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Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo ORALIDADE PRIMÁRIA E ORALIDADE SECUNDÁRIA: CARACTERÍSTICAS DISTINTIVAS FUNDAMENTAIS JOSÉ MARIO BOTELHO (FFP-UERJ E ABRAFIL) NOELLE CASTRO FERREIRA RESUMO: Na antiguidade, a linguagem das sociedades era essencialmen- te oral e de cultura primária, que se caracterizava por total desconhe- cimento da escrita e do que ela proporciona aos membros de uma cultura de oralidade secundária, onde a escrita é largamente difundi- da. De fato, não só há características que distinguem fundamen- talmente a oralidade primária da oralidade secundária, como as for- mas de memorização, o estilo de comunicação, sua psicodinâmica em si, como também e, sobretudo, a forma de elaboração do pensa- mento do homem da época. O objetivo do presente trabalho é, portanto, distinguir a orali- dade primária da oralidade secundária e refletir sobre a natureza da mente do homem atual, pois acreditamos, como Ong (1982 e 1998), Botelho (2002) e Goody & Watt (2006) que o advento da escrita inaugura um novo homem, que difere, em todos os aspectos, do ho- mem da época de Homero, por exemplo. Introdução A linguagem utilizada pelos membros das comunidades da Antiguidade era essencialmente de cultura primária, que se caracteri- zava pelo total desconhecimento da escrita e de tudo que a cultura escrita – cultura de oralidade secundária – pode proporcionar aos seus usuários. Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 2 De fato, a distinção entre oralidade primária e oralidade se- cundária é flagrante, pois se podem observar as suas características particulares. Esses dois tipos de oralidade se distinguem na forma de memorização, no estilo de comunicação, na estrutura e extensão sintática, na sua psicodinâmica em si, e, sobretudo, nas suas conse- qüências na estrutura mental do ser humano. O objetivo deste trabalho é, pois, o de identificar a oralidade primária, que se distingue da oralidade secundária, e assinalar as características fundamentais de cada uma delas. Tais características fundamentais distintivas constituirão subsídios para uma reflexão sobre as conseqüências do advento da escrita, já que acreditamos, como Ong (1982 e 1998), Botelho (2002) e Goody & Watt (1968 e 2006), que a escrita inaugura um novo homem que pensa e age de forma diferente do homem da época de Homero, por exemplo. Convém ressaltar que, inicialmente, os estudos lingüísticos buscavam comparar a oralidade e a escrita, a fim de saber se tais modalidades da língua eram iguais ou diferentes. Porém, a partir da pesquisa de Chafe (1987) e, posteriormente da de Botelho (2002), pudemos constatar que essas modalidades são semelhantes, uma vez que não são estanques, embora apresentem suas particularidades e se distingam completamente no que se refere ao processo de produção de seus textos. Muitas são as pesquisas em torno da comparação entre as mo- dalidades oral e escrita, mormente na busca de se estabelecerem as características particulares e as comuns entre elas. Contudo, alguns Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 3 estudiosos estão concentrando-se em outros aspectos da linguagem, como por exemplo, a identificação de uma cultura oral anterior ao advento da escrita, e refletindo sobre como a prática da escrita pro- moveu uma transformação na oralidade. Neste trabalho, vamos concentrar os nossos esforços no senti- do de corroborar a caracterização de uma oralidade primária e a de uma oralidade secundária. Aquela, a oralidade de uma cultura oral essencialmente e, portanto, primária; esta, a oralidade de uma cultura fundamentalmente escrita e, por conseguinte, secundária. Em princípio, a escrita era considerada como um mero com- plemento da oralidade e não como um elemento transformador da verbalização em si; ou seja, a escrita era tida como mais uma ferra- menta utilizada pelo homem na expressão de idéias e na comunica- ção conveniente; não era vista como um fenômeno transformador dessas atividades que, além de ser um produto físico, é também o resultado de um processo psíquico. Em seus estudos, Ong (1982) reflete sobre a importância do advento da escrita, e sobre as conseqüências de sua introdução em uma sociedade de cultura oral primária. Além disso, o autor analisa as características distintivas entre a oralidade primária – aquela cujos falantes desconhecem a escrita ou a impressão, e por isso não foram afetados por estas – e a oralidade secundária – característica das so- ciedades contemporâneas (escolarizadas, industrializadas e marcadas pelo conhecimento científico-tecnológico e pela presença dos meios de comunicação de massa), isto é, de uma sociedade, cujo funciona- Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 4 mento depende da escrita e da impressão, uma vez que tais práticas sociais já foram completamente interiorizadas. A oralidade primária Segundo Ong, a cultura oral primária praticamente não existe, visto que o conhecimento da escrita está bastante difundido e prati- camente todas as culturas já sofreram seus efeitos. Sendo assim, para ele, o estudo acerca da oralidade primária torna-se difícil. No entanto, apesar de tal dificuldade, é possível pensar em al- gumas de suas características, e uma delas é o processo de aprendi- zagem das sociedades que praticam tal tipo de oralidade. Os indiví- duos desse tipo de sociedade aprendem através da prática, conviven- do com pessoas mais experientes, a partir das quais o conhecimento é transmitido. Ou seja, o conhecimento é transmitido oralmente de pais para filhos, dos mais experientes para os incipientes, que são insipi- entes. Já os indivíduos das sociedades modernas reúnem conheci- mento de outra forma: vários elementos tecnológicos, a escrita é um deles, transmitem o conhecimento. (...); aprendem ouvindo, repetindo o que ouvem, dominando pro- fundamente provérbios e modos de combiná-los e recombiná-los, assimilando outros materiais formulares, participando de um tipo de retrospecção coletiva – não pelo estudo no sentido restrito. (ONG, 1998, p. 17) Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 5 Como se pode observar, os indivíduos das culturas orais pri- márias também aprendiam e muito e, por conseguinte, possuíam uma sabedoria considerável, entretanto não estudavam propriamente dito, já que o estudo se caracteriza por uma análise ampla e seqüencial, que só é possível com a realização física de um elemento palpável, como o é o texto escrito. Eles “estudavam” com a fala, que se forma com o som, que é um evento – realização fugaz, passageira, que tão logo se inicia e já deixa de existir. Diferente do que ocorre nas culturas escritas. O estudo se dá a partir de um conhecimento reunido em textos escritos, em livros, mormente. O conhecimento organizado que os indivíduos pertencentes à cul- tura escrita atualmente estudam, a fim de que ‘saibam’, isto é, possam recordar, com muito poucas exceções – quando muito –, foi reunido e colocado a sua disposição pela escrita. (Idibidem, p. 44) De acordo com o referido autor, a oralidade primária apresen- ta-se próxima ao cotidiano da vida humana e desenvolve um pensa- mento situacional, visto que para os membros de uma cultura oral primária um conhecimento deve fazer sentido em suas situações práticas, isto é, em suas experiências diárias. Sendo assim, quando um conhecimento perde seu significado social, ele é esquecido. Por outro lado, a oralidade secundária encontra-se mais distan- te da realidade concreta, uma vez que desenvolve um pensamento mais abstrato, proporcionado pela escrita. Ou seja, enquanto na escri- Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 6 ta se caracteriza um distanciamentoque propicia a objetividade, na oralidade, se caracteriza o fator “envolvimento”. O único modo de “guardar” os conhecimentos adquiridos em uma cultura oral primária é por meio da repetição e da memorização. E por isso, tais métodos constituem elementos de extrema importân- cia em uma cultura oral primária. Ritmo, antíteses, aliterações, assonâncias e expressões formu- lares são elementos que auxiliam a retenção e a recuperação de um conhecimento, que uma vez adquirido deve ser constantemente repe- tido para ser memorizado e não se perder. Contudo, tal processo de retenção do conhecimento requeria do usuário normal uma grande contensão, a qual eles certamente se esforçavam para desenvolver. Embora possuíssem um grande poder de memória, os poetas praticantes de uma oralidade primária não memorizavam palavra por palavra, e devido a essa ausência de memória exata, tais poetas utili- zavam-se de estruturas formulares, ou seja, de materiais pré- fabricados. Dessa forma, as criações poéticas eram realizadas através de combinações de fórmulas que giravam em torno de temas também padronizados (tais como a reunião do exército, e o desafio). Podemos afirmar então, que nas culturas orais, ao contrário do que ocorre nas culturas quirográficas (grafia à mão, relativo a “quir(o)” do grego “cheir; cheiros” – mão), não se criam novas histó- rias, embora novos elementos possam ser introduzidos por narrado- res competentes. Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 7 Além de mostrar-se conservadora, como vimos acima, a orali- dade primária é também redundante, uma vez que as culturas orais primárias valorizam as expressões tradicionais, que são mantidas intactas. Somente com a repetição do que já fora dito, com a redun- dância, com o uso de formas previamente elaboradas e elementos sinonímicos se pode conseguir algo parecido com o ler novamente um trecho que não foi compreendido. Assim, a expressão oral está carregada de uma quantidade de epí- tetos e outras bagagens formulares que a cultura altamente escrita rejeita como pesados e tediosamente redundantes em virtude de seu peso agregativo. (Idibidem, p. 49) O autor não deixou de observar que é muito difícil para nós, que estamos inseridos efetivamente numa cultura de oralidade escri- ta, imaginar como seria essa cultura totalmente desprovida da escrita, que é a cultura de oralidade primária. Lembra-nos que, sem a escrita, a palavra é vazia, praticamente irreal, pois as palavras não são somente sons para os indivíduos da cultura de oralidade secundária, que tem a escrita como elemento referencial de sua comunicação. Lembra-nos, também, que o som é um evento e é dinâmico por excelência, já que não se pode torná-lo imóvel. A palavra oral é puro som; é ação; é evento. Logo, a palavra oral é um evento, que deixa de existir tão logo se inicia. A compre- ensão da psicodinâmica do som é fundamental para a compreensão do fenômeno oral, cuja psicodinâmica é a mesma e os povos de cul- Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 8 tura de oralidade secundária não concebe a palavra de outra maneira senão a partir da sua forma escrita. Os povos profundamente tipográficos esquecem-se de pensar nas palavras como primariamente orais, como eventos e, logo, neces- sariamente portadoras de poder: para eles, as palavras tendem an- tes a ser assimiladas a coisas, “lá”, em uma superfície plana. (I- dibidem, p. 43) De certo, as palavras eram, para os povos primitivos, dotadas de uma magia e de um poder, já que eram dinâmicas. Diferente do que ocorre com os povos profundamente tipográficos, que se esque- cem de caráter oral das palavras, como eventos e, logo, necessaria- mente “portadoras de poder”. É como se estivessem mortas; despro- vidas daquela magia, sem ação, mas potencialmente dinâmicas, por- quanto podem sair do papel e ressuscita com o uso oral. De fato, as sociedades quirográficas e tipográficas têm as pa- lavras como rótulos1, etiquetas escritas ou impressas de forma imagi- nária nos seres que nomeiam, ao contrário do que acontecia certa- mente com as sociedades da Antiguidade, que não tinham a escrita. Nelas, a palavra se reduzem a sons e determinam modos de expres- são e processos mentais. Na verdade, o pensamento fica preso à comunicação quando é apoiado em uma cultura essencialmente oral. E o conhecimento se 1 Cf. FIORIN, J. L. Mistério e Epifania da Linguagem. In: Ciclo de Estudos Contemporâneos em Língua Portuguesa. Belo Horizonte: Academia Li- vros & Letras. 2007. Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 9 restringe à comunicação momentânea. Assim, a retenção desse co- nhecimento e a recuperação de um pensamento perdido ou mal com- preendido constituem um problema, que só se resolve com padrões mnemônicos específicos, fundados na repetição e nas formas previ- amente estabelecidas ou estruturas formulares. Não se pode negar que as formas previamente elaboradas e fi- xas, fundamental nas culturas orais, desempenham um papel impor- tante em culturas quirográficas, cumprindo algumas das finalidades da escrita. Características da oralidade primária Enfim, é possível perceber várias diferenças entre a oralidade primária e a oralidade secundária, como por exemplo, o fato de que enquanto aquela desenvolve uma gramática pouco elaborada, esta apresenta mais variedade de léxico e estruturas sintáticas mais com- plexas e extensas. De fato, a diferença capital entre elas gira em torna do conhe- cimento da base mnemônica do pensamento e da expressão comuni- cativa de cada uma das culturas. Tais processos mnemônicos devem determinar não só o léxico como também a sintaxe da respectiva língua, como constatou Havelock (1963, p. 87-96, 131-2 e 294-6), citado por Ong. Contudo, Ong reuniu algumas características fundamentais que particularizam a cultura de oralidade primária e a distingue da cultura de oralidade secundária, que passamos a enumerar, certos de Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 10 que esse inventário de características não deve ser tomado como exclusivo nem conclusivo, posto que muito ainda temos que pesqui- sar acerca do assunto. No primeiro tipo (“Mais aditivos do que subordinativos”), comparando dois trechos, referentes à criação do mundo (Gênesis 1:1-5): um de natureza oral (a versão de Douay, 1610) e outro mo- derno (adaptação da New American Bible, 1970) comprova o que sugeriu Givon (1979): as estruturas quirográficas enfatizam a sintaxe (organização do próprio discurso) e se pode observar uma gramática mais elaborada e fixa no discurso escrito. Na escrita, o significado é mais depende da estrutura lingüísti- ca, porque nem sempre conta com os contextos normais inteiramente existenciais que circundam o discurso oral, os quais ajudam a deter- minar o significado de certa forma. No segundo tipo (“Mais agregativos do que analíticos”) obser- va que na oralidade as bases do pensamento e da expressão não são exatamente meras totalidades, mas grupos de totalidades, caracteri- zados por termos, frases ou orações paralelas ou orações antitéticas, epítetos. São exemplos de epítetos do pensamento e da expressão na cultura oral: “o soldado valente”, “a bela princesa” e “o carvalho robusto” e os seus opostos como “o soldado fanfarrão”, “a princesa infeliz”. Convém ressaltar que, depois de uma vez cristalizada, uma expressão formular deve permanecer intacta e que o pensamento Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 11 fragmentado, desprovido de uma escrita, constitui um procedimento altamente arriscado, como sintetizou de forma conveniente Lévi- Strauss, “a mente selvagem (isto é, oral) totaliza” (1966,p. 245). No tipo “Redundantes ou ‘copiosos’”, ressalta a necessidade do pensamento de algum tipo de continuidade. A escrita estabelece no texto uma “linha de continuidade que não se dá exatamente dentro da mente”, já que se pode recuperar o que já foi lido, lendo-o nova- mente. A mente concentra suas energias em avançar porque aquilo a que ela retrocede jaz imóvel diante de si, sempre disponível em frag- mentos inscritos na página. No discurso oral, a situação é diferen- te. Não há nada para o que retroceder fora da mente, pois a mani- festação oral desapareceu tão logo foi pronunciada. (Idibidem, p. 50) Constata-se que o autor corrobora o caráter esvanecente da o- ralidade, que se confunde com o som, que é um evento. Somente com a repetição do que já fora dito e com a redundância se pode conseguir algo parecido com o ler novamente um trecho que não foi compreendido. Assim, a redundância e a repetição, principalmente de estrutu- ras formulares, favorecem o entendimento por parte dos envolvidos num ato de fala, já que a mente deve se processar lentamente para se manter a atenção à comunicação. Uma vez que a redundância caracteriza o pensamento e a fala o- rais, ela é, em um sentido profundo, mais natural ao pensamento e à fala do que as linearidade parcimoniosa. O pensamento e a fa- Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 12 la parcimoniosamente lineares ou analíticos constituem uma cria- ção artificial, construída pela tecnologia da escrita. (Idibidem, p. 51) A escrita resolve o problema da necessidade de redundância e repetições de formas fixas para a continuidade do pensamento na oralidade, já que ela se caracteriza por ser linear e o indivíduo pode retomar um trecho mal compreendido quantas vezes lhe convier. No tipo “Conservadores ou tradicionalistas”, verificamos a ne- cessidade da técnica de repetição em voz alta como mantenedor do conhecimento conceitual e que “essa necessidade estabelece uma conformação mental altamente tradicionalista ou conservadora, que, compreensivelmente, inibe o experimento intelectual” (Idibidem, p. 52). Decerto, a escrita, que é conservadora por natureza, não se uti- liza da repetição, mas tem o seu modo próprio de conservação do conhecimento. A escrita toma para si funções conservadoras e liberta a mente de tarefas conservadoras, diminuindo o esforço de memori- zação. Com isso, o indivíduo tem sempre a possibilidade de fazer novas especulações, conforme nos alerta Havelock (Op. cit., p. 254- 305). Nas culturas orais, ao contrário do que ocorre nas culturas qui- rográficas, não se criavam novas histórias; poderiam, porém, novos elementos serem introduzidos por narradores competentes. De fato, “na tradição oral, haverá tantas variantes menores de um mito quan- tas forem as repetições dele, e a quantidade de repetições pode au- Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 13 mentar indefinidamente” (ONG. op. cit., p. 53). Eis o porquê de as fórmulas e os temas sofrerem normalmente o fenômeno da recursivi- dade para a sua remodelagem em vez de serem tão-simplesmente suplantados por novas estruturas fixas de pensamento. Em “Próximos ao cotidiano da vida humana”, Ong demonstra que a escrita abstrai o conhecimento, que se distancia de experiências vividas, afirmando que, na cultura oral, ocorrem a conceituação e a verbalização do conhecimento com uma referência mais ou menos próxima ao cotidiano da vida humana, para se possa assimilar o mundo. Em “De tom agonístico”, pode-se depreender que o exagero e, mormente, a violência e tudo que gera uma agonia caracterizavam a narrativa das culturas orais antigas, o que justifica o título da relevan- te obra de Goody (“The domestication of the savage mind”, 1977). Daí, ter Ong afirmado que “na celebração do compromisso físico, as culturas orais revelam-se agonisticamente programadas” (Ibidem, p. 55). Essa narrativa oral, muitas vezes marcada por uma descrição entusiástica da violência física, também constitui um elemento carac- terizador do pensamento oral, presença marcantes na obra de Home- ro, por exemplo. Na verdade, a oralidade tende a expressões exageradas de lou- vor e de depreciação, como convenientemente observa Ong ao afir- mar que “o elogio está de acordo com o mundo altamente polarizado, Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 14 agonístico oral, do bem e do mal, da virtude e do vício, dos vilões e dos heróis” (Ibidem, p. 56). No tipo “Mais enfáticos e participativos do que objetivamente distanciados”, podemos comprovar o que asseverou Haverlock, cor- roborado por Ong: Para uma cultura oral, aprender ou saber significa atingir uma i- dentificação íntima, empática, comunal com o conhecido. (HA- VELOCK apud ONG, ibidem, p. 57) De fato, enquanto na escrita se caracteriza um distanciamento que propicia a objetividade, na oralidade, como já foi declarado, se caracteriza o fator “envolvimento”2. Por isso, Ong observa em Ho- mero e em outros declamadores uma objetividade, imposta pela ex- pressão formular, já que a reação do indivíduo se expressa, sobretu- do, como uma reação comunal, encerrada na “alma comunal” e não como simplesmente individual ou subjetiva. No tipo “Homeostáticos”, que se refere ao estado de equilí- brio, o autor observa que as sociedades de cultura escrita se caracte- riza por um presente que se mantém em equilíbrio ou em homeosta- se. As memórias que não são relevantes para o presente são deixadas de lado; povoam os dicionários. As culturas orais, que não possuem dicionários e têm poucas discrepâncias semânticas, valorizavam o presente e tudo que se relacionava com o momento da comunicação. 2 Cf. BOTELHO (2002, p. 81). Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 15 O significado de cada palavra, no caso das culturas orais, era controlado por aquilo que Goody & Watt (1968, p. 29) chamaram de “ratificação semântica direta”, marcada pelas situações da vida real em que a palavra é usada. Isto é o mesmo que dizer que, na mente oral, Os significados da palavra nascem continuamente do presente, embora os significados passados obviamente tenham moldado o significado presente em muitos e diferentes aspectos já não reco- nhecidos”. (Ong, op. cit., p. 58)) É que, de modo geral, as lembranças passadas sofrem as res- trições impostas pelo presente. Por isso, Packand (1980, p. 157) ressaltou a opinião de Claude Lévi-Strauss, de T. O. Beidelman, de Edmund Leach e de outros estudiosos sobre a opinião de que “as tradições orais valorizavam aspectos culturais do presente em detrimento de uma curiosidade inútil sobre o passado”. Em “Mais situacional do que abstratos”, o autor inicialmente assevera ser abstrato todo pensamento conceitual e que, diferente das culturas quirográficas, havia nas culturas essencialmente orais uma grande tendência a usar conceitos fortemente ligados a situações, em que se verificavam um mínimo de abstração, que permaneciam pró- ximos ao mundo cotidiano. Em seguida, Ong faz uma síntese dos estudos de Luria (1976) sobre o pensamento operacional com sujeitos analfabetos, a partir do qual se pode compreender o funcionamento do pensamento oral que Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 16 difere fundamentalmente do funcionamento do pensamento quirográ- ficos. Observa os contrastes entre os analfabetos (a grande maioria dos seus jeitos) e os alfabetizados e que tais contrastes mostram aqui- lo que Carothers (1959) demonstrou em seus estudos: “um grau mi- nimamente moderado de cultura escrita faz uma enorme diferença nos processos mentais” (Ong, op. cit., p. 62). Depois, apresenta uma listar de cincolongos itens, em que os resultados da pesquisa de Luria são enfatizados. Dessa lista, Ong conclui ser o ponto principal daqueles estudo a falta de familiaridade com questões abstratas, porquanto uma cultura oral não se preocupa- va com questões envolvendo, por exemplo, figuras geométricas, categorização abstrata, processos de raciocínio formalmente lógico, definições ou até mesmo descrições abrangentes, ou auto-análise articulada. Nenhuma dessas questões deriva simplesmente do próprio pensamento, mas do pensamento formado pelo texto escrito. Ong também depreende do estudo de Luria que é possível que não se tenha um efeito efetivo sobre analfabetos a partir de um conta- to ligeiro com a organização do conhecimento próprio da cultura escrita. Portanto, é a introjeção individual da escrita que pode influ- enciar os processos de pensamento. Segundo Ong, Indivíduos que interiorizaram a escrita não apenas escrevem, mas também falam segundo os padrões da cultura escrita, isto é, orga- nizam em diferentes graus, até mesmo sua expressão oral, em pa- drões de pensamento e padrões verbais que não conheceriam, a menos que soubessem escrever. (Idibidem, p. 68) Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 17 É a partir dessa asserção de Ong que podemos conceber uma reestruturação da mente do ser humano com o advento da escrita. Dela, também reunimos subsídios para o respaldo da hipótese de que a prática assídua da escrita organizada sob padrões cultos cria no indivíduo uma oralidade culta, caracterizada por um alto grau de letramento3. No tipo “A memorização oral”, Ong chama a atenção para o fato de ter sido a memória verbal um trunfo valorizado nas culturas orais, que fora mal compreendido pelos indivíduos da cultura escrita do passado, posto que “assumiam que a memorização oral numa cultura oral normalmente atingia o mesmo objetivo de repetição per- feitamente literal” (Idibibem, p. 70), o que não era nada fácil (se não impossível) de se verificar, embora se contentassem em admitir um modelo textual literal próprio de funcionamento da memória oral. Sobre os poemas homéricos, Parry (1971) demonstrara que a Ilíada e a Odisséia eram essencialmente criações orais. Parry não se preocupou com as circunstâncias que determinaram o registro pela escrita daquelas obras homéricas, por achar irrelevante tal fato. Ong observa que essa descoberta de Parry pareceria confirmar a hipótese de memorização literal, uma vez que A Ilíada e a Odisséia eram rigorosamente metrificadas, em hexâmetros. Assim, o poeta da Antiguidade assimilava um grande cabedal de frases postas em he- 3 A referida hipótese constitui o leitmotiv das pesquisas do GELOC-SG (Grupo de Estudos sobre a Linguagem Oral Culta de São Gonçalo) – Dire- tório dos Grupos de Pesquisa no Brasil, do CNPq e do nosso Projeto de Pesquisa de Iniciação Científica (PIBIC). Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 18 xâmetro e com isso podia elaborar uma infinidade de versos rigoro- samente métricos. Esses poemas de Homero e outros da Antiguidade eram métricos e formulares. Lord (1960) constatou que entre os poetas narrativos eslavos do sul muitos são analfabetos e concluiu que aprender a ler e escre- ver torna incapaz o poeta oral, uma vez que introduz em sua mente o conceito de um texto, o qual passa a funcionar como controlador da narrativa. A prática da leitura e da escritura, portanto, interfere nos processos de composição oral, que não são propriamente textos, mas sim “a recordação de canções cantadas”, como observa Peabody (1975, p. 216) e corrobora Ong: Um poeta oral não está trabalhando com textos ou numa moldura textual. Ele precisa de tempo para deixar que a história mergulhe em seu próprio estoque de temas e fórmulas, tempo para “se em- prenhar” da história. (Idibidem, p. 73)) Poderíamos dizer que, nas culturas orais em geral, um grande número de recitações orais são adaptáveis, até mesmo quando se trata de narrativas relacionadas a rituais e que a memorização oral pode sofrer variações, provenientes de pressões sociais diretas, uma vez que os narradores normalmente se submetem às vontades do público. De fato, a memória oral se distingue significativamente da memória textual: a memória oral possui um componente altamente somático, porquanto a palavra oral, ao contrário do que se dá com a palavra escrita, nunca se efetiva num contexto essencialmente verbal. Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 19 Na efetivação da comunicação oral, é deveras natural e, praticamente inevitável, a atividade corporal que acompanha a vocalização. Em “O estilo da vida verbomotor”, Ong observa que, nas cul- turas verbomotoras, ao contrário do que ocorre nas culturas de alta tecnologia, o uso efetivo de palavras e a interação social marcam as ações e as atitudes dos indivíduos. Nas culturas verbomotoras, o contato não-verbal é preterido pelo contato visual do mundo objetivo das coisas. As culturas que estamos aqui denominando verbomotoras prova- velmente causam ao homem tecnológico a impressão de superva- lorizar o próprio discurso, superestimar e certamente fazer um uso excessivo da retórica. (Idibidem, p. 82) Em “O papel noético das figuras heróicas ‘fortes’e do bizar- ro”, observa que os personagens “fortes”, indivíduos cujas façanhas são notáveis, memoráveis e geralmente notórias, povoam a memória oral. Personalidades fracas e apagadas não sobrevivem na mnemôni- ca oral. Para garantir peso e memorabilidade, as figuras heróicas tendem a constituir figuras-tipo: o sábio Nestor, o furioso Aquiles, o astu- to Ulisses, o competentíssimo Mwindo (“Pequenino-Recém- Nascido-Que-Andava”, Kábútwakénda, seu epíteto usual). (Idi- bidem, p. 83) Eis o porquê de as narrativas homéricas girarem em torno de heróis prodigiosos, desempenhando um papel noético (relativo ao pensamento, à inteligência e à concepção) fundamental: a concepção Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 20 de um guerreiro grego forte, poderoso, superior fixa-se na memória. Logo, uma economia noética oral, sem o modelo mnemônico de verbalização conveniente, as figuras não sobreviveriam; não se fixa- ria, por conseguinte, a memória. No tipo “A interioridade do som”, numa abordagem acústica, em que se observa a evanescência do som, a sua relação com o tem- po, entre outras características, o autor assevera que “a principal dessas outras características é a relação com os demais sentidos” (Ibidem, p. 86) e afirma que nenhum outro sentido é tão eficaz quan- to ao som para se testar o interior físico de um objeto. a vista isola; o som incorpora. A visão situa o observador fora do que ele vê, a uma distância, ao passo que o som invade o ouvinte. A visão disseca, como observou Merleau-Ponty (1961). (Idibi- dem, p. 85) Outro tipo é “A oralidade, a comunidade e o sagrado”, em que observa que a palavra falada tem a sua origem no interior do próprio homem e “revela seres humanos a outros seres humanos como interi- ores conscientes, como indivíduos, a palavra falada agrupa os seres humanos de forma coesa” (Ibidem, p. 88). Demonstra, assim, “a força interiorizadora do mundo oral”, que se liga ao sagrado e é por isso que a palavra falada é, na maioria das religiões, de suma importância. Mormente, se se considerar que, como já foi visto, a palavra oral é deveras um evento no tempo, ao qual não se verifica o repouso coisificante comum à palavra escrita ou impressa. Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 21 Por fim, o tipo “As palavras não são signos”, em que inicial- mente resgata Derrida (1976, p. 14), que afirmou que a escrita prece-de o signo lingüístico. Isto é, não existe antes da escrita, mas também não existe depois da escrita, se considerarmos a referência oral do texto escrito. Um signo se refere a algo fisicamente perceptível; a escrita se refere a algo abstrato, normalmente fora de uma comunica- ção efetiva. O pensamento, na fala, não se dá propriamente em textos, em que se formam os significados pela referência do símbolo visível ao mundo do som, embora os povos quirográficos e tipográficos pensem na palavra como um signo. Logo, provavelmente o homem de pen- samento oral não tinha a palavra como um signo – fenômeno visual imóvel. A partir da descrição desses tipos de características da oralida- de primária, constata-se que Ong distingue oralidade primária de oralidade secundária, mas decididamente, não concebe a escrita de- sarticulada da oralidade, que não só lhe precede como, sobretudo, é- lhe um fator determinador. Por isso, assevera: Mas tentar construir uma lógica da escrita sem investigar em pro- fundidade a oralidade, da qual emergiu a escrita e na qual a escri- ta está permanentemente e inevitavelmente enraizada, é limitar nossa compreensão – embora realmente produza, ao mesmo tem- po, efeitos que são brilhantemente fascinantes, mas também por vezes psicodélicos, isto é, causados por distorções sensoriais. (I- dibidem, p. 91) Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 22 Considerações finais Corroborando Ong e outros estudiosos tanto da área de estudos lingüísticos como de outras áreas, a Antropologia, por exemplo, as- sumimos que não é fácil distinguir oralidade primária e oralidade secundária. Neste artigo, descrevemos as características distintivas funda- mentais entre elas, já apontadas por Ong (Op. cit.). Demonstramos como se caracterizam, na oralidade primária, as formas de memori- zação, o estilo de comunicação e a forma de elaboração do pensa- mento do homem da época. Como vimos, a cultura oral primária conservava os conheci- mentos adquiridos através da repetição e da memorização. E para facilitar tais processos, a oralidade primária utilizava-se de estruturas formulares e apresentava uma gramática pouco elaborada. Todo conhecimento possuía significado social, e a partir do momento em que o mesmo deixasse de fazer sentido nas experiên- cias diárias dos membros de uma cultura oral primária ele era “apa- gado” de suas memórias. Por outro lado, o praticante de uma orali- dade secundária, membro da atual cultura de alta tecnologia, apresenta uma fala mais organizada com estruturas sintáticas mais complexas e extensas. Porém, o advento da escrita não proporciona apenas uma nova forma de comunicação e expressão do pensamento, ela provoca tam- bém mudanças sociais e cognitivas. Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 23 Portanto, acreditamos, como Ong (ibidem), Botelho (Op. cit.) e Goody & Watt (Op. cit.) entre outros, que o advento da escrita faz surgir um novo homem, já que ela proporciona aos membros das atuais culturas (de oralidade secundária) pensamentos e linguagens tecnologizados. Enfim, baseando-nos nesses importantes autores, e principal- mente nos estudos de Ong, foi possível identificar a oralidade primá- ria e desenvolver uma análise das características que a distinguem da oralidade secundária e que nos auxiliam nos estudos acerca das con- seqüências da introdução da escrita numa dada sociedade. Embora o presente trabalho não tenha esgotado o tema, espe- ramos ter apresentado subsídios para melhor se distinguir a oralidade primária da oralidade secundária e refletir sobre a natureza da mente do homem atual. Anais do V Congresso de Letras da UERJ-São Gonçalo 24 Referências Bibliográficas BOTELHO, J. M. 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