, “o primado da ética – um dos objetivos desta obra -” consiste em reconhecer na “religião a estrutura última”. Em outras palavras, “a metafísica acontece nas relações éticas”. Levinas afirma aqui o primado do social, de um social que podemos qualificar de ativo (pelo outro e para o outro); ele estabelece uma analogia entre este social e o sensível kantiano que confere um conteúdo concreto, real, às categorias excelentes, mas vazias do entendimento. Assim, o social confere um conteúdo concreto aos nossos conceitos, a nossas “mais belas idéias” e purifica a imaginação. O sensível torna-se indício de justeza, e o concreto faz apelo à consciência: nada acontece por detrás de nós, “sem nossa consciência”. A última frase destas páginas é clara: “Tudo o que não pode ser reconduzido a uma relação inter-humana representa, não a forma superior, mas uma forma primitiva da religião.” Podemos, assim, compreender que a religião, “relação sem relação” e “estrutura última” é deveras relação, sem, contudo, formar um elo. Ela é absolução de cada um dos termos. Ela é estrutura última, pois ela põe o eu face ao outro e face a ele mesmo, sem se esquivar ou fugir. Levinas opõe-se ao mito, caracterizado precisamente pela totalização, onde os elementos não existem por eles mesmos. Não há religião sem separação, sem ateísmo, sem eu, sem sujeito autônomo, ateu. E não há outrem se não houver eu. Ao final, possamos, talvez, dizer: só há eu verdadeiramente sujeito se há relação-absolução com outro que é outrem. 
 
C – Verdade e Justiça (cap. III da 1ª seção)
A liberdade posta em questão
A análise/confronto entre necessidade e desejo mostrou que o lugar do Desejo não é o conhecimento objetivo, mas o discurso ou linguagem. O discurso é justiça, retidão do acolhimento dado ao rosto. Como fica então a situação do intelecto, que sempre foi caracterizado por sua vocação de busca da verdade? Qual é a relação entre justiça e verdade? A questão de fundo trata aqui da relação entre verdade e inteligibilidade. Há dois verbos que permitem captar, entender o verbo conhecer: são eles o compreender e o justificar. A medida desta justificação é a espontaneidade, o livre exercício, pois a espontaneidade nunca se põe em questão, como que se vendo aliada ao desejo de inteligibilidade que respeita o objeto considerado. Qual o desafio que Levinas vai enfrentar? Pôr em questão a espontaneidade, mostrar uma nova atitude – “a consideração do fato”. A liberdade guarda suas distâncias. Não haverá, não há saber sem crítica. 
Há concordância unânime de que não há saber sem crítica. Mas, o que é esta crítica de si? Será descoberta de sua fraqueza, por conseguinte, consciência de fracasso? Ou será consciência de sua indignidade e, por conseguinte, consciência de sua culpabilidade, sendo que, neste caso, justificar a liberdade será torná-la justa? Aqui, Levinas propõe uma alternativa histórica: o pensamento europeu privilegiou a consciência do fracasso, quer dizer, o não questionamento da espontaneidade, da liberdade. O fracasso chama a ordem, e tal foi a fonte de toda a teoria política que visa ao “mais completo exercício (de minha espontaneidade) propondo consonância de minha liberdadecom a liberdade dos outros”. Em outras palavras: a espontaneidade é um valor indiscutido e, portanto, indiscutível, norma primeira e última. Caminha, intrinsecamente, com “a possibilidade para um ser razoável, de se situar na totalidade”. Este elo indica a função do fracasso, que conduz a uma crítica da espontaneidade e ao questionamento da posição central do eu no mundo. Tal crítica “supõe, portanto, um poder de reflexão sobre seu próprio fracasso e sobre a totalidade, um desenraizamento do eu arrancado a si e vivendo no universal”. Mas, para Levinas, não é o fracasso e nem a reflexão decorrente que vão provocar o desenraizamento do eu, mas o Outro enquanto Outrem. Pois, a consciência do fracasso, em certo sentido, revela certa segurança: teoria e verdade são pressupostas, já estabelecidas. Todo o trabalho da reflexão está em conduzir ou reconduzir a estes pressupostos tidos como lugares seguros. Há uma relação estreita entre conhecimento do mundo e conhecimento do fracasso, tornando-se rigorosa a conclusão: “A consciência já é teorética”. E Levinas não elabora sua filosofia a partir de tal consciência.
Ele propõe e segue a outra face da alternativa: “a crítica da espontaneidade engendrada pela consciência da indignidade moral”. A verdade não é pressuposta; o eu não vai se sublimar no universal, e a “consciência da indignidade não é uma verdade, não é uma consideração de fato”. Ao fato, Levinas opõe Outrem como Infinito. E aqui soa a frase central: “A idéia de totalidade e a idéia do infinito diferem precisamente nisto: a primeira é puramente teorética, a outra é moral.” Somos agora convidados a dar um passo a mais: “A liberdade podendo ter vergonha dela mesma – funda a verdade (e assim a verdade não se deduz da verdade)”. 
Quem é Outrem? Será que esta questão é importante quando se reflete sobre a subjetividade? Questões pertinentes, numa perspectiva de filosofia idealista que define o sujeito pela consciência de si. Questão que, talvez, comece a estremecer no encontro com Outrem que atropela o eu na sua segurança fácil. Pois, “Outrem não é inicialmente fato, não é obstáculo, não me ameaça de morte”, como podem ser o mundo, a natureza. “Outrem é desejado na minha vergonha”. A vergonha, a vergonha de poder ser assassino, é elevada à condição de categoria. Outrem acolhido põe em questão a liberdade do eu. A vergonha é orientada ao inverso da consciência, pois “seu sujeito me é exterior”, e ela tem por condição “o discurso e o Desejo em que outrem se apresenta como interlocutor”. O que esta vergonha revela? Que “eu não sou inocente espontaneidade, mas usurpador e assassino”. Outrem não é outro eu: ele domina o eu, ele existe justificado. Ele se revela e revela ao eu o que ele é. Desta forma, o acolhimento de outrem embaralha todas as evidências, põe em questão “minha gloriosa espontaneidade de vivente”. Quando a liberdade se sente “arbitrária e violenta”, então começa a moral. Então, “a busca do inteligível, mas também a manifestação da essência crítica do saber, a retomada de um ser aquém de sua condição – começa simultaneamente.” O Mesmo é de fato o Mesmo antes do acolhimento de Outrem.
A investidura da liberdade ou a crítica
A liberdade posta em questão: trata-se agora de saber, de descobrir, como esta se funda. Contra Sartre, Levinas escreve: “A existência, na realidade, não está condenada à liberdade, mas é investida como liberdade. A liberdade não é nua.” E filosofar será descobrir esta “investidura que liberta a liberdade do arbitrário”. E isto só é possível num ser criado. O sujeito é este ser criado, autônomo, independente, que pode permanecer totalmente por si e para si. 
Se, pois, a crítica ou a filosofia é a essência do saber, o próprio deste saber não consiste em se direcionar a um objeto, mas sim em poder se colocar em questão. Pela acolhida de outrem, a liberdade do eu é posta em questão. A acolhida de outrem coloca em causa, em crise o eu, o mesmo, crise que não o levará a mudanças sucessivas, mas a um decentramento radical, a uma ex-centração do eu, a uma fissuração. Neste mesmo movimento, é modificado o ponto de partida da filosofia, que não é mais um princípio neutro, exterior, ou a consideração da natureza: “... a filosofia... começa com a consciência moral em que o Outro se apresenta como Outrem e onde o movimento da tematização se inverte”. Esta inversão é submissão à exigência da moralidade: o olhar que outrem pousa sobre o eu não é comparável ao olhar do eu sobre ele: “Outrem é metafísico” ou, dito em outras palavras, Outrem é princípio. 
Assim como há uma inversão do desejo, há também uma inversão da crítica. O Mesmo é imperialista: a tudo o que lhe resiste, ele estende sua identidade, sua liberdade. Mas esta liberdade não pode ser inteira diante de Outrem, ela recua. Tudo o que caracteriza o conhecimento – gozo, posse, liberdade – não vale para a relação com outrem: “Outrem impõe-se como uma exigência que domina esta liberdade e, a partir daí, como mais original do que tudo o que se passa em mim.” Portanto, Outrem indica o fim dos poderes do Mesmo. 
Mas, o Mesmo pode não entregar as fichas tão facilmente. Na busca de justificação, ele pode seguir outros caminhos, como “compreender-se numa totalidade”. Neste caso, temos uma filosofia que identifica vontade e razão (Spinoza e Hegel). A verdade é aqui situada numa razão impessoal. A dignidade essencial está no saber, com o desvanecimento da liberdade na totalidade. O Mesmo triunfa, mas o Neutro prevalece e o subsume. Levinas abandona este caminho, ao abordar “o eu como ateu e criado – livre, mas capaz de remontar aquém de sua condição – diante de Outrem, que não se entrega à “tematização” ou à “conceitualização” de Outrem.” Sem isto, a linguagem nada mais seria que a tradução de um logos universal, não introduziria nem ruptura nem começo, não seria palavra. Portanto, Outrem não constrange minha liberdade, mas a investe; e a razão é que assim como põe em questão minha liberdade, é também convite à justiça. Da mesma forma como Levinas abandona a totalidade, abandona também “o conhece-te a ti mesmo” socrático. O “para si” do eu não é o lugar onde podemos aproximar o ser. E a razão disso é simples, com acentos pascalianos: “Não que o “para si” seja limitado ou de má fé, mas porque, por ele mesmo, não é senão liberdade, isto é, arbitrário e injustificado e, neste sentido, odiável; é só eu, egoísmo.” O egoísmo será descrito, antes de ver como ele é investido e como o Outro o fissura, não somente como um sujeito que se mantém por si mesmo, mas por sua relação a outrem. O eu só é eu pelo outro. A criatura é, portanto, um ser ateu que pode aprender que é criado e pode se colocar em questão: ele pode ter vergonha “pelo arbitrário da liberdade que o constitui”. Escreve Levinas: “A maravilha da criação não consiste apenas em ser criação ex nihilo, mas criar um ser capaz de receber uma revelação, de aprender que é criado e se pôr em questão. O milagre da criação consiste em criar um ser moral.” 
Não é, por conseguinte, a ontologia que condiciona a relação a outrem. Justiça e injustiça possibilitam um acesso original a outrem “para além de toda ontologia”. A relação com outrem não tem por modelo a relação com as coisas. Outrem é independente do eu, ele é um ente absoluto, que o eu acolhe pelo discurso que é essencialmente ensinamento: Outrem que fala ensina o eu. Outrem é, portanto, o princípio, pois ele pode dizer sim. Sem ele, não há experiência. O princípio não é, portanto, nem um neutro nem o mundo nem o ser. A filosofia não será, pois, contemplação, teoria. A palavra só pode aparece no seio de uma relação com outrem. “Outrem é o princípio do fenômeno” – isto significa que o mundo nunca está em original, é sempre proposto por outrem, numa relação: “Outrem, significando-o - manifesta-se na palavra falando do mundo e não de si, ele se manifesta na palavra ao falar do mundo, e não de si, ele se manifesta propondo o mundo, tematizando-o”. Ele mesmo não pode ser tematizado, pois ele pode sempre vir em socorro de sua palavra,assistir ao seu dito por seu dizer, desdizer seu dito por um novo dizer. Fica claro que é o discurso oral que é a plenitude do discurso. Não há significação sem o Outro que diz o mundo, quer dizer, que tematiza este mundo pelo seu entendimento e sua linguagem, e o lugar da tematização é precisamente a linguagem. A palavra é sempre nova e grave, e no borbulhar das aparições ela decide. Ela é começo, ruptura da anarquia. O ser daquele que fala efetua-se na assistência a sua própria manifestação. Falar é socorrer, dar sentido, orientação. Sem a palavra, o mundo é sem sentido: “A palavra é, assim, a origem de toda significação – dos instrumentos e de todas as obras humanas – pois, por ela, o sistema de retorno ao qual remete toda significação recebe o princípio de seu próprio funcionamento – sua chave. Não é a linguagem que seria modalidade do simbolismo, todo simbolismo já se refere à linguagem.” Percebe-se que Levinas se situa nos antípodas de um pensamento do neutro, da totalidade, pensamento que se exprimiria através de homens com certeza, mas faria com que estes nada mais fossem do que marionetes ou veículos do que se pensa. E se a linguagem rompe a anarquia não é porque é linguagem, mas por que outrem fala. Assim, é outrem que é o princípio, não um outrem silencioso, mas outrem que fala. A linguagem só é ruptura porque outrem é princípio. 
D – Separação e Absoluto (Cap. IV da 1ª seção)
Tudo está condensado em quatro páginas densas, afirmativas, definitivas, com recurso a conceitos clássicos da filosofia e da teologia, nas quais aparecem as teses principais do autor expressas logo no início : 
- O Mesmo e o Outro se relacionam e se absolvem da relação ao mesmo tempo, permanecendo absolutamente separados. 
- A idéia do Infinito pede esta separação. 
- Ela foi posta como a estrutura última do ser, com a produção de sua própria infinitude. 
- A sociedade realiza-se concretamente. 
Um gesto de ruptura deve mostrar em relação a que ele rompe. Será que a longa tradição filosófica não tratou já destas questões? A idéia de separação não remeteria àquela da decadência? Será possível romper o antigo privilégio da unidade “que se afirma de Parmênides a Spinoza e Hegel”? Privilegiar a multiplicidade, em vez do privilégio da unidade, não seria ver a multiplicidade como um defeito/carência? Se no privilégio da unidade, a separação e a interioridade tornam-se “incompreensíveis e irracionais”, por que a multiplicidade seria posta de lado, já que ambas são sinal e vestígio de decadência? O esforço da metafísica consiste em “lavar” esta decadência: lá onde reina a separação, ela terá a função de unir. O ser separado percorre etapas, dirige-se em direção ao Uno do qual tem nostalgia, e a metafísica segue a figura da odisséia de Ulisses. 
Mas, diz Levinas, “a filosofia da unidade nunca soube dizer donde vinham a ilusão e a queda acidentais, inconcebíveis no Infinito, no absoluto e no Perfeito.” À questão posta, Levinas responde afirmando que a concepção de separação desta filosofia era deficiente, pois era pensada a partir da necessidade (besoin), na qual o ser aparece como necessitado, dependente do exterior e ansioso pela unidade num movimento de retorno. Esta foi “uma das vias da metafísica grega”, predominante, mas não a única. 
Outra via é ilustrada por Platão, ao conceber o Bem, separado da totalidade e da essência, entrevendo assim uma estrutura que vai além, superando a totalidade. “O Bem é um Bem em si e não em relação à necessidade à qual faz falta. Ele é um luxo em relação às necessidades. É por aí precisamente que ele está além do ser”. Levinas propõe um sujeito autônomo, nada lhe falta, e só numa situação assim pode inaugurar-se um encontro entre o Eu e o Outro acima e além da totalidade. Portanto, o Bem não é a fonte do ser, está além do ser. Ali Levinas reconhece o esquema do desejo: nas “aspirações que não são precedidas de sofrimento e de carência... aspiração daquele que possui inteiramente seu ser, que vai além de sua plenitude, que tem a idéia do Infinito”. Diante disto, exclama: “... Ensinamento o mais profundo – ensinamento definitivo – não da teologia, mas da filosofia.” 
O autor explicita a conclusão: “É preciso, em consequência, renunciar a interpretar a separação como diminuição pura e simples do Infinito, como degradação.” Ruptura clara e definitiva a respeito da filosofia nostálgica do retorno à unidade. Donde procedem conseqüências precisas e importantes: “Relações melhores que as relações que ligam formalmente, no abstrato, o finito ao infinito, as relações do Bem, anunciam-se através de uma aparente diminuição. A diminuição só conta se se retém da separação (e da criatura) por um pensamento abstrato, sua finitude, em lugar de situar a finitude na transcendência onde ela acede ao Desejo e à bondade. A ontologia da existência humana – a antropologia filosófica – não cessa de parafrasear este pensamento abstrato ao insistir, com pathos, sobre a finitude.” O pensamento abstrato não sabe o que é a separação; nada mais retém do que a finitude e nela se compraz com pathos infrutífero.
Levinas não apenas se opõe a um sistema; ele propõe seu próprio discurso que ele situa na filosofia e na antropologia, fazendo entender perspectivas que a tradição filosófica não percorreu, ou retomando conceitos que a tradição esqueceu ou não valorizou. E vai conduzir seu discurso a “uma ordem em que a noção mesma de Bem toma um sentido. Trata-se da sociedade.” Pois não há outro lugar para a relação senão a sociedade e os termos desta relação se bastam: “Esta relação é Desejo, vida de seres que chegaram à posse de si. O infinito pensado concretamente, isto é, pensado a partir do ser separado que se volta para ele, se supera. Em outras palavras, ele se abe a ordem do Bem.” Portanto, não há Bem fora da relação social, donde a insistência no ato da bondade (que corresponde ao Desejo e não à necessidade). E esta bondade não deriva de um pensamento que interpreta a separação como decadência ou queda, mas de um pensamento que vê na separação a constituição de um ser (sujeito) autônomo, feliz, constituído que tem o pensamento e a interioridade como independentes.
“Assim se esboçam relações que se abrem um caminho fora do ser.” E um infinito que não se fecha sobre si mesmo, mas que se contrai e deixa lugar a um ser separado, “existe divinamente. Ele inaugura acima da totalidade uma sociedade.” Em consequência, as relações entre o homem e o infinito não são nem adição a Deus, nem esvaecimento da distância entre o homem e Deus, pois seu lugar é a relação com o outro homem. Não há sociedade com Deus se não há sociedade entre os homens. E Levinas atesta: “A limitação do Infinito criador, e a multiplicidade – são compatíveis com a perfeição do Infinito. Elas articulam o sentido desta perfeição.” Porque o Infinito abre a ordem do Bem, surgem relações melhores nas relações inter-humanas. Nesta altura pode-se compreender melhor a distinção entre necessidade e Desejo. É através da idéia de criação ex nihilo que se afirma o desejo na sua positividade, pois o eu não carece de outrem e nem outrem carece do eu. Surge assim a possibilidade de uma operação com dupla conseqüência. “Aqui se desfaz o plano do ser necessitado, ávido de seus complementos e se inaugura a possibilidade de uma existência sabática em que a existência suspende as necessidades da existência.” A existência sabática, livre, é existência separada, e isto é fundamental para o pensamento de Levinas, pois só a partir dela se torna possível um questionamento do eu. O questionamento do eu pelo outrem é também o nascimento de uma nova liberdade, talvez não ainda conhecida, isto é, liberdade como independência em relação ao sistema.
O elo entre multiplicidade e totalidade é objeto clássico da reflexão filosófica que procura compreender o múltiplo entendido como decadência e reuni-lo à totalidade. Ora, a idéia de criação ex nihilo não conduz a uma totalidade que uniria a multiplicidade; esta idéia de criação permitemanter a multiplicidade pelo conceito de separação. Existe uma dependência da criatura em relação ao Outro, mas a criatura não é uma parte do Outro. Há, portanto, ruptura do sistema, e a liberdade do ser é possível por não ser mais relativa à totalidade. Escreve Levinas: “A criação deixa à criatura um traço de dependência, mas de uma dependência sem igual: o ser dependente tira desta dependência excepcional, desta relação, sua própria independência, sua exterioridade ao sistema.” O traço de dependência vira sinal de independência. E sobre o problema da finitude, tão caro aos existencialistas, surge esta afirmação categórica: “O essencial da existência criada não consiste no caráter limitado de seu ser e a estrutura concreta da criatura não se deduz desta finitude.” Pois, o essencial da existência criada consiste “na separação em relação ao Infinito... que não é simplesmente negação. Realizando-se como psiquismo, ela se abre precisamente à idéia do Infinito.” Sendo assim, a existência criada é essencialmente abertura, acolhimento e não limitação. 
Levinas propõe uma filosofia da relação social que pressupõe a esfera da separação em que se afirma o ser criatural do eu, do sujeito autônomo, feliz e independente. A questão do saber e do conhecimento encontra-se relegada à segunda classe. Outrem é primeiro, é ele que excede (“dèborde) a consciência, que profere o sim de que é incapaz o eu. Toda a organização deste questionamento pelo Outro mostra uma “experiência sem conceito” em que eu e outro são inconjugáveis em categoria. Ali acontece uma inversão: o eu espontâneo, livre, senhor de si, se vê julgado, criticado por Outrem que o chama à justiça. Lá onde a liberdade era primeira, agora se afirma que a sua suspensão é primeira, e a liberdade mais livre é a liberdade investida pelo Outro que é Outrem. 
 
		
 
 
Seção III – O rosto e a exterioridade
A.Rosto e sensibilidade 
A 3ª seção começa com um texto límpido e preciso, são 07 páginas que retomam a tradição filosófica ocidental e analisam um ponto central que é o privilégio dado à visão para, no fim, afastar-se dele. Percebe-se uma leitura desmistificadora da tradição e que começa por uma questão na aparência bem simples: Se o rosto é dado à visão, em que a relação com ele se distingue de todas as outras relações? Para fazer frente a esta questão, Levinas faz uma análise da visão e apresenta uma síntese da experiência sensível.
Aqui vamos apresentar apenas alguns elementos. Donde vem o prestígio da visão? Vem do prestígio dado à theoria, que essencialmente mantém à distância. Além disso, o lugar privilegiado da objetividade é o olhar. Levinas contesta que este privilégio informe toda experiência. A visão faz aparecer um terceiro termo entre o sujeito e o objeto – a luz – que permite a inteligibilidade e cria um vazio no espaço. O toque é próximo da visão, pois a mão atravessa este vazio. A visão mantém o objeto neste vazio. A luz será logo assimilada ao ser enquanto ser, isto é, à origem das coisas. O terceiro termo permite, pois, a inteligibilidade e o retorno à origem: “A inteligência do ente consiste em ir além do ente no aberto precisamente. Compreender o ente particular é captá-lo a partir de um lugar aclarado que ele não preenche.” Levinas contesta estas afirmações filosóficas (tendo Heidegger por trás), pois o ente que fala é o homem, e o homem não pode ser compreendido como um objeto, e sua relação com o outro homem não pode ser reduzida aos esquemas da lógica formal. 
Tanto o vazio espacial como o aberto são ‘alguma coisa’, talvez um ‘pouca coisa’, mas que não é o nada. Trata-se do il y a = há, vazio que inspira horror e que não se calca sobre o es gibt heideggeriano, trata-se da essência elemental do elemento. Ora, é o contentamento do gozo que leva a sair deste horror, pois o ser absolutamente exterior não é buscado no vazio do espaço, não é encontrado no aberto. Levinas interpreta o vazio como “uma modalidade do gozo e da separação”, e não o lugar por excelência, o lugar do desvelamento. A visão, portanto, permite captar os objetos e colocá-los no universo do Mesmo; ela “não é uma transcendência. Ela presta uma significação pela relação que torna possível. Ela não abre nada que, para além do Mesmo, seria absolutamente outro, isto é, em si.” Esta afirmação categórica é uma tomada de posição clara e solene que se afasta da concepção tradicional da visão. A luz não permite a abordagem de frente, mas de lado. Levinas procura descrever uma abordagem face a face, de frente, e não oblíqua ou de lado a lado. A filosofia que privilegia a luz é uma filosofia do Mesmo, do fechamento no Mesmo, que não permite uma relação em que cada ente se manifesta por ele mesmo, sem mediações, sejam quais forem. 
Qual é a verdadeira luz? A verdadeira luz é aquela do rosto de outrem. “É preciso uma luz para ver a luz”. A alteridade não vem da forma das coisas, da natureza, “se apresenta a parti dela mesma”, isto é, abandona-se o universo do Mesmo e da sua satisfação (calcado no esquema das necessidades). A transcendência também não será relacionada ao belo, pois o objeto é fachada ou espetáculo, mas ao bem. A alteridade total que abre uma relação absolutamente diferente revela-se na “epifania como rosto”. A visão do rosto é uma experiência sensível, diferente de toda outra experiência sensível. Mas, experiência como relação ao absolutamente outro – transcendência metafísica. 
B.Rosto e ética
1.Rosto e infinito
Como entender a relação face a face e qual seu lugar na constituição do sujeito? Como já visto, Levinas recusa a idéia de experiência como confrontação identificadora e objetivadora. De fato, temos uma relação com o absoluto; mas este nunca é perfeitamente integrado à experiência, pois o absoluto não é integrável, do contrário não seria mais absoluto, mas objeto dominado. Assim, o rosto não pode ser integrado, pois é ruptura com a fenomenalidade do mundo (visão e espaço) e só se abre na e pela palavra. A presença de outrem é incompreensível, isto é, inapreensível. À compreensão, Levinas opõe o discurso. Aqui o discurso recebe um estatuto original, pois coloca em relação “com o que permanece essencialmente transcendente”. Em consequência, o eu é posto em questão na sua pretensão de Mesmo pelo rosto de outrem. Este ponto é importante: não é mais a consciência (infeliz, fracassada) que por ela mesma se põe em questão, mas é o Outro com Outrem que põe em questão a feliz suficiência do eu. Força surpreendente do rosto que questiona a posse do mundo própria do eu. O que chama atenção aqui é que o ponto de partida do questionamento vem do rosto = Outro, questionamento que faz sair o mesmo de sua trincheira e o faz chegar à estatura do ser a que é pro-vocado, isto é, sua responsabilidade. Ser responsável é alcançar o humano. Portanto, é o Outro que faz nascer o eu ao ser pleno, entrando em relação com ele e interrogando-o. O infinito chega ao eu no concreto do rosto de outrem. A responsabilidade em relação ao outro homem é o exercício concreto da relação com o Infinito. Isto significa dizer que a ética não procede em primeiro lugar do eu. Na resistência ética – no Tu não matarás – não é o eu que se exprime; o eu recebe este mandamento do exterior. Por esta exigência mesma, a presença de outrem é irrecusável. Levinas inscreve aqui algo surpreendente ao afirmar que “a exterioridade de um ser se inscreve na sua essência” e que “somente assim não se articula um arrazoado, mas a epifania como rosto”. Como é possível isto? “O desejo metafísico do absolutamente outro... desdobra sua en-ergia na visão do rosto... supera meus poderes... questionando-os...”. A inscrição da exterioridade vai se tornar sempre mais acentuada, como abertura, como acolhimento e como responsabilidade que cresce na medida em que se exerce, desnucleando o Mesmo e elevando-o à transcendência.
Portanto, a relação com outrem não é limitação, mas ensinamento. O eu aprende sem ser constrangido, responde a sua palavra que o revela. A partir deste momento

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