Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
TEORIA GERAL DOS RECURSOS 1- Fundamento, conceito e natureza jurídica Os recursos vão buscar seus fundamentos na necessidade psicológica, ínsita ao homem, de não se conformar perante uma única decisão. E ele incapaz, em regra, de se submeter à imposição de outrem, quando esta lhe pode trazer, de uma ou outra forma, algum gravame ou prejuízo. Além disso, a precariedade dos conhecimentos dos seres humanos pode causar um erro de julgamento e o confiar-se o poder de decidir a apenas uma pessoa possibilita o arbítrio. Por isso, os recursos foram sempre admitidos na história do Direito, em todas as épocas e em todos os povos, O sentido de sua existência é possibilitar o reexame das decisões proferidas no processo. A palavra recurso, aliás, deriva do latim - recursus, us - que significa retrocesso, do verbo recurro, ere - de voltar, retornar, retroceder. Seus fundamentos são, portanto, a necessidade psicológica do vencido, a falibilidade humana do julgador e as razões históricas do próprio Direito. A existência dos recursos tem sua base jurídica no próprio texto constitucional, quando este organiza o Poder Judiciário em duplo grau com a atribuição primordialmente recursal dos Tribunais. O princípio do duplo grau de jurisdição dá maior certeza à aplicação do Direito, com a proteção ou restauração do direito porventura violado e é por isso que se encontra assente nas legislações. Um segundo exame da relação jurídica Posta em litígio é necessário para uma justa composição do conflito de interesses. O que se busca, em verdade, outra coisa não é senão a efetiva garantia da proteção jurisdicional.' Se não houver recursos, a incerteza cessará com a decisão única, mas haverá o risco de consagrar-se uma injustiça. aí a orientação maleável seguida pelo Direito: ensejar um ou mais recursos, mas considerar que, esgotados os concedidos por lei, a Causa está julgada, pelo menos naquele processo. E. Magalhães Noronha define o recurso como "a providência legal imposta ao juiz Ou concedida à parte interessada, objetivando nova apreciação da decisão ou situação Processual, com o fim de corrigi- Ia, modificá- la ou confirmá- la". Mais sucintamente, Fernando da Costa Tourinho Filho ensina que recurso "nada mais é do que o reexame de uma decisão". Seu fim, em regra, é sanar os defeitos substanciais da decisão, ou seja, suas injustiças decorrentes da má apreciação da prova, bem como da errônea interpretação das pretensões da parte ou dos fatos e das circunstâncias. Sendo o recurso matéria de ordem pública, envolvendo interesse público, atende a interesses não só do indivíduo, como da própria sociedade, não sendo possível ter sua ordem alterada por convenção ou acordo entre as partes. A natureza jurídica do recurso está sujeita a discussões doutrinárias, mas pode ele ser encarado de várias maneiras, como diz Hélio Tornaghi: a) como desdobramento do direito de ação que vinha sendo exercido até a decisão proferida; b) como ação nova dentro do mesmo processo; c) como qualquer meio destinado a obter a "reforma" da decisão, quer se trate de ação como nos recursos voluntários, quer se cogite de provocação da instância superior pelo juiz que proferiu a decisão, como nos recursos de ofício? 2- Pressupostos e requisitos Assim como a ação, o recurso está sujeito a determinados pressupostos processuais. São comuns a todos os recursos os pressupostos de: a) previsão legal; b) forma prescrita em lei; c) tempestividade. Para ser interposto, um recurso deve estar previsto em lei e, também, ser adequado à decisão que se quer impugnar, embora se admita eventualmente a interposição de um por outro no fenômeno da fungibilidade (item 19. 1.10). Regem-se os recursos, quanto à admissibilidade, pela lei vigente ao tempo em que a decisão recorrida é proferida. Em tese, a lei prevê para cada decisão o recurso cabível. Mas não há limitação genérica na lei para a unicidade de recurso e o lesado poderá impetrar dois deles desde que sejam adequados à decisão proferida. É o que ocorre, por exemplo, quando se trata de protesto por novo júri e apelação por crime conexo; com a interposição simultânea de apelação e pedido de habeas corpus etc. Assim, o denominado princípio da unirrecorribilidade das decisões é mitigado pelas exceções legais e também pelo da variabilidade dos recursos, que permite desistir-se de um para interpor outro, se no prazo. Interpondo o recurso previsto em lei e adequado à espécie, deve o recorrente, ainda, obedecer às formalidades que as normas legais impõem à impetração, além de observar o prazo por ela fixado, o que se denomina tempestividade. Além desses pressupostos gerais existem requisitos próprios de cada recurso, como será visto oportunamente. Para que o recurso possa ser examinado pelo juízo ou tribunal ad quem é necessário que se cumpram todos os seus pressupostos, que são as exigências legais para que seja ele conhecido. Para Vicente Greco Filho, numa classificação própria, existem os pressupostos objetivos (cabimento, adequação, tempestividade, regularidade procedimental e inexistência de fato impeditivo ou extintivo) e os subjetivos (sucumbência e legitimidade para recorrer). São fatos impeditivos a renúncia e o não-recolhimento à prisão nos casos em que a lei exige e fatos extintivos a desistência e a deserção. Sendo o recurso conhecido, no chamado juízo de admissibilidade, é provido ou improvido pelo órgão julgador de segundo grau. Assim, um recurso pode ser conhecido (quando presentes os pressupostos exigidos) ou não-conhecido (quando ausente um ou mais dos pressupostos exigidos) e, se conhecido, pode ser provido (reformando-se a decisão no todo ou em parte) ou improvido (mantendo-se a decisão). 3- Interposição Dispõe o artigo 578 que "o recurso será interposto por petição ou por termo nos autos, assinado pelo recorrente ou por seu representante". Há casos, porém, em que a petição é instrumento privativo, ou único, do recurso, como no extraordinário (art. 633), no habeas corpus (art. 654, parágrafo único) etc. Não há obrigação alguma que determine ao recorrente, no ato da interposição da petição ou termo, de dar seus motivos para a interposição, bastando que declare sua inconformidade com a sentença. A motivação será exposta nas razões do recurso. A petição de interposição de recurso, com o despacho do juiz, será, até o dia seguinte ao último do prazo, entregue ao escrivão, que certificará no termo da juntada a data da entrega (art. 578, § 22). Anote-se, ainda que, segundo o artigo 799, o escrivão deve executar os atos determinados em lei ou ordenados pelo juiz dentro do prazo de dois dias, sob pena de multa de cem cruzeiros a mil cruzeiros, e, na reincidência, de suspensão até trinta dias. Quanto ao termo, diz a lei que, "não sabendo ou não podendo o réu assinar o nome, o termo será assinado por alguém, a seu rogo, na presença de duas testemunhas" (art. 578, § 12). Tem-se admitido como termo, com razão, o desejo manifestado pela parte, no julgamento pelo júri, constante da ata, assinada pelo recorrente.3 Mas já se decidiu que a interposição verbal na ata dos trabalhos, na falta do respectivo termo nos autos, não é forma de interposição. Tratando-se de termo, o escrivão, sob pena de suspensão por dez a trinta dias, deve fazer conclusos os autos ao juiz, até o dia seguinte ao último do prazo. É o que determina o artigo 578, § 3º. A lei exige que o recurso seja interposto por petição ou termo nos autos para que fique, de maneira inequívoca, assegurado o direito que tem a parte de recorrer. Assim, essa disposição não pode ser interpretada de forma literal, sendo inexigível uma forma sacramentalpara a interposição do recurso. Se a parte, de outra forma, demonstra inequivocamente seu inconformismo com a decisão, nada obsta que o recurso seja recebido mesmo sem o cumprimento daquelas formalidades. Assim se tem entendido na jurisprudência, admitindo-se recurso por cota nos autos, por meio de anotação aposta ao lado do carimbo de "ciência", por ter a parte escrito "apelo" no mandado de intimação, por ter lançado ao lado do termo de renúncia a expressão "inocente", por sua declaração oral no ato da intimação, pelo pedido de vista dos autos para recurso; por pedir absolvição ao formular contra-razões etc. É que, no processo penal, em atenção ao princípio constitucional da ampla defesa, não se pode levar o formalismo exagerado ao extremo de não se admitir o recurso apenas porque dessa manifestação não consta, expres samente, as palavras sacramentais exigíveis pela boa técnica processual. Ademais, a formalização do propósito de recorrer é tarefa da máquina judiciária, não podendo decorrer efeitos desfavoráveis ao sentenciado de eventual omissão cartorária. Embora a lei se refira à "petição", nada impede que o recurso seja interposto por meio de telex ou fax, ao menos por analogia com o artigo 374 do Código do Processo Civil. Entretanto, por força desse dispositivo, é necessário que o original constante da estação expedidora seja autenticado, o que implica a assinatura do remetente e o reconhecimento de sua firma. Havendo erro no endereçamento do recurso, quanto ao juízo ou tribunal, deve aquele a que foi endereçado (juiz ou relator) remetê-lo ao competente para apreciá- lo. 4- Tempestividade Só pode ser conhecido e, portanto, julgado, o recurso tempestivo, ou seja, aquele interposto no prazo legal. Determina a lei casuisticamente o prazo para a interposição de cada recurso, devendo-se obediência ainda às prescrições estabelecidas pelo artigo 798 do CPP e, eventualmente, pelas leis especiais. De acordo com o artigo 798, § 59, salvo os casos expressos, os prazos dos recursos correm: a) da intimação; b) da audiência ou sessão em que for proferida a decisão, se a ela estiver presente a parte; e c) do dia em que a parte manifestar nos autos ciência inequívoca da sentença ou despacho (item 21.2.3). Recorde-se que a intimação da sentença apresenta requisitos especiais (itens 13.2.2, 14.4.3 e 14.4.4) e que o prazo é contado do dia da intimação e não da juntada do respectivo mandado aos autos, exceção da carta precatória, caso em que se conta da anexação do precatório. Não serão prejudicados os recursos que, por erro, falta ou omissão dos funcionários, não tiverem seguimento ou não forem apresentados dentro do prazo (art. 575). A exigência do artigo 578, § 2º, de que a petição, "com o despacho do juiz", deve ser entregue ao escrivão até o dia seguinte ao último do prazo, tem apenas a finalidade de garantir a seriedade no tempestivo ajuizamento do recurso. Por isso, em consonância com o artigo 575, dispõe a Súmula 428 do STF: "Não fica prejudicada a apelação entregue em cartório no prazo legal, embora despachada tardiamente." A dúvida em torno da tempestividade do recurso apresentado pela defesa soluciona-se a favor do réu para que a instância possa rever a decisão que lhe é desfavorável. Deve-se também levar em conta que a expressão "funcionários" do artigo 575 não se refere exclusivamente aos servidores do Juízo, mas a outros, como, por exemplo, o diretor do estabelecimento penal a quem o réu ou condenado entregou petição de recurso tempestivo. Quanto ao prazo para a interposição de recursos no Superior Tribunal de Justiça, vigora a Súmula nº 216 dessa Corte: "A tempestividade do recurso interposto no Superior Tribunal de Justiça é aferida pelo registro no protocolo da Secretaria e não pela data da entrega na agência do correio." Também se aplica aos recursos a Lei nº 9.800, de 26-5-99, que permite às partes a utilização de sistema de transmissão de dados e imagens tipo fac-símile ou outro similar, para a prática de atos processuais que dependam de petição escrita, desde que os originais sejam entregues em juízo, necessariamente, até cinco dias da data do término do prazo estipulado em lei (v. item 12.1.8). 5- Legitimidade São condições para a interposição de recurso: a) a legitimidade; b) o interesse; c) a possibilidade jurídica. Os dois primeiros são chamados, eventualmente, de pressupostos subjetivos do recurso. Como o recurso é o meio que tem por finalidade restaurar o interesse da parte lesada, é evidente que, ao menos em princípio, só quem foi prejudicado pela decisão pode lançar mão dele (item 19.1.6). Segundo o artigo 577, caput, o recurso pode ser interposto pelo Ministério Público, ou pelo querelante, ou pelo réu, seu procurador ou defensor. Como garantia da ampla defesa, tem-se admitido, inclusive, a interposição por advogado sem procuração, com mandato verbal. Nada obsta, também, o recurso por parte do defensor dativo, mesmo sem a anuência do réu preso ou da Defensoria Pública, ainda que revel o acusado. A relação do artigo 577, aliás, não é exaustiva. É nítida a possibilidade de interposição do recurso pelo curador do acusado, pois de nada adiantaria a exigência da lei em sua nomeação se não se lhe desse capacidade processual para assisti- lo convenientemente, ainda que, eventualmente, contra a sua vontade, Mesmo quando se trata de defensor, tem-se entendido que, apesar da renúncia do réu, seu defensor pode recorrer diante do caráter público da defesa técnica, concebida como ofício de interesse da comunidade e condição necessária da realização do contraditório e do devido processo legal. Pondere-se, contudo, que o direito de renunciar é da parte, não podendo ter seu exercício obstado pela discordância do advogado constituído, e muito menos pelo defensor dativo, a quem não foi concedido poderes expressos para tal, pois a tanto não conduzem as relações derivadas do mandato, nem o princípio da defesa técnica. Admissível é apenas a exigência que se tem prescrito, como garantia de defesa, de que a renúncia ou desistência do acusado seja feita por termo nos autos e assinada por duas testemunhas. A lei confere legitimidade não só às partes e seus representantes, mencionados no artigo 577, caput, mas, excepcionalmente a outras pessoas. A vítima, ou quem legalmente a represente, ou uma das pessoas enumeradas no artigo 31 do CPP, pode apelar, ainda que não tenha se habilitado como assistente, nos processos de competência do Tribunal do Júri (art. 598). Pode ainda recorrer qualquer do povo quanto ao arquivamento de representação na hipótese da Lei n2 1.508, de 19-12-51, que versa sobre contravenções de jogos de azar; nos processos de contravenções florestais (Lei nº 4.771, de 15-9-65); bem como da decisão que inclui ou exclui jurado ria lista geral (art. 439). Tem também direito a recurso o que prestou fiança em favor do acusado na hipótese de decretada sua quebra ou perda (art. 581, VII). Formulando hipótese referente à Lei de Tóxicos, em que o condenado preferisse não apelar quanto à pena de multa aplicada, Luiz Manoel Gomes Júnior sugere, com inteligência, no caso de haver recurso da acusação, a possibilidade de utilização do recurso adesivo no processo penal. 6- Interesse e sucumbência Pressuposto lógico do recurso é a existência de uma decisão. Mas o exercício do direito de recorrer está subordinado à existência de um interesse direto na reforma ou modificação do despacho ou sentença. Tem interesse apenas aquele que teve seu direito lesado pela decisão. É desse interesse que nasce a sucumbência, que "se traduz em lesividade de interesse, gravame, prejuízo, valedizer: a sucumbência nada mais é senão aquela desconformidade entre o que foi pedido e o que foi concedido". A sucumbência pode ser única, se o gravame é de apenas uma das partes, ou múltipla, se atinge vários interesses e é denominada paralela se atinge interesses idênticos (de dois co-réus, p. ex.) e recíproca, se atinge interesses opostos (v.g., da defesa, pela condenação do réu, e da acusação porque o pedido foi julgado procedente apenas em parte, desclassificando-se a infração para delito menos grave). Fala-se, também, em sucumbência direta ou reflexa. Diz-se direta quando atinge uma das partes da relação processual. Quando alcança pessoas que estejam fora da relação processual, ela se diz reflexa. A sucumbência é total quando o pedido é rejeitado integralmente, é parcial quando é atendido apenas em parte. Por tudo isso, o recurso pode abranger a decisão em sua integralidade (pedindo-se absolvição quando o réu foi condenado, ou a condenação nos termos da inicial quando foi absolvido) ou a reforma parcial da sentença (pedindo o acusado a diminuição da pena numa sentença condenatória ou a acusação o reconhecimento de uma qualificadora). Pode ter ainda como objeto um incidente ou pormenor do processo (decisão sobre o pedido de incompetência do juízo, p. ex.), ou a mudança de uma situação processual (pedido de arbitramento de fiança, p. ex.). O prejuízo deve ser resultante da parte dispositiva da decisão, da conclusão da sentença impugnada e não dos seus motivos ou fundamentos. Embora errônea a motivação, se a parte dispositiva da sentença não causa lesão à parte, inexiste interesse para o recurso. Não existe também o interesse no recurso quando o recorrente alega razões que só dizem respeito à outra parte. Assim, não tem o acusado interesse quando recorre contra a absolvição de co-réu ou visando à agravação da pena deste. Também não há interesse quando a decisão impugnada não é suscetível de ocasionar prejuízo ao acusado, como ocorre, por exemplo, na absolvição por falta de provas em ilícito que não pode gerar pedido de indenização,3 na que rejeita embargos declaratórios em sentença absolutória,4 na impronúncia quanto ao delito que lhe é imputado etc. Não pode ser conhecido o recurso, também, quando o recorrente, nas razões, se manifesta de acordo com a decisão recorrida. É hipótese em que a própria parte demonstra, nas razões, sua conformidade com a decisão. Falta ainda interesse na interposição de recurso destinado simplesmente a obter uma declaração de caráter doutrinário, mesmo que seja a pretexto de que poderá valer em outra jurisdição. Segundo a jurisprudência,- havendo discordância entre o réu e seu defensor, que interpôs recurso ou pretende fazê-lo, exige-se que a desistência do acusado seja tomada por termo para que possa prevalecer (item 19.3.5). Quanto ao Ministério Público, sendo patente a desconformidade entre o que foi pedido na denúncia e o que ficou decidido na sentença, tem ele legítimo interesse em recorrer, embora seja ela condenatória. Mas, além disso, como o parquet tem sempre interesse na exata aplicação da lei, de acordo com o artigo 257, mesmo como parte acusatória na ação penal, deve-se-lhe reconhecer o direito de reco rrer em favor do réu. É evidente que, diante do dispositivo citado, o princípio da sucumbência no processo penal não tem, em absoluto, como ocorre no processo civil, o ponto básico orientador e único no instituto dos recursos, a não ser que se amplie seu conceito para considerar lesado o interesse do Estado, representado pelo Ministério Público, pela inexata aplicação da lei. Havendo recurso da defesa com o mesmo objeto que o recurso do Ministério Público em favor do réu, este deve ser considerado prejudicado, prevalecendo o interesse lesado diretamente pela decisão? A amplitude que se deve atribuir ao Ministério Público não vai, entretanto, ao ponto de possibilitar o recurso de nulidade que só à defesa interessa já que, como visto, nenhuma das partes pode alegar nulidade referente à formalidade cuja observância só a parte contrária interesse (art. 565). Há vedação expressa a essa iniciativa. O Ministério Público não pode recorrer no lugar do querelante. Transferido por lei o jus acusationís para o particular na ação privada, falta- lhe o interesse no recurso em prol da acusação. 7- Recurso de ofício Como o recurso objetiva a reforma de uma decisão, deve ficar na dependência da parte sucumbente, ou seja, daquela que foi lesada por ela. Em princípio somente a essa parte deve ser conferida ampla liberdade para interpor à recurso, demonstrando, assim, sua concordância ou não com o pronunciamento jurisdicional. Por isso se fala em recurso voluntário. Evidentemente, pode ser ele interposto também pelo Ministério Público, quer como representante da parte (Estado), quer como custos legís, como já visto (item 19.1.6). É seu direito e dever a interposição quando, como titular da ação penal ou fiscal da lei, discordar da decisão. É um ônus das demais partes, que recorrem se quiserem. Mas a esse princípio, da voluntariedade do recurso, a lei abre exceções, prevendo o denominado recurso de ofício (recurso obrigatório, recurso necessário). Apresenta-se o recurso ex officio como uma providência imposta por lei no sentido do reexame de sentenças e decisões pelos órgãos judiciários superiores, quando versem determinadas matérias e segundo a decisão adotada. Por isso, o recurso de ofício é chamado de recurso anômalo, sendo considerado por muitos como uma extravagância judiciária e arcaica, hoje totalmente desnecessária. São recursos que obrigatoriamente devem ser interpostos pelo juiz, na decisão, não transitando em julgado a sentença em que tiver sido omitido (Súmula 423, do STF). Dispõe, assim, o artigo 574: "Os recursos serão voluntários, excetuando-se os seguintes casos, em que deverão ser interpostos, de ofício, pelo juiz: I - da sentença que conceder habeas corpus; II - da que absolver desde logo o réu com fundamento na existência de circunstância que exclua o crime ou isente o réu da pena, nos termos do art. 411”. Não cabe recurso de ofício da decisão que julga extinta a punibilidade ante a prescrição da ação penal, que não se confunde com a hipótese de absolvição sumária. Por exclusão implícita do artigo 574, não cabe recurso de ofício da decisão que denega o writ. Quanto ao recurso da decisão que concede habeas corpus, não tem ele efeito suspensivo, ex vi do disposto no artigo 584, mas simplesmente devolutivo. Tem efeito suspensivo, porém, o recurso da sentença de absolvição sumária no processo do júri, conforme disposição expressa (art. 411, in fine). Referindo-se ao artigo 411, o artigo 574, II, não tem aplicação quando se trata de absolvição nos processos de competência do juiz singular ou dos processos especiais. Há, porém outras hipóteses de cabimento de recurso de ofício além dos mencionados no artigo 574. São também hipóteses de interposição obrigatória de recurso as de sentenças absolutórias referentes aos crimes contra a economia popular ou a saúde pública bem como os despachos que determinarem o arquivamento dos autos do inquérito policial referentes a esses crimes (art. 72 da Lei nº 1.521, de 26-12-51). Incluem-se nessa regra os crimes referentes à incorporação imobiliária previstos na Lei nº 4.591, de 1964.5 Todavia, referindo-se apenas a "crimes", a lei não inclui na obrigatoriedade o recurso no processo das contravenções contra a economia popular. No que se relaciona com os crimes contra a saúde pública, é jurisprudência pacífica que não cabe o recurso de ofício na s decisões a respeito do comércio clandestino de entorpecentes, embora sejam eles dessa espécie,já que o processo penal a eles relativos está disciplinado integralmente em lei especial (Lei nº 6.368, de 21-10-76). Também são hipóteses de cabimento do recurso de ofício o indeferimento in limine da revisão pelo relator que dará recurso para as Câmaras Reunidas ou para o Tribunal (art. 625, § 39, do CPP) e a decisão que conceder a reabilitação (art. 746 do CPP). Quanto a esta última hipótese, não têm razão os que o consideram abolido pela Lei nº 7.210/84, já que ela não revogou o artigo 746 do Código de Processo Penal, apesar de se encontrar ele no Livro IV deste Estatuto, que trata de execução penal, por serem compatíveis os dispositivos referentes à reabilitação e a Lei de Execução Penal. Tratando-se de recurso de ofício, desnecessário é que seja ele fundamentado, ou seja, o juiz não precisa dizer das razões que o levam a recorrer? Também não se deve intimar as partes para o arrazoarem. Não está a sua interposição sujeita a prazo, podendo o Tribunal tomar dele conhecimento em qualquer momento em que os autos cheguem ao Tribunal, mesmo porque, como já visto, se considera interposto ex lege (Súmula 423, in fine). Diante da Constituição Federal de 1988, que estabelece como função institucional do Ministério Público promover privativamente a ação penal pública, já se entendeu que os dispositivos que obrigam ao recurso ex officio foram revogados. Entendeu-se que a apelação de ofício é forma de iniciativa da ação penal, agora exclusiva do Ministério Público, estando revogadas pelo art. 129, I, da CF, as normas que obrigam os juízes a recorrer.' Como diz, porém, Antonio Scarance Fernandes, não há nas hipóteses legais, nova acusação, nem alteração daquela originariamente oferecida pelo Ministério Público na denúncia, pois o reexame necessário pelo tribunal, assim como ocorre com o recurso voluntário, somente instaura uma nova fase procedimental, não outro processo. 8- Classificações Além da distinção entre recurso voluntário e recurso de ofício, outras classificações são estabelecidas pela doutrina ou pela lei. Assim, quanto às suas fontes informativas, os recursos podem ser constitucionais, ou seja, os previstos pela Constituição Federal e que têm por finalidade levar aos Tribunais Superiores o seu conhecimento ou defender os direitos fundamentais do indivíduo (habeas corpus, mandado de segurança, recurso especial, recurso extraordinário); os legais, os previstos no Código de Processo Penal ou em outras leis processuais especiais; e os regimentais, os instituídos nos regimentos dos tribunais (agravos regimentais, por exemplo). Pelo Código de Processo Penal, os recursos são: a) em sentido estrito; b) apelação; c) protesto por novo júri; d) embargos; e) revisão; f) recurso extraordinário; g) carta testemunhável; h) habeas corpus. Deve ser mencionado, além dos recursos regimentais, o recurso especial, criado pela Constituição Federal de 1988. Há, porém, discussões doutrinárias sobre o protesto por novo júri, embargos de declaração, carta testemunhável, habeas corpus e revisão, que muitos doutrinadores não incluem na categoria de recursos, como será visto. Pelo critério de sua motivação, os recursos classificam-se em ordinários e extraordinários. Os primeiros baseiam-se no mero inconformismo (exs.: apelação, recursos em sentido estrito). Os segundos exigem requisitos próprios (embargos, protesto por novo júri, recurso extraordinário). 9- Juízo de admissibilidade Interposto o recurso, cabe ao órgão jurisdicional a quo verificar sé deve ser ele processado e julgado. O juiz perante o qual é interposto o recurso deve realizar um juízo de sua admissibilidade, verificando se estão presentes, no caso, os pressupostos objetivos e subjetivos da impugnação, isto é, se há previsão legal e adequabilidade, se há tempestividade e se há legitimidade e interesse para recorrer. Mas, o recebimento do recurso pelo juiz a quo não subtrai do Juízo ad quem o exame dos pressupostos da impugnação; se aquele o conhecer, é possível que este não o faça, por entender não estar presente algum dos pressupostos exigíveis na hipótese.' Em regra, portanto, o juízo de admissibilidade do recurso é feito em dois graus, ressalvada a hipótese de recurso para o mesmo órgão julgador. Diante da regra tempus regit actum , os recursos regem-se, quanto à sua admissibilidade, pela lei em vigor ao tempo em que a decisão recorrida é proferida. Satisfeitos todos os pressupostos objetivos e subjetivos, o recurso deve ser recebido, processado e julgado; caso contrário não deve ser recebido ou conhecido. Neste caso, o recorrente passa a ser sucumbente, por lesão a seu direito, podendo lançar mão de outro recurso, se previsto em lei, para afastar a decisão de não conhecimento. Assim ocorre com o recurso em sentido estrito, quando rejeitada a apelação (art. 581, XV), com a carta testemunhável na decisão de não conhecimento do recurso em sentido estrito (art. 639) etc. 10- Fungibilidade Como o recurso é o remédio que atende a necessidade de efetivação da justiça e da exata aplicação do direito e o fundamento do chamado princípio do duplo grau de jurisdição, a parte não deve ficar prejudicada se se equivoca no meio pelo qual deve ser efetuado o reexame da decisão. Há realmente situações em que existem dúvidas na doutrina e na jurisprudência quanto ao recurso adequado a certas situações. Assim, adota-se no processo penal o princípio da fungibilidade dos recursos, colocando-se acima da legitimidade formal o fim a que visa a impugnação. Dispõe o artigo 579, que, "salvo hipótese de má- fé, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro". E assim tem se decidido na jurisprudência, admitindo-se o recurso interposto por outro em caso de evidente equívoco, onde não houver má-fé. Reconhecendo o juiz, desde fogo, a impropriedade do recurso interposto pela parte, deve mandar processá- lo, de acordo com o rito do recurso cabível (art. 579, parágrafo único). Quando o reconhecimento do equívoco ocorrer junto ao Juízo ad quem, este deverá, se for o caso, converter o julgamento em diligência para que se proceda de acordo com o que dispõe a lei a respeito da tramitação do recurso admissível. É necessário observar que a lei limita o princípio da fungibilidade. Não deve ser admitido o recurso se ficar reconhecida a má- fé do recorrente. Não se permite ainda que se conheça do recurso indevido, ainda que no prazo a este concedido, se se esgotou o prazo do recurso devido. Caso contrário, possibilitar-se-ia a fraude daquele que, vendo ter-se esgotado o prazo do recurso adequado, impetrasse outro, cujo prazo ainda não estaria vencido. É de se notar, também, que o erro grosseiro na interposição de recurso inadequado é indicativo de má- fé, não se admitindo prova em contrário, e decidindo-se pelo não-conhecimento da impugnação. Em resumo, o princípio da fungibilidade recursal só tem incidência quando ficar evidente a inexistência de má-fé, tempestividade e equívoco da parte ao impetrar um recurso por outro. 11- Desistência Não há qualquer dúvida de que o acusado pode renunciar ou desistir do recurso, sendo a renúncia e a desistência de caráter irrevogável. Mas já se tem exigido cautelas quando a renúncia parte do próprio réu, que deveria formalizá- la em termo próprio ou perante o próprio juízo. Exige-se poderes especiais do procurador para a apresentação do pedido de desistência do recurso. Na inexistência de obstáculo legal, a desistência é cabível em qualquer momento durante a tramitação do recurso, mesmo depois de apresentado o relatório. O Ministério Público, porém, não pode desistir de recurso que haja interposto.É o que dispõe o artigo 576. Embora alguns se insurjam contra o dispositivo, argumentando que teria ele sentido apenas na legislação que adota o sistema de recurso obrigatório, a impossibilidade de desistência decorre da indisponibilidade da ação penal pública por parte do parquet, justificando também a indisponibilidade de prosseguir com o recurso já interposto. Além disso, há uma presunção de que o acusador público, após considerar a decisão, achou ser caso de recurso porque não concordou com a solução dada pelo juiz e, mesmo havendo dúvida quanto a ela, deve prevalecer a posição pro societate assumida quando da interposição. Interposto o recurso pelo órgão oficial, deve ser apreciado pelo Juízo ad quem, não transitando em julgado a decisão enquanto não for ele objeto de julgamento na superior instância. Pelas mesmas razões e com fundamento nos artigos 576, 578, 599 e 601, se tem entendido que, nem mesmo nas razões pode o Ministério Público restringir o âmbito do seu recurso, o que importaria em desistência parcial. 12- Efeitos Pode o recurso produzir diferentes efeitos, conforme sua natureza ou disposição legal. São eles os efeitos devolutivo, suspensivo, extensivo e regressivo. O efeito devolutivo, em sentido amplo, é comum a todos os recursos, ou seja, em todos há a transferência para a instância superior (eventualmente da mesma instância, como na hipótese de embargos declaratórios) do conhecimento de determinada questão. É a devolução ao órgão jurisdicional para o reexame da matéria objeto da decisão. Essa afirmação, entretanto, encontra limites em certas hipóteses, diante do princípio acusatório adotado no processo penal, como, por exemplo, na impossibilidade da reformatio in pejus (item 19.3.13). Em sentido estrito, efeito devolutivo só existe nos recursos em que se reexamina o mérito, como na apelação e na revisão, e não nos demais, em que pode ser examinada apenas uma questão processual. Pelo efeito suspensivo, o recurso funciona como condição suspensiva da eficácia da decisão, que não pode ser executada até que ocorra o seu julgamento. A lei deve prever expressamente as hipóteses em que ocorre tal efeito; no seu silêncio, o recurso não impede a eficácia da decisão recorrida. O efeito extensivo está previsto no artigo 580: "No caso de concurso de agentes (Código Penal, art. 25), a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros." Ressalvando que o dispositivo que trata do concurso de agentes é, agora, o artigo 29 do Código Penal, dispõe o artigo 580 sobre providência que visa evitar, tanto quanto possível, decisões iníquas ou contraditórias, por não ter o co-réu, também lesado com a decisão, dela recorrido, beneficiando-se com o julgamento apenas aquele que o fez. Não haveria sentido em manter-se a condenação de um co-réu quando, para outro, se decidiu no recurso que não há prova do fato criminoso; de manter a condenação por furto praticado durante o repouso noturno, quando para o co-réu ficou reconhecido que o crime não ocorreu em tal situação temporal; de manter-se a prisão de um quando se revelou que a prisão em flagrante do co-réu, detido nas mesmas circunstâncias, era irregular etc. O reconhecimento de uma causa extintiva da punibilidade comunicável (renúncia ao direito de queixa ou representação, casamento da vítima com o co-réu em determinados crimes contra os costumes etc.) também se estende aos co-réus não recorrentes. Mas, como deixa claro o dispositivo, a decisão em favor de um réu só poderá ser estendida a outro se forem idênticas as situações de ambos no mesmo processo. Não havendo situação pessoal idêntica entre o recorrente e o co-réu, não é possível o benefício da extensão.2 A atenuação da pena de um, por circunstância subjetiva, como de ser menor de 21 anos, de ter praticado o crime em virtude de violenta emoção, logo após injusta provocação da vítima etc., não é estendida ao co-réu que a ela não faz jus; a concessão da liberdade provisória a um co-réu por ser primário e de bons antecedentes não alcança o outro, que é reincidente etc. Não há por que se limitar o princípio extensivo à apelação, já que o artigo 580 é regra geral, aplicável a todos os co-réus que estejam em situação idêntica. Cabe, assim, na revisão e no pedido de habeas corpus? Fala-se, por fim, no efeito regressivo, (ou iterativo, ou diferido), que é o juízo de retratação possibilitado ao prolator da decisão, que pode alterá-la ou revogá-la inteiramente, quando se trata de determinadas impugnações, como no caso de recurso em sentido estrito (art. 589). 13- Extinção Os recursos podem ser extintos antes de seu julgamento pelo juízo ou tribunal ad quem, se ocorrem certos fatos que a lei dá caráter de força extintiva. A primeira delas é a deserção, que ocorre pela falta de preparo ou pagamento das despesas exigidas por lei (art. 806, § 22) e em decorrência da fuga do condenado depois de haver apelado (art. 595). De notar-se, nesta hipótese, que a deserção somente ocorre quando o condenado foge após ter interposto o recurso e não quando a prisão é determinada após a interposição. É também causa de extinção a desistência, faculdade concedida ao réu, seu defensor e curador, ao querelante e ao assistente. Não, porém, ao Ministério Público, como já visto (item 19.1.11).
Compartilhar