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276 UTILIZAÇÃO PEDAGÓGICA DO COMPUTADOR POR PROFESSORES ESTAGIÁRIOS DE MATEMÁTICA – DIFERENÇAS NA PRÁTICA DA SALA DE AULA Nélia Amado FCT da Universidade do Algarve namado@ualg.pt Susana Carreira FCT da Universidade do Algarve e CIEFCUL scarrei@ualg.pt Resumo: O professor e o aluno assumem um papel determinante para uma utilização das tecnologias na aula de matemática consistente com as actuais recomendações do currículo. Ao professor são lançados vários desafios que passam pela preparação de actividades que envolvam activamente os alunos de uma forma a tornar as aprendizagens mais eficazes. Neste estudo apresenta-se e discute-se uma taxonomia composta por três níveis utilização pedagógica do computador na aula de matemática por professores estagiários: como acessório, centrada no professor e centrada no aluno. Introdução As progressivas alterações nos currículos de Matemática têm vindo a atribuir às tecnologias um lugar cada vez mais consistente. Hoje, a calculadora gráfica é de utilização obrigatória no ensino secundário e a utilização do computador é explicitamente recomendada. A tecnologia, se for integrada de forma inteligente com o currículo e articulada com metodologias convenientes, produz ganhos de aprendizagem reais e visíveis (Smith, 2002). Pode não ser possível destrinçar se estes ganhos resultam directamente do uso da tecnologia ou se decorrem da interpretação do currículo e das estratégias de ensino renovadas. Mas, tal como Smith pergunta, será importante querer isolar a origem da melhoria dos resultados? Claro que esta questão não é determinante, sobretudo quando há evidências de que as duas coisas em sintonia produzem melhores resultados de aprendizagem. A este propósito podemos acrescentar que a união entre a resolução de problemas e a utilização das tecnologias tem como vantagem essencial o poder que cada um destes elementos pode acrescentar ao outro; por outras palavras, a tecnologia muda a forma como um problema de Matemática é resolvido e compreendido (ou até formulado) e, ao mesmo tempo, as ideias matemáticas desenvolvem-se mercê das características e capacidades das ferramentas utilizadas (Carreira, 2003). Em suma, os computadores e as situações problemáticas são dois elementos que actuam em reciprocidade como mediadores da actividade dos alunos. 277 Tecnologias na aula de Matemática, porquê e como? Uma das vantagens que advém da utilização das tecnologias no ensino da Matemática, é o facto de permitirem visualizar com grande prontidão. A possibilidade de visualização faz atenuar a necessidade de abstracção e de idealização, tornando as ideias menos herméticas e mais perceptíveis. A visualização matemática é, assim, um processo importante e mesmo fundamental do raciocínio matemático. A integração da visualização no processo de ensino/aprendizagem da Matemática promove a intuição matemática e dá sentido a muitos resultados e processos, além de oferecer um meio de expressão de um grande leque de conteúdos matemáticos. Desta forma, os alunos não apenas aprendem Matemática, quando recorrem a ferramentas tecnológicas, como também aprendem novas formas de pensar e encontram caminhos para desenvolverem a sua própria Matemática. Ao permitirem, não apenas a simplificação dos cálculos mas também a visualização de gráficos, de esquemas e de representações matemáticas, as tecnologias contribuíram para mudar a própria natureza dos problemas que são importantes na Matemática e os métodos que os matemáticos utilizam para os investigar (NCTM, 1991). Estas alterações impelem forçosamente a uma mudança no ensino da Matemática. O acesso à tecnologia permite tornar a Matemática um assunto de laboratório, na medida em que proporciona aos alunos a possibilidade de desenvolver conhecimentos matemáticos que emergem das suas experiências concretas (NCTM, 1994). A tecnologia, ao executar grande parte dos cálculos, permite que o aluno explore uma maior variedade de situações, testemunhando a verdadeira natureza dos processos matemáticos e envolvendo-se em aplicações com dados realistas, em substituição das usuais simplificações destes. Como consequência, os alunos podem melhorar e ampliar significativamente as suas aprendizagens. Hoyles & Noss (2003) sublinham que as tecnologias surgiram para nos aliviar do trabalho mais rotineiro, mais monótono, mais repetitivo e até pouco interessante. Mas ao aliviar-nos deste trabalho, vêm permitir investir em conhecimentos e capacidades de nível superior, tais como saber interpretar um gráfico, fazer conjecturas, ser capaz de relacionar conceitos e utilizá-los, saber analisar criticamente os resultados obtidos, investigar, ser versátil em representações matemáticas diversas. Resistências à introdução das tecnologias Apesar das razões enunciadas para a utilização das tecnologias, existem ainda algumas resistências sobre as quais importa olhar. Os professores continuam a manifestar dificuldade em usar o computador na sala de aula de matemática, apesar da evolução tecnológica que se tem registado ao longo dos últimos anos. O esforço recente para dotar as escolas de computadores e o surgimento de software adequado ao ensino da matemática não parece ter tido a correspondência desejada nas práticas dos professores e, muito menos, na aula de Matemática. A utilização do computador na sala de aula está longe de ser uma prática comum. A mudança do papel do professor e do aluno na aula com tecnologias constitui uma das maiores resistências à sua utilização. Não obstante a utilização das tecnologias 278 mostrar ser algo que agrada aos alunos e os motiva, o professor continua a sentir insegurança em gerir uma aula com tecnologias, por diversas razões. O computador ou a calculadora gráfica incentivam a curiosidade, entusiasmam os alunos na descoberta, originam o surgimento de questões não imaginadas. Tudo isso cria, por vezes, um ambiente de aula com mais movimento, mais ruído, mais dificuldades, mais sobressaltos e receios para o professor. Assim, é hoje amplamente reconhecida a necessidade de os professores serem apoiados por outros colegas nas aulas com tecnologias, como referem diversos autores (Santos, 2000; Almiro, 2005). Santos (2000) faz até a advertência de que uma experiência mal sucedida com o computador na sala de aula pode dar origem a que o professor não volte a tentar. A ideia de que é imperativa uma mudança substancial no papel do professor na sala de aula continua a ser uma recomendação oportuna (Laborde & Perrin-Glorian, 2005). O papel do professor e dos alunos na aula com tecnologias Na aula com tecnologias, o professor deixa de ser o detentor e transmissor incontestável do conhecimento e passa a ser co-aprendente com os seus alunos (Ponte, 2000). A ideia de professor como alguém que teve uma formação superior em determinado momento e que a admitia como suficiente ao longo da sua vida profissional está hoje aniquilada. Não basta que tenha conhecimento das novidades tecnológicas, ele precisa também de aprender a seleccionar as mais adequadas às suas aulas. Em suma, o professor tem de estar atento às mudanças que surgem, tem de aprender a perceber o que é mais adequado às suas práticas e encontrar formas produtivas e viáveis de integrar novos recursos no processo de ensino/aprendizagem da matemática. Tem de estar preparado para aprender continuamente e, muitas vezes, com os seus alunos. Esta nova forma de encarar o papel do professor é talvez uma das maiores dificuldades que se lhe colocam. Nem todos os professores estão preparados para aceitar esta mudança no seu papel. Ponte (2000) considera que a relação professor-aluno pode ser profundamente alterada pela utilização das tecnologias, particularmente, quando elassão usadas com alguma regularidade. Os professores e, em particular os estagiários, sentem alguma dificuldade em lidar com esta modificação que é tendencialmente sentida como fraqueza ou insegurança: chegar perto dos alunos e não saber dar resposta imediata a uma dúvida ou não conhecer exaustivamente o funcionamento de uma determinada ferramenta ainda é para muitos professores um sinal de inferioridade. A utilização das tecnologias conduz frequentemente ao surgimento de situações na aula que não tinham sido pensadas inicialmente, porque a aula deixa de estar totalmente nas mãos do professor e passa a ser também dominada pelo computador e pelo próprio desempenho dos alunos (Santos, 2000). Desta forma, o professor é obrigado a investir fortemente na preparação das suas aulas e o receio de ter de recorrer à improvisação só pode ser aliviado “com grande reforço no que diz respeito à preparação, nomeadamente de uma maior fluência computacional da sua parte e de uma planificação mais detalhada” (Santos, 2000, p.77-78). A utilização das tecnologias na sala de aula veio trazer ao aluno um maior protagonismo na sua própria aprendizagem; de um papel passivo de ouvinte atento do saber do professor, passou a ter um papel activo de participante na construção do seu saber e do saber partilhado na sala de aula. Quando a tecnologia está presente na aula de matemática o aluno tem um campo de experiência no seu horizonte e é nesse ambiente que ele poderá desenvolver conjecturas, testá-las, eventualmente refutá-las e comunicar as suas conclusões (Matos, 1991). A utilização do computador influencia não apenas a 279 forma como a matemática é aprendida mas as concepções dos alunos sobre esta disciplina e sobre o papel que atribuem às próprias ferramentas tecnológicas. Num ambiente marcado pela utilização das tecnologias há uma maior quantidade de exemplos e contra-exemplos, num menor espaço de tempo, os alunos são encorajados a observar e a conjecturar, há a possibilidade de trabalharem com múltiplas representações, há um desenvolvimento de atitudes positivas relativamente à aula de matemática e uma redução da ansiedade e do medo de cometer erros. Um uso mais sistemático das tecnologias na sala de aula tem como consequência que os alunos discutem mais entre si mas a comunicação incide essencialmente na actividade que estão a desenvolver e há menos dispersão por assuntos externos à aula.. O uso de taxonomias para caracterizar o modo de utilização das tecnologias A forma como os professores introduzem as tecnologias na sala de aula tem merecido um olhar atento de vários autores. Pierce e Stacey (2001) consideram que a introdução das tecnologias no ensino e aprendizagem da matemática pode ter lugar a dois níveis: funcional e pedagógico. Embora não clarifiquem o que define cada um destes níveis, a distinção parece estar primordialmente relacionada com o papel dos alunos na aula e com o acesso dos alunos às ferramentas. Na perspectiva funcional, a utilização das tecnologias parece estar confinada ao professor, cabendo aos alunos o papel de meros espectadores. Em contrapartida, será considerado um nível pedagógico aquele que tem lugar num contexto educativo, disciplinar ou não, mas em que há interacção directa do professor e dos alunos com as ferramentas tecnológicas. Com efeito, passar à prática o conceito de tecnologia como ferramenta pedagógica implica aspectos essenciais, tais como repensar os métodos e os propósitos da aprendizagem da matemática, o papel do professor e o papel do aluno, a natureza das actividades a realizar e a gestão do ambiente da aula (Kokol-Voljc, 2003). Por outro lado, a visão da tecnologia como ferramenta educacional não pode ser desligada da forma de uso que emana do próprio instrumento tecnológico. O conceito de ferramenta pedagógica é inseparável do uso que dela se faz. Os computadores e as calculadoras podem ser utilizados como ferramentas pedagógicas quando se verificam simultaneamente três condições cruciais: o tópico, o objectivo e o ser oportuno. Por consequência, o conceito de perspectiva pedagógica está relacionado com o uso da ferramenta e depende de quem a utiliza e da situação da aula em que é utilizada. Galbraith (2002) e Goos (2005) desenvolveram uma taxonomia para a utilização das tecnologias pelos professores de Matemática. No nosso entender, esta taxonomia permite distinguir melhor as várias formas de professores e alunos utilizarem as tecnologias. Estes autores elaboraram um conjunto de metáforas para descreverem como é que as tecnologias podem abrir caminho para incorporar novos papéis no ensino. Assim, quando a utilização da tecnologia não parte da sua própria iniciativa e vontade, mas é uma implementação que surge de uma imposição do sistema educativo, estamos perante uma acção dominadora (technology as master) das tecnologias sobre as práticas do professor. Hoje é exigido aos professores o recurso ao computador para a elaboração de uma grande quantidade de tarefas na escola. Muitos dos professores não se encontravam preparados nem motivados para esta mudança, mas tiveram de encarar e ultrapassar esta dificuldade. Embora esta acção dominadora esteja menos presente na sala de aula, também lá se poderá encontrar. Uma vez que, actualmente, é recomendado o recurso às tecnologias na disciplina de matemática, os professores estagiários, por serem aqueles que têm de abrir as portas da sua sala de aula aos orientadores, podem vir 280 a sofrer esta acção dominadora. A calculadora gráfica é de utilização obrigatória e o computador é amplamente recomendado. Um professor estagiário, mesmo sem vontade genuína, vai procurar responder às expectativas que o rodeiam. O recurso à tecnologia resulta do cumprimento de uma obrigação, num momento específico e determinado. Num segundo nível de utilização, já não predomina a imposição ou a exortação para a utilização das tecnologias. O professor já manifesta atenção e interesse pelos avanços da tecnologia, procura conhecê-los e utilizá-los. Por exemplo, o computador é usado para a elaboração de materiais de apoio e como suporte das suas aulas, nomeadamente através do PowerPoint. Contudo, não existe ainda qualquer mudança nas actividades na sala de aula. Galbraith (2002) e Goos (2005) consideram que esta é uma utilização da tecnologia como uma serva (technology as servant). Estas duas perspectivas parecem encaixar-se no nível funcional, na medida em que não introduzem uma alteração profunda nas actividades na sala de aula nem permitem ao aluno um contacto directo com as ferramentas. São meros observadores dos recursos tecnológicos, embora possam considerar que a aula se tornou mais colorida, mais moderna, com uns adereços fora do tradicional. Ao nível das aprendizagens não há nada de novo – o papel do professor e do aluno no processo de ensino/aprendizagem não se alteram. Isto não quer dizer que não possam surgir situações interessantes mesmo que os alunos não tenham acesso ao computador na aula de matemática; o importante é que as actividades a apresentar aos alunos sejam suficientemente ricas e adequadas para promover aprendizagens. Uma terceira forma de utilização das tecnologias, para Galbraith (2002) e Goos (2005) é a parceria (technology as partner). Esta situação ocorre quando as tecnologias são usadas pontualmente na sala de aula pelo professor e pelos alunos, permitindo-lhes alcançar algum conhecimento que de outra forma seria muito difícil, ou mesmo impossível. Neste caso, os professores desenvolvem uma relação de parceria com as tecnologias, como ferramenta para ajudar a resolver problemas e actividades e como meio de promover aprendizagens. É aqui que reside a grande questão – na natureza das tarefas e na forma como elas são apresentadas aos alunos. Estas devem permitir ao aluno ensaiar,investigar e tirar conclusões. Os professores devem estar conscientes de que não podem enxertar as tecnologias no seu ensino tradicional ou recorrer às tecnologias para resolver exercícios de treino que se resolvem com papel e lápis. De facto, observa-se, com alguma frequência, uma simples transposição de uma actividade de papel e lápis para a aula com tecnologias, levando a resultados pouco satisfatórios. Finalmente, a última forma de utilizar as tecnologias, que estes autores designam por extensão de si próprio (technology as an extension of self), é o nível mais elevado de utilização das tecnologias e, na nossa opinião, aquele que está em consonância com as orientações metodológicas do actual programa de Matemática para o ensino secundário. Esta utilização deve ocorrer num Laboratório de Matemática equipado com computadores, calculadoras gráficas, viewscreen, sensores e, eventualmente, um projector multimédia ou um quadro electrónico. Neste patamar, o uso criativo e eficaz das tecnologias é uma parte integrante do reportório do professor, a par da sua competência pedagógica e do seu conhecimento de Matemática. Neste caso, é muito importante o facto de saber colocar as tecnologias ao serviço da aprendizagem dos seus alunos e de promover a sua capacidade de as utilizarem de forma oportuna, inteligente e crítica. 281 O objectivo do estudo Ao longo dos últimos anos, temos assistido a um esforço no sentido de preparar os futuros professores para uma utilização pedagógica das tecnologias. Thomas & Cooper (2000) afirmam que existe uma grande inconsistência entre aquilo que os futuros professores aprendem sobre tecnologias na sua formação educacional e o trabalho que desenvolvem, mais tarde, na sala de aula. Apesar de se registar uma clara convergência relativamente à importância e à necessidade de dotar os futuros professores de uma preparação adequada à utilização pedagógica das tecnologias, a transposição para as práticas de sala de aula constitui um processo complexo. Daí o interesse e a pertinência de se desenvolverem trabalhos de investigação em torno desta problemática. O presente estudo teve como propósito compreender como é que futuros professores, com uma preparação sólida e consistente para a utilização pedagógica do computador, o fazem quanto chegam à sala de aula, no início da sua prática profissional. Procurou-se responder a várias questões, entre as quais: • Qual a importância e o valor dos seus conhecimentos e da formação adquirida no domínio da utilização pedagógica das tecnologias? • Como é integrado o recurso às tecnologias no processo de ensino/aprendizagem? Metodologia Neste estudo, procura-se descrever e compreender a forma como professores estagiários de matemática implementam as tecnologias na sala de aula. Assumimos o pressuposto teórico de que a realidade é construída através das interacções de cada um no seu mundo social e de que o conhecimento é tanto pessoal como social (Wenger, 1998). Não se pretende medir ou quantificar a utilização das tecnologias nem tão pouco detectar a existência de relações causais entre o uso das tecnologias e determinadas variáveis previamente identificadas. A complexidade do fenómeno em estudo conduz a uma abordagem investigativa que exige a utilização de múltiplas fontes de dados. A diversidade de fontes revela também uma preocupação com a validade interna e a fiabilidade do estudo. Não se procura de modo algum generalizar, mas conhecer em profundidade casos que sejam ricos em informação acerca do fenómeno em estudo. A realidade estudada pela investigação qualitativa não é dada; é, sim, construída por diversos ‘actores’: qual deles será considerado crucial para essa construção é algo que depende da perspectiva teórica assumida no estudo do processo. (Flick, 2005, p.26) O estudo envolveu dois núcleos de estágio de duas escolas secundárias distintas e teve como participantes quatro estagiários, dois por cada núcleo de estágio, assim como as respectivas orientadoras da escola e da universidade (Amado, 2007). Os dados recolhidos incluíram observação de aulas, entrevistas aos estagiários e às orientadoras das escolas, em diferentes momentos do ano lectivo. Foi igualmente feita a recolha documental de materiais produzidos, tanto na preparação como na 282 realização das aulas, e de outros elementos relevantes para o estudo. Os dados aqui analisados constituem uma pequena parcela de todo o material empírico obtido ao longo da investigação que se estendeu durante um ano lectivo. Discussão dos Dados Em seguida, serão apresentadas e analisadas três aulas com recurso ao computador, cada uma delas, apoiada numa proposta de trabalho. Estas aulas reflectem características que permitem ilustrar formas diversas de concretização da perspectiva pedagógica de utilização do computador. As diferenças substanciais identificadas residiram nas actividades propostas e na forma como foram colocadas aos alunos destes professores estagiários. Perante a exiguidade da caracterização da perspectiva pedagógica, tornou-se necessário distinguir e refinar as formas observadas, na prática dos estagiários, de utilização pedagógica das tecnologias. Assim, surgiu a percepção de que a tecnologia, numa perspectiva pedagógica, pode ser encarada de três formas distintas: como acessório, centrada no professor e centrada no aluno. Perspectiva pedagógica I – a equação da circunferência “aparece” Nesta aula, os futuros professores pretendiam levar os seus alunos à descoberta da equação cartesiana da circunferência. A actividade consistia em pedir aos alunos que construíssem circunferências e com a ajuda do Cabri Géomètre obter a sua equação e coordenadas do centro. Trata-se da transposição de uma actividade de papel e lápis para o computador que não parece ter acrescentado nada de novo às aprendizagens dos alunos. Na aula seguinte foi feita a mesma actividade com papel e lápis. A intenção principal da utilização do computador nesta aula era a de levar os alunos a descobrirem, por si mesmos, uma representação analítica de um objecto geométrico, evitando a manipulação algébrica. Os estagiários explicitaram esta ideia da seguinte forma: Nós queríamos que os alunos descobrissem a equação da circunferência. Nós utilizámos o computador porque eles podiam fazer uma série de experiências e chegar à equação sem que nós tivéssemos que escrever no quadro e dizer: esta é a equação de uma circunferência. Eles podiam experimentar e chegar a essa conclusão sozinhos. A equação de circunferência acabou por surgir aos olhos dos alunos, não pela mão da professora, mas pelo Cabri. Na nossa perspectiva, foi omitida uma parte essencial do conhecimento matemático, o saber que podemos chegar a determinados conceitos matemáticos a partir de outros já conhecidos. De uma forma ilusória, o computador terá permitido aos alunos que estes “chegassem” à equação cartesiana da circunferência Esta utilização do computador pode ser vista como a de um servo enganoso no sentido em que exibiu a equação da circunferência mas sem permitir aos alunos perceber ou entender a sua origem. Deste modo, podemos encarar esta utilização do computador como um acessório. 283 Circunferências Recorrendo ao programa CABRI GÉOMÈTRE II, segue os passos seguintes: Selecciona a opção “Mostrar os eixos”. Marca um ponto. Com a opção “Equação e coordenadas”, identifica as coordenadas do ponto. Com a opção “Circunferência”, desenha uma circunferência com centro no ponto que escolheste e raio qualquer. Marca um ponto sobre a circunferência, com a opção “Ponto sobre um objecto”. Com a opção “Distância e comprimento”, calcula a distância do centro ao ponto marcado sobre a circunferência. Pede a equação da circunferência,com a opção “Equação e coordenadas”. Toma nota dessa equação. Com a opção “Ponteiro”, altera a posição do centro, arrastando-o, e verifica as diferentes equações. Que concluis? Com a opção “Ponteiro”, selecciona a circunferência e altera o seu raio. Que concluis? Perspectiva pedagógica II – a área do quadrado em 29 passos Neste caso, estamos perante uma actividade que os alunos não poderiam resolver sem o recurso ao computador; a manipulação é aqui essencial. Para além de se tratar de um problema dinâmico, a situação proposta permite estabelecer conexões entre vários conteúdos estudados ao longo do 10º ano. No entanto, parece existir um excesso de indicações por parte do professor estagiário que condiciona totalmente o caminho a seguir pelos alunos, não lhes dando espaço para pensar e estabelecer a sua própria estratégia para abordar o problema. Importa registar que os alunos estavam habituados a trabalhar com este software desde o início do ano lectivo e que esta situação foi apresentada no final do ano. Uma possível explicação para este encaminhamento da actividade pode estar na forma como era sentido o papel do professor e do aluno no trabalho com as tecnologias. Estes futuros professores pareciam sentir a necessidade de fornecer o caminho aos alunos e de não deixar margem para que surgissem novas situações não previstas. Nos primeiros 20 passos não surgiram novidades relativamente a outras construções feitas com o Cabri em aulas anteriores. Os últimos 9 passos foram aqueles que trouxeram algo de novo para os alunos. A orientação inicial parece ter sido, simultaneamente, excessiva e desnecessária, tendo em conta que os alunos já tinham feito construções semelhantes. Esta actividade poderia ter constituído uma oportunidade para os alunos ensaiarem e investigarem formas de construir a figura dinâmica, usando a sua própria imaginação e a sua compreensão do esquema, em vez de seguirem um percurso definido pela mão da estagiária. No entanto, alguns estagiários, tal como outros professores mais experientes, manifestam esta dificuldade em dar oportunidade aos alunos de criar, de pensar autonomamente, de imaginar, de encontrar um caminho, porventura diferente do pensado pelo professor. Pelas razões apontadas, consideramos que estamos perante uma perspectiva pedagógica centrada no professor. 284 A área do quadrado Recorrendo ao programa CABRI GÉOMÈTRE II, segue os passos seguintes: Nesta actividade precisamos de construir a figura representada acima. Assim, vamos começar por construir o quadrado [ABCD] e, de seguida, construiremos o quadrado [EFGP]. 1) Com a opção Segmento, constrói o segmento [AB]. 2) Agora temos de construir o lado [BC] com o mesmo comprimento do lado [AB]. Para isso utiliza a opção Circunferência e constrói uma circunferência de centro em B e raio [AB]. 3) Utilizando a opção Recta Perpendicular, traça uma perpendicular ao segmento [AB], que passe em B. 4) Determina o ponto de intersecção da circunferência e a perpendicular (opção Pontos de Intersecção), atribuindo-lhe a letra C (opção Rótulo). 5) Com a opção Recta Paralela, faz passar por C uma recta paralela a [AB]. 6) Determina a recta perpendicular a [AB], que passa em A. 7) Atribui ao ponto de intersecção da última recta e a paralela a [AB], a letra D. 8) Traça os segmentos [BC], [CD] e [DA]. 9) Esconde a circunferência e as rectas traçadas anteriormente. Como? - Selecciona a opção Esconder/Mostrar. - Clica sobre os objectos que pretendes esconder. Estes ficarão a tracejado. - Selecciona a opção Ponteiro, para que os objectos escolhidos desapareçam. 10) Marca sobre o segmento [AB], um ponto P, utilizando a opção Ponto sobre Objecto. 11) Determina o comprimento do segmento [AP], com a opção Distância e Comprimento. Como? … … … 22) Preenche a tabela com os diferentes valores que AP e a área tomam quando P se desloca no segmento [AB]. Como? - Selecciona a tabela, com a opção Ponteiro. - Activa a opção Animação e clica sobre o ponto P, mantendo pressionado esse botão e arrasta, um pouco, a mola que surge no ecrã. - Para terminar a animação clica no botão esquerdo do rato ou na tecla Esc do teclado. - Os valores deverão surgir na tabela. Se quiseres visualizar um maior número de registos, aumenta o número de linhas da tabela. 285 23) Traça uma semi-recta com origem em O (eixo das abcissas). 24) Constrói uma recta perpendicular à semi-recta anterior, que contenha o ponto O (eixo das ordenadas). 25) Utiliza a opção Transferência de Medidas, para marcar o comprimento do segmento [AP], no eixo das abcissas, e a área do quadrado [PEFG], no eixo das ordenadas. 26) Atribui aos pontos obtidos no passo anterior as letras Q e R, respectivamente. 27) Por estes pontos traça rectas perpendiculares aos eixos e define S como o ponto de intersecção das perpendiculares. 28) Activa a opção Rasto e clica no ponto S. 29) Anima o ponto P, utilizando a opção Animação. Analisa com cuidado o modelo obtido e responde às questões que se seguem. 1. Entre que valores pode variar o deslocamento do ponto P? 2. O que traduz o gráfico que obtiveste? 3. Quando é que a área é máxima? E quando é que é mínima? Interpreta no contexto do problema. 4. Indica o contradomínio desta função. 5. Define analiticamente a função obtida. Perspectiva pedagógica III Em terceiro lugar, apresentamos um pequeno excerto de uma ficha de trabalho composta por várias actividades para o estudo das secções em sólidos no 10º ano. Este tema é usualmente trabalhado com o recurso a papel e lápis ou materiais manipulativos. No entanto, são reconhecidas as dificuldades sentidas pelos alunos no estudo das secções, mesmo quando lhes são proporcionadas oportunidades para visualizar e manipular os sólidos geométricos e os planos de corte. A utilização de um ambiente de geometria dinâmico é uma oportunidade excelente para promover a manipulação e a visualização das secções. Estes alunos nunca tinham trabalhado com o programa GEOMETRIA e dispuseram apenas de um guião de utilização mas rapidamente se adaptaram e não sentiram dificuldades. Na realização das várias actividades tiveram a possibilidade de escolher a sua própria estratégia, as questões foram surgindo de forma natural ao longo da aula e discutidas com o professor. Os estagiários e os alunos foram parceiros de um mesmo processo de construção de conhecimento, partilharam lado a lado as dúvidas e as dificuldades. Os alunos sentiram que a tecnologia os ajudou a compreender a Matemática, a ganhar confiança e que era uma ferramenta útil na resolução de problemas. Os próprios estagiários mostraram-se agradavelmente surpreendidos com o envolvimento dos seus alunos na realização das actividades e na discussão que estas proporcionaram mesmo para os alunos que habitualmente parecem menos motivados para o trabalho na aula de matemática. Deste modo, expressaram a sua satisfação pelo que observaram: Estou surpreendida, até alguns dos meus alunos mais desinteressados estiveram a trabalhar tão bem como os mais interessados! Nunca os vi assim! Do nosso ponto de vista, a utilização do computador nesta experiência foi interpretada como exemplo de uma perspectiva pedagógica centrada no aluno. 286 Secções Ao longo da execução das actividades desta ficha de trabalho, vamos utilizar o programa GEOMETRIA. Consulta o guião fornecido, que te indica os passos necessários. Actividade I Depois de introduzires um cubo no programa e de acordo com as indicações fornecidas: 1.1. Representa a secção obtida no cubo; 1.2. Classifica e desenha essa secção. a) O plano de corte é o plano DBE. b) O plano de corte é o plano HFB. c) O plano de corte é o plano IJK, sendo:I o ponto médio de [HG]; J o ponto médio de [GF]; K o ponto médio de [FB]. Considerações finais Os quatro professores estagiários envolvidos neste estudo tiveram o mesmo percurso de formação inicial, com uma mesma preparação consistente na utilização das 287 tecnologias, acompanhada de uma discussão sobre as suas potencialidades, possibilidades de utilização e objectivos pedagógicos. Contudo, tal como se tornou evidente nos dados apresentados, a implementação na sala de aula divergiu em muitos aspectos. Este facto não constitui uma surpresa, pois a investigação tem mostrado que não basta a preparação adquirida numa ou em várias disciplinas académicas para que os futuros professores façam uma imediata transferência desse conhecimento para a sala de aula. Adler (1996) argumenta que o conhecimento sobre o ensino – neste caso concreto, sobre a utilização das tecnologias na sala de aula – não pode ser adquirido apenas em disciplinas formais mas passa por uma participação continuada numa comunidade de professores. Uma utilização adequada das tecnologias na sala de aula exige, com efeito, uma aprendizagem através da participação numa prática que não é linear nem imediata. Deste modo, importa continuar a investir na preparação prévia dos futuros professores no âmbito do trabalho com tecnologias mas é necessário estar-se consciente de que existem outros aspectos importantes aos quais é imperioso dar atenção para uma boa implementação das tecnologias no ensino da matemática. A utilização das tecnologias na sala de aula numa perspectiva pedagógica ficou marcada, em cada um dos núcleos, por algumas diferenças que podem ser justificadas ou explicadas pelas próprias formas de encarar a matemática, o ensino/aprendizagem desta disciplina e, particularmente, pelo modo como os estagiários vêem o papel do professor e do aluno na sala de aula. Estes estagiários partilhavam a vontade e o desejo de levar os seus alunos a gostar de Matemática e a interessarem-se por esta disciplina, contudo, parecem ter ideias diferentes de como fazê-lo. Um deles, grande defensor e excelente utilizador das tecnologias, numa perspectiva pedagógica, defendia que a escola deve integrar as tecnologias que hoje fazem parte da nossa vida diária, tal como foi dito há mais de duas décadas por Monteiro e outros autores (1985). Mas todos parecem comungar da ideia de que as tecnologias podem ser um meio importante para cativar os alunos e para os levar a gostar mais desta disciplina. Num dos núcleos de estágio sobressaiu uma maior preocupação com as finalidades e objectivos com que integravam o computador na aula de Matemática. Notou-se nas práticas destes dois jovens professores uma perspectiva de utilização do computador muito concordante com as recomendações dadas por vários autores para a utilização desta ferramenta e de uma forma consistente com o currículo. Foi evidente a sua determinação em procurar e pesquisar, de modo a encontrar o software mais adequado a um determinado tópico e o cuidado posto na preparação das tarefas. Foram hábeis na forma como partilharam o seu poder na aula, deixando de arrogar para si o papel central e dando aos seus alunos, com grande naturalidade, uma maior e melhor oportunidade de se envolverem nas aprendizagens. No outro núcleo de estágio, os estagiários colocavam as tecnologias ao mesmo nível de outros materiais didácticos, por exemplo, os objectos manipuláveis. Por outro lado, existiram dois outros aspectos que podem ter contribuído para reduzir a predisposição inicial para a utilização das tecnologias. Foi evidente uma grande apreensão com o comportamento dos alunos e o receio de problemas de indisciplina foi motivo de alguma tensão inicial, que veio todavia a dissipar-se no contacto directo com os alunos. O segundo elemento dissuasor está relacionado com o modo como estes futuros professores encaram o seu papel: o professor é entendido como um sujeito que é detentor de todo o conhecimento e isso leva-os a agir de modo a traçar o caminho que deverá ser seguido pelos alunos e a tentar evitar o surgimento de dúvidas ou divagações. 288 Como se referiu anteriormente, o papel do professor e o papel do aluno, a natureza das actividades a realizar e a gestão do ambiente da aula (Kokol-Voljc, 2003) são três aspectos cuja conjugação é indispensável para se compreender o que significa e em que pode consistir uma perspectiva pedagógica da utilização das tecnologias. Referências Adler, J. (1996). Lave and Wenger’s social practice theory and teaching and learning school mathematics. In L. Puig & A. Gutiérrez (Eds.), Proceedings of the 20th Conference of the International Group of the Psychology of Mathematics Education, Vol. 2, pp. 3-10. University of Valencia, Spain. Almiro, J. (2005). Materiais manipuláveis e tecnologia na sala de aula de Matemática. In GTI – Grupo de Trabalho de Investigação (Org.), O professor e o desenvolvimento curricular, pp. 275-315. Lisboa: APM. Amado, N. (2007). O professor estagiário de matemática e a integração das tecnologias na sala de aula – Relações de mentoring numa constelação de prática. Tese de Doutoramento. APM. Carreira, S. (2003). Problem solving with technology: how it changes students’ mathematical activity. In T. Triandafillidis & K. Hatzikiriakou (Eds.), Proceedings of the 6th International Conference on Technology in Mathematics Teaching, pp. 67-74. University of Thessaly, Volos, Greece. Flick, U. (2002). Métodos Qualitativos na Investigação Científica. Lisboa: Monitor - Projectos e Edições. Galbraith, P. 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