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RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 1, jan./jun. 2008 275 1 HERMENÊUTICA JURÍDICA Os símbolos não tem sentido completo e absoluto por si só. Por isso, in- terpretar é adjudicar sentido aos símbolos, atribuir-lhes valores ao outorgar- lhes significação. O sentido é outorgado aos símbolos pelo intérprete ao produ- zir suas significações, o que faz em função de seus condicionamentos prévios. Chama-se Hermenêutica a ciência que estuda as maneiras pelas quais o intér- prete produz significações, e como essas significações podem ser mais ou me- nos adequadas aos objetivos propostos. Se o sentido dos símbolos depende, em larga medida, do intérprete, e se toda linguagem não apenas admite como pressupõe interpretação, então igual- mente os textos jurídicos sempre demandam interpretação. JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES é incisivo: “...em qualquer coordenada de tempo e lugar, onde se expan- da o fenômeno jurídico, há necessidade sejam as normas – gerais ou individuais – interpretadas...”1. Da mesma forma, THEODOR VIEHWEG: “sem interpretação não há jurisprudência!”2. A Hermenêutica Jurídica, enquanto estudo das possibilidades de interpre- tação dos textos jurídicos, não prescinde da Semiótica. A lingüística integra o estudo do direito. Se concordarmos com JOSÉ ROBERTO VIEIRA, para quem é em PAULO DE BARROS CARVALHO que encontramos o “...precursor, entre nós, das preocupações lingüísticas na região do jurídico...”3, poderemos utilizar, com tran- qüilidade, a Semiótica Jurídica deste último como ponto de partida e o ponto de apoio da Hermenêutica Jurídica que desenvolveremos. Algumas anotações sobre a interpretação do direito André FolloniAndré FolloniAndré FolloniAndré FolloniAndré Folloni Advogado e consultor. Doutorando em Direito do Estado (UFPR). Professor de Direito Tributário e de Direito Aduaneiro (UP e PUCPR) 1) O contraditório no processo judicial: uma visão dialética. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 90. Registre-se, contudo, que o mestre não concordaria com a primeira oração do período (cf. Curso de direito comunitário: instituições de direito comunitário comparado: União Européia e Mercosul. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 1-6). 2) Tópica e jurisprudência. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979. p. 63. 3) A regra-matriz de incidência do IPI: texto e contexto. Curitiba: Juruá, 1993, p. 51. 276 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 1, jan./jun. 2008 Se para fazer Ciência do Direito stricto sensu é preciso interpretar os tex- tos normativos, e se a interpretação está condicionada pela pré-compreensão a que aludem, na Filosofia, MARTIN HEIDEGGER e HANS-GEORG GADAMER, e na Ciência GASTON BACHELARD e GÉRARD FOUREZ, então a pretensão de atingir-se a verdade na Dogmática Jurídica mediante uma atividade científica axiologica- mente neutra e imparcial pode ser, desde logo, descartada4. Partindo-se daquela premissa, segundo a qual o sujeito interpretante é um ser-no-mundo (Dasein) e não pode se livrar dessa condição, uma vez que está histórica e culturalmente determinado por ela, o ideal positivista de aproximação entre sujeito cognosciti- vo e objeto cognoscível com absoluta neutralidade científica resta prejudicado. “...Seres humanos, o somos em cultura”, afirma JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES5. Para LOURIVAL VILANOVA, “O sujeito, é-o dentro de uma constelação de sujei- tos, na comunidade intersubjetiva do discurso, participante de relações sociais que condicionam o conhecimento do objeto”6. Uma vez aceitas as concepções filosóficas apresentadas no texto anterior, um rompimento de paradigmas é provocado também na Hermenêutica Jurídica7. Evidentemente, aceitá-las é apenas uma hipótese de trabalho dentre outras, pois, aceitando-as, paradoxalmente não se pode tê-las como verdades ab-aceitando-as, paradoxalmente não se pode tê-las como verdades ab-aceitando-as, paradoxalmente não se pode tê-las como verdades ab-aceitando-as, paradoxalmente não se pode tê-las como verdades ab-aceitando-as, paradoxalmente não se pode tê-las como verdades ab- solutassolutassolutassolutassolutas, porque se isso fosse feito, negar-se-ia as próprias concepções. Se não se pode alcançar a verdade absoluta, tampouco essa doutrina pode ser aceita como verdade absoluta! Pois bem. Ao se aceitar tais concepções filosóficas contemporâneas, mer- gulhadas no paradigma da filosofia da linguagem, passa-se a desconsiderar a possibilidade de alcance de uma verdade única e objetiva por intermédio da ra- zão. Reconhece-se a finitude do homem, sua falibilidade e sua infindável condi- ção de perpétuo prisioneiro da linguagem. Com isso, reconhece-se que o sujeito cognoscitivo é incapaz de alcançar a verdade definitiva – ou a “certeza”, que KARL POPPER diferencia da “verdade” – do objeto então considerado amplamente cog- noscível8. E, assim, nossas teorias serão sempre falseáveis. Como corolário, não se pode admitir a única verdade do direito, sua única interpretação verdadeira, seu único sentido correto e absoluto. Não se pode admi- tir que o intérprete, contemplativamente, encontre a vontade da lei ou a vontade do legislador. O intérprete não capta o conteúdo, sentido e alcance da lei, mas os produz – encontra sua verdade – e procura fazê-los valer perante sua comunidade 4) Cf. MARTIN HEIDEGGER. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 258; HANS-GEORG GADAMER. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 4. ed. V. 1. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis-RJ: Vozes, 1997, p. 401-402; GASTON BACHELARD. Le nouvel esprit scientifique. Paris: PUF, 1971, p. 54 e GÉRARD FOUREZ. A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: UNESP, 1995, p. 44. 5) O contraditório..., op. cit., p. 9. 6) As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 41. 7) O texto anterior é: FOLLONI, André Parmo. Sobre a interpretação em geral. Raízes Jurídicas. Curitiba, v. 3, n. 2, jul/dez 2007, p. 319-332. 8) Cf. Em busca de um mundo melhor. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Martins, 2006, p. 15. KARL POPPER,contudo, certamente não concordaria com esse nosso “relativismo” (cf. ibidem, p. 16). RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 1, jan./jun. 2008 277 científica, a comunidade lingüística dos juristas – procurando obter validade prag- mática intersubjetiva. A Hermenêutica Jurídica tradicional encontra-se submersa no paradigma da filosofia da consciência. A Hermenêutica contemporânea, por sua vez, após a viragem lingüística, procura novos caminhos. Vejamos uma e outra. 2 A HERMENÊUTICA JURÍDICA TRADICIONAL A Hermenêutica Jurídica tradicional encontra-se inserida naquele paradig- ma da filosofia da consciência. Portanto, seus principais expoentes admitem que o intérprete deve alcançar o verdadeiro sentido da norma. Haveria um sentido verdadeiro, que o intérprete, mediante o emprego de métodos de interpretação, seria capaz de desvelar. Esse desvelamento depende da correta aplicação do mé- todo, mas também é por ela garantido. CARLOS MAXIMILIANO, por exemplo, vê na atividade interpretativa um tra- balho preliminar à aplicação ao caso concreto, e que consiste em “...descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, o respectivo alcance, sua extensão”9. Interpretar é “...mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém”10. Há, então, um sentido verdadeiro da norma, aguardando ser descoberto pelo intér- prete. Registre-se, contudo, que CARLOS MAXIMILIANO reconhece que a inter- pretação é sempre necessária. Outros entendem que apenas há necessidade de interpretação quando o texto legal é confuso ou defeituoso. Em sendo a lei clara e precisa, não há o que se interpretar. WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, por exemplo, afirma que “a lei quase sempre é clara, hipótese em que descabe qualquer trabalho interpreta-tivo”11. PAULA BAPTISTA afirma que a interpretação “...não tem lugar sempre que a lei, em relação aos fatos sujeitos ao seu domínio, é clara e precisa”12. Há, ainda, na Hermenêutica Jurídica tradicional, uma outra questão: o in- térprete deveria, em seu labor, descobrir a vontade da lei (voluntas legis) ou a vontade do legislador (voluntas legislatoris)? TERCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR chama os defensores da primeira posição objetivistas, e os defensores da se- gunda, subjetivistas, e expõe, quanto a ambos, sua “...notória insuficiência”13. As duas teorias partem de pressupostos indemonstráveis: a primeira, o de que há uma realidade essencial (vontade da norma) que pode ser conhecida sem o inter- médio da linguagem. “Supõe-se, pois, que a realidade contém uma essência que tem um sentido normativo independente do próprio discurso normativo”14. A se- gunda, o de que “...a intenção do legislador (mens ou voluntas) é algo distinto da 9) Hermenêutica e aplicação do direito, p. 1. 10) Ibidem, p. 9. 11) Apud LENIO LUIZ STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 83. 12) Apud op. loc. cit., p. 83. 13) Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 262 e 264. 14) Idem, ibidem, p. 268. 278 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 1, jan./jun. 2008 articulação lingüístico-normativa e que existiria uma forma de acesso a seu pen- samento normativo que não seja por meio de seu discurso normativo”15. Ou seja, ambas colocadas no paradigma da filosofia da consciência. Seja procurando captar a vontade da lei ou a vontade do legislador, a Herme- nêutica Jurídica tradicional desenvolveu alguns métodos de interpretação do direi- to legislado. PAULO DE BARROS CARVALHO16 e SACHA CALMON NAVARRO COÊ- LHO17 enumeram alguns: i) método literal: também denominado gramatical, reco- menda que o intérprete leve em consideração a literalidade do texto legal, atendo- se ao significado léxico das palavras utilizadas; ii) método histórico: impõe uma busca da evolução histórica do direito, para que possa-se apreender o sentido da norma de acordo com as condições subjetivas e objetivas que tangenciaram sua criação; iii) método lógico: consistente na aplicação das regras da lógica formal para a correta interpretação do direito; iv) método teleológico: acentua a finalidade buscada com a edição da norma legal (vontade da lei, vontade do legislador); e v) método sistemático: aqui o intérprete debruça-se sobre a totalidade do sistema jurídico para desvelar o verdadeiro sentido da norma interpretanda. Os métodos são distintos epistemologicamente. A atividade hermenêutica pressupõe a aplica- ção de todos eles. “A interpretação é uma só; não se fraciona...”18. 3 AS PROPOSTAS DA HERMENÊUTICA JURÍDICA CONTEMPORÂNEA Pretende-se a superação desse pensamento hermenêutico tradicional por reconhecer-se a impossibilidade de acesso à verdade essencial absoluta, como lá entendida possível. Aquelas hipóteses da Hermenêutica tradicional enquanto ciência da interpretação não podem ser tidas como definitivamente demonstra- das e, portanto, como o ponto final da verdade acerca do tema. Cientes daquela desproporcionalidade entre verdade e falsidade no estudo científico, procurare- mos naqueles que buscam demonstrar o erro na hermenêutica tradicional (ou os erros) a resposta mais adequada, ainda que também provisoriamente, pois a busca do conhecimento é um caminho sem fim, seu destino é permanecer inacabado19. Novamente o recurso a JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES: “O estudioso deve obstina- damente recusar-se a engrossar as fileiras dos que encaram as hipóteses cientí- ficas como dogmas de fé”20. Talvez um dos primeiros juspositivistas a romper com o paradigma domi- nante na Hermenêutica positivista tradicional tenha sido HANS KELSEN. Ao ad- mitir metaforicamente que a norma é uma moldura dentro da qual cabem várias 15) Idem, op. loc. cit. 16) Cf. Curso de direito tributário. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 95. 17) Cf. Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração tributária. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2003, p. 139. 18) CARLOS MAXIMILIANO, Hermenêutica..., op. cit., p. 106. 19) Cf. JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, Ciência feliz, 2. ed., op. cit.., p. 74. 20) Ibidem, p. 28. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 1, jan./jun. 2008 279 possibilidades de interpretação, HANS KELSEN nega aquelas preconizações (como a Escola da Exegese) que defendiam a existência de uma interpretação verdadei- ra, a qual tornava o intérprete incapaz de distorcê-la21. A atividade interpretativa naquela hermenêutica tradicional, como explica NORBERTO BOBBIO, estava vol- tada “...para explicitar com meios puramente lógico-racionais o conteúdo de normas jurídicas já dadas”22. Para HANS KELSEN, “...a interpretação de uma lei não deve necessariamen- te conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções...”23. Ao admitir a possibilidade de várias interpretações todas elas em conformidade com o direito, HANS KELSEN logicamente afasta a possibi- lidade de que haja, sempre, uma única interpretação verdadeira. Rompe, de certa forma, com o paradigma da filosofia da consciência, uma vez que, nesse para- digma, a hermenêutica kelseniana não oferece nenhum resultado. O único resul- tado que alcança parece ser, exatamente, o rompimento com aquele paradigma – lembremo-nos que segunda edição da Teoria Pura do Direito foi publicada em 1960, época de surgimento do paradigma da filosofia da linguagem). HANS KEL- SEN reconhece a impossibilidade de apontar-se uma única interpretação verda- deira e, para solucionar esse problema, aduz que a interpretação “verdadeira” será aquela adotada pelo intérprete autêntico: o órgão de aplicação do direito24. Por mais que a doutrina entenda que outro resultado interpretativo fosse mais adequado, isso perde qualquer relevância, pois o intérprete autêntico já decidiu, já exprimiu sua vontade25. Mas será que não haverá alguma forma de averiguar- se qual a interpretação mais adequada? Pergunta-se TERCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR: “seria um contrasenso falar em verdade hermenêutica?”, ao passo que propõe o enfrentamento dessa questão pela comunidade jurídica denominando- o “desafio kelseniano”26. Uma das possíveis formas de encarar-se o desafio kelseniando consiste no desenvolvimento de uma doutrina hermenêutica fundada nos estudos lingüísticos e semióticos, como contemporaneamente se pretende em alguns círculos acadê- micos. Se direito é linguagem, premissa do estudo, então a análise do direito de- pende de análise da linguagem. Interpreta-se o direito como uma camada lingüís- tica. Leciona PAULO DE BARROS CARVALHO: “Se fixamos o pressuposto de que o direito positivo é uma camada lingüística..., nada mais natural que apresentarmos a proposta de interpretação do direito como um sistema de linguagem”27. Abandonando as concepções do paradigma da filosofia da consciência, a Hermenêutica atual deixaria, então, de buscar o correto e verdadeiro e único sen- tido da norma jurídica, ao passo que traça a distinção entre texto legal e norma 21) Cf. Teoria pura do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 366. 22) O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 212. 23) Teoria pura..., op. cit., p. 366. 24) Cf. Teoria pura..., op. cit., p. 369. 25) Cf. JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, Lançamento tributário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 104. 26) Cf. Introdução..., op. cit., p. 259. 27) Curso..., 14. ed., op. cit., p. 96. 280 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 1, jan./jun. 2008 jurídica. A norma jurídica é a significação que o intérprete constrói a partir do texto de direito positivo. Aplicando as categorias semióticas do signo, do texto de lei enquanto significante que remete a um significado, a rigor inatingível pelo intérprete, este constrói uma significação:a norma. Os estudos de semiótica demonstram a impossibilidade de considerarmos que um texto escrito, por si só, tem um sentido, independentemente daquele que o interpreta. Que sentido tem um pouco de tinta sobre um papel? Definirá aquele que sobre ele se debruçar, perdendo solidez a base empírica de confronto das teorias dogmáticas antes referida (ordenamento jurídico). Assim, mesmo que se esteja i) vinculado aos textos legais e ii) obrigado a decidir (postulados da Dog- mática), não há como aceitar nem mesmo a possibilidade uma interpretação lite- ral. Interpretação literal não existe. A literalidade do texto não oferece nada sem a atividade do intérprete. Com os textos legais o mesmo fenômeno se verifica. Não se pode afirmar a que se referia o “legislador” quando escreveu “propriedade”, por exemplo. Não se pode descobrir o que pensava o “legislador”, porque, se ele existia, aquilo que pensava era apenas o significado do significante “propriedade”, isto é, era aquilo a que ele se referia quando escreveu “propriedade”, e, portanto, é a rigor inatingível como demonstrado. Portanto, a interpretação jurídica não pode ser entendida como a busca da “vontade do legislador”, pois aquela nunca alcança- remos. Mas também não podemos pretender que a palavra “propriedade” tem um sentido por si mesma. É o intérprete que, em sua mente, produzirá o senti- do, que deve preservar certo acordo com o contexto para garantir possibilidade de prosperar perante a comunidade lingüística em que se insere (os operadores do direito). Logo, a interpretação jurídica igualmente não pode ser entendida como a busca da “vontade da lei”. O sentido do texto de direito positivo não está nele mesmo (a lei não tem vontade), e não está no legislador (que também não tem vontade). Está no intérprete. Mesmo porque os textos legais possuem significantes cuja significação pode sofrer alterações com o passar dos tem- pos. Nesse sentido JÜRGEN HABERMAS: “É verdade que as regras gramaticais garantem uma identidade de significado das expressões lingüísticas; todavia, elas têm de deixar, ao mesmo tempo, espaço para um uso individualmente nu- ançado e inovativamente imprevisível dessas expressões, cujo significado possui uma identidade apenas suposta”28. É o conhecido fenômeno de mutação legal, especialmente desenvolvido pelos constitucionalistas que falam, então, em mutação constitucional. O sentido, alcance e conteúdo do texto varia histori- camente, porque “...as oscilações ocorrentes na instância pragmática são in- controláveis”29. Daí os dizeres de PONTES DE MIRANDA: “O voluntarismo é cor- relativo do despotismo. Procurar a vontade do legislador ou da lei é andar à cata do mando do déspota. Não é processo para espíritos livres, que amem a verda- 28) JÜRGEN HABERMAS, Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 57. 29) PAULO DE BARROS CARVALHO, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 65. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 1, jan./jun. 2008 281 de e a ciência e, sim, digamos o termo, ocupação de escravos”30. Pode-se entender, então, a norma jurídica não como o texto da lei, mas como a significação construída pelo intérprete. O intérprete não interpreta a nor- ma; interpreta a lei e, como corolário, constrói a norma. De acordo com JOSÉ ROBERTO VIEIRA: “debruçando-se sobre o direito posto, investigando todos os ângulos de sua linguagem (sintático, semântico e pragmático), conhecendo-o, descrevendo-o e explicando-o, em verdade, ao cientista do direito cabe, isso sim, construir a norma jurídica”31. PAULO DE BARROS CARVALHO, que antes se referia à atividade interpretativa como destinada a “...desvelar o conteúdo, senti- do e alcance da matéria legislada”32, passou a entendê-la como objetivando “...construir o conteúdo, sentido e alcance da matéria legislada”33. LENIO LUIZ STRECK, citando EROS ROBERTO GRAU, faz “...a distinção entre texto (jurídico) e norma (jurídica). Isto porque o texto, preceito ou enunciado normativo é alográ- fico. Não se completa com o sentido que lhe imprime o legislador. Somente es- tará completo quando o sentido que ele expressa é produzido pelo intérprete, como nova forma de expressão... As normas resultam sempre da interpretação”34. EROS ROBERTO GRAU, por sua vez, afirma que “...o ‘sentido expressado pelo tex- to’ já é algo novo, distinto do texto: é a norma”35. Mas se o intérprete produz a norma, então a norma não é aquilo que se inter- preta, mas o resultado da interpretação. Interpreta-se o texto para produzir-se a norma. Para JOSÉ ROBERTO VIEIRA, “em linguagem clássica, o texto é o dado, a nor- ma o construído. Nós não interpretamos normas jurídicas, mas os textos do direito positivo, pois a norma não é o objeto da interpretação, mas o seu resultado”36. A lei em si não tem sentido definitivo, pois não passa de um texto escrito. O que certamente tem sentido é o direito positivo enquanto conjunto de normas jurídicas. Cada uma dessas normas terá um conteúdo, sentido e alcance a ser outorgado pelo intérprete. Então surge uma dualidade norma jurídica e texto ju- rídico-prescritivo, e um e outro não se confundem – aquela é a significação pro- duzida a partir deste significante. Se um e outro não se confundem, seus conjun- tos também não podem se confundir. Por isso propomos chamar “ordenamento jurídico” o conjunto dos textos jurídico-positivos válidos e “sistema do direito positivo” o conjunto das normas jurídicas válidas. 30) Apud HUGO DE BRITO MACHADO SEGUNDO. A EC 33/2001, o ICMS incidente sobre combustíveis e os convênios interestaduais. In: VALDIR DE OLIVEIRA ROCHA (Coord.). O ICMS e a EC 33. São Paulo: Dialética, 2002, p. 100. 31) A semestralidade do PIS: favos de abelha ou favos de vespa? Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo, n. 83, ago/2002, p. 90. 32) Curso..., 10. ed., op. cit., p. 4. 33) Curso..., 14. ed., op. cit., p. 6. JOSÉ ROBERTO VIEIRA também aponta essa evolução (Cf. A semestralida- de..., op. cit., p. 90). 34) Hermenêutica..., op. cit., p. 18, nota de rodapé n. 2 35) Pareceres, juristas e apedeutas. A & C – Revista de Direito Administrativo e Constitucional. Curitiba, n. 9, p. 87, 2002. Grifos do original. 36) A semestralidade..., op. cit., p. 90. Grifos do original. 282 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 1, jan./jun. 2008 4 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA E FÁTICO-AXIOLÓGICA Uma vez que admitimos que o ordenamento jurídico é um conjunto de textos orientados em forma de sistema – “repertório” de elementos dispostos em uma “estrutura”, nas expressões de TERCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR37 – claro está que não é possível a produção de um sentido adequado sem levar em consi- deração a totalidade dos textos de direito positivo válidos e vigentes que encon- tram-se em uma certa posição hierárquica naquele ordenamento. Se uma norma jurídica é parte de um sistema estruturado, só pode ser concebida com depen- dência das demais normas formadoras daquele sistema. Diz GERALDO ATALIBA: “Não há norma jurídica avulsa. Só é jurídico o preceito integrado no sistema”38. Por isso, como afirma JUAREZ FREITAS de forma enfática, “a interpretação do direito é sistemática ou não é interpretação”39, e para a produção de uma norma faz-se necessária a pré-compreensão de todo o ordenamento. O conjunto de normas jurídicas válidas em um determinado tempo e local adquire a forma e a consistência de um sistema. Assim, o sistema do direito positivo é o conjunto das normas jurídicas válidas (repertório) e de suas relações de coordenação e subordinação (estrutura). O sistema é, portanto, algo mais do que a simples soma de normas. Juntar todas as normas válidas não é o mesmo que formar um sistema de direito positivo. Como explica ESTHER ENGELBERG, “dentro deste sistema, as regras têm seus lugares e relacionam-se entre si e com o todo, cujo conteúdo é inesgotável pela análise”40. O todo aquié maior do que a soma das partes. Paradoxalmente, porém, uma parte poderia também revelar-se maior do que o todo. Isto ocorreria se se considerasse apenas um preceito nor- mativo em independência dos demais. Sua análise isolada permite que esta parte escape das limitações que o restante do conjunto impõe, de modo que resta maior do que o todo, sobressaindo-se perante o conjunto. Porém, vez que a norma depende do sistema no qual se insere e apenas pode ser entendida quando dele fazendo parte, esta espécie de inversão revela-se de todo inadequada ao estudo do direito. Corrobora este posicionamento o “cânone hermenêutico da totalidade do sistema jurídico” a que se refere ALFREDO AUGUSTO BECKER, que o explica da seguinte forma: A lei considerada em si mesma, como um ser isolado, não existe como regra jurídica. Isolada em si mesma, a lei existe apenas como fórmula literal legislativa sem conteúdo jurídico ou como simples fenômeno históri- co... A regra jurídica contida na lei (fórmula literal legislativa) é a resultante lógica de um complexo de ações e reações que se processam no sistema jurídico onde foi promulgada. A lei age sobre as demais leis do sistema, estas, por sua vez, reagem; a resultante lógica é a verdadeira regra jurídi- 37) Direito..., op. cit., p. 126. 38) Apud JOSÉ ROBERTO VIEIRA, A regra-matriz de incidência do IPI: texto e contexto. Curitiba: Juruá, 1993, p. 35. 39) A interpretação sistemática do direito. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 47. 40) Contratos internacionais do comércio. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1997, p. 21. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 1, jan./jun. 2008 283 ca da lei que provocou o impacto inicial... A regra jurídica embute-se no sistema jurídico e tal inserção não é sem conseqüências para o conteúdo da regra jurídica, nem sem conseqüências para o sistema jurídico41. Significa que a norma jurídica (aquela “regra resultante”) apenas pode ser produzida por meio de interpretação não só de um texto (lei, artigo, parágrafo), mas da totalidade do sistema, que sofre a ação do preceito e a ele reage, “...por- que ninguém interpreta uma regra de Direito tomando-a como um segmento absolutamente isolado. Ao se usar a expressão segmento, já se está a indicar que é parte de um todo”42. Acatando esse cânone, percebe-se que apenas é possível considerar-se um texto jurídico prescritivo válido em conjunto com os demais textos com os quais age e reage, isto é, em relação com seu contexto, naquela primeira relação de intertextualidade referida por PAULO DE BARROS CARVALHO43, admitindo uma acepção do vocábulo “contexto” análoga àquela adotada por JOSÉ ROBERTO VIEIRA44. Como ensina JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, “uma observação metodológica fundamental é que não é possível examinar um texto, um disposi- tivo da Constituição, preceito algum, dissociado do seu contexto, a contextura onde ele está imerso”45. A relação de pertinência entre norma e sistema (validade) é uma relação eminentemente sintática. Deveras, no plano sintático a interpretação demanda a verificação das re- lações entre os signos, isto é, como se comporta uma norma em suas relações com as demais normas do sistema. Mas se o direito se refere a fatos porque os descreve em suas hipóteses normativas, e se revela valores como toda constru- ção cultural humana, então não se lhes pode abandonar. O ato de interpretar a linguagem jurídica-prescritiva “...requer uma análise da linguagem dos textos e também dos fatos”46, ou, como afirma EROS ROBERTO GRAU, “...a interpretação da Constituição... envolve também a interpretação dos fatos...”47 e, acrescentarí- amos, dos valores implicados. Não só da Constituição: repudia-se aqui a idéia de uma hermenêutica constitucional diferente da hermenêutica aplicada ao restante do ordenamento. Não basta a observância da totalidade do ordenamento jurídico na construção da norma. A apreciação dos fatos e dos valores é imprescindível, e então Miguel Reale fala em tridimensionalidade do direito. Imprescindível tam- bém, por isso mesmo, a incursão aos planos semântico (relação entre o signo e o significado, no direito um fato) e pragmático (relação dos signos com seus uten- tes, seres humanos imersos em cultura e, portanto, com inclinações axiológicas) 41) Teoria..., op. cit., p. 115. 42) CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p 30. 43) Em seu prefácio à obra HELENO TAVEIRA TÔRRES. Direito privado e direito tributário: autonomia privada, simulação, elusão. São Paulo: RT, 2003. p. 7. 44) A regra-matriz..., op. cit., p. 48. 45) Progressividade..., op. cit., p. 51. 46) EDMAR OLIVEIRA ANDRADE FILHO, Interpretação..., op. cit., p. 87. 47) A ordem econômica na Constituição de 1988. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 166. 284 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 1, jan./jun. 2008 da linguagem jurídico-positiva48. Resta, assim, um possível “método” herme- nêutico consistente na exploração dos planos sintático, semântico e pragmático da linguagem jurídica, que em outra oportunidade denominamos “interpretação sistemática e fático-axiológica”49. Simples a atividade interpretativa? Vejamos o que diz JOSÉ ROBERTO VIEI- RA: “Eis que salta à vista, relevante e assustadora, a faina científica do juris-a faina científica do juris-a faina científica do juris-a faina científica do juris-a faina científica do juris- tatatatata, de buscar os dados dispersos pelos dispositivos, pelos textos e pelo sistema, construindo a norma jurídica, às custas muitas vezes de um esforço hermenêu- tico penoso e hercúleo”50. 5 RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO Mas a norma jurídica não vem pronta e acabada no ordenamento jurídico. Pelo contrário, é produzida pelo intérprete mediante seu estudo sistemático e fático-axiológico. Ensina PONTES DE MIRANDA: “para que se saiba qual a regra jurídica que incidiu, que incide, ou que incidirá, é preciso que se saiba o que é que se diz nela. Tal determinação do conteúdo da regra jurídica é função do intérprete, isto é, do juiz ou de alguém, jurista ou não, a que interesse a regra jurídica”51. É o intérprete, portanto, quem determina o conteúdo da norma jurídi- ca. O intérprete não pode pretender, contudo, produzir a norma individual- mente e considerá-la como tal. Deverá submeter seu entendimento à comunida- de lingüística de que participa. A norma jurídica será aquela interpretação que prevalecer na comunidade da linguagem jurídica mediante um processo argu- mentativo. E, para que prevaleça, a significação outorgada pelo intérprete deve manter-se razoável com o que é entendido daqueles significantes pela comuni- dade lingüistica de que participa. De outro modo, será penoso argumentar e for- çar o convencimento dos seus pares. Penoso e, em certos casos, inútil. Em sen- tido análogo, acerca da atividade interpretativa do Administrador Público, ensina CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO que a concepção particular e pessoal da- quele acerca de determinado conceito legal é irrelevante, não podendo se impor à concepção geral da sociedade. Essa interpretação pessoal, este peculiar subjeti- vismo, “...não pode ter o condão de sobrepor-se ao sentido que razoavelmente se lhes reconhece em dado meio social”52. Mas como surge esse reconhecimento comunitário acerca do conteúdo, sentido e alcance de determinada disposição legal? Se adotamos arbitrariamente como premissa que a determinação objetiva e definitiva da verdade é algo além 48) Sobre a relação entre o plano pragmático e os valores, v. EDMAR OLIVEIRA ANDRADE FILHO, Interpre- tação..., op. cit., p. 88. 49) ANDRÉ FOLLONI. Natureza jurídica da “contribuição” sobre iluminação pública. A&C – Revista de Direito Administrativo e Constitucional. Belo Horizonte, n. 14, p. 21, out./dez. 2003. 50) A regra-matriz..., op. cit., p. 59. Grifos do original. 51) Tratado..., Vol. I., op. cit., p. 13. 52) Discricionariedade..., op. cit., p 30. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba,v. 4, n. 1, jan./jun. 2008 285 das limitações humanas, então para que algo seja entendido como verdade basta que seja assim reconhecido intersubjetivamente. Se a essência do ente não se pode atingir, então sua verdade reside no ser, ou, mais precisamente, em sua linguagem, na capacidade do sujeito de demonstrar, argumentar, convencer e persuadir seu auditório acerca daquilo que entende correto. Essa verdade pode ser, portanto, obtida intersubjetivamente mediante um processo de argumenta- ção. E esse processo apresenta, igualmente, alguma lógica. Aduz LOURIVAL VILANOVA: “como um dos temas lógicos é a teoria do raciocínio (inferência), a lógica jurídica trataria dos problemas referentes aos tipos de raciocínio utilizados pelo jurista (as Schlussformen), como o argu- mento a contrario sensu, a inferência por analogia, etc.”53. Tais raciocínios ar- gumentativos, estudados em abstrato, serão a posteriori aplicados na atividade de produção inter-subjetiva da norma pelos intérpretes. A teoria da argumen- tação faz parte, portanto, da metodologia da Ciência do Direito, na medida em que produz o objeto (norma) a partir do dado (texto) e informa seu conheci- mento intersubjetivo (doutrina). Mas dizer em cada caso quais os argumentos utilizados já não é problema da lógica enquanto teoria, mas de sua aplicação. Dizer teoricamente como produz-se a norma jurídica e como essa construção adquire validade sintática, semântica e pragmática é problema lógico-formal; qual a norma mais adequada para incidir no caso concreto é problema material. Novamente LOURIVAL VILANOVA54: ...à lógica não compete indicar que proposição normativa válida no sistema é acertada e justa para enquadrar o fato como correspondente ao tipo normativo. Nem lhe compete, num argumento em que o juiz chega à deci- são do caso controvertido, selecionar as proposições normativas aplicá- veis, qualificar normativamente o dado e dizer qual a conclusão... Nem cabe à lógica jurídica decidir quando se empregue a inferência indutiva, ou a inferência analógica, ou a via do argumento a contrario sensu. A decidi- bilidade de qualquer um dos possíveis métodos para encontrar a solução justa é problema nitidamente extralógico. O que está ao alcance da análise formal é verificar os tipos de estruturas inferenciais, sua validade mera- mente analítica, com base em relações puramente formais. Ao que é possível acrescentar: se tal atividade não cabe à lógica, cabe ao intérprete que, ao fazê-lo, restará invariavelmente adstrito às formas lógicas. Isso tudo leva-nos à conclusão segundo a qual a lógica do direito não se resume à lógica interna das normas e à lógica das concatenações das normas entre si (lógica deôntica), mas abrange igualmente a lógica retórica e argumenta- tiva, pois argumentar, fundamentar e demonstrar é exercitar lógica55. A lógica jurídica, se correto esse raciocínio, engloba a lógica deôntica e a lógica dialógica da argumentação. Se, por uma forma de pensar, podemos entender que a lógica 53) As estruturas..., op. cit., p. 64. 54) Ibidem, p. 91. 55) Cf. GERALDO ATALIBA. Prefácio da primeira edição. In: LOURIVAL VILANOVA, As estruturas..., op. cit., p. 19. 286 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 1, jan./jun. 2008 deôntica é mais que a lógica do direito, porquanto é a lógica das normas, sendo um gênero do qual a lógica jurídica é uma espécie, como fazem LOURIVAL VILA- NOVA56 e GERALDO ATALIBA57, por outra forma podemos supor que a lógica de- ôntico-jurídica não é suficiente para a explicação de todo o funcionamento aló- gico do direito, sendo necessário o recurso à lógica retórica. Ambas, juntas, nes- sa perspectiva, formariam a lógica jurídica. E a lógica jurídica se dá na lingua- gem; esta é indispensável àquela58. Quando a comunidade jurídica, ao final de um processo argumentativo, acorda que determinado fato integra uma hipótese normativa e acorda que daquele fato exsurge determinada relação jurídica (dever-ser), então tem-se uma norma jurídi- ca com a estrutura lógica de um juízo hipotético. Ensina FÁBIO ULHOA COELHO que “...as normas jurídicas foram apropriadas por um conjunto dessas pessoas [as pessoas reais], a comunidade jurídica; residem, assim, não na vontade da autori- dade que as edita, mas na memória das pessoas que a estudam, aplicam ou obser- vam”59. E as pessoas que estudam, aplicam e observam a norma são seus intérpre- tes (estudiosos, advogados, membros do Ministério Público, juízes, funcionários públicos...). A concordância dessa comunidade de intérpretes é a moradia da nor- ma jurídica. FÁBIO ULHOA COELHO afasta a distinção kelseniana entre norma jurí- dica e proposição jurídica. Assim, para ele, no pensamento dos doutrinadores está a norma, não uma proposição descritiva60. Não vamos tão longe. No pensamento deles ambas se encontram. Há a norma, produzida pelo intérprete e que está em seu pensamento61, é algo que se produz em na mente do intérprete62; todavia acre- ditamos haver, também e ladeando-a, a ciência que a descreve, produzida pela parcela de intérpretes denominada “doutrina”. Há a linguagem da norma, e há a sobre-linguagem que a tem como objeto de discurso: a Dogmática Jurídica. E pode- se produzir um discurso tendo a Dogmática como objeto, agora em uma lingua- gem de terceiro nível, uma sobre-sobre-linguagem (como pode fazer a Filosofia do Direito). Sempre é possível sobrepor a uma linguagem outra linguagem que a tenha como objeto discursivo: é o principio del continuo transcendimento linguis- tico formulado por NICOLÒ AMATO63. Nesse sentido parecem incorrer em erro aqueles que identificam o direito como uma técnica ou uma prudência e a estes aspectos contrapõem sua condi- ção de ciência. São dois planos distintos. O objeto direito pode ser visto como uma técnica, seja ela de organização e controle social, realização de valores, decisão de conflitos etc., e para realizar esses objetivos pode-se afirmar que se vale da prudência. Estas considerações não inviabilizam que se entenda haver 56) As estruturas..., op. cit., p. 33. 57) Prefácio..., In: LOURIVAL VILANOVA, As estruturas..., op. cit., p. 19. 58) Cf. LOURIVAL VILANOVA, As estruturas..., op. cit., p. 25. 59) Roteiro de lógica jurídica. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 52. 60) Cf. Roteiro..., op. cit., p. 54. 61) Assim também para PONTES DE MIRANDA. Cf. JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES. Progressividade no IPTU e no imposto sobre doações. Revista de direito tributário. São Paulo, n. 85, p. 48-55, 2001. 62) Cf. PAULO DE BARROS CARVALHO, Curso..., 14. ed., op. cit., p. 8. 63) Apud LOURIVAL VILANOVA, As estruturas..., op. cit., p. 54. RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 1, jan./jun. 2008 287 uma ciência que descreva essa técnica e essa prudência (enquanto método), ten- do-as por objeto epistemológico. Ensina LOURIVAL VILANOVA que não se deve confundir direito-objeto e Ciência do Direito, dois sistemas distintos, um for- mado por proposições prescritivas e outro por proposições delas descritivas: “...não se confunde o proposicional constituinte do direito positivo e o proposi- cional do conhecimento jurídico-dogmático”64. Mas compreendemos que a norma não é um ato de vontade da autoridade competente, como em HANS KELSEN, mas a construção do intérprete a partir do conjunto daqueles atos (denominados “de vontade” por abstração65) – as leis. O entendimento acerca do conteúdo, sentido e alcance da norma jurídica adquire a concordância da comunidade jurídica mediante um esforço de argumentação dos intérpretes. O intérprete produz o conteúdo, sentido e alcance da norma e susten- ta-o perante sua comunidade lingüística. Sustenta que, ocorrendo determinado fato, deve-ser a incidência da norma e a conseqüente irradiação da relação jurídi- ca. Se conseguir que prevaleçam, aqueles serão conteúdo, sentido e alcance da norma. A construção da essência do direito, neste sentido, não é individual, con- templativa, obtida silenciosamente na relação sujeito-objeto,como imaginava-se sob domínio do paradigma epistemológico da filosofia da consciência. É, sim, uma produção inter-subjetiva, oriunda de intensa atividade argumentativa, seja no pro- cesso, seja nos debates científicos. A norma é produzida pela linguagem e existe na linguagem. É fruto de uma relação sujeito-sujeito. Um intérprete sempre pro- cura convencer o outro a adotar o seu entendimento acerca de determinada norma jurídica. Se o caso é prático, judicial, há também a necessidade de persuasão do juiz para que aplique a norma como formulada pela parte. O direito, assim, con- templa não apenas a lógica deôntica (norma como descrição do fato mais imputa- ção da relação jurídica). Na construção da norma (logo da descrição fática e da descrição da relação jurídica) entra toda a lógica dialética, retórica e argumentati- va. Este o funcionamento “lógico” do direito. A construção do direito não é mono- lógica, portanto, mas dialógica e as qualidades de sua linguagem nos planos se- mântico e sintático são obtidos a partir do plano pragmático. Não é correto afirmar, portanto, que o jurista demonstra o sentido, conteúdo e alcance da norma, porque não parte de premissas unívocas, como faz o matemá- tico, que mediante uma inferência válida produz uma conclusão necessariamente verdadeira. Procura, sim, convencer seus pares na comunidade lingüística medi- ante um processo argumentativo, que parte de premissas não mais do que prová- veis (a interpretação que produziu desde o texto positivo)66. E, caso integrante de um processo judicial, há ainda necessidade de persuadir, forçar a ação daquele que decide67, mas igualmente a partir de premissas apenas verossímeis, não definiti- vamente verdadeiras, porquanto pretender uma determinada interpretação do tex- 64) As estruturas..., op. cit., p. 174. 65) Cf. FÁBIO ULHOA COELHO, Roteiro..., op. cit., p. 53. 66) Cf. ALAÔR CAFFÉ ALVES. Lógica: pensamento formal e argumentação: elementos para o discurso jurídico. 2. ed. São Paulo: Quarter Latin, 2002. p. ??? 67) Cf. CHAÏM PERELMAN. Lógica jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 3. 288 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 4, n. 1, jan./jun. 2008 68) Cf. TERCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, Introdução..., op. cit., p. 17. to jurídico como única correta é, no mais das vezes, impossível. Parte o argumento jurídico de um ponto de partida inegável: a lei positiva. A partir daí constrói dialeticamente suas interpretações. Ponto de partida exis- tente, válido, mas de sentido, conteúdo e alcance apenas verossímel, porquanto até mesmo a vinculação do intérprete a ele é passível de interpretação68. Aqueles textos funcionam, portanto, como pontos de partida de argumentação, isto é, topoi de argumentação.
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