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PREPARATÓRIO PARA MAGISTRATURA E MINISTÉRIO PÚBLICO DIREITO ADMINISTRATIVO Professor: Gabriel Brum Teixeira 2011-2 Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 2 SUMÁRIO DIREITO ADMINISTRATIVO ............................................................... 5 1. BREVE INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 5 2. CRITÉRIOS PARA DEFINIÇÃO (FORMAÇÃO) DO CONCEITO DO DIREITO ADMINISTRATIVO ................................................................................................................ 7 3. CONCEITO E CONTEÚDO DO DIREITO ADMINISTRATIVO ............................. 9 4. NATUREZA JURÍDICA DO DIREITO ADMINISTRATIVO .................................. 10 5. RELAÇÕES DO DIREITO ADMINISTRATIVO COM OUTROS RAMOS JURÍDICOS (A INTERDISCIPLINARIDADE) .............................................................. 10 6. FONTES ............................................................................................................................. 12 7. CODIFICAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO ................................................ 15 8. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO ........................................... 15 9. SISTEMA ADMINISTRATIVO OU SISTEMA DE CONTROLE JURISDICIONAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ..................................................................................... 15 REGIME JURÍDICO-ADMINISTRATIVO ....................................................................... 23 1. CONCEITO DE REGIME JURÍDICO-ADMINISTRATIVO ..................................... 23 2. PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS ............................................................................. 24 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ............................................................................................. 41 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA ............................................................................... 41 1. ESTADO ............................................................................................................................. 41 2. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: CONCEITO E SENTIDOS ..................................... 42 3. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E GOVERNO ............................................................... 44 4. ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA (CENTRALIZAÇÃO, DESCENTRALIZAÇÃO E DESCONCENTRAÇÃO) ................................................................................................... 44 5. ATIVIDADE ESTATAL – FORMAS DE DESEMPENHO (SERVIÇOS PÚBLICOS E EXPLORAÇÃO DE ATIVIDADE ECONÔMICA) ........................................................ 50 6. OS PRINCIPAIS INTEGRANTES DA ADMINISTRAÇÃO INDIRETA ............... 51 7. AGÊNCIAS EXECUTIVAS ............................................................................................. 72 8. SETORES DA ECONOMIA NACIONAL .................................................................... 73 9. TERCEIRO SETOR ......................................................................................................... 74 10. CONTRATOS DE GESTÃO OU ACORDO-PROGRAMA ..................................... 79 PODERES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ................................................................. 80 1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 80 2. PODER-DEVER ................................................................................................................ 80 3. DEVERES (PODERES-DEVERES GENÉRICOS) DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ................................................................................................................................. 81 Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 3 4. PODERES (PODERES-DEVERES ESPECÍFICOS) DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ................................................................................................................................. 82 ATOS ADMINISTRATIVOS ............................................................................................... 90 1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 90 2. CONCEITO ........................................................................................................................ 91 3. REQUISITOS (ELEMENTOS, PRESSUPOSTOS OU CONDIÇÕES DE VALIDADE) DOS ATOS ADMINISTRATIVOS ............................................................. 92 4. ATRIBUTOS (OU CARACTERÍSTICAS) DO ATO ADMINISTRATIVO ............ 95 5. CLASSIFICAÇÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS ............................................. 97 6. NOÇÕES DE PERFEIÇÃO, VALIDADE, EFICÁCIA E EXEQUIBILIDADE .... 100 7. ESPÉCIES DE ATOS ADMINISTRATIVOS............................................................ 101 8. INVALIDAÇÃO OU DESFAZIMENTO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS ...... 104 9. CONVALIDAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS ............................................... 106 SERVIDORES PÚBLICOS ................................................................................................ 107 1. CONCEITO – NOÇÕES INICIAIS ........................................................................... 107 2. CLASSIFICAÇÃO .......................................................................................................... 108 3. ESTUDO DO REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS .. 112 4. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA ................................................................................. 115 5. ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA ....................................................................... 115 6. NORMAS CONSTITUCIONAIS SOBRE O REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES PÚBLICO .................................................................................................. 116 SERVIÇO PÚBLICO ........................................................................................................... 134 1. FORMAÇÃO DO CONCEITO...................................................................................... 134 2. PRINCÍPIOS DO SERVIÇO PÚBLICO .................................................................... 137 3. ROL BÁSICO DE SERVIÇOS PÚBLICOS SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS PARA A SUA PRESTAÇÃO .. 141 4. CLASSIFICAÇÃO .......................................................................................................... 143 5. GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO ............................................................................... 145 6. PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO – DELEGAÇÃO E OUTORGA ............ 146 7. FORMAS DE PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO .......................................... 147 8. MEIOS DE PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO .............................................. 148 9. MODALIDADES DE DELEGAÇÃO ........................................................................... 148 10. PERMISSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO .................................................................. 150 11. AUTORIZAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO............................................................. 152 12. CONVÊNIO ADMINISTRATIVO ............................................................................. 153 13. ORGANIZAÇÕES SOCIAIS..................................................................................... 154 14. OSCIP – ORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO ................................................................................................................................................. 155 15. PPP – PARCERIA PÚBLICO-PRIVADA ................................................................ 156 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO ................................................................ 157 Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/Sandro de Abreu 4 1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 157 2. EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO ............................ 158 3. ANÁLISE DA REGRA INSCRITA NO ARTIGO 37, §6° DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL .............................................................................................................................. 161 4. PRESSUPOSTOS PARA RESPONSABILIZAÇÃO OBJETIVA DO ESTADO . 164 5. CAUSAS ATENUANTES E EXCLUDENTES DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO ................................................................................................................................ 168 6. RESPONSABILIDADE CIVIL POR CONDUTAS OMISSIVAS .......................... 170 7. RESPONSABILIDADE POR ATOS LEGISLATIVOS ............................................ 173 8. RESPONSABILIDADE POR ATOS JUDICIAIS .................................................... 173 9. REPARAÇÃO DO DANO ............................................................................................. 175 10. A AÇÃO DE REGRESSO .......................................................................................... 180 11. JURISPRUDÊNCIA PREDOMINANTE DO STF E DO STJ .............................. 181 CONTROLE ADMINISTRATIVO ..................................................................................... 187 1. INTRODUÇÃO: ESTADO DE DIREITO E CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ............................................................................................................................... 187 2. CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL .............. 188 BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA INDICADA ................................................................... 217 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................... 217 Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 5 PONTO 1 DIREITO ADMINISTRATIVO Este capítulo foi originalmente elaborado pelo Prof. Frederico Telho. As atualizações seguintes foram realizadas pelos Profs. Frederico Telho e Sandro de Abreu. 1. BREVE INTRODUÇÃO 1.1. Evolução Histórica (Origem) do Direito Administrativo Muito embora a doutrina majoritária reconheça o surgimento do Direito Administrativo a partir do nascimento do Estado de Direito (período pós-revoluções burguesas), há quem constate a existência de normas administrativas ainda na Idade Média, mesmo que ainda não integrassem um ramo próprio e ainda se enquadrassem no direito civil. Com o fim da Idade Média, no período das monarquias absolutistas, as normas administrativas pouco evoluíram, já que os monarcas eram autoridades soberanas (representantes dos homens e de Deus) e, por isso, não se submetiam ao império das leis. Nesse período, inclusive, vigorou a Teoria da Irresponsabilidade do Estado, baseada nos postulados de que the king can do no wrong e le roi ne peut mal faire. Até então, o absolutismo reinante e o enfeixamento de todos os poderes governamentais nas mãos do soberano não permitiam o desenvolvimento de quaisquer teorias que visassem reconhecer direitos aos súditos. Vivia-se o domínio da vontade onipotente do monarca, cristalizada na máxima romana quod principi placuit legis habet vigorem e, subseqüentemente, na expressão egocentrista de Luiz XIV, para quem L’État c’est moi. É induvidoso, portanto, que o impulso decisivo para a formação do Direito Administrativo foi dado pela Teoria da Separação dos Poderes, desenvolvida por Montesquieu (L’Esprit des Lois, 1748) e acolhida universalmente por todos os países constituídos como Estado de Direito. Na França, após a Revolução (1789), foram tripartidas as funções do Estado em: executiva, legislativa e judicial. Nesse contexto, verificou- se a especialização das atividades do governo e a independência dos órgãos incumbidos de realizá-las. Surgiu, portanto, a necessidade de julgamento dos atos da administração, o que, inicialmente, ficou a cargo do Parlamento, mas, posteriormente, foi reconhecida a conveniência de se desligar as atribuições políticas (do Parlamento) das judiciais. Ainda, em um estágio mais avançado, foram criados, a par dos Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 6 tribunais judiciais, os tribunais administrativos. Surgiu, assim, a jurisdição administrativa (ou justiça administrativa) e, como corolário lógico, foi-se estruturando um conjunto de normas autônomas de Direito, que especificamente regulavam a Administração Pública e suas relações, inclusive com terceiros (administrados, particulares e/ou cidadãos). É preciso notar, entretanto, que o Direito Administrativo não se desenvolveu da mesma forma em todos os países. O contexto sóciopolítico-administrativo de cada Estado impôs, caso a caso, uma evolução peculiar. “A disciplina experimentou maior avanço nos Estados mais atuantes, aqueles que não se limitavam simplesmente à manutenção da ordem pública, desenvolvendo suas atividades nos mais diversos setores, como saúde, educação, cultura e previdência social e, até mesmo, atuando no domínio econômico. Desta maneira, é imperioso distinguir o direito administrativo aplicado no chamado Estado de Polícia, do Estado do Bem-estar e do Estado Providência, vez que cada um destes apresenta níveis diversos de interferência estatal nas relações com seus cidadãos.” (Romeu Felipe Bacellar Filho). 1.2. O Direito Administrativo no Brasil O Direito Administrativo no Brasil não se atrasou, cronologicamente, em relação às demais nações. Em 1851, foi criada essa cadeira (Dec. 608, de 16.8.1851) nos cursos jurídicos existentes e, já em 1857, era editada a primeira obra sistematizada sobre o tema (Elementos de Direito Administrativo Brasileiro, de Vicente Pereira do Rego, que, à época, era professor da Academia de Direito do Recife na América Latina1). Durante o Império, sucederam àquela obra os seguintes livros: (a) Veiga Cabral, Direito Administrativo Brasileiro, Rio, 1859; (b) Visconde do Uruguai, Ensaio sobre o Direito Administrativo Brasileiro, 2 vols., Rio, 1862; (c) A. J. Ribas, Direito Administrativo Brasileiro, Rio, 1866; (d) Rúbio de Oliveira, Epítome do Direito Administrativo Pátrio, São Paulo, 1884. Com a República, os estudos sistematizados de Direito Administrativo continuaram a evoluir, já, agora, sob a influência do Direito Público Norte-Americano, que, inclusive, inspirou o modelo de federação adotado no Brasil. De lá para cá, inúmeras obras foram editadas, o que indica que a curva da evolução histórica do Direito Administrativo no Brasil foi extremamente profícua e se apresenta promissora. São contínuos e substanciosos os estudos sobre o tema, o que confirma a previsão de Goodnow, para quem “os grandes problemas de Direito Público Moderno são de caráter quase exclusivamente administrativo”. 1 TÁCITO, Caio. O primeiro livro sobre Direito Administrativo na América Latina. RDA 27/428. Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 7 2. CRITÉRIOS PARA DEFINIÇÃO (FORMAÇÃO) DO CONCEITO DO DIREITO ADMINISTRATIVO Dentre os diversos critérios utilizados na definição do Direito Administrativo, chamamos a atenção para os seguintes: a) CRITÉRIO (OU ESCOLA) POSITIVISTA, LEGALISTA, EXEGÉTICA, EMPÍRICA, CAÓTICA OU FRANCESA: o Direito Administrativo é simplesmente o estudo das normas que regem a Administração Pública. CRÍTICA: o Direito não se esgota pelo estudo das “leis”; b) CRITÉRIO (OU ESCOLA) DO PODER EXECUTIVO (pensamento de autores italianos, como Raggi,Posada de Herrera e Ranelleti): o Direito Administrativo é o estudo dos atos do Poder Executivo. CRÍTICA: existem atos administrativos que provêm dos Poderes Legislativo e Judiciário; c) CRITÉRIO TELEOLÓGICO (pensamento do italiano Vittorio Emanuelle Orlando): o Direito Administrativo seria um sistema harmônico de normas e princípios jurídicos que regulam a atividade do Estado, no intuito de viabilizar o alcance dos seus fins. No Brasil, este critério é defendido por Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, para quem o Direito Administrativo é “o ordenamento jurídico da atividade do Estado-poder, enquanto tal, ou de quem faça as suas vezes, de criação de utilidade pública, de maneira direta e imediata”. CRÍTICA: outras disciplinas de direito público também seriam abrangidas por este critério; d) CRITÉRIO NEGATIVO OU RESIDUAL (adotado por Tito Prates da Fonseca): o conceito do Direito Administrativo é subsidiário, ou seja, é o estudo de todas as atividades estatais, salvo aquelas que envolvam o direito privado (patrimonial), a atividade legislativa e a atividade jurisdicional; e) CRITÉRIO DA DISTINÇÃO ENTRE ATIVIDADE JURÍDICA E SOCIAL DO ESTADO: distingue a atividade jurídica não contenciosa exercida pelo Estado e a atividade social por ele exercida supletivamente. Mário Masagão e José Cretella Júnior adotam este critério e, por isso, conceituam o Direito Administrativo, em sentido objetivo, como o conjunto de princípios que regulam a atividade jurídica não contenciosa do Estado e, em sentido subjetivo, como aquele que regula a constituição dos seus órgãos e respectivos meios de ação; Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 8 f) CRITÉRIO DAS RELAÇÕES JURÍDICAS (defendido pelo francês Laferrière): o Direito Administrativo é o estudo das relações travadas entre a Administração e os administrados (cidadãos e/ou particulares). CRÍTICA: em outras disciplinas também há relações entre Administração e administrados, como no Direito Tributário; g) CRITÉRIO DA HIERARQUIA (criado por René Foignet): o Direito Administrativo é o estudo da atuação dos órgãos inferiores do Estado, enquanto o Direito Constitucional estuda a atuação dos órgãos superiores. CRÍTICA: tanto o Direito Administrativo quanto o Constitucional estudam o Estado, independentemente da hierarquia de seus órgãos. O diferencial reside, respectivamente, no fato de que aquele cuida da dinâmica do Estado (o seu aparelhamento) e este se dedica a sua estrutura; h) CRITÉRIO (OU ESCOLA) DO SERVIÇO PÚBLICO: o Direito Administrativo é o estudo das atividades estatais (disciplina, organização e regência) da prestação de serviços públicos. CRÍTICA: limita, injustificadamente, o objeto de estudo do Direito Administrativo; i) CRITÉRIO PERSONATIVO: o Direito Administrativo é o estudo das pessoas jurídicas públicas (ou de direito público). CRÍTICA: incorre no equívoco da generalidade. As empresas públicas e as sociedades de economia mista têm personalidade jurídica de direito privado e são também estudadas pelo Direito Administrativo; j) CRITÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: vários autores adotam este critério, inclusive Hely Lopes Meirelles. Segundo este critério, leva-se em consideração, na conceituação do Direito Administrativo, a Administração Pública no seu sentido objetivo, subjetivo e formal; OBSERVAÇÃO: O professor Toshio Mukai apresenta as seguintes divisões doutrinárias acerca dos conceitos de Direito Administrativo: a) corrente dualista: o Direito Administrativo seria aplicado a uma parte restrita da atuação estatal, sendo a outra remanescente regida pelo direito privado; b) corrente intermediária: todo o direito aplicável à Administração deve ser denominado de Direito Administrativo, sendo ele de natureza pública ou privada; c) corrente unitária: existe um só direito aplicável à Administração, o Direito Administrativo. Rejeita-se a idéia de aplicação do direito privado às atividades do Estado. Toshio Mukai adota esta última corrente (unitária) e afirma que “o Estado poderá realizar muitas atividades similares à dos particulares, [...] mas jamais poderá identificar sua vontade ou processo aos de um sujeito privado e menos ainda atuar com fins privados”. Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 9 3. CONCEITO E CONTEÚDO DO DIREITO ADMINISTRATIVO 3.1. Conceito O conceito e o conteúdo do Direito Administrativo variam conforme o critério teórico adotado pelo doutrinador/intérprete (conferir item “2”, acima). O Direito Administrativo brasileiro, em síntese, pode ser entendido como o conjunto de normas, especialmente princípios jurídicos, que regem a atividade administrativa, as entidades e órgãos da Administração Pública, bem como os agentes públicos, tudo com a finalidade cogente de satisfação das necessidades coletivas (interesse público). Apóia-se, portanto, no modelo denominado “europeu-continental”, originário do direito francês e adotado pela Itália, Espanha, Portugal, dentre outros países europeus. É também chamado de “direito administrativo descritivo”, que se opõe ao modelo “anglo-americano” (ou anglo-saxão), porque tem por objeto a descrição e delimitação dos órgãos e serviços públicos, sendo derrogatório do direito privado (o modelo inglês, por seu turno, se fundamenta na atuação administrativa, sem derrogação do direito privado, integrando a própria Ciência da Administração). 3.2. Conteúdo (ou Objeto) Ao Direito Administrativo compete o estudo da atividade ou função administrativa exercida direta ou indiretamente, sua estrutura, seus bens, seu pessoal e sua finalidade. O seu estudo recai sobre os atos/contratos administrativos editados pelo Poder Executivo, bem como pelos Poderes Legislativo e Judiciário. A despeito da enorme controvérsia na doutrina, pode-se afirmar que, por função administrativa, entende-se o dever do Estado de atender o interesse público, com a satisfação do comando decorrente dos atos normativos. O cumprimento do dever legal, como se verá, poderá decorrer da função exercida por pessoa jurídica de direito público ou mesmo de direito privado (no caso da atividade descentralizada). O que não se discute, no caso, é a absoluta submissão da Administração Pública à lei (em sentido amplo), que sempre lhe impõe a conduta esperada. Ante tal submissão, os poderes instrumentais da Administração Pública hão de ser entendidos como deveres (daí a idéia de poder-dever ou dever- poder). O estudo da Administração Pública, em face do conceito proposto, é, substancialmente, o objeto (conteúdo) do Direito Administrativo. Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 10 4. NATUREZA JURÍDICA DO DIREITO ADMINISTRATIVO O Direito Administrativo integra o ramo do direito público, pois em suas relações há sempre a presença, seja direta ou indireta, do Estado, que exerce suas atividades sob um regime de prerrogativas e sujeições, observados os limites impostos pelo manto protetor dos direitos fundamentais. As normas de Direito Administrativo são, portanto, predominantemente, de Direito Público (incidem, também, mesmo que em menor proporção, normas de Direito Privado nas relações regidas pelo Direito Administrativo). 5. RELAÇÕES DO DIREITO ADMINISTRATIVO COM OUTROS RAMOS JURÍDICOS (A INTERDISCIPLINARIDADE) O estudo do Direito não mais comporta a análise isolada e estanque de um ramo jurídico. Na verdade, o Direito é um só. As relações jurídicas é que podem ter naturezas diferentes. Assim, mesmo que de forma sucinta, é cabível indicar alguns pontos comuns em que o Direito Administrativo se tangencia com outras disciplinas jurídicas. No entanto, antes de se adentrar no exame da interdisciplinaridade,vale a pena relembrar um assunto sempre comentado. Trata-se da antiga e dicotômica classificação romana, que admitia bipartir o Direito em dois grandes (e intocáveis) ramos jurídicos: (a) o Direito Público; e (b) o Direito Privado. Esta classificação, atualmente, encontra-se superada, tal como registram praticamente todos os estudiosos do assunto. É quase pacífico o raciocínio de que todo ramo jurídico contém, de algum modo, normas de ambos os campos (ou seja, normas de Direito Público e de Direito Privado). Nenhuma disciplina, portanto, se afigura inflexível quanto à natureza das normas que a integram. Se tal fundamento é verdadeiro, não menos o é o fundamento de que, em cada ramo do Direito, predominam as normas de Direito Público ou de Direito Privado, umas sobre as outras. O que não se admite é a idéia de que, em determinado ramo jurídico, as normas sejam exclusivamente de Direito Público ou de Direito Privado, sem qualquer interligação entre elas. Assim, pode-se afirmar, com certeza, que o Direito Administrativo se insere no ramo do Direito Público, tal como ocorre com o Direito Constitucional, o Direito Penal, o Direito Processual, o Direito Eleitoral, entre outros (isso não quer dizer, repita-se, que não haja normas de Direito Privado incidentes nas relações regidas pelo Direito Administrativo – a dicotomia absoluta não mais se sustenta). De outro turno, no campo do Direito Privado, ficam, em última instância, o Direito Civil e o Direito Comercial (ou Empresarial). Mais uma Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 11 vez, nesse particular, vale anotar que há normas tipicamente de Direito Público incidentes nas relações regidas pelo Direito Civil e Comercial. Agora, fechando esse grande parêntese e retornando-se a interdisciplinaridade, pode-se afirmar que a relação de maior intimidade do Direito Administrativo é com o Direito Constitucional. E não poderia ser de outra maneira. É o Direito Constitucional que alinha as bases e os parâmetros do Direito Administrativo que, na verdade, revela-se como o lado dinâmico daquele. Na Constituição da República estão esculpidos os princípios da Administração Pública (art. 37), a matriz das normas sobre servidores públicos (arts. 39/41), além das competências atribuídas ao Poder Executivo (arts. 84/85). São mencionados, ainda, na Lei Maior, os institutos da desapropriação (arts. 5º, XXIV; 182, § 4º, III; 184 e 243), das concessões e permissões de serviços públicos (art. 175), dos contratos administrativos e licitações (arts. 37, XXI e 22, XXVII), da responsabilidade extracontratual do Estado (art. 37, § 6º), entre outros. O Direito Administrativo ainda se toca no Direito Processual, especialmente pela circunstância de que, em ambos os ramos, a figura do “processo” aparece. Apesar das peculiaridades no tratamento do assunto em um e noutro ramo do Direito (princípios próprios, procedimentos diferenciados, etc.), é certo que existem inevitáveis pontos de ligação entre as figuras do processo (ou procedimento) administrativo e do processo judicial. Apenas como exemplo, vale lembrar que o direito ao contraditório, à ampla defesa e à duração razoável do processo incide tanto em uma como noutra categoria (art. 5º, LV e LXXVIII da CF). Ainda, especificamente quanto ao processo administrativo de natureza disciplinar, são aplicáveis alguns postulados e normas do processo penal. Já no que diz respeito ao processo civil, é importante lembrar que, em suas normas, existem previsões de prerrogativas processuais aplicáveis à Administração Pública, quando em juízo (arts 188 e 475 do CPC). A relação com o Direito Penal se consuma por meio de vários elos de ligação. Um deles é a previsão, no Código Penal, dos crimes contra a Administração Pública (arts. 312/326) e a definição dos sujeitos passivos desses delitos (art. 327, caput e § 1º). A interseção se dá, também, no caso das normas penais em branco, aquelas cujo conteúdo pode se completar pelas normas de Direito Administrativo. Ainda, com relação ao Direito Tributário, há matérias conexas e relacionadas. Uma delas é a que outorga ao Poder Público o exercício do Poder de Polícia, atividade tipicamente administrativa, que é remunerada por taxas (arts. 145, II da CF; e arts. 77/78 do CTN). De outro ângulo, tem-se que as normas de arrecadação tributária se inserem dentro do contexto do Direito Administrativo. O Direito do Trabalho é outra disciplina que apresenta alguns pontos de contato com o Direito Administrativo. É inegável que as normas que regulam a função fiscalizadora das relações de trabalho estão integradas no Direito Administrativo. Ainda, é de se reconhecer que ao Estado-Administração é permitido o recrutamento de servidores pelo Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 12 regime trabalhista, aplicando-se, preponderantemente, a essa relação jurídica as normas da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (com a EC 19/98, houve a queda do regime jurídico único dos servidores públicos). Há, também, relações entre o Direito Administrativo e o Direito Civil e Comercial (ou Empresarial). Diga-se, aliás, que são intensas essas relações. A guisa de exemplo, vale anotar que a teoria civilista dos atos e negócios jurídicos e a teoria geral dos contratos se aplicam supletivamente aos atos e contratos administrativos (vide, por exemplo, o art. 54 da Lei nº 8.666/93). Em outra vertente, pode-se destacar que é lícito ao Estado criar empresas públicas e sociedades de economia mista para a exploração de atividade econômica (art. 173, § 1º da CF), cujos atos constitutivos serão regidos por normas de Direito Comercial. Por derradeiro, é de se atentar para as relações que alguns novos ramos jurídicos mantêm com o Direito Administrativo. Como exemplo, cita-se o Direito Urbanístico, que, objetivando o estudo, a pesquisa e as ações de política urbana, contém normas tipicamente de Direito Administrativo. Poderia até mesmo dizer-se, sem receio de errar, que se trata de verdadeiro subsistema do Direito Administrativo (muito embora, para maioria da Doutrina, o Direito Urbanístico é ramo autônomo). O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) dispõe sobre vários instrumentos típicos do Direito Administrativo, como as licenças, as obrigações urbanísticas, o estudo prévio de impacto de vizinhança, a desapropriação, etc. 6. FONTES Não há entendimento pacífico, na doutrina, quanto às fontes do Direito Administrativo. Basicamente, diz-se que a principal fonte é a lei, entendida como norma escrita superior em relação às demais fontes, de caráter impessoal, o que engloba todos os atos normativos, com abrangência ampla, desde as normas constitucionais até as instruções/circulares e demais atos decorrentes do poder normativo estatal. Outras fontes, ao lado da lei, inspiram o Direito Administrativo, a saber: a jurisprudência, a doutrina, os princípios gerais do direito, o costume e a doutrina. 6.1. A Lei É a regra escrita, geral, abstrata e impessoal, que tem por conteúdo um direito objetivo, no seu sentido material, e, no sentido formal, é Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 13 considerada como todo e qualquer ato/disposição emanado do Poder Legislativo. De acordo com sua destinação, recebe o nome de lei constitucional, lei administrativa, lei civil, lei penal, lei processual, lei tributária, lei comercial, etc. O seu conteúdo é que lhe emprestará a natureza de norma de ordem pública ou de ordem privada (lex privata), o que não quer dizer que toda norma de ordem pública será de Direito Público. Tanto é assim que as normas aplicáveis ao casamento e sua dissolução, a despeito de tangenciarem o Direito Civil (ramo do Direito Privado),possuem o conteúdo de normas de ordem pública. A lei, como norma jurídica, deve ser entendida, em seu sentido material, como todo ato normativo imposto coativamente pelo Estado aos particulares, com a finalidade de regular as relações entre eles e, ainda, entre os próprios cidadãos/administrados. A lei, em acepção ampla, é fonte primária do Direito Administrativo e, assim, abrange todos os atos normativos resultantes do poder legiferante e do poder normativo estatal: lei constitucional (superior a todas); lei complementar; lei ordinária; lei delegada; medida provisória; decreto legislativo; resolução do Senado; decreto de execução; decreto autônomo; decreto autorizado/delegado; instrução ministerial; regulamento; regimento; circular; portaria; ordem de serviço, etc.. 6.2. A Jurisprudência A jurisprudência é formada pelas decisões reiteradas sobre um mesmo assunto, em um mesmo sentido. As decisões isoladas dos tribunais são computadas como simples precedentes e não se equivalem à amplitude conceitual da jurisprudência. Para alguns doutrinadores, a jurisprudência não é fonte do Direito, mas mero indicativo de valor moral. Todavia, parece-nos acertado indicá- la como fonte, posto que é marcante sua influência no delineamento de diversos institutos (especialmente de Direito Administrativo), tais como a responsabilidade civil do Estado, a intervenção do Estado na propriedade privada, os casos de apuração de ilícitos funcionais e, ainda, a dosimetria da sanção disciplinar. Atualmente, ante o advento da súmula vinculante (EC 45), a jurisprudência ganhou ainda mais contorno e força como fonte do Direito e, por assim ser, fonte do próprio Direito Administrativo. Todavia, cumpre ressaltar que, a despeito do que estabelece o artigo 103-A da CF/88 (após a EC nº 45/2004)2 e o artigo 28 da Lei nº 2 Art. 103-A da CF/88: “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.” Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 14 9.868/993, não vige no nosso ordenamento jurídico o princípio norte- americano do stare decises, segundo o qual a decisão de um órgão jurisdicional (não necessariamente da Suprema Corte) vincula as instâncias inferiores, para os casos idênticos. 6.3. Os Princípios Gerais do Direito Os princípios gerais do direito são os postulados que dirigem toda a legislação e, por isso, apresentam-se como fonte do Direito Administrativo. Os princípios aplicáveis à Administração Pública, estejam previstos expressa ou implicitamente na Constituição, bem como aqueles que estejam estabelecidos em outros atos normativos, têm a natureza de princípios gerais do direito e são de observância obrigatória. 6.4. O Costume Sempre que há deficiência legislativa no disciplinamento da Administração Pública objetiva (lacuna), é possível utilizar-se do costume como fonte do Direito Administrativo. Nesse sentido, a praxe burocrática serviria como parâmetro informativo ao Direito Administrativo, desde que não se mostre contrária à lei e à moral. Vale lembrar, ainda, por oportuno, que o costume exige a prática reiterada, uniforme, contínua e de acordo com a moralidade administrativa, para que, então, seja ele considerado fonte do Direito Administrativo. Hodiernamente, sua presença é objeto de muitos questionamentos, tendo em vista a evolução normativa experimentada com (e após) a Constituição da República de 1988. 6.5. A Doutrina Segundo o magistério de Hely Lopes Meirelles, “a doutrina é elemento construtivo da Ciência Jurídica”, com reflexo direto na elaboração das leis, nas decisões proferidas pelo Poder Judiciário, na solução de conflitos e no âmbito da própria Administração Pública. É o que se costuma chamar de opinio iures doctorum, em alusão à percepção que se tem dos diversos ramos do saber jurídico, por parte dos estudiosos do direito. 3 Art. 28, parágrafo único da Lei nº 9868/99: “A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.” Lembre-se que o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 28 da Lei 9868/99, por ocasião do julgamento da RCL nº 1880/SP (Informativo nº 289). Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 15 7. CODIFICAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO O Direito Administrativo não é um direito codificado, como é o Direito Civil, Penal, Processual, etc.. Na verdade, há uma infinidade de leis esparsas que definem, hoje, seus contornos dogmáticos, tais como a Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Lei de Processo Administrativo, Estatutos de Servidores, etc. (isso, sem se falar, nas inúmeras normas administrativas sediadas, originariamente, na Constituição Federal). Atualmente, há quem defenda a não codificação do Direito Administrativo, como há os que defendem a sua codificação parcial e outros que defendem a codificação total. Um exemplo de codificação do Direito Administrativo é encontrado no Código Administrativo de Portugal. 8. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO Para a adequada interpretação do Direito Administrativo não se pode olvidar de seu aspecto constitucional. As decisões em matéria administrativa devem passar pelo filtro constitucional, por meio do processo denominado de filtragem constitucional. Com isso, impõe-se o respeito às regras e princípios, tanto expressos quanto implícitos, previstos na Constituição da República. De outro turno, como decorrência do regime jurídico-administrativo, o intérprete, ao lidar com o Direito Administrativo, deverá ainda se atentar para quatros fatores: a) a desigualdade jurídica entre o administrador e o cidadão: a administração goza de privilégios (ou prerrogativas) decorrentes do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, o que gera relações preponderantemente verticais; b) a indisponibilidade do interesse público; c) a discricionariedade; d) a presunção de legitimidade dos atos da Administração Pública (art. 19, II da CF/88); OBSERVAÇÃO: a analogia é admitida no Direito Administrativo (o encaixe de situações semelhantes). Já a interpretação extensiva não é admitida, uma vez que envolve a criação de norma administrativa nova. 9. SISTEMA ADMINISTRATIVO OU SISTEMA DE CONTROLE JURISDICIONAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Por sistema administrativo (ou sistema de controle jurisdicional da Administração Pública, como se diz modernamente), entende-se o regime adotado pelo Estado para a correção (verificação/controle) dos atos/contratos administrativos supostamente ilegais/ilegítimos praticados Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 16 pelo Poder Público, por quaisquer de seus “departamentos” de governo. Vigem, presentemente, dois sistemas bem diferençados: (a) o sistema do contencioso administrativo ou de jurisdição administrativa, jurisdição dupla ou dúplice, também chamado de sistema francês; (b) e o sistema judiciário ou de jurisdição única ou comum, conhecidotambém por sistema inglês. Não se admite a existência do chamado sistema misto. Esta nomenclatura, muito além de imprópria, não serve para definir um sistema administrativo em si (autônomo). Na verdade, como bem pondera Miguel de Seabra Fagundes, hoje em dia, “nenhum país aplica um sistema de controle puro, seja através do Poder Judiciário, seja através de tribunais administrativos”4. O que caracteriza o sistema administrativo é a predominância da jurisdição comum ou da jurisdição especial, e não a exclusividade de uma ou de outra. Na prática, como visto, todos os sistemas seriam mistos, o que desnatura esta equivocada classificação. 9.1. Sistema do Contencioso Administrativo (ou Sistema Francês) O sistema do contencioso administrativo foi originariamente adotado na França, de onde se propagou para outras nações. É resultante da acirrada luta que se travou entre a Monarquia e o Parlamento, que então exerciam funções jurisdicionais, e os Intendentes, que representavam as administrações locais. A Revolução (1789), imbuída de liberalismo e ciosa da independência dos Poderes, pregada por Montesquieu, encontrou ambiente propício para separar a “Justiça Comum” da “Justiça da Administração”. Com isso, atendeu-se não apenas ao desejo de seus doutrinadores, mas também aos anseios do povo, já descrente da ingerência judiciária nos negócios do Estado. Separaram-se os Poderes. E, ao extremar os rigores dessa separação, a Lei 16, de 24.08.1790, dispôs: “As funções judiciárias são distintas e permanecerão separadas das funções administrativas. Não poderão os juízes, sob pena de prevaricação, perturbar, de qualquer maneira, as atividades dos corpos administrativos”. A Constituição de 3.8.1791 consignou: “Os tribunais não podem invadir as funções administrativas ou mandar citar, para perante eles comparecerem, os administradores, por atos funcionais”. Firmou-se, assim, na França, o sistema do administrador-juiz, vedando-se à Justiça Comum conhecer de atos da Administração, os quais se sujeitam unicamente à jurisdição especial do contencioso administrativo, que gravita em torno da autoridade suprema do Conselho de Estado, pedra fundamental do sistema francês. Essa orientação, aliás, 4 FAGUNDES, Miguel de Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 1957, p. 133, nota 1. Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 17 foi conservada na reforma administrativa de 1953 e, mais tarde, mantida pela vigente Constituição francesa de 4.10.58. No sistema francês, todos os tribunais administrativos sujeitam-se, direta ou indiretamente, ao controle do Conselho de Estado, que funciona como juízo de apelação (juge d´appel), como juízo de cassação (juge de cassation) e, excepcionalmente, como juízo originário e único de determinados litígios administrativos (juge de premier et dernier ressorte), uam vez que dispõe de plena jurisdição em matéria administrativa. “Como no passado – explica Vedel, em face da reforma administrativa de 1953 -, o Conselho de Estado é, conforme o caso, juízo de primeira e última instâncias, corte de apelação ou corte de cassação. A esses títulos ele conhece ou pode conhecer de todo litígio administrativo”.5 Na organização atual do contencioso administrativo francês, o Conselho de Estado, no ápice da pirâmide da jurisdição especial, revê o mérito das decisões, como corte de apelação dos Tribunais Administrativos (denominação atual dos antigos Conselhos de Prefeitura) e dos Conselhos do Contencioso Administrativo das Colônias. E, ainda, como instância de cassação, o Conselho de Estado controla a legalidade das decisões do Tribunal de Contas, do Conselho Superior da Educação Nacional e da Corte de Disciplina Orçamentária (Lei de 25/09/48). Embora caiba à jurisdição administrativa o julgamento do contencioso administrativo (“ensemble de litiges que peut faire naitre l´activité de l´Administration”), certas demandas de interesse da Administração ficam sujeitas à Justiça Comum, desde que se enquadrem numa destas quatro ordens: (a) litígios decorrentes de atividades públicas com caráter privado; (b) litígios que envolvam questões de estado e capacidade das pessoas; (c) litígios de repressão penal; (d) litígios que se refiram à propriedade privada. Como a delimitação da competência das “duas Justiças” está a cargo da jurisprudência, são freqüentes os conflitos de jurisdição, os quais são solucionados pelo Tribunal de Conflitos, integrado por dois ministros de Estado (Garde des Sceaux e Ministre de la Justice), por três conselheiros do Conselho de Estado e por três membros da Corte de Cassação. As atribuições do Conselho de Estado são, portanto, de ordem administrativa e contenciosa. O governo dele se serve na expedição de avisos e no pronunciamento sobre matéria de sua competência consultiva, além de que atua como órgão jurisdicional nos litígios em que é interessada a Administração ou seus agentes. A composição e funcionamento do Conselho de Estado são complexos, bastando recordar que, atualmente, é integrado por cerca de 5 BONNARD, Roger. Le Contróle Jurisdictionnel de l´Administration, 1934, p. 152. Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 18 duzentos membros, recrutados entre funcionários de carreira (indicados pela Escola Nacional de Administração), auditores, juristas e conselheiros. Suas atividades se distribuem entre duas seções (a administrativa e a contenciosa), subdividindo-se esta última (a contenciosa) em nove subseções. A jurisdição deste órgão supremo da Administração francesa é manifestada por meio de um desses quatro recursos: (a) contencioso de plena jurisdição (ou contencioso de mérito ou, ainda, contencioso de indenização), pelo qual o litigante pleiteia o restabelecimento de seus direitos feridos pela Administração; (b) contencioso de anulação, pelo qual se pleiteia a invalidação de atos administrativos ilegais, que são aqueles contrários à lei e/ou à moral ou, ainda, desviados de seus fins (détournement de pouvoir), que, por isso, é também chamado de recurso por excesso de poder (recours d´excés de pouvoir); (c) contencioso de interpretação, pelo qual se pleiteia a declaração do sentido do ato e de seus efeitos em relação ao litigante; (d) contencioso de repressão, pelo qual se obtém a condenação do infrator à pena administrativa prevista em lei, como nos casos de infração de trânsito ou de atentado ao domínio público. O sistema do contencioso administrativo francês, como se vê, é complicado na sua organização e atuação. Por isso mesmo, ele recebe adaptações e simplificações nos diversos países que o adotam, tais como a Suíça, a Finlândia, a Grécia, a Turquia, a lugoslávia, a Polônia e a antiga Tcheco-Eslováquia, embora sempre guarde, em linhas gerais, a estrutura francesa. Não abonamos a excelência desse regime. Entre outros inconvenientes sobressai o do estabelecimento de dois critérios de Justiça: um, a jurisdição administrativa; o outro, a jurisdição comum. Além disso, como bem observa Ranelletti, o Estado moderno, por ser Estado de Direito, deve reconhecer e garantir ao indivíduo e à Administração, por via da mesma Justiça, os seus direitos fundamentais, sem privilégios de uma jurisdição especial constituída por funcionários da própria Administração e sem as garantias de independência que se reconhecem necessárias à magistratura. Na França, o contencioso administrativo se explica pela instituição tradicional do Conselho de Estado, que integra o regime daquele país como uma peculiaridade indissociável de sua organização constitucional, mas não nos parece que, em outras nações, esse sistemapossa apresentar vantagens sobre o sistema judiciário (ou de jurisdição única). 9.2. Sistema Judiciário (ou Sistema de Jurisdição Única/Sistema Inglês) O sistema judiciário (ou sistema de jurisdição única/sistema inglês ou, ainda, modernamente denominado de sistema de controle judicial) é Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 19 aquele em que todos os litígios – de natureza administrativa ou de interesses exclusivamente privados – são resolvidos judicialmente pela Justiça Comum, ou seja, pelos juízes e tribunais do Poder Judiciário. Tal sistema é originário da Inglaterra, de onde se transplantou para os Estados Unidos da América do Norte, Bélgica, Romênia, México, Brasil, entre outros países. A evolução desse sistema está intimamente relacionada com as conquistas do povo contra os privilégios e desmandos da Corte inglesa. Primitivamente, o poder de administrar (no qual se inseria o poder de legislar), bem como o poder de julgar concentravam-se na Coroa. Com o tempo, o poder de legislar (Parlamento) foi diferenciado do poder de administrar (Rei), muito embora ainda permanecesse com a Coroa o poder de julgar. O Rei, portanto, era o único destinatário de todos os recursos dos súditos que, inseguros, como se direitos não possuíssem, viam na figura do monarca a personificação da injustiça. O povo era dependente da graça real na apreciação de suas reclamações e, apenas depois de muitas reivindicações populares, foi criado o chamado Tribunal do Rei (King Bench). Esse órgão, por delegação da Coroa, passou a decidir as reclamações contra os funcionários do Reino. Tal sistema, porém, ainda era insatisfatório, uma vez que os julgadores dependiam do Rei, que podia afastá-los do cargo ou, ainda, ditar-lhes ou reformar-lhes as decisões (dependia-se, ainda, da chancela real nos julgamentos). Algum tempo depois, o Tribunal do Rei passou a emitir, em nome próprio, ordens aos funcionários contra quem os recursos eram apresentados, além de expedir mandados de interdição que coibiam atos ilegais e/ou arbitrários. Tornaram-se usuais, portanto, o writ of certiorari, para remediar os casos de incompetência e ilegalidades graves; o writ of injunction, remédio preventivo destinado a impedir que a Administração modificasse determinada situação; o writ of mandamus, destinado a suspender certos procedimentos administrativos arbitrários; sem se falar no writ of habeas corpus, já considerado garantia individual desde a Magna Carta (1215). Do Tribunal do Rei, que só conhecia e decidia matéria de direito, passou-se para a Câmara Estrela (Star Chamber), com competência em matéria de direito e de fato, além de jurisdição superior sobre a Justiça de Paz dos Condados. Todavia, ainda restava a última etapa da independência da Justiça Inglesa. Em 1701, por meio do Act of Seulement, os juízes foram desligados do Poder Real, além de que se tornaram estáveis em seus cargos, com competência para julgar questões comuns e administrativas. Era, portanto, a instituição do Poder Judicial, independente do Poder Legislativo (Parlamento) e do Poder Administrativo (Rei), com jurisdição única e plena para conhecer e julgar todos os atos e procedimentos da Administração, bem como para solucionar os eventuais problemas decorrentes do direito privado. Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 20 O sistema de jurisdição única trasladou-se para as colônias norte- americanas e nelas se arraigou tão profundamente que, proclamada a Independência (1775) e fundada a Federação (1787), tornou-se cânone constitucional (Constituição dos EUA, art. III seção 2ª). Pode-se afirmar, sem risco de erro, que a Federação Norte- Americana é a que conserva, na sua maior pureza, o sistema de jurisdição única (ou do judicial control), que se afirma no rule of law, ou seja, na supremacia da lei. Ao definir esse regime, Dicey informa que ele se resume na submissão de todos à jurisdição ordinária, cujo campo de ação coincide com o da legislação, sendo co-extensivo e equivalente ao poder de legislar. Nem por isso, porém, os Estados Unidos deixaram de criar tribunais administrativos (como são exemplos a Court of Claims, Court of Custom Appeals, Court of Record e Comissões de Controle Administrativo de certos serviços ou atividades públicas de interesse público), com funções regulamentadoras e decisórias (Interstate Commerce Commission, Federal Trade Commission, Tariff Commission, Public Service Commission, etc.). Essas comissões e tribunais, porém, não proferem decisões definitivas e conclusivas para a Justiça Comum, cabendo ao Poder Judiciário torná-las efetivas (enforced), quando resistidas, além de poder rever a matéria de fato e de direito já apreciada administrativamente. A prática administrativa norte-americana levou a doutrina a afirmar, com inteiro acerto, que a existência desse duplo freio (do processo judicial e das Comissões/Tribunais Administrativos) visa a enfrentar e neutralizar os abusos do poder burocrático ou, pelo menos, reduzir o procedimento da Administração à condição de simples inquérito preliminar. Não existe, pois, no sistema anglo-saxônico, que é o da jurisdição única (da Justiça Comum), o contencioso administrativo do regime francês. Toda controvérsia, litígio ou questão entre particular e a Administração (ou entre seus agentes e a própria Administração) resolve- se perante o Poder Judiciário, que é o único competente para proferir decisões com autoridade final e conclusiva (o chamado final enforcing, o que equivale à coisa julgada judicial). 9.3. O Sistema Administrativo adotado no Brasil No Brasil-Império, houve uma tentativa, por meio do artigo 142 da Constituição de 1824, de criação do contencioso administrativo. Diz-se tentativa, pois a justiça administrativa não era independente. Suas decisões poderiam ser revistas pela administração ativa, ou seja, pelo Imperador. Em seguida, com a instauração da primeira República (1891), o Brasil adotou o sistema da jurisdição única, ou seja, o sistema do controle Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 21 administrativo pela Justiça Comum. Por isso mesmo, Ruy Barbosa, em interpretação autêntica de nossa primeira Constituição Republicana, afirmou, peremptoriamente, que "ante os arts. 59 e 60 da nova Carta Política, é impossível achar-se acomodação no Direito brasileiro para o contencioso administrativo”. As Constituições posteriores (1934, 1937, 1946 e 1967/1969) afastaram a idéia da jurisdição administrativa coexistente com a justiça ordinária (comum). Trilhava-se uma tendência já manifestada pelos mais avançados estadistas do Império, que se insurgiam contra aquele incipiente contencioso administrativo da época. Vale lembrar, porém, que a Emenda Constitucional n. 7/77 estabeleceu a possibilidade de criação de dois contenciosos administrativos (arts. 11 e 203), que não chegaram a ser instalados e que, agora, com a Constituição de 1988, ficaram definitivamente afastados. A orientação brasileira foi haurida no Direito Público Norte- Americano, que nos forneceu o modelo para a nossa primeira Constituição Republicana, pautada no rule of law e no judicial control. Essa filiação histórica é de suma importância para se compreender o Direito Público brasileiro, especialmente o Direito Administrativo, e não se invocar, inadequadamente, princípios do sistema francês como informadores de nosso regime político-administrativo e de nossa organização judiciária. Nesta seara, especificamente, mantivemo-nos vinculados ao sistema anglo-saxônico. O sistema da jurisdição única, adotado pelo Brasil, já foi definido no tópico precedente, porém, convém repetir. É o sistema da separação de funções entre oPoder Executivo e o Poder Judiciário, vale dizer, separação de funções entre o administrador e o juiz. Com essa idéia, torna-se inconciliável o contencioso administrativo, já que todos os interesses (de particulares ou do próprio Poder Público) sujeitam-se a uma única e mesma jurisdição conclusiva: a jurisdição do Poder Judiciário. No entanto, é preciso dizer que não se nega à Administração o direito de decidir. Absolutamente não. O que se lhe nega é a possibilidade de exercer funções materialmente judiciais (ou judiciais por natureza) e de emprestar às suas decisões força e definição próprias dos julgamentos judiciários (res judicata). Entre nós, como nos Estados Unidos da América do Norte, vicejam órgãos e comissões com “jurisdição administrativa” (parajudiciais), mas suas decisões não têm caráter conclusivo para o Poder Judiciário e, por isso, sempre estão sujeitas à revisão judicial (conferir, abaixo, a observação anotada). Para a correção judicial dos atos/contratos administrativos ou para remover a resistência dos particulares às atividades públicas, a Administração e os administrados dispõem dos mesmos meios processuais admitidos pelo Direito Comum e, se necessário, recorrerão ao mesmo Poder Judiciário, uno e único, que decide os litígios de Direito Público e de Direito Privado (art. 5, XXXV da CF). Esse é o sentido da Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 22 jurisdição única adotada no Brasil. OBSERVAÇÃO: Prevalece, no nosso ordenamento jurídico, o sistema de jurisdição única. Entretanto, considerando que o ordenamento jurídico- administrativo brasileiro convive com órgãos administrativos que possuem competência para julgar matérias específicas, torna-se relevante as seguintes observações inerentes à polêmica figura da “jurisdição não- judicial” em comparação com a “jurisdição judicial”. Segundo Humberto Theodoro Jr., jurisdição “é o poder que toca ao Estado, entre as suas atividades soberanas, de formular e fazer atuar praticamente a regra jurídica concreta que, por força do direito vigente, disciplina determinada situação jurídica”. Em outras palavras, é o poder- dever do Estado de dizer o direito aplicável ao caso concreto. Considerando que a tônica do “processo” é a solução de uma controvérsia (lide), o que presume a aplicação concreta da norma legal (direito), diante de um caso específico, resta a dúvida quanto à possibilidade, ou não, de que a Administração (concebida, aqui, sob o critério residual) exerça “jurisdição não-judicial”. Hely Lopes Meirelles foi categórico ao afirmar que existe jurisdição administrativa, já que se trata de um poder estatal, com manifestação tanto no Judiciário, como no Executivo e até mesmo no Legislativo.6 O professor José dos Santos Carvalho Filho, por sua vez, afirma que, “na via administrativa, as autoridades não desempenham função jurisdicional”. Nesse mesmo sentido, Marçal Justen Filho afirma que, “supor a existência de processo com cunho de jurisdicionalidade, fora do âmbito do Poder Judiciário, é contrário à Constituição”. Este último autor, no entanto, admite que o artigo 52, I e II, da CF/88, veicula uma exceção à proibição de que a jurisdição seja exercida fora do Poder Judiciário7. O problema, portanto, parece ser de ordem terminológica, notadamente quando se agrega, genericamente, ao termo “jurisdição”, o final enforcing power. Independentemente da posição que se queira adotar, um fator não pode ser desconsiderado: a prerrogativa de dizer o direito em caráter final e conclusivo (o final enforcing power) é inerente à jurisdição judicial, exercida pelo Poder Judiciário (art. 5º, XXV da CF/88). 6 “Afaste-se a errônea idéia de que decisão jurisdicional ou ato de jurisdição é privativo do Judiciário. Não é assim. Todos os órgãos e Poderes têm e exercem jurisdição nos limites de sua competência institucional, quando aplicam o Direito e decidem controvérsia sujeita à sua apreciação. Privativa do Judiciário é somente a decisão judicial, que faz coisa julgada em sentido formal e material, erga omnes. Mas a decisão judicial é espécie do gênero jurisdicional, que abrange toda decisão de controvérsia no âmbito judiciário ou administrativo.” (Hely Lopes Meirelles) 7 Esses dispositivos constitucionais tratam da competência privativa do Senado Federal para processar e julgar, nos crimes de responsabilidade, o Presidente e o Vice-Presidente da República, os Ministros de Estado, os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica (nos crimes de mesma natureza e conexos com os do Presidente e do Vice-Presidente da República), os Ministros do STF, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, Advogado-Geral da União, bem como o Procurador-Geral da República. Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 23 PONTO 2 REGIME JURÍDICO-ADMINISTRATIVO Este capítulo foi originalmente elaborado pelos Profs. Frederico Telho e Leonardo Buissa Freitas. As atualizações seguintes foram realizadas pelos Profs. Ronie Crisóstomo França e Frederico Telho. 1. CONCEITO DE REGIME JURÍDICO-ADMINISTRATIVO O regime jurídico-administrativo é o “conjunto harmônico de princípios e normas que regem os bens, os órgãos, os agentes e a atividade administrativa, a qual visa a realizar concreta, direta e imediatamente, os fins desejados pelo Estado” (Wander Garcia). É, pois, o responsável por atribuir ao Direito Administrativo o contorno e a racionalidade que o caracteriza, proporcionando autonomia científica à referida disciplina. Possui importância nitidamente metodológica. Celso Antônio Bandeira de Mello caracteriza o regime jurídico- administrativo por dois princípios basilares, dos quais se originam os demais. São eles: (a) a supremacia do interesse público sobre o privado; e (b) a indisponibilidade do interesse público. Segundo o renomado doutrinador, o entrosamento (a conciliação) entre as prerrogativas da Administração Pública e os direitos dos particulares/cidadãos (“binômio prerrogativas e sujeições” – Maria Sylvia Zanella Di Pietro) se constrói pela noção de supremacia do interesse público sobre o privado e indisponibilidade do interesse público. Verifica-se, ademais, a importância da noção de interesse público para o Direito Administrativo. Vale lembrar, porém, que, atualmente, há autores que criticam a doutrina de Celso Antônio e afirmam que o verdadeiro princípio-base do Direito Administrativo seria o próprio princípio do interesse público (ou o princípio da dignidade da pessoa humana). Esta corrente dissidente não vinga e se escora em vozes isoladas, como a dos Professores Carlos Ari Sundfeld, Marçal Justen Filho, Paulo Ricardo Schier, dentre outros poucos doutrinadores. O interesse público, portanto, continua a ser a mola-mestra do Direito Administrativo, que, em sua concepção clássica, impõe a busca do bem comum, o atendimento dos interesses de uma determinada sociedade, levando-se em consideração os indivíduos que a formam e o primado dos direitos fundamentais. Essa é a obrigação (objetivo) do Estado. A doutrina italiana (Renato Alessi) cunhou a segmentação entre interesse público primário e secundário, sendo o primeiro o verdadeiro interesse da coletividade (o bem comum) e o segundo, o interesse da Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 24 própria Administração Pública, que, muitas vezes, não coincide com o interesse da sociedade. Assim, é notório que o dever do Estado sempre será realizar o interesse público primário e não o secundário. O atendimento do interesse público pelo Estado nos traz a noção de função administrativa, ou seja, o Estado titulariza o poder outorgado pelopovo, o qual, no exercício da função administrativa, transforma-se no dever de atendimento do interesse público. Daí a designação poder-dever da Administração Pública. De seu turno, Celso Antônio chega a inverter aquelas palavras, pois, para ele, o exercício da função administrativa denota a atividade de um dever, do qual decorre um poder limitado por aquele. Daí defender o multicitado doutrinador a existência de um dever-poder e não poder- dever (ou meramente poder). Com essas breves considerações a respeito do regime jurídico- administrativo, cumpre-nos, agora, explicitar alguns dos demais princípios administrativos que informam esse sistema, sejam eles expressos ou implícitos. 2. PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS Princípios administrativos são os postulados fundamentais que inspiram todo o modo de agir da Administração Pública. Representam cânones pré-normativos, que norteiam a conduta do Estado quando no exercício de atividades administrativas. Cretella Junior bem observa que não se pode encontrar qualquer instituto do Direito Administrativo que não seja informado pelos respectivos princípios. A doutrina moderna tem-se detido, para a obtenção do melhor processo de interpretação, no estudo da configuração das normas jurídicas. Segundo tal doutrina (destacam-se, nela, os ensinamentos de Robert Alexy e Ronald Dworkin), as normas jurídicas admitem classificação em duas categorias básicas: os princípios e as regras. As regras são operadas de modo disjuntivo, vale dizer, o conflito entre elas é dirimido no plano da validade: aplicáveis ambas a uma mesma situação, uma delas apenas a regulará, atribuindo-se à outra o caráter de nulidade. Os princípios, ao revés, não se excluem do ordenamento jurídico na hipótese de conflito: dotados que são de determinado valor ou razão, o conflito entre eles admite a adoção do critério da ponderação de valores (ou ponderação de interesses), vale dizer, deverá o intérprete averiguar a qual deles, na hipótese sub examinen, será atribuído grau de preponderância. Não há, porém, nulificação do princípio postergado. Este, em outra hipótese e mediante nova ponderação de valores, poderá ser o preponderante, afastando-se o outro princípio em conflito. Adotando-se essa nova análise, poderá ocorrer, também no Direito Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 25 Administrativo, a colisão entre princípios, sobretudo os de índole constitucional, sendo necessário verificar, após o devido processo de ponderação de seus valores, qual o princípio preponderante, que será então aplicável à hipótese concreta. Os autores não são unânimes quanto a tais princípios, muitos deles originários de enfoques peculiares da Administração Pública e, por isso, entendidos pelos estudiosos como de maior relevância. A Constituição Federal enuncia alguns princípios básicos que regem a Administração, que serão considerados princípios expressos e, ainda, outros serão destacados, haja vista que são aceitos pelos publicistas (e são igualmente aplicáveis à Administração), que serão denominados de princípios reconhecidos. 2.1. Princípios Expressos A Constituição vigente, ao contrário das anteriores, dedicou um capítulo à Administração Pública (Capítulo VII do Título III) e, no seu artigo 37, deixou expressos os princípios a serem observados por todas as pessoas administrativas de qualquer dos entes federativos. Convencionamos denominá-los de princípios expressos, exatamente pela menção constitucional. Esses princípios revelam diretrizes fundamentais da Administração, de modo que só se poderá considerar válida a conduta administrativa se ela guardar plena compatibilidade com os referidos princípios. 2.1.1. Princípio da Legalidade O princípio da legalidade é, certamente, a diretriz básica da conduta dos agentes da Administração. Por ele, entende-se que toda e qualquer atividade administrativa deve ser autorizada por lei. Se não foi, diz-se que a atividade é ilícita. Tal postulado, consagrado após séculos de evolução política, tem por origem mais próxima a criação do Estado de Direito, ou seja, o Estado que deve respeitar as suas próprias leis (art. 5º, II; e art. 37, ambos da CF). O princípio "implica subordinação completa do administrador à lei. Todos os agentes públicos, desde o que lhe ocupe a cúspide até o mais modesto deles, devem ser instrumentos de fiel e dócil realização das finalidades normativas". Na clássica e feliz comparação de Hely Lopes Meirelles, “na administração pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa ‘pode fazer assim’; para o administrador público significa ‘deve fazer assim’”. É extremamente importante verificar qual o efeito que o princípio da Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 26 legalidade revela aos direitos dos indivíduos. Na verdade, para a garantia de seus direitos, os indivíduos se escoram na própria existência do princípio da legalidade. Quer dizer, aos cidadãos é autorizada a verificação de lisura da conduta administrativa, ante o confronto do ato/contrato com a lei. Conclui-se, pois, inarredavelmente, que, havendo dissonância entre a conduta e a lei, deverá aquela ser corrigida para se eliminar a ilicitude. Não custa lembrar, ainda, que, na teoria do Estado moderno, há duas funções estatais básicas: a de criar a lei (legislação) e a de executar a lei (administração e jurisdição). Esta última pressupõe o exercício da primeira, de modo que só se pode conceber a atividade administrativa diante dos parâmetros já instituídos pela atividade legiferante. Por isso, diz-se que administrar é função subjacente à de legislar. O princípio da legalidade denota exatamente essa relação: só é legítima a atividade do administrador público se estiver condizente com o disposto na lei. Por derradeiro, é importante ressaltar que, em função do agigantamento das atividades estatais e da “criação” de uma sociedade complexa, além da falibilidade da lei em sentido estrito (que não mais supre todos os reclamos da sociedade), o princípio da legalidade passa a ter um sentido mais amplo, a abarcar não somente a lei em sentido estrito, mas também a todo o Direito, tendo como paradigma a própria Constituição. O Administrador Público, portanto, deve obediência não somente à lei em sentido estrito, mas também aos princípios e valores albergados pelo sistema administrativo-constitucional. Do princípio da legalidade caminhamos para o princípio da legitimidade (Diogo de Figueiredo Moreira Neto), para o princípio da juridicidade (Eduardo Soto Kloss e Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha), para o princípio da constitucionalidade (Juarez Freitas) ou para o princípio da supremacia constitucional. De certa forma, pode-se dizer que essa nova visualização do princípio da legalidade foi sufragada pela Lei de Processo Administrativo (Lei 9.784/99), que, no parágrafo único de seu art. 2º, estatui, depois de arrolar os princípios aos quais deve a Administração Pública obediência, que, no processo administrativo, será observado o critério da atuação conforme a lei e o direito (inciso I). 2.1.2. Princípio da Impessoalidade ou Imparcialidade A referência a este princípio no texto constitucional, no que toca ao termo impessoalidade, constituiu uma surpresa para os estudiosos, que não o empregavam em seus trabalhos (Juarez Freitas informa, inclusive, que o constituinte de 1988 errou ao designar o princípio da imparcialidade de princípio da impessoalidade. A doutrina estrangeira consagra a designação princípio da imparcialidade e não impessoalidade).Impessoal é "o que não pertence a uma pessoa em especial", ou seja, aquilo que não pode ser voltado especialmente a determinadas Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 27 pessoas. O princípio da impessoalidade, portanto, previsto no caput do artigo 37 da CF/88, indica que a Administração Pública deve agir sem estabelecer privilégios, sem regalias, sem perseguições e em obediência ao dever de eqüidade. O princípio, de certa forma, objetiva a igualdade de tratamento que a Administração deve dispensar aos administrados que estejam em idêntica situação jurídica (eqüidade). Neste ponto específico, o princípio da impessoalidade representa uma das facetas do princípio da isonomia. Por outro lado, para que seja realmente impessoal, a Administração deve voltar-se exclusivamente para o interesse público, e não para o privado. Com isso, deve-se analisar o princípio da impessoalidade sob três (principais) vertentes: (a) o dever de o agente agir em conformidade com o interesse público, sem o estabelecimento de privilégios/prejuízos; (b) a atuação do agente público é imputada ao órgão público ao qual pertence; (c) não se admite o uso indiscriminado das experiências pessoais do agente público, quando em desacordo com o Direito e a moral administrativa. Quanto ao item (a) acima (uma das vertentes do princípio da impessoalidade), vale dizer que, neste ponto específico, o princípio da imparcialidade toca no princípio da finalidade (ou seja, o alvo a ser alcançado pela Administração é somente o interesse público; e não se alcança o interesse público se for perseguido o interesse particular). Ainda, não se pode deixar de falar da relação que a finalidade da conduta administrativa mantém com a lei. "Uma atividade e um fim supõem uma norma que lhes estabeleça, entre ambos, o nexo necessário", na feliz síntese de Ruy Cirne Lima. Como a lei, em si mesma, deve respeitar a isonomia, já que isso é imposto pela Constituição da República (art. 5º, caput e inc. I), a função administrativa, nela baseada, também deverá fazê-lo, sob pena de desvio de finalidade (este desvio ocorre sempre que o administrador se afasta do escopo que lhe deve nortear o comportamento – o interesse público). Embora sob a expressão desvio de finalidade, o princípio da impessoalidade tem proteção no direito positivo infraconstitucional: o art. 2º, alínea "e", da Lei nº 4.717/65 (ação popular) considera nulos os atos lesivos ao patrimônio, causados por desvio de finalidade. 2.1.3. Princípio da Moralidade O princípio da moralidade impõe que o administrador público não dispense os preceitos éticos que devem estar presentes em sua conduta. Deve não só averiguar os critérios de conveniência, oportunidade e justiça em suas ações, mas também distinguir o que é honesto do que é desonesto. Vale acrescentar, ainda, que tal forma de conduta deve existir não somente nas relações entre a Administração e os particulares em Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 28 geral, como também internamente, ou seja, na relação entre a Administração e os agentes públicos que a integram. O artigo 37, caput, da Constituição Federal refere-se, expressamente, ao princípio da moralidade e pode-se dizer, sem receio de errar, que foi bem aceito no seio da coletividade, já sufocada por assistir, na história, aos desmandos de maus administradores, freqüentemente na busca de seus próprios interesses ou de interesses inconfessáveis, relegando para último plano os preceitos morais de que não deveriam se afastar. Com isso, o constituinte pretendeu coibir a imoralidade no âmbito da Administração Pública. Pensamos, todavia, que somente quando os administradores estiverem realmente imbuídos de espírito público (na consciência pessoal de cada um dos gestores), é que o princípio será fielmente observado. Embora o conteúdo da moralidade seja diverso da legalidade, o fato é que aquele está normalmente associado a este. Em algumas ocasiões, a imoralidade consistirá na ofensa direta à lei e aí violará, ipso facto, o princípio da legalidade. Em outras situações, a violação do Direito residirá no tratamento discriminatório, positivo ou negativo, dispensado ao administrado. Neste último caso, estará vulnerado, também, o princípio da impessoalidade, que se põe como requisito, em última análise, da legalidade da conduta administrativa. O desapego à moralidade pode afetar vários aspectos da atividade administrativa. Quando a imoralidade consiste em ato de improbidade que, como regra, causa prejuízo ao erário público, o diploma legal a ser aplicado é a Lei nº 8.429/1992. Nesta lei, há previsão: (a) das hipóteses que configuram típicos atos de improbidade (desonestidade); (b) das sanções aplicáveis a agentes públicos e terceiros responsáveis; (c) dos instrumentos processuais adequados à proteção dos cofres públicos, com a admissão, entre outras, das ações de natureza cautelar de seqüestro e arresto de bens, bem como do pedido de bloqueio de contas bancárias e aplicações financeiras, sem contar, logicamente, a ação principal de perdimento de bens, a ser ajuizada pelo representante do Ministério Público ou pela pessoa jurídica de direito público interessada na reconstituição de seu patrimônio lesado. Outro instrumento relevante de tutela jurisdicional, para dar guarida ao princípio da moralidade administrativa, é a ação popular, contemplada no artigo 5., LXXIII, da CF/88. Antes, apenas direcionada à tutela do patrimônio público econômico, a ação popular passou a proteger, mais especificamente, outros bens jurídicos de inegável destaque social, como o meio ambiente, o patrimônio histórico e cultural, além da própria moralidade administrativa. Pela via da ação popular, regulamentada pela Lei nº 4.717/1965, qualquer cidadão (título de eleitor) pode deduzir a pretensão de anular atos do Poder Público que estejam contaminados pela imoralidade administrativa. Por isso, advogamos o entendimento de que o tradicional pressuposto da Direito Administrativo Professores: Frederico Telho/ Sandro de Abreu 29 lesividade, tido como aquele causador de dano efetivo ou presumido ao patrimônio público, restou bastante mitigado diante do novo texto constitucional (ele era bastante adequado à idéia, hoje superada, de que se podia promover ação popular apenas para a defesa do patrimônio em seu sentido econômico). Quando a Constituição se refere à defesa de “ato lesivo à moralidade administrativa”, deve-se entender que a ação é cabível pelo simples fato de ofender esse princípio, independentemente de haver ou não efetiva lesão patrimonial (econômica). Por fim, não se pode esquecer da ação civil pública, prevista no artigo 129, III, da CF (uma das funções institucionais do Ministério Público) e regulamentada pela Lei nº 7.347/1985. Trata-se de mais um dos instrumentos de proteção à moralidade administrativa. Quando se diz que a ação civil pública foi movida para resguardar o “patrimônio social” ou, ainda, para proteger algum “interesse difuso”, estar-se-á defendendo a moralidade administrativa. A Lei Orgânica do Ministério Público (Lei nº 8.625/1993), inclusive, consagra, com base naqueles bens jurídicos, a defesa da moralidade administrativa pela ação civil pública. Desse modo, é fácil observar que não faltam instrumentos de combate a condutas e atos ofensivos ao princípio da moralidade administrativa. Cumpre, portanto, aos órgãos competentes, bem como aos cidadãos, a necessária diligência para que questionem (e invalidem) os atos viciados, aplicando-se aos responsáveis as punições previstas em lei. 2.1.4. Princípio da Publicidade O princípio da publicidade é também mencionado na Constituição da República. Por ele, diz-se que os atos da
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