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3 Texto Louis Dumont Ensaios sobre o Individualismo Cap 1

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1 
" 
• 
. ' 
f 
\ ) 
GÉNESE,I 
Do Individuo Fora do Mundo 
ao Individuo no Mundo ' 
Este estudo compoe-se de duas partes. A parte principal incide sobre os 
primeiros séculos do cristianismo. Nela ohservamos as primeiras ctapas de 
urna evoluçào. Um complemento ou epilogo mostra quai foi, a longo prazo, 
o desfecho dessa evoluçào cm Calvino.» ** 
Os começos cristâos do individualismo 
Nas ultimas décadas, 0 individualismo moderno apresentou-se cada vez 
mais, a aIguns de nôs, coma um fen6meno ~c~pcional na histôria das civili-
• Publicado (m Le Débat, 15, Sctembro-Outubro de 1981, sob 0 titulo: «A genese crislà 
do individualisljJ10 moderno. uma concepçâo modifïcada das nossas origens)) (cm inglês: Reli· 
gion, 12. pp. 1-27, cf. a discussào ibid .• pp. 83-91) . 
•• A primeira pane é uma versào francesa da Dcneke Lecture apresentada no Lady Marga-
rel Hall cm Oxford, cm Maio de 1980 (cf. anteriormente AnnuaÎre de l'lco/e pratique des hau-
teséludes, 6." secçâo, para 1973-1974). A hipOtesc gcral foi suscitada por:lm cOI6quio de Dae-
da/us sobre 0 primciro milenio a.c.. e muito dcvo aos seus participantes, principalmente a 
Arnaldo Momigliano, Sally Humphreys c Peter Brown, pelas suas eriticas e sugestôes (cf. Dae-
daJus, Primavera de 1975. para uma primeira apresentaçâo da hip6tese, que as criticas contri-
bulram para modificar e alargar). 0 complemento sobre Calvino foi proposto num seminârio 
sobre «A Categoria dc Pessoa» (Oxford, Wolfson Col!egc, Maio dc 1980). 
33 
_ . ;f,.I~A JOS SOIJRE 0 INDI IIIDUALlS.\lO 
.... ,,\ . . ' dividuo é tao idiossincrâtica como fundamen-
( , zaçôes. Mas, se a Idcla de III . S origcns Para certos aulOres, 
:v . ct haver acordo quanto as sua . ~ tal, esta longe e . 1. lem mais força trata-se de urna ;:; , onde 0 nomma Ismo . , \ ~. sobrelUdo nos palses te Para outros, surge corn 
tJ.. " l. e cm toda a parte presen . ~ ideia ..que...cs~e ~empre _ d b esia Mais frequenterncnte sem 
- m a ascensao a urgu . { 0 R~enaSClmento,o co . s da ideia na nossa herança 
"""' . .., d a lra<11çaO veern-se as ralze .. 
". dU·VI, _e~. segun 0 '-'â is Para alguns estudiosos da r.o 
,. d .' . ta cm proporçoes van ve . 
,J classica e ju a lCQ-cn s , ,. d discurso caerente» é obra de 
~poêâ Ciasslca, a descoberta na. Grccla ~ ~d<' -'d-u- o~ ' as névoas do pensa-
. . 6pnos como ln IV! . 
hornens que se vIam a SI pr 1 d Atcnas '~om 0 mito a entregar 
.. _-" .. f se iam dissipado ao so e . , . 
mente con uso ter- - . 1 . 0 começe da histona pro-
, - t 1 acontecirnento assma ana . 
as armas a razao. e a d d esta afi rmaçào que todavla 
d· H' decerto alguma ver a en , priamente Ita. a, '. _ 'ta que ganha no munde de 
f ' . - d rnasiado estrclta, tao estrel ê uma de Imçao e, modificada. Para começar, 
.' Devera pelo menos, ser . . __ _ hoje um ar provlOclano, • ,.' 1" - em- vez dafiloso-
. , ' matê ria a pnvl!çglar a re Iglao ~ ,- ---:--
o soclOlogo ten~e~l a nes~ __ - --'--- --- , d d e esta em relaçâo Imedtata 
- . -l' '- age sobre toda a sS,o~c~lo:e;,;a,!!:!e,-,,"===..:c.-' _ __ -:-fla porque a re Iglao __ :.. . .-~---~--r -.--. e nrocedeu Max~b-",-
corn a ;!CÇ~o . . FOI assl~ -q~-~_. -- --·1 nsideraçâo de causa e de 
. - d 1 d la nossa parte qua quer co 
- Deixemos ca o pe _ d ·deias e de valores, redes ideo-d mente configuraçoes e 1 
efcilo e estu eruos s~ , _ fundamentai s que pressupoem, Eis em 
logicas, tentando atlOglr as relaçoes h ' Iquer coisa do individualismo 
. ' a minha tese' a qua 
termos aproxlmatIvos : _ no mundo que os rodeia, mas 
os primeiros cflstaos e . 
moderno presente n . l ' e noS é familiar. Na reahdade, 
l nte do indivIdu a Ismo qu . _ nao se trata exac ame das por uma transformaçao tao 
. encontram-se separa "'~ ' 'f3..forma anl1ga e a nova â' nao menos de dezassete sécu-
\., v , .~ _ 1 xa que foram necess nos · . 
L 0'" ;;-' 'radical e tao comp e 1 ez essa mudança continue amda 
);,;::-" .\ ~j los de historia crista para a completar, e ta v. . 1 primeiro na generaliza-
\} '\ "') , A r 'ao foi 0 fermento pnnclpa , , . 
'>\Jo,), nos nossos dlas, re Igl . 1 _ No quadro do: nossos hml-
. , . 1 em-segwda na sua evO uçao, d. \~.. çao da farmu a,?- ~.. . d .. d I·smo moderno é por assim Izer 
r ~ .. ~ d· ree III IVI ua 1 tes cronologlcO. ,ope 19 ma cer' a espécie, e uma tenta u:!nsfor-
duplo : uma ongeli1 ou êIdvento de u " t tar corn c.aracte-
... .. N te ensalo tcrel que me con en 
- maçâo numa outra especle. e~ , y' "etapas' de transfarmaçao. 
. 1 algumas das pnmelras 
--nzara-ongcll'l e assma ar .0 condensada do que se segue, 
. a perdoada a abstracça . d Espero que me seJ 'd de e na sua especificlda e, 
cultura na sua unt a . 
Para vermos a nossa d a corn outras culturas. SO aSSlm 
, ct spectivar contrastan 0- . ' 
necessltarnos e a per.
A
• 0 ue de outro modo parecerâ ObVIO: 0 
podemos tomar conSCIcnCla de alg q . h b't al Deste modo, 
. r 'to do nossO dlscurso a 1 u ' -
fundamento familiar e Imp ICi d . os duas cO·lsas ao mesmo tempo: 
, d' 'd )) eSlgnam -
quando falamos de «Ill ~~' ~~-·-A· ça-o obriga-nos a distinguir 
---·-'---'''-·-f--aënos e um valor. compara d 
um obJecto ora ___ '_ ____ 1 do 0 sujeito emp(rico falan 0, 
analiTICa7üentëOS dois aspectos: por um a , 
34 
, 
1 
-! 
" ...... 
.1 /· .. L /VV\..t \ 0 Gf.'NESf.~ 1 
pensalldo c querendo, ou scja 0 exemplar individual da cspécîe humana, lai 
como 0 encontramos em todas as sociedades; por outro Jade 0 ser moral 
indcpendente, autonomo, e por consequência essencialmente nao social , que 
veicula os nossos valores supremos e ocupa 0 primeiro lugar na nossa ideo-
logia moderna do homem e da sociedade. Deste ponta de Vis ta, ha duas ~ espécles de sociedades. Nos casos em que 0 Inqividuo é 0 valQL..S..upremo .. ~ falarei de individuali~mo; nos casos opost9~elll:...gJ1.~_Q..yaloLesta na . socie~ 
". ' ~'àacra2i@J!!i[tQg9tl'alàrei de holismo. . 
.FÈm traços largos, 0 problema das origens do individualismo estâ cm 
\ ~~ /saber como, a partir do tipo geraJ das socledades holistas ,"Sê pôde dese~E.!.:-
<St) ver um nOVQ tlpO contradizendo fundamentalmente a concepçào comum. 
:-...i ·CÔÎÏÏoror· possive] essa transiçào, como podemos n6s conceder ·uma transi-
çao entre estes dois universos antitétiêOs: estas duas ideol;gi~~~'~~iÏi~~­
veis? 
--A comparaçao corn a india sugere uma hip6tese, Ha mais de dois mil 
an os que a sociedade indiana se caracleriza por dois traços complementares: 
a sociedade impôe a cada um uma interdependência estrita que substitui ao 
individuo taI como 0 conhecemos:=m njunt aç-es obrigat6rias, 
mas por outro lado a instituiçào d renuncia ao mund permite a plena 
indepemi;nçia~u:&qucr que es . Acontece que esse 
homem, ~renunciante, é esponsavel por todas as inovaçôes religiosas que 
a fndia conlfeceu~'Al m disso, podcmos ver claramente nos textos antigos a 
origem da instituiçâo, e compreenderno-Ia corn facilidade:... 0 homern gue 
procura a vcrdade ultima abandona a vida social e as suas imposiçôes para 
se consagrar ao seu progresso e ao seu destmo prop~Q~~ 
mundo SOCIal que aelXOU para tras, vê-o à distância, como algo sem reali-
dade, e a descoberta de si confunde-se para ele, nâo corn a salvaçâo no sen-
tido cristâo, mas co.m a libertaçào dos en~ravcs da vida tai como ela é vivida 
neste mundo, 
o renunciante basta-se a si proprio, nâo se preocupa senao consigo, 
o seu pensamento é semelhante ao do individuo moderno, mas corn uma 
diferença ap~sàr de tudo essencial: nos vivemos no rnundo social, ele vive 
fora desse munrlo. Foi por isso que chamel ao renunc13ntc loomno um 
-mnêIlvlduç-tora-do-mundo», Comparativamente, somos «individuos-no-
-mundm}, individuos mundanos, e ele um individuo extra-mundano, Farci 
aqui um use intensivo da noçào de «indivfduo-fora-do-mundo», e gostaria 
de chamar a atençâo para esta estran ha criatura e para a sua re laçâo carac!e-rîstica corn a sociedade. 0 renunciante pode viver como eremita solitario ou 
1 Cf. Dumont, «A renuncia nas religi6es da india)) (1959), em HH, ap. B. 
35 
' . 
ENSAIOS SOBRE 0 INDIV/DUALISMO 
pade juntar-se a um grupo de confradcs na re~u~cj~ sob a ~Ulorid~de de u~ 
rnestre-renunciante, represemante de urna «disciplIna de hbena~o» pa~l­
cular. A semelhança corn 3S anacoretas ocidentais ou entre mosteUQS budlS-
tas e cristàos pade ir muita longe. Por exempla, as duas espécies ~e congre-
gaçôes inventa~am independentemente urna da outra aqU110 a que 
chamarnas 0 voto maioritario. 
6 ' b' que separa 0 renuneiante do o que é essenciak ,para n 5 e 0 a /smo , 1 . 1"'-
munda social e do hornem-no-munde. Em primclfo lugar, 0 c~mmh.o ~a 
libertaçào abre-se apenas a quem quer que deixe 0 mund~. A dlslan~,~çao 
relativamente 30 munda social é a condiçào do desenvolvlmento espmtua! 
individual. A relativizaçâo da vida 210 mundo resulta l~~~iat~'!l!_nte È_c:.. 
remincia ao mundo. S6espÏritôsOëfdentais puderam corneter ~ erfO ~ supor 
Qûèëërtas seitas aê~ renunciantes tentaram alterar a ordem SOCial: A mternc-
çào corn 0 mundo social assumia outras formas. Antes ~o maiS, 0 ~enun~ 
ciante depende deste mundo para a sua subsistência, e ~a~Jt~al~en~e mstrm 
o hornem-no-mundo. Historicamente, ha toda uma dlalecuca mdlana que 
assim foi posta em movimento, mas que teremos que deixar aqui d~ lado. 
Conservemos na mem6ria somente a situaçào inicial tal como alD~a a 
encontrarnos no budismo. Excepto no casa de se juntar à congregaçao, 0 
leigo recebe como liçào apenas urna ética relativa: ser generoso para corn os 
monges e evitar as acçôes excessivamente degradantes. . .. 
Precioso para n6s em tudo isto é 0 facto de ° desenvolvlmento mdlan.o 
se compreender corn facilidade, e parecer na verd~de. (~~atu:al». A ,partir 
dele, podemos formular a seguinte hip6tese: se 0 IndIVla~a~ls~o a~arecer 
numa sociedade do tipo tradicional, holista, sera em opOSlçao a .socledade 
e coma urna espécie de suplem"ento relativamente a ela, quer dI.Ze~ so~ a 
forma do individuo-fora-do-mundo. Sera possivel pensar-~e que fOI assun 
que 0 inrlividualismo começot l no Ocidente? Trata-se precIsa~ente do que 
vou tentar mostrar; sejam quais forem as diferenças no conte~do das.re~r~­
sentaçoes, 0 mesmo tipo sociol6gico que encontramos n~ ~nd~a - 0 mdlvl-
duo-fora~o~mundo - esta i~egavelmente "presente no cnstI~~s~"o e ~m ~u 
redor no inicio da nOSsa era. ~ __ . 'tf,... "A"_ • 
Nào ha du vidas acerca da concepçào fundamental do ho~em n~c~d~ 
dos ensinamentos de Cristo: camo disse Troeltsch_, 0 h<??Iem e um md'VI=-. 
duo-em-relaçao-com-Deus, 0 que §Jgr.ifica, pa!.a , ~ _qu~~ int~~~~2 " ~?1 
ina ivrdu·o·ës~~ciâlme~te fora-do-mundo. Antes de desenvolver este ponto, 
gosYârlaaëtéiùar -uma--afirniaçào mar;- geral. Pode,:,os s~stenta~ que 0 
mundo helenistico estava no que se rerere às pessoas mstruldas, tao pene-
trado pela" mesma concepçào q,ue 0 cristianismo nà~ t~r~a a ~ongo p~: 
podido triunfar nesse meio se tivesse apresentado um mdlvlduahsmo de ilp 
36 
l 
.{ 
r 
, 
l 
1 
1 
~ 1 
. 
1 
GÉNESE, J 
diferenre. Eis uma tese baSlante arrojada que parece, à primeira vista, con-
tradizer concepçôes "bem assentcs. De facto limita-se a modifica-Ias, e per-
mite anicular melhor do que a perspectiva corrente um grande nûmero de 
dados dispersas. Admite-se em geraI que a transiçâo do pensamento filo-
s6fico de Platào e de Arist6teles para as novas escolas do periodo helenis-
tico mostra urna descontinuidade (<<a great gap») 1 _ a emergência slibita 
do individualismo. Enquanto a polis era" considerada "auto-suficiente em 
Pla tao e Arist6teles, é agora 0 individuo que passa a ser considerado 
como bastando-se a si mesmo (ibid., p. 125). Este individuo é, ou pressu-
posto como um facto, ou afirmado coma um ideal por epicuristas, cinicos 
e estâicos no seu conjunto. Para abordarmos directamente a nossa ques-
tào, é claro que 0 primeiro passo do pensamento helenistico foi deixar 
para tras 0 mundo social. Poderiamos citar longamente, por exemplo, a 
classica Histôr;a do Pensamento POlflico de Sabine da quaI ja reproduzi 
algumas fâ rmulas e que classifica de facto as três escolas como outras tan-
tas diferentes variedades de {(renuncia» (p. 137). Estas esco]as ensinam a 
sabedoria, e q~~~~~io tera gue Ç~or renunci~i" 
ao mundo. Um traço critico percorre todo 0 periodo sob diferemes for-
'"--mas ; trat~:-se de uma dicotomia radical entre a sabedoria e 0 mundo, entre 
o sabio e os ho mens nào esclarecidos que continuam a ser presas da vida 
mundana. Diâgenes opôe 0 5abio e os 10ucos; Crisipo afirma que a alma 
do sabio sobrevive por mais tempo ap6s a morte do que a dos mortais 
cornuns. Tai como na india a verdade 56 pode ser alcançada pelo renun-
ciante, assim segundo ~nao s6 0 sabio sabe 0 que é bom; as acçôes mun-
danas, mesmo da parte do sabio, nao podem ser boas mas apenas preferi-
veis a outras : a adaptaçao ao mundo é obtida através da reJalivizoçào dos 
valores, a mesma espécie de relativizaçào que sublinhei a proposito da 
india. 
A adaptaçao ao mundo carncteriza 0 estoicismo desde 0 inicio e. cada, 
vez mais, a estoicismo médio e tardio. Contribuiu certamente para toldar, 
aos olhos dos intérpretes "posteriores. a ancoragem extra-mundana da dou':':;" 
trina. Os estâicos de Roma exerceram cargos absorventes no mundo, e um~ ... ~­
Séneca foi vist~ como um vizinho chegado por autores da Idade Média e até 
mesmo pOL Rousseau que muito bebeu nele. Contudo, nao é dificil detectar 
a permanência do divorcio original: 0 individuo bastando-se a si prâprio 
continua a ser 0 principio, ainda quando 0 individuo age no mundo. 
o estâico deve permanecer desprendido, deve permanecer indiferente, até 
rnesmo à dor que procura aliviar. Assim Epitecto: «Pode muito hem suspi-
1 George H. Sabine, A His/ory of Political Theory, Londres. 1963. 3_& cd., p. 143. 
37 
ENSA IQS SOBR E 0 I J'olVl VI D UA L/S.\ IG 
rar {com 3quele que sofre] C0I1(31110 que 0 seu suspiro !lao Ihe vcnha do 
coraçâo.>~ 1 
Este traço para nos tào est ranho mostra que, mesmo quando 0 eSloico 
regressou ao mundo de uma maneira que é al heia ao renuncianle indiano, 
!rata-sc para ele apen~s de uma adaptaçào secundaria: no fundo continua a 
definir-se sempre camo estranho ao mundo. 
CQmo compreender a génese deste individualismo filosofico? 0 ind ivi· ~ 
dualismo ê a t'~ l pomo uma evidência para n6s que no caso presente é habi· 
tualmente considerado sem mais como uma consequência da ruina da polis 
grega e da unificaçào do mundo - gr~g()s·é"·ëstrangêT~o;oü· bKfbâros con-. 
fûriaiaôS - so -o poder ·de-Alexandre. Sem duvida ha aq ui um aconteci-
mento historico sem precedentes que pode explicar mu itos traças mas nào, 
pelo menos no meu entender, a emergência, a criaçao ex nihilo do individuo 
coma valor. Ternos antes do mais que olhar para 0 lado da propria filosofia. 
Os mestres helenÎsticos nao s6 foram ocasionalmente buscar para seu uso 
proprio elementos aos pré-socrâticos, nâo 50 sâo herdeiros dos sofistas e de 
outras correntes de pensamento que se nos deparam submersas durante a 
periodo classico, mas a aClividade filos6fica, a cxercicio continuado por 
geraçôes de pensadores da indagaçào racional, deve ter par si pr6pria ali-
mentado a individualismo, porque a razào, se em principio é universal, tra· 
balha na pratica através da pessoa particular que a exerce, e, pela menos 
implicitamente, afirma a sua preeminência sobre todas as coisas. Platào e 
Arist6teles, depois de Socrates, tinham sabido reconhecer que 0 homem é 
essencialmente um ser social. 0 que os seus sucessores helenisticos fizeram 
foi no fundo afirmar coma um ideal su peri or 0 ideal do sabio desprendido 
da vida social. Se for esta a filiaçâo das ideias, a vasta transforillaçào poli-
tica , a nascimento de um lm pério Universal provocando relaçôesin tensifi-
cadas em toda a sua cxtensâo, tera sem qualquer duvida favorecido 0 movi-
mento. Noternos que, neste meio, a intluência directa ou indi recta do tipo 
indiano de renunciante nào pode ser a priori excluida. ainda que os dados 
sejam insuficientes. .... . 
Se f6sse necessaria uma demQnstraçào do facto de que à' mcntalidade 
extra-mundana Împerava ent re as pessoas inst ruidas em geral, no tempo de 
Cristo, poderiamos descobri-la na pessoa de um judeu, Fi lon de Alexandria. 
1 Cilado por Edwyn Be\'an, Stoïciens el Sceptiques, Paris, 1927, ;J.63, lraduzido do 
inglês. Este amor viu benl a semelhança corn a renûncia indiana. Cita longam.:!l1le a Bhagavad 
Gita para ind icar 0 paralelismo cam as nuiximas dos eSl6icos acerca do dcsprcndimenlO (ibid., 
pp. 75-79), de facto a Gîla contêm ja a adaplaçào da renuncia ao mundo. Cf. ({A renuncia ... » , 
loc. cit., sccçao 4. 
38 1 
I,: 
Filon 1ll0slrou ~IOS fUlu l"Os apologet3s crislàos como adarl3r a menS3QCm 
rdigiosa a um plHllico pagào inslruido. Expri me calorosamentc a sua fe;vo-
rosa predilecçao pela vida cOlllcmplaliva do recl uso, a que anseia impacien-
temente regressa r, depois de a 1er înrerrompido apenas para servir a sua 
comunidade no piano pOlÎtÎCo - coisa que alias fez corn disl inçào. Goode-
nough moslrOll precisamcnte como esta hierarquia dos dois modos de vida 
e a da fé judaica e da filosofia pagà se reflcclem no duplo jujzo poHtico de 
Filon, ora exotérico e apologélico>ora ' esolérico e hcbraicol. 
VoItando·agora ao hi st'i anismo,Tàe~~ c~meçar por dizer que 0 meu prin-
cipal guia sera 0 historiador-sociologo da Igreja, Ernst Troeltsch. No seu 
volumoso livra, As DOM/rinas Sociois dos 19rejas e dos Grupos Cris/Gas 
publicado em 1911 e que pode ser considerado uma obm-prima, Troeltsc~ 
apresentara jâ uma imagem re lativamente unificada, nos seus pr6prios ter-
mas, de «toda a extensào da historia da 19reja Cristà»2 (p. VIII). Se a 
exposiçào de Troeltsch l'ode cm certos pontas necessitar de ser completada 
ou modi ficada , 0 meu esforço COnSiSlira principalrnente em tentar alcançar 
graças à perspect iva comparativa que acabo de esboçar uma imagem ainda 
mais unificada e mais simples do conjunto, conquanto, de momento, s6 nos 
ocupemos de uma parte desse conjunto3 . 
Trata-se de matéria conhecida, e limilar-me-ei a isolar esquematicamente 
alguns traços criticos. Resulta dos ensinamentos de Cristo e em seguida de 
Paulo que 0 cristào é um «individuowem-relaçâo-com_DellS)} . Ha, diz 
Troeltsc h,~((il1diyid~a lîsl!l.:L.a.~~njye!gtli~mo._absotUl9)! na relaçào 
corn Deus. A a lma individua l recebe va lor eterno da sua relaçào filial corn 
Deus, e 'é nessa rel~çào que igualmente se fundamenta a rraternidade 
huma na: os crislâos reunemwsc em Cristo, de quem sâo os membres. Esta 
afirmaçâo extraordinaria situa-se num plana que transcende 0 mundo do 
homem e das inSlituiçôes sociais, embora também elas procedam de Deus. 
~ E. R. GoodenOUg l ~, An !lIfrodllClioll 10 Philo Judaeus. New haven, 1940. 
Ems! Troehsch, Die SOZlalehrel/ der christ/ichen Kirchen III/d Gruppen, em GesammellC 
Schrjj)en, 1. 1. Tubi nga, 1922; Aalen , 1965. Trad. inglesa: The Social Teaching af lhe ChriS/Îon 
Chuiches, New .York , Harper Torchbooks, 1960,2 vols. (A Iraduçl1o, mais aÛSSÎveJ conser~ 
a nu rnttà'Ciio das notas de Troehsch; mas nem sem pre é segura.) As rcfcrêncîas de pagina înduî-
das no lexlo relllelcr;1o para eSla obra, exceplO indicaçâo em contrario . 
. 3 É peqtena a di stância elllrc 0 sentido geral do Ji\'ro de Troeltsch e a preseme formulaçao. 
Assml um sociologo pcrspicaz, BenjamÎn Nelson. obser\'ando que 0 illleresse nào s6 de 
Trocll sch mas d~s p:in c.ipais. pcnsadores a!cmâes dos sêculos XIX e XX, a panir de Hegel, se 
concentrou na ({lIlstlluclOnahzaçao da c r;~landadc primîtiva», enunciou 0 problema de dua~ 
man .... iras, sendo um a delas a seguinlc: «Corna deu uma sei la ultra-mundana orÎgem à Igreja de 
Roma?)) «(Weber, Troehsch. Jellinek as compara lÎ\'e historical sociologiSls» Sociofogicof 
Anofysis, 36-3, 1975, pp. 229-240; cf. n. p. 232). ' 
39 
1 
r 
ENSAJOS SOBRE 0 /NDIV/DUALISMO 
o valûT infînito do individuo é 30 mesma tempo 0 rebaixamento, a desvalo-
rizaçao do munda tal como é: afirma-se uro dualismo, estabelece-se urna 
tensao constitutiva do cristianismo e que atravessara toda a historia. 
Detenhamo-nos neste ponlO. Para 0 hornem moderno, tal tensao entre ver-
dade e realidade tohnou-se muite dificil de aceitar, de apreciar positivamente. 
Falamos por vezes cm «mudar 0 mundQ), e é evidente nos seus primeiros 
esc~itos queo jovem H~gel tcria preferido ver Cristo declru;ar guerra 30 ~undo\ 
tal coma é. TodaviiI, retrospectivament~ vernas que se Cristo eoquanta li.omem 
tivesse agido desse modo, 0 resultado tcria sido pobre por comparaçào corn 
as consequências que os seus ensinamentos acarretaram ao longo dos sécuM 
los. Na idade madura, Hegel corrigiu honestamente a impaciência da sua 
juventude reconhecendo plenamente a fecundîdade do subjectivismo cristao, 
quer dizer a tensâo congénita do cristianismo 1:... De facto.] se a con~iderarn:'?~ 
comparativamente, a ideia de «rnudar 0 mun~~~ um ar tâo absurdo ~~. 
acabamos par compreendÇ.r~y'ç s6 pÊ~.rur.Jluma civillzaçaO que durante 
-muit"Otemj5Omantivera im la~ros'p!Ç...~J!la d~~!!!ç!2 absoll!.~.5!!~~~~!d~ . 
promeu a ao home!f1 e a vida que. de facto é a dele. Esta {oucura mode~a~_ 
""enraiza-se naquilo a que alguém chamou 0 absurdo da cruz. Lembro-me de 
ouvir Alexandre Koyré, em conversa, opondo a loucura de Cristo ao bom 
senso de Buda. No entanto, ambos têm algo em comum: a preocupaçâo exclu-
siva corn 0 individuo ligada a ou antes assente nurna desvalorizaçao do 
rnund0 2. É deste modo que as duas Teligiôes sâo deveras religiôes universais 
e por conseguinte missionarias, que se estenderam no espaço e no tempo e 
forneceram consolaçâo a inumeros homens. É deste modo - se me.posso per-
mitir avançar tante - que as duas sao verdadeiras pela menos no sentido em 
que afinnam que os valores devem ser mantidos fora do alcance do aconte-
cimenta se quisermos que a vida humana seja suportavel, particularrnente para 
uma mentalidade universalista. 
o que nenhuma religiao indiana plenamente alcançou e que pela contraM 
rio se encontra dado à partida no cristianismo é a fraternidade do amor em 
e par Cristo, e a igualdade de tÇd9S que dai resulta, uma igualdade . que, 
:~ / •. , . '> 
1 Cf. Hegels theologische ]ugendsc::i;:n, Thbinga, pp. 221M 230, 327 sq., .trad. francesa: 
L'Esprit du christianisme el son deslin, Paris. Vrin, 1971: ? jove~ .Hegel delxou-se arrastar 
pelo seu zelo revolucionario e pelo seu fascinio pda polis Ideal (Ibid .• pp. 163-164, 297-302. 
335). Sobre as concepçôes da maturidade, cf. Michael Theunissen , H egels Ll!hre vorn absolulen 
Cdsl ols lheologisch-polilischer Traktat, Berlim. 1970, p. 10-11. 
20 facto de a desvalorizaçao seT relativa aqui. radical ali , é OUlra Queslâo. É claro Que 0 
paralelismo mais limitado estabelccido por Edward Conze entre «Buddhism (Mahayana) an~ 
Gnosis)) assenta na presença subjacente dos dois 1ados do individuo-fora-do-mundo. (Cf. paru-
culannente a cond usào e a liltima nota em Le Origini dello GnOSlicismo. Col6quio de Mes-
si na, 13-18 de Abril de 1966, Leyde, 1.967, p.665 S8· ) 
40 
GÉN ESE, J 
Troeltsch insisle Il CSSC ponto, «cxistc purarncntc na prcscnça de Deus» . Em 
termos sociol6gicos, a emancipaçào do individuo por urna transcendência 
pessoal, e a uniâo de individuos fora -do-mundo numa comunidade 
. h que 
ca~m a na tcrra mas lem 0 seu coraçâo no céu, talvez seja uma formula 
aceltavel para a definiçâo do crislianismo. 
Troeltsch sublinha a estranha combinaçâo de radicalismo e de conserva-
d~ris~o ?aq~i decorrente. É proveitos.~ observar as .. coisas de um ponto de 
VIsta hlcrarqUlco. Encontramos {oda umà série de oposlçôcS semelhantes entreeste mundo e 0 além, 0 corpo e a alma, 0 Estado e a Jgreja, 0 Anligo e 0 
Novo Test~~ento, a q.ue Caspary chama os «pares paulinianos». Remeto para 
a sua anahse num llvro recente e notavel sobre a exegese de Origenes 1. 
É clara que nestas oposiçôes os dois pélos se encontram hierarquizados 
mesmo quando isso à superficie nao é evidente. Quando Jesus Cristo ensin~ 
a dar a César 0 que é de César e a Deus 0 que é de Deus, a simetria é apenas 
aparente, porque é em funçâo de Deus que nos devemos vergar às pretens6es 
legitimas de César. A distância assim criada é cm ceno sentido maior do que 
se as pretensoes de César fossem simplesmente negadas. A ordem mundana 
é relativizada enquanto subordinada aos valores absolutos. Ha aqui urna dico. 
tomia ordenada. 0 individualismo cxt~@!..undano engloba 0 reconhecimento 
~ . .:...a~ência em re2açâo aos poderes deste mundo. Se se ilustrasse esta situa: 
. çào ~:::~~~ fig_~.! .~~":9..~1?0!2:::..i~..?e dois circulos coocêntncos, repre. 
~~~ .. ~ .. "!~~~~?~~~~~n;~~elaçâo.com-De~s e ~-~ais pequeno 
a ace~.J2-~s_J!.eçessid~.ge..s.~dev.eJ.e.s"_UJ.~a~~ dO_ql,~;;ctQ. g~dizer."a~ 
J.~çào n~~::. ~9.~~~~~P~.s!L~~PQis. qi.stà._g~.,nào..dcixou de seT holista 
Esta figura, onde a referência primaria, a <.lefiniçào fundament~~~;t,·a 
camo sua antitcse a vida mundana, onde 0 individuaIismo-fora.do-mundo 
subordina 0 holismo normal da vida social, é capaz de conter economica. 
mente todas as principais transformaçôes subsequent.es conforme as for-
mula Troeltsch. 0 que ac"ontecera na ;list6ria é que 0 valor supremo exercera 
um~ pressao sobre 0 elemento mundano antitético que contém. Par etapas, 
a vlda ~undana sera assim contaminada pelo elemento extramundano até 
q~e fi~alrnentê' a' hei·erogeneidade do mundo por completa se desvaneÇa . . 
Entâo todo 0 campo estara unificado, 0 holismo tera desaparecido da ~'fe~! 
sentaçào, ~ vida no mundo sera concebida camo podenda conformar-se 
inteirarnente corn 0 valor supremo, 0 individuo-fora-do-mundo ter-se-a 
transformado no moderne indivfduo-no-mundo. Trata-se da prova histérica 
da cxlraordinaria potência da disposiçào inicial. 
1 Gerard Caspary. Polùics and Exegesis: Origen and the Tho Swords, Berkeley University 
of California Press. 1979. ' 
41 
J 
ElvSA/OS so/mE () INDIVIDUALISMO 
Gostaria de acrescentar pelo menas uma observaçào sobre a aspeclo 
milcnarista do cristianismo nos scus começos. Os primeiros cristàos vivi am 
na expectativa do iminente regresso do Messias que instauraria 0 reino de 
Deus. A crença era provavelmente funcional no senti do de ajudar as pes-
soas a aceitarem ~ pelo menas provisoriamente, 0 dcsconforto de uma 
crença que nào cra imediatamente pertinente quanta à sua situaçào de 
facto. Ora, acontece. que 0 mundo conheceu nos nossos, dias um!1 extra9r-
din~ria proliferaçâo de movimentos milenaristas, muitas vezes ~hamados 
cargo cuIts, em condiçôes muito seme1hantes às que prevaleciam na Pales-
tina ao tempo da dominaçào romana. Em termos sociolégicos, a diferença 
principal consiste precisamente no cJima extramundano da épaca, c em 
particular na orientaçâo extramundana da comunidadc cristà, que triunfou 
duradouramente sobre tendências extremistas, fossem as dos judeus rebcJ-
des ou dos autores apocalipticos, dos gn6sticos ou dos maniquclstas. 
Desle ponta de vista, 0 primeiro cristianismo parece caracterizado pela 
combinaçào de um elemento milenarista e de um elemento extramundo, 
corn prcdominio deste ultimo J. 
Por esquematico e insuficiente que seja 0 meu resumo, espero que tenha 
tornado verosimil a ideia de que os primeiros cristàos estavam, afinal de 
contas, mais pr6xirnos do renunciante indiano do que de n6s. instalados 
corno hoje nos acharnas num mundo que julgamos ter adaptado às nossas 
necessidades, De facto - deveria dizer «também»? - fomos n6s que nos 
adaptâmos a este mundo. Tai sera 0 segundo ponta deste estudo, onde con-
sideraremos sucessivamente aIgu mas etapas dessa adaptaçâo. 
Como é que a mensagem extramundo do Sermâo da Montanha pôde 
exercer uma acçâo sobre a vida "do mundo? No piano das instituÎçôes, a 
relaçâo foi estabelecida através da Igreja. que podemos ver coma urna espé-
cie de ponta de aJ.:.oio ou de testa de ponte do divino e que s6 lentamente e 
por etapas cresceu, se unificou e estabeleceu 0 seu irnpério, Mas era necessa-
ria também uma ferramenta inte1ectual que permitisse pensar as instituiçôes 
terrenaS a partir da verdade extranid:iid-anâ',' Eni'st Treeltsch insistiu muito mi 
ideia da Lei da -Natûrèza qû~e os'-Padres da 19reja adoptaram dos est6icos. 
o que era ao certo essa «Lei da Natureza ética» dos pagâos? Passo a citar: 
! Sir Edmund Leach chamou a atençâo para 0 aspecto mîlenarista, mas viu·o um lamo 
apressadamcllle como um modelo de «subversàOH. (Leach, «MeJchisedech and the Emperor: 
!cons of subversion and orthodoxy», Proceedillgs of the Royal Amhropologicallnstitute for 
1972, Londres, 1973, pp. 5-24; cf. também mais adiante a nota 18. Trad. francesa em L'Unité 
de "homme et Autres Essais, Paris, Gallimard, «Bibliothèque des sciences humaines», 1980, 
pp. 223-261. 
42 
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GÉNESE,1 
«A idcia mCSlra é a ideia de Deus como Lei da Nawreza universal, e5piri-
tual-e-fisica, que reina uniformemenle sobre IOdas as coisas e como lei uni-
versai do mundo ordena a natureza, produz as diferentes posiçôes do indivi-
duo na natureza e na sociedadc, e transforma-se no homem cm lei da razào, 
a quai reconhece Deus e é deste modo una corn cie ... A Lei da Natureza 
exige assim por um lado a submissào ao curso harmonioso da natureza e ao 
pa pel atrlbuido a cada urrf-,no) istG.ma social, c por outre a elevaçào interior 
acima 'de \ud6 isso, a libe;dade é;ico-rcJigiosa e a dignidade da razào que, 
sendo una corn Deus, nâo podera ser penurbada por qualquer aconteci-
menta exterior ou sensiveh) (p, 52). 
Poderia objectar-se a esta afirmaçâo de Treeltsch de uma relaçâo espe-
cial corn 0 estoicismo a facto de semelhantes concepç6es se encontrarem lar-
gamente difundidas na época, e de taillo Filon como, dois séculos mais 
tarde, os Apo!ogetas terem bebido igualmente e talvez mais ainda noutras 
escolas de pensamento. Objecçào à quai TrocJtsch respondeu antecipada-
mente: 0 conceito de uma Lei da Natureza ética da quai sào derivadas todas 
as regras juridicas e todas as instituiçôes sociais é uma criaçâo da Sloa!, e 
sera ao nivel da ética que a Igreja construira a sua doutrina social medieval, 
«uma doutrina sem duvida imperfeita e confusa de um ponto de vista cienti-
Fico, mas que assumiria na pratica a mais alta significaçào cultural e social 
e tornar-se·ia al go camo 0 dogma de civîlizaçào da Igreja» (p, 173). 
o empréstimo comraido parecera inteiramente natural se admitirmos que 0 
esrolclSmô'éaïgrëjaestavam amoûs-apegà-dôs acoricêpçào extramundanà-e 
'a-relahvlzaçâo conco"milantêëfà ··vida"nomû-ndo.-sêri1- vistas ··as ·c'015a5, -a 
mënS"à:[ëm-(fe Bu-d-; j;â;a·'ë' hOnîérri~nô-l~undo ' ~ô~ôtai--era da rnesm~ natu-
rezâ:a~lid~d~~-;;bJë~~-'; éiièàconstituem-a"'artic'~!;çâ~ e~;;~ ·~ ·~ida 
no mundo "e as imposiçô-es·s ûdaj·s por 'u~-i~do: a" ~è·rdàde e os valore~· ~b~o-
-,ntOs-porontrb-. -------.. -.. " .. - - ._-~ . .... --.-_.-.-. 
.----r5ëSëëbi1fi1'OS-,7"~ fundador da Sloa, três séculos antes de Cristo, 0 prind-
pio de todo 0 posterior desenvolvimenta. P.rraz;~ de Chîum - mais '.JJm, 
.' _ profeta do que um [ilosof;: segundo Ed"wyn sëV'a;2 - 0 Bem é aquiio que 
, toma 0 homem independente de todas as circunstâ~i~~-ex'l~~-i~;~~:-S6-o 
- ._------ _. _- _ .- - --_ .. -.. -.- ---_. -_. 
Bem é imerior ao homem. A vontade do Îïiaivfcfuo é a fonte da sua digni-
-dad;;-da~~~70;pÎ~tlliie·. CC;~tànlo" qûë aJustë-asûâ ~oniâ·de a tuctè-;; qüè 
odêst"lÎl-OTh-e poss'a- rcservar, estara a salvo, ao abrigo de todos os ataques do 
! Troeltsch, «Das stoisch-christichc Naturrecht und das moderneprofane Naturrecht)), 
Gesamm. Schriftell, 1. IV (pp. 166-191), pp. 173-J74. 
2 Cf. nOla 3, acima. 
43 
,~ .. 
ENSAIOS SOJJRE 0 IN DIVIDUALJSMO 
munda cXlcrior. Camo sobre 0 mundo reina Deus, ou a Lei da Nalureza, ou 
a razâo - tomando-se a natureza razâo no homem -, esta exigência é 
aquiJo a que TroelLsch chama a Lei da Natureza abso/uta. Além disso, 
enquanto 0 sabio permanece indiferente às coisas e às acçoes exleriores, 
pode contudo disti,nguir entre elas segundo a sua maior ou men or conformi-
dade à natureza, o~ à razâo: certas acçoes sao re/ativamente recomendaveis 
par comparaçâo corn outras. 0 mundo é rclativizado ëomo deve sê-Io, e 
lOdavia~odèm ser-the afectados ~ilores , 'va/ores relarivos:Ta l é e'~ ger~e a 
lei da natureza relativa que tâo largamente sera usada pela Igreja. A estes 
dois niveis da Lei corrcspondem duas imagens da humanidade, no estado 
ideal e no estado real. A primeira é 0 estado de natureza - como na cosmo-
polis ideal de Zenâo ou mais tarde na utopia de Jambulos 1 - que os cris-
tâos identificaram com 0 estado do homem antes da Queda. 
Quanto ao eSlado real da humanidade, é bem conhecido 0 paralelismo 
estreito existente entre a justificaçâo par Séncca das instituiçoes camo resul-
tado da maldade dos homens, e ao mcsmo tempo como remédio para essa 
maldade, e os pontos de vista semelhantes dos cristâos. 0 que Troeltsch con-
sidera camo essenciaI é 0 aspecta racional, a saber que a razâa passa ser 
aplicada às instituiçôes reais, ou para as justificar tendo cm conta 0 presente 
estado da moralidade, ou para as condenar coma contrarias à natureza, ou 
ainda para as temperar e corrigi r corn 0 auxilio da razao. 
Assim Orfgenes defendeu contra Celso que as lcis positivas que contradi-
zem a lei natural nâo merecem 0 nome de Icis (Caspary, op. cil., p. 130), 0 
que justificava os cristâos na sua recusa de prestarem culto ao imperador ou 
de matarem ao serviço dele. 
Ha um ponto no quai 0 livro de Troeltscb pede um addendum. 0 autoi 
nao conscguiu reconhecer a importância da realeza sacral na época helenis-
tica e posteriormente. A lei naturai enquanto «nâo escfita» ou enquanto 
«animada» (empsychos), encarna-se no rei. Tai é nitido em Filon, que falou 
de «Ieis encarnadas e racionais) , e nos Padres da Igreja. Segundo Filon, «os 
sabios da historia antiga, os patriarcas e padres da raça apresentam nas suas 
vidas leis nâo escritas, qu"8"Moisés registou mais tarde por ~~rit~ ... Neles a 
lei cumpre-se ê "torna-se' p~~oaT»" (Hirzel in Troeltsch, n.O 69). E Clemente 
de Alexandria escreveu sobre Moisés que este efa «inspirado pela lei e assim 
um homem régio»2. Trata-se de um aspecto importante porque nos acha-
1 J. Bidez. «A cidade do mundo c a cidade do sol nos Est6icos», Bulletin de l'académie de 
Belgique. Leures. serie V. vol. 18-19, p. 244 sq. 
2 Arnold A. T. Ehrhardt. Politische Melaphysik von Solon bis Augustus, Tubinga. 1959-
-1969, 3 vols., t. 11, p . 189. 
44 
GÉNESE.I 
mos aqui em contacto corn 0 tipo primitivo, sacral, de soberania, 0 do rei 
divino ou do rei -sacerdote, uma representaçào muita difundida, que eslava 
presente no mundo helenistico e mais tarde no império de Bizâncio 1 e que 
voltaremos a encontrar. 
As concepçôes e as atitudes dos primeiros Padres da Igreja em matéria social 
_ acerca do Estado e do principe, da escravatura, da propriedade privada -
sao 0 mais das vezes estudadas -pelos modernos separadamente e de um ponto 
de vista interior ao munda. Podemos compreendê-Ias melhor de um ponto de 
vista extra-mundano, lem brando-nos de que tudo era percepcionado à luz da 
relaçâo do individuo corn Deus e da concomitante fratemidade da Igreja-=-.!>.i!:-_ 
-se-ia que 0 firn ûltimo esta nurna relaçào. .~!!!.b}v~~nte corn a vida no mund?, 
-porque-omundo onc!e#Q"ërlStàô' pêregrll1a n.esta vida é ao mesmo te"?J?D um 
obstaculo' e Ufna condiçâo para a salvaçâo. 0 melhor é considerarmos tudo 
Isto· em t;~; hi~râ~~fCos. 'porquèa vida no mundo nâo é directamente recu-
sada ou negada, é somente relativizada por referência à uniâo corn Deus e à 
beatitude no além a que 0 homem se encontra destinado. A orientaçâo ideal 
para 0 fim transcendente, coma por um iman, produz um ca~po hierarquico 
no quaI devemos esperar descobrir situada cada uma das COIS3S mundanas. 
A primeira consequência tangivel desta relativizaçâo hierarquica é uro 
grau notavel de latitude na maior parte dos assuntos do mu~d~. Como e~tes 
nào sao importantes em si pr6prios mas apenas por referencl3 a um ftm, 
pode haver variaçôes de grande amplitude segundo 0 temperamento de cada 
pastor ou autor e, sobretuda, segundo as circunstâncias. Mais do q~e .procu-
rar regras fixas, trata-se assirn de determinar em cada caso os limItes da 
variaçâo permitida. Estes cm prindpio sào claros: por um lado 0 mundo 
nâo deve ser pura e simplesmente condenado, como pelos heréticos gnosti-
cos, por outro nâo deve usurpar a dignidade que s6. ~ Deus ~rtence. 
E podemos supor que a variaçào sera menor nas matenas relauvamente 
mais importantes do que nas outras. 
Urn autor recente sublinhou a espécie de flexibilidade aqui em causa. 
" Estudâ"ndo~ â' exegese de Origenes, Caspary mostrou admira\'e~mente como 
(0 que me pareee ser) a oposiçào fundamental actua a divers9s-niveis ~ sob 
diversas formas e constitui uma rede de significaçao espiritual, urna hlerar-
quia de cor~respondências 2. 0 que é verdadeiro para a hermenêutica biblica 
1 F. Dvornik, Early Christian and Byzantine Political Phifosophy, Origins and Bock· 
ground, Washington, 1966, 2 vols. • 
, 2 Corn efeito, Caspary distingue quatro dÎmensQcs de contraste ou {(paramelrO~}). ent~e os 
quais s6 um considera hierârquico (op. cil., pp. 113-114), mas é fâcil vtr que a hltrarqUia se 
estende a todos eles. 
45 
\. 
ENSAIOS SOBRE 0 IXf) /l1DUALlSM{) 
pode apliear-se rambém â inlcrprclaçào dos dados cm brulo da experÎf'ncia. 
Dizia eu ha poueo que podemos considerar as coisas deste mundo como hie-
~~i~adâs-;eil~~d~ a-s~; rclat-i~a ~er-linên cia para a· salvaçào. Sc~ duvida, 
Tai nào se ëiïë"On~--~is t ~m-aticamcnt;~,x,sto nàs nossas fontes, mas ha pelo 
menos um aspeclo sob 0 qua i a diferença de val or relativo deve ser levada 
em conta. Mostrei noutro lugar que 0 mundo moderne subvertcra 0 pri -
made trad icional das relaçôcs cntre homens sobre as r~ l aç6es dos ITo méns 
,. . corn as coisas. Neste POntO a atilude dos prÎmeiros cristàos nào deixa mar-
\\'\/ gens para duvidas, porq ue as coisas so padern constituir meios ou impedi-i\ mentos na dema nda do reine de Deus, enquanto as re laçôes entre homens ~ incidem sobre sujeitos fcitos à Îmagem de Deus c destinados à uniào com 
cIe. Talvez seja aqui que 0 cont raste corn os modern os se toma mais vin-
ca do. 
\ 
. , 
,; \ 
Podemos ass im supor, e verificamos que a subordinaçào do homem em 
sociedade, quer no Estado quer em escravatura, levanta questôes mais vitais 
para os primeiros cr istàos do que a atribuiçâo permanente de possessôes a 
pessoas, quer dizer do que a propriedade privada das coisas. 0 ensinamento 
de Jesus sobre a riqueza como ObSlaculo e a pobreza camo auxi lia r da salva-
çào dirige-se à pessoa individualmente considcrada . Ao nivel social, a regra 
secular da Igreja é bem conhecida, é uma reg ra de uso e nào urna regra de 
propriedade. Pouco importa a quem pertence a propriedade contanto que 
seja utilizada para bem de todos, e antes de mais dos necessitados, porque, 
coma diz Lactâncio (Div. instit., lIt, 21. cont ra 0 cornunismo de Platâo), a 
justiça tem que ve r corn a alma e nào COOl as circunstâncias exteriores. 
Troeltsch disse em termos fe lizes corno 0 amor no interior da comunidade 
irnplicava 0 desprendimento relalivamente aos bens (n.o 57 e p. 114 sq.; l31 
sq.). Segundo 0 que sabemos, podemos supor que na a usência de qua lquer 
insistência dogrnatica na matéria. as jovens igrejas, pequenas eem grande 
medida aut6nomas, lerâo podido variar no seu tratamento da propriedade, 
pondo talvez aIgu mas delas :udo em comum a dado momento, enquanto s6 
a injunçâo de ,auxi liar os\.-tr-mâos desprovidos de recursos era obriga toria. 
Os est6kos e outres tinham declarado os hQl1J.cns iguais enq uantq ser~s·'· · 
--.....---:--- .. ---- ._- - _._- ---- -_. --- .. . - -----,. ~ 
racionals. A igualdade '€As~ talvez estivesse mais profundamente enraizada 
--no p;op~i o coraçào da pessda., mas era do mesmo modo uma qualidad ~ 
ext ramunda-n-a:-- «Nâo pode haver judeu ncm grego ... ncm escravo nem 
homem livre ... nem macho nem fêmca, porque todos vos sois um homem 
1:111 Jesus-Cristo», diz Pau lo, e Lactâncio: «Ninguém, aas olhos de Deus, é 
escravo ou senhor. .. Som os lOdos ... seus filh os.~) A escravatura era coisa -
deste mundo, mas é uma indicaçào do abismo que nos separa dessas pe"Ssoas 
o facto de aq uilo que para nos ' fcre 0 proprio principio da d ignidade 
46 
i 
L '. ,. 
GÉNESE.I 
. na contradiçào incrcntc à vida nO mundo, a quai 
humana ser para clas UI . ' esgale da humanidadc, para tedos 
'd elo propno Cn sto para r fora asSUml a P . ct ct ' al Todo 0 esforço no sentido 
, 1 mildade uma vlrtu e car J • lOrnando asslm a lU ém ao individuo-fora-do-
. para dentro como conv 
da perfeiçào se onentava ' la ao nive! «tropologico» da exegese 
dÉC vernoS bem por exemp 
-mun o. 0 qu · . t s biblicos sâo interpretados camo 
de Origencs pois todos os aconteclmen 0 '1 ) 
, ..' do crisüio (Caspary, op. CI •. te~do 'por teatro a' Vida ', lI1ter~or _ 1'1' a sua abordagcm por Troeltseh 
No que se re:e:e à :ue~~~~~~:~a;r~~tls~~a~egue Carlyle: a atitude perante 
pode ser sem duvlda _ d Le· da Nawreza mas 0 poder que 
as leis é governada pelas concepçodefs a 1 olhado com~ divino 1. De facto 
1 · , 'sto de modo 1 erente e promulga as elS C VI _ uito estranhas uma à outra. Eis 
l ealeza sacral nao eram m 
a lei natura e a r . _ h' rarquica das coisas pareee mais conve-
asO cm que a Vlsao le D de novo um c Plo' todo 0 poder vern de euS. 
. 0 t esscncial cncontra-se cm au . 
mente. pon 0 . , . lobaI ha lugar para a restriçào ou para a 
Mas no quadro destc pnnclplO g mentario sobre Paulo do grande 
d'ça-o 0 que se vê daramente num co cont ra 1 • 
Origenes, no seu Contra Celsum: 
Ele diz: «N~O ha peder ;~:~â~a:~~:he:s~e ~~~s:')'q~~a~~~:g~~t:~ 
poderia entao dlzer. ,Cd D ' s? Respondamos brevemente a este res-
scrvidores de Deus ... e e : u . _ sa nào para abuso. Havera 
peite. 0 dom de ?:us, a: l~:~:a~:~~: :q~eles que adrninistram a 
na verdade um
b 
JUIZOsedgundo as suas impiedades e nào segundo a lei 
oder que rece cra m f' por ~. . Ele [Paulol nâo fa ta desses poderes que perseguem a~. -
Ivm:'~i é necessario dizer: «Devemos obedecer a Deus e ~ao aos 
que q do peder em geral (Troeltsch, n. 73), 
homens» , mas fala apenas 
empto camo uma instituiçao relativa ultrapasso
u os 
Vernos bem neste ex 
fli to corn 0 valor abso1uto. 
seus limites e entroU .cm con l r ultimo dos cristâos, a subordinaçao politica 
Enquanto contrana ao va 0 . 'r' - a Lei da .Natureza rela-
trava a sua JUStI lcaçao n 
resultava da Queda, e encon . [longe) de Deus ... le} ... Deus impôs-
' 1 . «Os homens calram tiva. Asslm reneu. s impedir de tai coma os 
• . d de outres homens ... para 0 
-lhes 0 fre10 do me 0 0 onto de vista foi aplicado 
peixes se dcvorarem uns aos outros.» mesmo P 
. ! le tratou, em dois capilU!OS separados. da (jgual-
1 Numa obm aliàs classlca, A. J. Car y d d P,',", ;pe)) R W. e A. J. Carlyle, d t ·dade sagra a 0 . . d 
dade natural e do governo») e a «au on . Th West t 1 por A. J. Carlyle. «The Secon 
A Hîslory of Mediaeval Political Theory me, . ., . 
Century 10 lhe Ninth», Edimburgo e Londres, 1903. 
47 
1 
1 
ENSAIOS SOBRE 0 INDIVIDUALISMO 
por Ambrosio à escravatura, um pouco mais tarde, talvez porque esta apare· 
cia como urna queslâo individual , ao passo que 0 Estado era urna arneaça 
para a Igreja inteira. (É nctavel que uma explicaçao semelhante nao tenha 
sido dada para a propriedade privada, salvo par Joao Crisôstomo, que era 
urna figura excepc)onal). Também aqui lui lugar para alguma variaçâo. Por 
um lado 0 Estado e 0 imperador sâo queridos por Deus coma todas as coi-
... :. sas da terra. Por outro 'Iado o ' Ëstado esta para} a 19rejà como a terra para 
o céu. e um mau principe 'pode ser ~ma puniçâo envlada por Deus. É neces-
sario em geral nâo esquecer que na perspectiva exegética a vida na terra 
depois de Cristo é uma mistura: Cristo abriu uma etapa de transiçâo entre 
o estado dos homens ainda nâo resgatados do Antigo Testamento e a plena 
realizaçao da prornessa esperada corn 0 regresso do Messias (Caspary, op. 
cil., p. 176-177). No intervalo, os ho mens 56 dentro de si proprios possuem 
o reino de Deus. 
Apresentamos urna perspectiva sumaria das concepçôes dos Padres da 
Igreja dos primeiros séculos em maté ria social e politica, deixando de fora 
Santo Agostinho. que deve ser considerado à parte 1. Por um lado, corn ele 
encontramo-nos ja no século v, no Império tornado cristào, mas sobre-
tudo, a originalidade do pensador renova 0 quadro conceptual que herdara. 
Sabemos estar di ante de um homem que exprimiu 0 cristianismo corn urna 
intensidade de pensamento e de sentimento inteiramente nova. Corn ele, a 
mensagem crista de Paulo ganha toda a sua profundidade, toda a sua para-
doxal grandeza. Agostinho ergueu a sua religiâo a um nivel filosofico sem 
precedentes, e ao fazê-Io antecipou no mesmo gesto 0 futuro, de ta] modo 
a sua inspiraçâo pessoal coincide corn a força mot riz, 0 principio capital do 
desenvolvimento posterior. Por algo que muito precisarncnte se nos rcfere, a 
hist6ria exige-nos que saudemos aqui 0 génio. 0 que sentimos toma-se sem 
dûvida ainda mais forte por sabermos pelos cscritos de Agos~:nho através de 
que limites humanos, de que sofrimentos e de que esforços ele pôde subir 
tao alto. Seja coma for, trata-se de al go que faz corn que seja dificil falar-
mos d~le condignamente. formarmos urna ideia adequada da amplitude e da 
profundidade dq1~~ù 'Pènsamento; contudo, mesrno neste breve ensaio, tere-
mos que lhe dedicar um pequeno nicho - ou talvez urna capela onde possa-
mos, honrando-o, esperar sermos beneficiados pela sua extraordinaria pene-
traçao. 
1 AfaSlamo-nos assim um lanto de Trocllsch, cmbora nos sirvamos principalmenlc das 
suas eitaçôes, e mais ainda de Carlyle, cm quem Troeltsch se apoiava. Nâo live accSSQ à obra 
que Troellsch scparadamcnte eonsagrou a Agostinho (Augustin, die christjche Anlike und dos 
Mittleolrer, Muniquc, 1915). Outras refcrências: Étienne Gilson, Introduction à /' étudede saint 
Augustin, Paris, 1%9; Peter Brown, Lu Vic de SoÎ11I Augustin, trad . J.- H. Marrou , Paris, 1971. 
48 
GÉNESt~ 1 
Agoslinho ci: do seu tcmpo. e lodavia prefigura, aponta, com 0 dedo ,infa-
livelmentc 0 que esta para vir. É assim que a sua inlluêncl3, ou a sua hnha-
gem inte1ectual, sc estenderâ à ldade Média, e muito para alé~ dela: ~asta 
pensarmos cm Lutero, nos jansenistas, e até mesroO nos, eXlstenclahstas. 
Corremos portanto 0 risco de nos enganarmos a seu respclto, ~as talvez a 
perspectiva aqui esboçada permita situa-lo melhor, com~reende-IO ,mclhor. 
Assim, Q:uanto aq. que aqui diTef.l~m~ntc nos aeupa. nao b.~sta dlz~r q,~e. 
em relaçâo aos seus anlecessores, Agostinho rcstringe 0 campo ~e. aphcaçao 
da Lei da Natureza e alarga 0 da Providência, 0 da vontade dlvma. lntra-
duz, corn efeita, urna mudança mais radical. Em vez de aceitar a realeza 
sacral, subordina absolutamente 0 Estado à Igreja, e é neste nove quadro 
que a Lei da Natureza conserva um valor limitado. . 
Toma-se deste modo muito clare um duplo desenvolvlmento qu~ ~ncontra­
mos sobre 0 Estado na Cidade de Deus (cf. Troeltsch, n.o 73). AdrnntndO ~om 
Cicero que 0 Estado sc funda najustiça, Agostinho começa par afirmar vlgo-
rosamente que um «Estadm) que nao preste justiça a Deus e à relaçào do homern 
corn Deus nao conhece a justiça e por conseguinte nao é um Estad~. P~r out~ 
lavras nao pode haver justiça onde a dimensào transcendente da jUStIça esteJa ~:sente. 'Trata-se de um julzO nonnativo, de uma questao de princip~o ~c.D, XIX, 
21). Mais longe, 0 problema volta a ser abordado: estabelecido 0 pnnclplo, como 
'"' poderemos nos apesar de tudo reconhecer que 0 povo romano lem alg~ma rca-
lidade empirica, cmbora nao sendo um povo, ou uro Estado,. no .senudo nor-
mativo? Pois bem, podemos reconhecer que 0 povo romano esta umdo cm to~o 
de algurr.a coisa, ainda que tal coisa nao seja, coma deveria ser,. a v:rda~eJfa 
justiça. Empiricarnente, um pava é um agrupamento de seres ra:l~nals un~dos 
pela amor em comum por alguma coisa, por valores comuns,. DJflamOS nos, e 
é melhor ou pior conforme os seus valores sao melhores ou plo.re~ (CD, ~IX, 
24). Vernos mal coma pôde Carlyle dizer que Agostinho concebi3 msufi:lente-
mente a justiça (p. 175); de uro modo geral, 0 comentârio de Carlyle aproXlma-se 
1 ~ da incompreensao sistematica (op. cil., pp. 164-17~). _. . 
, :> ~ ., o..Vejamos as coisas mais de perto. _ A.-!~~aLo~,:~~~~~ha~.c.?_I!Se~!..do 0 
. L __ ,~~ Estaao.éÔ-rnüïïdoëmgërél4 -coQIO congenitamente:.sœ9s~0.e IOdepe~d~nte 
- . l.j· ·por ~ef~rên~i~'à ~gr~j~ e ao dominio da relaçao do hômzm corn D:us. q que 
Agostinho raz é reclamar que 0 Estado seja julgad?~ d? pon~o de vista, tr~ns­
~ .. ,. cendente 30 tfIünoo, da relaÇà6 ao ~_o~e~ corn Deus, que é 0 ponta d~ v~ ~t~ 
da ]greja~ Hfâëiüi urria preteiisiO teocratica, um passo em frente na ap!lca-
i;ào' de valores supramundan ..... s às circunsl~~.9~~ çles~ .mundo. AgO~tlOhO 
- anlffféia- a:qul (}déSenvoIVlriïëni~E.~i.~~rP~r~o~ . s~cu.~?~_~~gl!intes. ~ a, hngu~­
gem de Greg6rio Magno: ({Qûc 0 rcino terrestre sirva _~~ c.e~este~(ou seJa 
seu escravo: Jamuletur) (E]J:05). --
49 
ENSAIOS SOBRE a INDIVIDUALISMO 
,) ~. :'\ 0 que se passa nesle caso é caracteristico da atitude de conjunto de 
. ~ Agostinho, da sua reivindicaçâo radical, revolucionaria. Cristianizar desle '~-.."'" ~\ "-"~ "", modo a justiça é nào so obrigar a razâo a inclinar-se perante a fé, !1laS -
';::'1 ::.'-: fo-iça:nra,e~on1ië(:er "-ürii parëï1tesco corn eIi-:-<r ver" na -fé quaïèi~e-r- cois; 
\.:, :: "00010 a razao""el"~v_~~-~~ùma pôtênèia superioi-:....~ j"sso {nada menos"ëfè)"que 
lJrna -nova forma pe pensarnenlO correspondendo à imanência-e-
("\\.. ~ttanscendênci~ de De,us. Tai foi d:v~ras a ~retensâO ap~rentemente,:xt:ava~ ; 
i~' , gante de Agostmho: filosofar a partIT da fe, colocar a fe - a expenenCla de 
~ .:-:- Deus - no fundamento do pensamento racional. Os antigos podiam sem 
" ' ,\" dùvida ver nisto urna hybris; mas é apesar de tudo possivel sustentar que \2. "'" todos os fil6sofos fazem a mesrna coisa, no sen lido ern que toda a filosofia 
( : "'. parte de urna experiência pessoal e de urna tendência, senâo de um designio, 
-Ressoal. No plana da hist6ria universal, 0 acontecimento, 0 facto que ternos 
que reconhecer, é que começa aqui, sob a invocaçâo do Deus cristâo, a era 
moderna que podemos olhar coma U!ll esforço gigantesco visando reduzir 0 
abismo inicialmente dado entre a razào e a experiência. (Devo confessar que 
'~.a imensidadc do fen6meno ultrapassa os meus conceitos habituais e me 
'1 obriga à retorica.) Agostinho inaugura urna luta milenar, sempre renascente, 
proteiforme, existencial. entre a razâo e a experiência que, à força de se 
, 
. =-...... ..-.---...,_ . ..,,-
expandlf de um nivel para outro, acabara finalmè nte por modificar a rela-
çâo entre 0 ideal e 0 real, sendo nos de ceTto modo 0 seu produto. 
Esta espantosa mutaçào tem consequências no dominio que nos~. 
Em prirneiro lugar, trata-se de urn reforço da t6nica posta na i&ualdade~ 
Deus «nào quis que a criatura dotada de razào feita à sua_.iml~e~h! 
dorilinio dë'èutras'c rfiÜÜàsexce plôaiisdêsprovidas de~, (colocou) nào 
' "0 honièm aCiina do homem :"mas ·(rh~~e;;-aëi~aêios-ânim·ais. -A"ssim os pri-
- meiras honiens "l "ùStosfû;a"ffi fei iospastores -de rebaÎÎhos- e nâo reis de 
homens». Eis urna declaraçào que se diria quase est6ica, mas 0 vocabulario 
e 0 tom quase fazem pensar também em John Locke. Segue-se imediata-
mente a afirmaçâo do pecado, tâo categorica coma era a da ordem natural, 
por$ll)e· ({natural~ente, a escravatura é justamente imposta ao pee:ador», a 
puniçâo resulta da pr6pria Lei da Natureza, infringida pele pecildo '(CD, 
XIX, 15). Do homem que se tornou escravo do pecado é justo fazer um 
~ e~!=r~vo dc)"ho;;;em. 0 quesê apliëatantoàd;~i~açâ~ poÏiiica co~o à e;cra-
valura, 'mas "è'"nota"vel que a consequência seja explicitamente extraida ape-
nas quanto à escravatura, sem duvida por ser ai que é mais gritante a sujei-
çào do homem ao hornem, coma mais violentamente desrnentida a igualdade 
naturai querida por Deus. Ao senhor é lembrado que tambérn 0 orgulho Ihe 
é tâo funesto coma salutar a humildade ao servidor. (Vernos neste casa que 
a subordinaçâo nas relaçôes soci~ls nào é por principio recusada.) 
50 
" 
~. j 
r 
J:fÎ J 
GENESE. 1 
Agostinho intcressa-se pouco pela propricdade. S6 trata ocasionalmel11 e 
do te ma na sua luta contra os donatistas. Estes ultimos alegavam, contra a 
confiscaçào d2S suas igrejas pela governo imperial, que tinham adquirido as 
suas propriedades par meio do trabalho - amecipando assim 0 fmuro 
argumenta de Locke, conforme Carlyle observou. É clara que para Agosti -
nho a propriedade privada é exclusivamente uma questào de «di reito 
-"~lUmanO" e positi!,~Carlyle, ~p. .!:it.,-p.J40- 1~1). .""., ". 
Creio que,~oelt~ , na estem~.~e ~a!:xJe, nao pres~ mtelra JUStlça a on-
ginalidade do pens3.mento de Agostmlio, e procederel a algumas observa-
çoes a proposito das passagens em que os dois autores se lhe referem. Lem-
bremos para começar que, camo a maior pane dos antigos, gregos ou 
romanos 0 homem é para Agostinho uma criatura social. Ele proprio era 
, ------- - " .- - ,.,-
de resta üri1â'pessoa' eminëntëmente sociavel na vida de todos os dias. Além 
do mais. a ideia de hierarquia nào Ihe efa de maneira nenhuma esuanha, Ha 
uma hierarquia da alma e do corpo, ainda mais vincada pelo facto de em 
Agostinho 0 corpo ter uro valor, uma dignidade que por ceTta nàa possuÎa, 
digamos, em Origenes 1. É através da alma que estamo.!...t::m ElaS:~SQm 
r-""-~'-'- " ._."~~ .. _ --
Deus ; existe portanto 'uma ·câaë la de subordinaçâo .... q~_ .P~J1S à alma ... ~ dp. 
alma ao corpo. Assim Agostinho escreve, a prop6sito da justiça em relaçao 
--Com -01:staoo: «:"" quando um homern nâo serve Deus, que quantidade de 
justiça podemos supor que existe nele? Porque se urna alma nào serve Deus, 
nào pode comandar 0 corpo corn aigu ma justiça, nem a razào de urn 
homem pade controlar os elementos viciosos da alma» (CD, XIX, 21; 
XIX, 23). 
Penso no entanto que é p~ssivel ~~q~,ntos de por~enor, 
em Agostinho, uma progressao subt~ do mdlvlduahsmo...-o stado e urna 
colecçâo de homens unidos pelo acOtde-s e os v Tes e a UtI Idade 
---_._---- - -----"' --- - --------
. ·comuril:-A definiçilo vern de Cicero, mas em Cicero nâo é tào individualista 
"'côrnos'u~rge nesta traduçào. Numa passagem citada por Agostinho na pri-
meira referênc.ia que faz à questào em A Cidade de Deus, a conc6rdia da 
rriultidâo no Estado é a de diferentes ordens de pessoa,s, alla, baixa e média, 
e é comparada corn a harmonia de diferentes sons na musica (CD II, 21). 
mas esta referência a um conjunto nào é retida por Agostinho, e ficamos 
corn a impressâo de que para ele 0 Estado é fcita de individuos, ao passo 
que sô a Igreja seria um organismo. --- "~---- -
ts~; l ~ --~ . '>~ ,.1);" ·-L 
1" ,.. '·t: ' " ~. tr'. ~ -:,'} '1 .. "{"t".-O 
1 Sobre a atitude Perante 0 corpo enquanto d"if; rentetambém da dos fil6sofos pagàos, ver 
agora 0 bdo estudo de M1ria Daraki, ((A emergênda do sujeito singutar nas Conjiss6es de 
Agostinho», Esprit, Fcvcreiro de 198J, pp" 95-115, espedalmcnte pp" 99 sq")" 
51 
ENSAIOS SOBRE 0 INDIVIDUALISMO 
A definiçao em Contra Faustum (XXII, Troeltsch, n.o 69) daquilo a que 
geralmcme se cham a Lei da Natureza esta pr6xima da de Cicero, celebrada 
por laclâncio (Troeltsch, ibid.), e contudo djfere subtilmente dei a : «A lei 
eterna é a razao divina ou vontade de Deus, que manda conservar a ordem 
natural e proib~ a sua perturbaçao.~> Tudo isto se encantra em Cicero, 
excepta as palavras «vontade» e «ordem naturah~. Se nao me engano, 
a i>~~rodu~~o .~cestas palav~ys .tem como resultado separar em duas aquilo 
que para Cicero efa a Lei da Natureza: ha a ordem, que é dada par Deus, 
e a lei, que vern também de Deus mas que, 56 ela, esta entre as maos dos 
homens. Talvez nao seja ir longe de mais afirmar que tanto a transcendência 
de Deus como 0 dominio distinto do homem recebem aqui uma mais nitida 
acentuaçào. 
Passa-se al go de semelhante a prop6sito da ordem e da justiça. Ambas 
sao definidas na linguagem da justiça distributiva. A ordem é (CD, XIX, l3) 
«a disp05içào que atribui 0 seu lugar respectivo às coisas seme/han/es e dis-
semelhantes»; a justiça é «a virtude que distribui a cada um 0 que lhe é 
devidQ» (CD, XIX, 21). Num outro texto (De Div. Quest., 31, Troeltsch, n. 73) 
«a justiça é a disposiçâo de espirito que, uma vez garantida (conservata) a 
utilidade cornu m, atribui a cada um a sua dignidade)~ . Coisa notavel, a jus-
liça opera aqui em relaçào aos individuos, no interior de uma ordem ou de 
um todo (a utilidade comum), mas à margem de:,sa ordem ou todo - no sen-
tido em que se diz que a justiça serve 0 pr6prio todo através da sua operaçào. 
Parece-me que basta aproximarrnos umas das outras estas três passagens 
para nos apercebermos de que indicam de certo modo uma direcçào que nos 
é familiar, a n6s modernos: urna distância acrescida entre a natureza e 0 
ho~em, urna tendência para isolar, sob a égide de uma ordem querida por 
Deus, um mundo de homens considerados essencialrnente coma individuos 
e tendo apenas corn a ordem urna relaçâo indirecta. 
Algo de sernelhante ocorre muitas vezes ao espirito do leitor da Intro-
duction à l'étude de saint Augustin de Étienne Gilson. Assirn, damo-nos 
conta de UID deslizar subtil en1re a teologia de Plotino e a de Agostinho, de 
~ {"L. ~ .. ma estrutura hierarq~ica para uma hierarquia um tanto substanciaIizada. 
rJ..:' Gilson nota que as entidades sucessivas engendradas pela Uno em Plotino 
sâo, cada uma delas urn pouco inferior à precedente, de maneira a formarem 
urna escala descendente regular, a começar pela Inteligência, a que se segue 
a Alma. Em Agostinho 0 Filho e 0 Espirito Santo sào iguais ao Pai, for-
mando um s6 corn Ele; depois, abaixo deles, ha uro intervalo, 0 intervalo 
entre geraçào e criaçâo (Gilson, p. 143-144). 
Mas valtemos às Împlicaçôes· do estatuto dependente do Estado: bens 
terrestres reais, coma a paz, nào. 'podem ser solidamente obtidos indepen-
52 
GÉNESE. 1 
. . paz nâo se consegue coma os sobcranos 
d t ente dos bens supenores. a .. . -en em d ·t ··a (CD XV 4) Esta dislancmçao 
. . m através da guerra e a vion " . ., . 
o lmagma olhar frio os horrores da hlslO:"la: os 
permite a Agostinho v~r .co:ig
U
e
: no crime e na violência: R6mulo coma 
Estados têm na sua malOna f 
. . _ (CD XVIII 2). Temos aqui algo que nos az pen-
Calm matou 0 seu lfmao • 'Agostinho confia nas possibilidades 
Hume Ao mesmo tempo, . 
sar em. . ' . ... como num desenvolvimento sem precedentes -
ainda VlrtualS do cnsua I1ls~o~ 0 dos donatistas recomenda dinamismo e 
era Contra 0 qUleUsm ' . qU~â~i:sPNO~ anos toldados de sombras pela queda de Roma. ~erno,-lo l;te-
au· . entusiasmo aplicando a visào de Plotmo a or em 
lectualmente chelo de. 'd dobrando' é inspirado por um senti-
qu:
n
:
o 
h!:t~::g;:!s~r~:~e:~:::~~~:, ::e se toma' pradigioso, coma quando 
m estar entre os que escrevem avançando e ava. nçam es~r:-
escrcve: <Œento h sao 
assim) Dir-se-ia que corn Agostm 0 a VI 
vendQ) (~rown, p. ~\.19 ~.p da q~al trabalharam os primeiros Padres da 
esç.alo~glca .sob 0 l.mpeers'tOa' longe de ter chegado ao fim, começa jâ a _ 
1 eJ' a cUJa carrelra - - .. - -_.-~gr • __ . _ .. '~.-----mc;-a creoC'a moderna no progresso . f maî-Se-em-qualqucrt.Olsa_c~ ._.-. -.. -"- - .. -----~--_.-- -- -- ---os or _ . ,._ . . __ .. __ "_.~. 
--(BrOWn; _po. 473.SQ.) . . avan a no caminho que a con~uz 
Corn Agostmho a IgreJa do OCld:.n~c ~ .~ . ~ ~- ....... - .. -.. . , . ~ '--'._-- . d 'rmâ oriental, por bem-aven-
., do- e a afâsta cada vez m~a.!s fl sua 1 . ,-___ _ _ . - - ; - - .... _ -para 0 mun . __ --- ' - -. . . 1 ~uardado no mtenor iuraà3ëàëiii7;ado~~ <:o~~_:n_te :~m_ <:.~~U ~so a~ento!~ __ _ . . - . 
a01inpërio ....... -, ·~"- . d corn a que existe 
._ _ -_.-:- ' 1 res a uOiao da alma e 0 corpo 
. Agostmho compara a gu 1 (CD XIX 3' Gilson, p. 58). A pr6pria 
c?tre ~m caval.eiro :::e:e~a;:eo viva,' e GiI~O~ fala do eudemonismo de 
aima ~ hPerc(eb~: 5~ 66) Aqui nesta identidade virtual da racionalidade e 
AgostlO 0 p. -, . 'd·· d sua reconciliaçào reside talvez 
'd arantia ou promessa Ivma a ' da VI a, na g . .' d 0 olh?'Uos ao longo da sua his-
a mensagem central do cnsuaOlsmo quan 0 _ 
o 0 ôe em absoluto ao budismo. 
toria, urna rnensagem que . P l do este conjunto, quando fé e senti-
Finalrnente, quand~ ~xamma~:s °uandO a histOria adquire urna forma 
mento ~va:e~t~r:o;~n~~!:;:((~. ~ica iluminado de esper:mça, crern.os 
:s~i~~~ aOuma reabilitaçâo da vida no mundo, coma ~e esta ~tlvesse em vIas 
de ser resgat~da pelo transbordar de uma luz de alem~~u~_~:... _ ._~-.... 
. . 'd' dO ' adres da IgrejuClac) 
D -s de termos passado em 'revlsta as 1 elas _ . ," . -..... -- -ep01 1 - da re1'àÇà.o.-entre a'"lgreJa 
tivas ao nOSSO tema, estuda~e::ua::~~ :t~V~ U::açâO de Carlos Magno 
e 0 Estado, esse resumO ' notavel de ta! reJaçâo, e moS-
em 800. Isolarei principalrnente urna formula . . 
trarei coma ela veio posteriormente a ser modlflcada. 
53 
,,' 
,', .. ' 
' ENSAIOS SOBRE 0 INV/I 'IDUA U SM Q 
Em pri meiro lugar, a conversâo ao cristianismo do imperador Constan-
tino no in ic io do século IV, além de ter obrigado a Igreja a uma unificaçâo 
- ' ' mais avançada, abfiu um problema temivel: 0 que seria um Estado cristâo? 
De boa ou ma vpntadc, a Igreja via-se frente.:;-r;ntëëOiTIû mundo".·Sëntia-
-se feliz por ver ~hegarem ao fim as perseguiçôes, e [ornou-se uma institui-
çâo oficial ricamente subsidiada. Nâo podia continuar a desvalorizar 0 
Estado tâo livri"rhente camo até entào. i. : ~. ,. il' 
o Estado dera em suma um passa para fora do mundo na direcçâo da 
Igreja, mas ao mesmo tempo a Igreja tamara-se mais mundana do que até 
esse momcnto havia sida. Contudo, a inferioridade estrutural do Estado, 
ainda que corn mat izes, foi mantida. A latitude para a quai charnei a alen-
çâo au ment ou no sentido cm que se [ornou possivel julgar 0 Estado mais 
ou menos favoravelmente segundo as circunstâncias e os tempcramentos. 
Os conflitos nâo fi cavam excluidos, mas passariam doravante a ser inter-
nos, tanto para a Igreja corno para 0 Império. A herança da rcaleza sacral 
helenist ica tinha inevitavelmente que entrar de quando cm quando em con-
fronto corn a pretensâo mantida pela Igrcja dc continuar a ser instituiçào 
superior. As fricçôes que posteriormente se produziram entre 0 irnperador 
e a Igreja, e em particular corn 0 primeiro dos bispos, 0 de Roma, incidi-
rarn principalmente cm pontos ' de doutrina. Enquanto os imperadores, 
prcocupados corn a unidadc polftica, insistiam no sent ido da proclarnaçâo 
de compromissos, pelo seu lado a Igreja, os seus conselhos ecuménicos e 
espccial rnente 0 Papa queriam definir a doutrinacoma fundamento da uni-
dade ortodoxa, e suportavam mal a intrusâo do principe no domînio da 
autoridade eclesiastica. Uma sucessâo de divergências doutrinais obrigaram 
a Igreja a elaborar uma doutrina unificada. Estes debates terrninaram pela 
condenaçào de heresias como 0 arianismo, 0 monofîsismo, 0 monotelismo, 
activas sobretudo a Leste, em torno das antigas Igrejas de Alexandria e 
Antioquia. É digno de nota que a maior parte destes debates se tenha cen-
trado na dificuldade de conceber e formular correctamente a un.iâo do 
Deus e do hornem cm Jesus Cri~'(ô . Ora é nesse ponto qu'c nos aparece 
rel rospectivamente coma que 0 ântij;, ~-sëgreaodo- crist ian ism~· co~icÎ;­
'fadO";; lo;go'dë tOdoo 'seu ' dësen;01~i,;ë'irtët~i~t6ricO:-ëü seja: emter~s 
a bstraCtos,--â- i ·trrma çâo ëleüm-;tran s i çâ~·· ~·fecti~~ ; nt ·re· 0 ·alé~ · e ~·;te 
.. ~. ~_ .. _-_. __ .- .. _-.-- ,-_. ~.'_._~ . - - ._- ."-- -
mundo, entre 0 extramundano-ë 0 intramundano, a Encarriaçao do Va/or. 
A rn'ësma -dificüla-éïderênëëti~=s~~~ ~ais tarde 'në- iï1OV imërito-- ièOI'10C~, 
onde talvez tenha sido catalisada por uma influência purilana muçulmana 
(0 sagrado nâo pode ser figurado). Ao mesmo tempo havia claramente no 
arianismo e no iconoclasmo um interesse po!ùico imperial. Mas Peterson 
mostrou que a adopçao do dogma da Santissima Trindade (concilio de Cons-
54 
GtNESE, J 
faclo 0 dobrar a finados pelo monoteismo poli-tantinopla, 381) foi de 
. 1 
tJco . j ct 500 quando a IgreJa~ oficialmente no Impéno 
Por vo ta C, ~ ~ ias io Dt ' . a 1 havia cerca de dois séculos, 0 pap~GelaSiO oduzlu uma teona not ve 
1 fOl mais tarde recolhida da relaçao entre a Igreja e 0 impe ,qua , 
ela tratliçâo e abundantemente uti lizada. ~o entan~o. os mt~rpretes ~Odernos nâo parecem ter prestado inlcifa justJça a GelasIo. Consl~era.sl.! . 
o mais das vezes a sua declaraçao nobre e clara como expondo slmple~­
mente a justaposiçao e a cooperaçâo dos dois poderes, ou,. coma cu pro-
prio prefiro dizer, das duas ent idadcs ou . funçôes. Admlte-se de certc 
modo que contém um elemento de hierarqUla, mas como os modernos :e 
a· vontade nessa dimensâo apresentam-na mal ou nao sentem pouco . . 
logram ver todo 0 seu alcance. Pelo contrârio, a persp~tlva com.pa:atlva 
que é a nos sa deve permitir-nos restaurar a estrutura 16gIca e a dlgmdade 
da teoria de Gelasio. l 
A sua declaraçào encontra-se contida e~ dois tex;~s que se comp etam. 
o papa diz nu ma carta ao imperador (Epistola 12) . 
Ha principal mente duas coisas, Augusto Imper~?~~~ pe.las quai~ .~ste 
mun-do .é -governado: a aut~~lq~.~~s~gr_a~~(dës p6Etlfl~~.~S. 0 poder rc~~. 
_._--_ .. ~----~_. cto'le·-s··-c~~regam um fardo tanto mais pesado quanto 
Destas os sacer ·· ·b 1 
-ct .-:..·-star·ëërrtas ao Senhor pelos proprios reis perante 0 tn una ~ evem pre -~-- .. _. - . b' a cabeça sub-- --- (E um poüêû- mais adiante:) Devels alxar um .. QIVmo... . ' . :-;-·---~·~ct· -j--qtiê:>aeveis ret e-mlssa la . ., ._ . .. ,. __ .. - . . f ( . _ .... ~' ct' nte dos ministros das COlsas dIV mas e ... e e. es .la . 
'bê-r-os -meios aavôs~a -salvaçâ~. . , <;IJ b" <t V\.() jLI.> *:<::ru. 0-.-: ;.~ ~. 
- ~A- eferência sai~~âo· dica c1aramente que se trat~ a?ui ~o nivel i'} '-J.,~ ~ 
r ultimo sideraçâo. Notemos a distinçào hIerarqUica ent~e 
supremo ou . d . d m breve comenta-
a auctoritas do sacerdote e a poleSlQS do rct: epols e u 
rio, Gelasio continua : 
Na~ coisa,s r efç(entes à disciplina _ ~ublica , ~s chefes rel.ig~osos com- _. 
preendem ' que a pader imperial vos foi confendo pelo. Alusslmo, c ~:;~>.-_. 
pr6prios obedeccrâo às vossas leis, receando parecer Ir contra a VG~ • 
vontade nos assuntOS do mu ndo. 
1 E ik Peterson «Der Monothcismus ais po litÎsches ProbleOl», T"eoJo8i;ch~ Trot.tale. 
. ' 1951 '25.147 Leach estabelcceu a ligaçào entre arianisOl <- C ml1enan smo Mumque, ' pp. . 
(d. acima, n. 10). . ( f n 22). A traduçâo 
2 Os tcxtos de Gelàsio sao extraidos de Carlyle, op. Clf. mas c . . 
seguc prcfcrcncialmcnl c a de Dvornik , op. ci!. , pp. 804·805. 
55 
'. 
ENSAIOS SOBRE 0 INDIVIDU-1USMO 
o sacerdOlC fica por conseguÎme subordinado ao rei nos assunlos mun-
danof qûe dizem respeito à ordem publica. 0 que os comentadores moder-
nos nâo conseguem ver par completo é que 0 nivel de consideraçâo se deslo-
cou das allura\ da salvaçào para a baixeza das coisas deste mundo. 
Os sacerdoles sào' superiores, porque so sào inferiores a uro nivel também 
\ù~· :., i~feriô~r. Nào ~st~mos pera~le uma sïrriples«èôï-reJaçacm (Morr{son) ou uma 
.,\~\ :: sWlplessubmlssao _do$ J~I S aos sacerdoles (Vllmann), mas perante uma 
.. complementaridade hierdrquica '. -" 
............ ~Acontece que encont rei a mes~a configuraçào na India an tiga, védica. 
,?, , 
Ai, os sacerdotes viam-se coma religiosamente ou absolutamente superiores 
ao rei, mas mate rialmente a cie submetidos 2• Se os terrnos sao diferentes, a 
disposiçâo é exactamente a mesma que cm Gelâsio. 0 facto surpreende, 
dadas as diferenças importantes entre os panos de fundo correspondentes. 
Do lado indiano, os fïéi s nao formavam um corpo unido, 0 sacerdocio nao 
estava organizado de modo unilârio, e acima de tudo nao estavam em causa 
individuos. (0 renuncianle, de que falei acima, ainda nao aparecera.) Pode-
-se chegar à suposiçao audaciosa de que a forma comum, a configuraçào 
em causa é muito simpJesmente a formula logica da relaçâo das duas fun-
çôes. 
o outro texto principal de Gelâsio encontra-se num tratado, De Anathe-
matis Villculo. 0 seu principal Interesse para nos esta na explicaçao da dife-
renciaçâo das duas fun çôes enquanto instituida por Cristo. Antes dele, 
«existiam de faclo - embora num sentido pré-figurativo - homens que 
foram ao mesmo tempo reis e sacerdOleS~), e foi ele, Cristo, que «tendo cm 
vista a fragilidade humana ... separou os oficios dos dois poderes) por mcio 
de funçôcs e de dignidades distintivas ... na intcnçâo de que a sua propria 
(gente) fosse salva por uma salular humildade ... ». Apenas 0 demonio imi-
~~u a mistura pré·crislà das duas funçôes, de tal maneira que, diz Gelasio, 
houvc «imperadores pagâos [queJ se fizeram nomcar pontifiees sagrados.» 
Pode ser que haja aqui uma alusao ao que continuava a subsîstir de realeza 
·sacral cm Bizâncio. Quanta ao reSlo, ~ possivel ver-se neste texto uma hipON 
lese inteiramente plausivel sobre a evôluçao das instituiçôes. Nao é insensato 
1 Karl F. Morrison. Tradition and Authority ÎII the Western Churcil 300-J/40 Princeton 
Univcrsity Press, 1969, p. 101·105; Walter Ullmann, The Groll'th of Papal Goverm:/ent in ,he 
Middle A ges, Londres, 1955. p. 20 sq. 
~ «A concepçào da reaJcza na jndia amigan (espccialmcnte §3), liH., ap. C. 
. Neste ponta os textos apresentados pelas nossos autores parcccm (divcrsameme) corrom-
pldos. urnos, corn Schwartz: officia po!eslalis ulriusque (E. Schwartz, «Publizistische Samm-
Jungen», A brandI. der Bayer. Akademie. Philo/-His /or. Abtei/ul1g, N.E JO, Munique, 1934, 
p.14. ). 
56 
. ~., 
i 
. 1 
GÉNESE.I 
para nos supor que a soberania sacral original , por exemplo a do fa ra6 ou 
do impcrador da China, se tcnha em certas culturas diferenciado em duas 
funçoes, conforme aconteceu na Îndia. 
Seria interessante discutir as dificuldades dos comentadores destes lex-
tos. Vejo-me obrigado a fazer uma escolha. Vm auior recente, 0 padre 
Congar l, considera a fôrmula hierâ rq uica autoridade/ poder como pu ra-
mente ocasional; . e d~ facto vim.9J 9.el~~io!_ ~ proposito da diferenciaçào, 
falar apenas dos «dois poderes». Mas a distinçao nao sera a melhor cxpres· 
sao de toda a tese de Gelasio? Por outro Jado, Congar tem cerlamente razào 
ao dizer (p. 256) que aqui a Igreja nao tende para «uma rcalizaçào temporal 
da Cidade de Deus». Como no caso indiano, a hierarquia opôe-se logica-
mente ao poder: nào pretende, como mais tarde fara, transcrever-se ela pro-pria no pIano do poder. Mas eis que Congar sustenta (p. 255-256) que Gela-
sio nao subordina 0 poder imperial ao «podem sacerdotal, mas apenas 0 
imperador aos bispos no que respeita às res divinae, e conclui que sc 0 impe-
rador como crente, estava dentro da Igreja, a prôpria Igreja estava dentro do 
império (sublinhado por Congar). Por mim, defendo que nào lem cabi-
mento introduzirmos aqui uma distinçao entre a funçao e 0 seu agentc, que 
de resto arruinaria a argumentaçao de Gelâsio, e que Carlyle reconhece a 
seu modo ser muitas vezes descurada nas nossas fontes (p. 169).:....~~L 
o Império cul~!!:<;..!!.<? i~p':rado~_~_l~~!!?-~3.~e compreender .Qehisio como 
aiZei1~se a 1 re'a est~!o ~~p~r~~~ as q~~~!_ô.~ _d.o I!'~.~~~' . 
o mper~~~!'tro~.œz)a_12ara a~ ~oisas diV~i!}-_",Em geral, os comen-
racfores parecem aplicar ~ uma proposlçao do an 500 m modo de pensa· 
mento mais tardio e completamente diferente. Re uzem 0 usa estrutural, 
rico, flexivel da oposiçao fundamental para a quaI Carlyle nos chamou a 
atençào a urna questào unidimensional de «ou/ou», a preto e branco. Ora, 
tais formas so apareceram, segundo Caspary, quando, «corn a rtxaçào das 
posiçôes politicas resultantes da controvérsia (das investiduras) e, mais 
ainda, por obra do lento crescirnento dos rnodos de pensameDlO cscohistico 
· ~e. juridico, ·a segunda metade do . ~~culo XII perdeu ess.a espécie de flcxibil!-
,-dade .. -.· e insistiu mais na clareza e nas distinçôes do que nas_ inter-relaçôe~») _ 
(p. 190). 
Estudâmos uma importante f6rmula ideologica. Nao devemos imaginar 
que 0 dizer de Gelâsio tenha resolvido todos os conDitos entre os dois prin-
cipais protagonistas. nem que tenha obtido 0 acordo de todos, duradoura-
mente ou nao. 0 proprio Ge!âsio fora levado à sua decJaraçào por urna crise 
aguda nascida da promulgaçao pelo imperador de uma formula, 0 Henolikoll, 
J Yves-M.-J. Congar, O.P., L'Ecclésiologie du haut Moyen Âge. Paris. Ed. du Cerf, 1%8. 
57 
1 
1 
1 
i 
1 
1 
1 
ENSA/OS SOBRE 0 1.f\'/J/V/ DUALlSMO 
deSlinada a pacificar OS SCus sûbd' .. 
da J r" _ . nos monoflsltas. Em geral, os palriarcas 
g CJ3 orIentaI naD segUJam cegamente ',. d S-[udo 0 mais . . 0 VJgano e ao Pedro, e 3n1es de 
lOS 1 0 lrnperador tll1ha 0 seu proprio ponto de vista na matéria Cef-
raços mostram que cm Bizâ' b" . 
leza sacral helenist ica (cf. acim nCl~ su SlstlU sempre aIgu ma coisa da rea-
::;:::or e 110 !'alàcio imperiat'En~e~;" i:~~r:~r~: ~;:t:n~~r:~6;~:,~e~~ 
" ,;.~.\ . ct SU~S m~?s a sYRrel}13C}'3 ~~pirit ual 30 meSffio tempo que temp0ral 
[en ~-o POT vezes conseguido. Nao 56, antes de Gelas'o J '. ' 
depOls dele, no Ocidente, Carlos Magna e Otao 1 ct l , ustmlano, mas 
mira f - .. ' • ca a um a seu modo assu-
m as unçoes relJglosas supremas como parte integrante do seu reinado. 
d Seria difi:i~ imaginar contradiçâo mais flagrante da doutrina de Gelasio 
E: ~u5e3~7~~lltlca adoP[a~a_ pelo papado a parrir de meados do sécuJo VIII. 
, 0 papa Estevao Il, numa iniciativa sem precedentes abando ~ou Roma, atravessQu os Alpes e foi visitar 0 rei franco Pepino. C~nfirmou~ 
o na sua real~za e deu-lhe 0 titulo de «patricio dos romanos» e 0 papel de 
protector e ahado da Igreja Ro C" 
mana. mquenta anos mais tarde Leào III 
d
coroava ..ICarlos Magno imperador em Sao Pedro de Roma no di~ de Natal 
o ano ;Je 800. ' 
POdemos compreender a parrir da sua situaçào geral como foram os 
papas levados a adoptar uma linha de acçào tao radical D' . 
corn Carlyle, Ih' . . Ir-se-la quase, 
d' que esta. es fOI lm posta pelas circunstâncias. No pIano irne-
lato, podcmos resumlr cm dois POntos 0 que 
;!m a u.m~ si.tuaçào d~ h~milhaçâo. de opressâ~eePda:;e~~g~: ~;;:~:~:e;~: 
m~:o BlzanclO c SUbsUlumdo um protector longinqu~. civilizado mas inc6 
tal • _por um oUl.re mais pr6ximo. mais eficaz. menos civilizado e que PO; 
razao se podefJa esperar mais dôcil. Ao mesmo tempo " 
mudança . . d' • aproveltavam a 
para relvm Icarem a autoridade polftica soberana b 
m
dee Italida., O~ irn
d 
peradores ocidentais poderao mais tarde mo:~ra~~s~~a :e;;ote 
nos Ocels 0 que 0 d • • 
'. espera 0, e, para começar, Carlos Magno via rova velme.nt~ os ~1.r~!1'?s politicos que garantia 30 papa COrno cOnstituind~ ape~ 
nas .\J.ma especle ~~ autonomia sob a sua prôpria supremacia Ar" 
dever na ' ct :Y • Irmou a seu 
, o,so e proteger, mas de dirigir a Igreja. 
Pa ra nos, 0 essencial é 0 facto de os papas se 
Pol't" t' arrogarem uma funçao 1 Ica, COn larme se torna c1aro desde a . ,. S the ' lIllCIO. egundo 0 professor Sou-1 Il comentando 0 paclO P' 
" corn eplOo, «pela primeira vez na histôria 0 ~i:P~ agir~ como urna a~toridade polirica suprema autorizando a transferên-
e po cr para 0 remo franco, e sublinhara 0 seu papei polîtico coma 
su~es~or dos i~p~r~do~es ao dispor de terras imperiais em Itéilia», A a ro-
pnaçao de tcrrHonos Imperiais em Italia nâo " d "" p 
e, e comcço, lOtelramente 
58 
'" 
GENESE. 1 
explicita: a papa obrém de Pepino e mais tarde de Carlos 0 reconhecimemo 
dos ({direitos)) e territ 6rios da «republica dos romanos)), sem distinçào pre-
cisa entre direitos e poderes privados e publicos, mas incluindo no reconhe-
cimenlO em causa 0 Exarcado de Ravena. Nào podemos falar ainda de um 
Estado papal, embora exista uma entidade politica romana. Um faiso docu-
menta, taivez um pouco posterior. a chamada doaçào de Constantino, 
exprime c1a:ramente~ "a pretensao ~pal! Nesse texto, considera-se que ~pri­
meiro imperador crislào, cm 315, transmitiu ao bispo de Roma nâo sô 0 
«pal:kio» de Latrâo, terras patrimoniais extensas e 0 «principado» religioso 
sobre todos os outros bispos, mas também 0 poder imperial sobre a Italia 
romana e as insignias e privilégios imperiais '. 
Do nosso ponto de vista, 0 que aqui importa, cm primeiro lugar, é a 
transformaçào ideolégica que vernos assim iniciar-se e que plenamente se 
desenvolvera mais tarde, de modo por completo independente da sorte reser-
vada de facto à pretensâo papal. Corn a reivindicaçao de um direito inerente 
ao poder politico, é i~qd.!lziq~ uma l1!"l:Id3;~ça<_na~LeJâÇTo7ntre_o div~~. 
. a terreiiô:od~jnoï;;et;nde agora reinar sobre 0 mundo por intermédio da 
Igreja~grerâtôm'â-·~;;;~d~~-~~;n. s.~~~içio ~m q~e 'até entao 0 n?Q.~ra. 
··Os pâpas, por 'meio de lima ·~scolha historica, anularam a formulaçâo /ogica 
par Gelasio da relaçao entre a funçâo religiosa e a funçâo polilica e escolhe-
rarn uma outra relaçào. À diarquia hierarquica de Gelasio substitui-se uma 
monarquia de um tipo sem precedentes, uma monarquia espirituaL Os dois 
dominios ou funçôes sào reunidos e a sua distinçâo é relegada do nivel fun-
damental para um nivel secundario como se diferissem nào em natureza mas 
apenas em grau. É a distinçâ.o entre espiritual e temporal tal coma desde 
entao a conhecemos. e 0 campo unifica-se, de maneira que passamos a 
poder falar de «poderes)} espiritual e temporal. É caracteristico que 0 espiri-
tuai seja co::cebido corno superior ao temporal mesmo 00 nive/ temporal, 
coma se se tratasse de um grau superior de temporal ou, por assim dizer. do 
temporal elevado a urna potência superior. Mais tarde, st!fél segundo este 
:eixo que 0 papa podera 'ser c'oncebido coma «deJegando» 0 poder temporal 
no irnperador camo num seu representa"nte. ;.!~," ... ". 
Ern contraste corn a teoria de GcJasio, a superioridade é aqui acentuada 
à custa da diferença, e assumirei 0 risco de charnar por isso a esta transfor-
maçào uma perversào da hierarquia. Ao mesmo tempo, contudo, alcança-se 
uma coerência de um tipo nova. A nova unificaçào represenla uma transfor-
maçao de uma antiga unidade. Sc tivermos em conta 0 modela arquetipico 
1 RW. Southern, Wesrern Society and Ihe Church in Ihe Middle Ages. Londr~. Penguin 
Books, 1970. p. 60; cf. Peler Panner, The Lands of St. hter, Londres, 1972, pp. 21-23. 
59 
",Cl ,.-

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