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REVISÕES & ENSAIOS ENCEFALOPATIA BILIRRUBÍNICA JOSÉ LAURO ARAÚJO RAMOS Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 1 Diretor do Serviço de Pediatria Neonatal. Aceito para publicação em 30 de agosto de 1978. É o nome com que se designa a deposição de bilírrubina em várias partes do encéfalo (principalmente nos núcleos da base) e o conjunto de alterações patológicas que acompanha a deposição do pigmento. Esse quadro instala-se somente em indivíduos ictéricos à custa de bilirrubina não-conjugada, e quase que exclusivamente nos primeiros dias de vida, Por extensão, o quadro clínico que se associa a esses achados anátomo-patológicos é também chamado de encefalo- patía bilirrubínica (EB). Kernicterus32 e ictericia nuclear são duas outras denominações clássicas para o quadro anátomo-pa- tológico e, por extensão, para o quadro clínico, A existência da EB tem sido o motivo principal do grande interesse que sempre despertou nos neonatologistas e imu- noematologistas, entre outros, o estudo da patogenia da icteri- cia do recém-nascido e da doença hemolítica perinatal Alguns aspectos merecem destaque no estudo da EB, Sa- be-se hoje que a presença de bilirrubina livre na plasma é in- dispensável para a produção da encefalopatía, e que a medida de nível de bilirrubina não conjugada no plasma não é sufi- ciente para que se possa avaliar o risco imediato de EB. O pa- pel da hipoxia, da imaturidade, da hipoproteinemia, das possí- veis peculiaridades da barreira hematoencefálica no recém- nato parecem ser extremamente importantes por modificarem intensamente o risco conferido por um determinado nível de bilirrubinemia. Não é raro que a necropsia revele EB em um recém-nato de peso muito baixo que sequer havia sido consi- derado merecedor de uma dosagem de bilirrubina. Esses aspectos, entre outros, serão discutidos no presen te artigo, Incidência É extremamente variável, segundo os dados da literatura. Um dos pontos que dificulta a exata avaliação da incidência de EB é a diversidade dos critérios que regem a apresentação das casuísticas. Podemos, no entanto, agrupando os critérios, apresentar a seguinte relação, em que a maioria dos dados é retirada de Lardinois 20, INCIDÊNCIA DE EB A — Em necropsias de prematuros AIDIN (1950) 19,1% (em 172 necropsias) BAKKER (1954) 24,3% (em 144 necropsias) HOTTINGER (1957) 22,0% (n.° não mencionado) GREWAR (1961) 2,6% (em 223 necropsias) B — Em necropsias de recém-nascidos em geral HOSPITAL DAS CLÍNICAS DA FMUSP * 1964-65 1,80% (em 274 necropsias) 1966-68 3,78% (em 264 necropsias de nascidos fora do Hospital e recebidos na Unidade de re- cém-nascidos exter- nos) C — Em uma população de recém-nascidos ictéricos VERGER (1955) 0,55% MORES (1959) 2,3% D — Entre prematuros de menos de 2.000g CROSSE (1955) 4,1% ROSSIER (1957) 2,0% Em que pese a diversidade de critérios, a diferença exis- tente na incidência entre os Serviços de recém-nascidos é de difícil explicação. As diferenças na rotina de assistência, especialmente de recém-nascidos de baixo peso, é tida como responsável, sendo, porém, obscuros os mecanismos dessa correlação. Os critérios usados para exsanguíneo-transfusão, a rotina de alimentação, a monitoração e tratamento das altera- ções metabólicas possivelmente influem na incidência de EB. Patologia . Na fase aguda as leptomeninges estão coradas em amare- lo, e o encéfalo pode mostrar também coloração amarela difu- sa. Cortes frontais do encéfalo mostram algumas áreas mais coradas que outras. Claireaux8, examinando 35 casos de Ker- nicterus, mostrou que os gânglios da base, o cerebelo, o hipo- campo, o bulbo e os núcleos subtalâmicos, pela ordem, são os locais mais freqüentemente envolvidos (tabela 1). * Dados fornecidos pelo Serviço de Arquivo Médico e Estatística do Hospital das Clínicas da FMUSP, Na fase crônica o aspecto do encéfalo é normal ao exame externo e, em geral, não existe mais pigmentação. Histológica- mente, na fase aguda, verifica-se que o pigmento é encontrado dentro dos neurônios e na micrologia vizinha, nas meninges e no plexo coróide. Os neurônios apresentam certo grau de cromatólise e alterações de forma do núcleo. Na fase crônica, encontram-se áreas de necrose, com perda acentuada de neu- rônios, proliferação da glia e desmielinização. Patogenia PAPEL DA BILIRRUBINA A existência de hiperbilirrubinemia, com aumento de bilir- rubina não-conjugada no plasma é fator indispensável para a instalação de EB. De maneira geral, a probabilidade de instala- ção de EB em um recém-nascido é diretamente proporcional à sua taxa plasmática de bilirrubina não-conjugada. Na verdade, pode-se ser mais preciso e afirmar que a probabilidade de EB é diretamente proporcional à quantidade de bilirrubina não- conjugada que existe livre, em sua forma não-ligada a albúmina. Essa fração, que é capaz de difundir, através da membrana, para dentro das células do sistema nervoso central, é que pode depositar-se e causar a coloração amarela dos tecidos. Pode- se dizer atualmente que todos ou quase todos os fatores coad- juvantes da EB .agem aumentando ou tornando presente no plasma essa fração livre de bilirrubina. Tempo de ação e reversibilidade — O tempo pelo qual um nível crítico de bilirrubinemia age sobre o sistema nervoso cen- tral é, muito provavelmente, importante, supondo-se que um nível crítico por tempo prolongado seja mais nocivo do que uma ação por tempo curto. A possibilidade de alguns efeitos tóxicos de bilirrubinemia serem reversíveis, ao menos em par- te, sob a ação de algum procedimento (por exemplo, a exsan- güíneo-transfusão) é discutível e mesmo problemática. Há da- dos experimentais como os de Diamond 12, que conseguiu re- mover bilirrubina do encéfalo de animais injetando nos mesmos albúmina humana, com conseqüente redução da mortalidade e da neurotoxicidade. Esses dados poderão reformular algumas opiniões encontradas na literatura, de que a ação da bilirru- bina é do tipo "tudo ou nada", ou seja, ou não há lesão, ou já há lesão irreversível. Na espécie humana, não há dados que apoiem a reversibilidade dos efeitos tóxicos da bilirru- bina. Porém Ackerman & edis.1 relatam o desaparecimento de alguns sinais neurológicos em seus casos, após exsangüíneo- transfusão, o que não impediu a instalação de seqüelas irre- versíveis. Obviamente, não nos é possível saber da possibili- dade de sobrevida ou da restituição da função cerebral se o pigmento se encontra dentro da célula em condições compa- ráveis às encontradas em necropsias. Mesmo uma especula- ção deste tipo pode merecer críticas no sentido de que parece não haver um só tipo" de ação nociva da bilirrubina sobre a célula, e diferentes tipos de ação podem ocorrer a diferentes níveis de bilirrubinemia. A nosso ver, os achados de Diamond poderiam permitir um outro tipo de especulação, ou seja: a possibilidade de se conseguir retirar bilirrubina da célula do sistema nervoso central pela ação de albúmina, não implica necessariamente que a lesão celular já não se tenha caracte- rizado, lesão essa que seria mais grave, presumivelmente, se o pigmento não fosse removido. Papel dos níveis de bilirrubina — Classicamente, os níveis de bilirrubina considerados "perigosos" estão em torno de 20 mg/100 ml para recém-nascidos a termo e 18 mg/100 ml para prematuros ou recém-nascidos de baixo peso. Esses níveis da- tam dos trabalhos iniciais de Mollison & Cutbush, Vaughn & Hsia citados por Ramos29 e tirados da experiência clínica, ou seja, da correlação entre níveis de bilirrubinemia e incidência de EB, em casos de doença hemolítica perinatal. A descoberta posterior da importância da ligação albumina-bilirrubina no plas- ma veio dar algum apoio teórico àqueles níveis mas trouxe à luz algumas outras variáveis importantes. É muito conhecido o fato de que podem encontrar-secasos de EB com níveis de bilirrubina não-conjugada no plasma muito mais baixos do que os mencionados acima (ppr exemplo, 12 mg/100 ml, ou ainda menos). Como já foi dito, esses níveis nada dizem acerca de quanta biljrrubina existe sob forma livre não-ligada a albú- mina. Somente a determinação direta dessa fração nos poderia sugerir o risco iminente de EB; essa determinação, porém, ainda não é feita na imensa maioria dos Serviços, além de que sua interpretação adequada ainda apresenta grandes di- ficuldades. Nos casos de EB com níveis baixos de bilirrubina (podendo ocorrer, obviamente, também nos casos com bilirrubinemias intensas) em geral podem ser identificados alguns sofrimen- tos concomitantes à hiperbilirrubinemia: hipoxia, hipoalbumi- nemia, acidóse e ¡nfecção, por exemplo. De um modo geral, essas condições clínicas são propícias ao aumento da fração de bilirrubina livre, mas possivelmente podem alterar outros elos do mecanismo de instalação da EB. Em 1964, em uma revisão29, reunimos esses e outros fatores sob a denomina- ção de fatores coadjuvantes da EB e nos últimos anos a li- teratura 4 - 5 > 6 - 2 8 tem dado grande ênfase aos mesmos, fazendo com que sejam levados em consideração na conduta terapêu- tica das hiperbilirrubinemias. Modo de ação da bilirrubina na célula — O mecanismo ín- timo pelo qual a bilirrubina exerce sua ação nociva depositan- do-se e causando necrose nos neurônios não é conhecido, em- bora haja possibilidades aventadas. De um conjunto de dados experimentais, obtidos por Day n, Waters 37, Ernster13 e Labbe 19 resulta que a bilirrubina pode: a) inibir a fosforilação oxida- tiva, ¡n vitro; b) liberar NAD e citocromo C na mitocondria; c) induzir atividade de adenossintrifosfatase; d) produzir ede- ma das mitocondrias (em concentrações muito mais elevadas que as necessárias para produzir os efeitos a e ò; e) inibir a síntese do grupo prostético heme, componente de enzimas essenciais à oxidação celular. Os 4 primeiros efeitos são evi- tados in vitro pela adição de albúmina. Essas ações in vitro da bilirrubina, porém, não são neces- sariamente as responsáveis pela EB. Diamond e Schmid não conseguiram demonstrar alterações da fosforilação oxidativa em cérebros de cobaias fortemente corados por bilirrubina. Por outro lado, os graves sintomas verificados em animais inje- tados com altas dose de bilirrubina não podem ser atribuídos à redução de consumo de oxigênio pelo sistema nervoso, Recentemente, Weil & Menkes 38 estudaram a relação en- tre bilirrubina e ganglioside, demonstrando que existe uma in- teração entre as duas substâncias. Os gangliosides ocorrem no cérebro fetal mesmo antes que exista mielina, e encontram-se provavelmente nas membranas, ou outras estruturas. Sabe-se que a composição dos gangliosides do cérebro de rato varia com a idade, havendo uma evolução de tri-sialo para mono- -sialo-gangliosides. Weil & Menkes sugerem que na EB se formem complexos bilirrubina-ganglioside que alteram as mem- branas, produzindo citotoxicidade a concentrações de bilirru- bina mais baixas que as necessárias para inibir a fosforilação oxidativa na mitocondria. Em particular, as alterações de mem- brana nas regiões dendrítica e sináptica dos neurônios podem . ser importantes na produção de disfunções celulares. Um outro mecanismo, aventado pelo grupo de Gartner, é o da formação de um complexo coloidal de bilirrubina livre com ácidos graxos não-esterificados: esse complexo pode ser a forma pela qual a bilirrubina penetra na célula cerebral para determinar EB. Sabendo-se que o cérebro imaturo tem maior capacidade do que o maduro de captar ácidos graxos de cadeia longa e que são freqüentes as situações em que hiperbilirru- binemia e aumento de ácidos graxos coexistem (por exemplo: jejum, resfriamento), é provável que este mecanismo patoge- nético seja importante. PAPEL DE OUTROS FATORES CONCOMITANTES A HIBERBILIRRUBINEMIA (FATORES COADJUVANTES DA EB) Estes fatores são assim considerados em parte por serem predisponentes à EB em experiências com animais 26-31, em parte por dados de experiências ¡n vitron-16-33, e principalmente porque em casos de EB com baixos níveis de bilirrubina têm-se mostrado presentes, isoladamente ou em conjunto9-17>34-39 . No entanto, a importância relativa de cada um no recém-nas- cido humano é de difícil avaliação. Imaturidade e barreira hematoencefálica — A EB é uma entidade característica do período neonatal. Por essa razão, a imaturidade do organismo sempre foi considerada como fator básico na etiopatogenia da doença, sendo que uma possível imperfeição da barreira hematoencefálica (BHE) dependente da imaturidade seria a causa da diferença de comportamento frente à hiperbilirrubinemia nas várias idades. Uma grande objeção a essa teoria foi a verificação de que uma criança portadora de doença de Crigler e Najjar desen- volveu EB com 16 anos de idade. O mesmo pode ser dito dos resultados experimentais de Diamond 12, que conseguiu obter penetração de bilirrubina no cérebro de animais adultos, desde que a bilirrubina injetada fosse livre de albúmina. Essa linha de pesquisa foi levando ao abandono do con- ceito de "barreira hematoencefálica imatura", que foi substi- tuído pela idéia de que o recém-nascido tem EB porque apre- senta condições muito mais propícias, em geral, ao apareci- mentó de níveis significantes de bilirrubina livre. A hipoalbu- minemia deve ser, portanto, uma condição prévia muito im- portante. Resumindo-se os achados mais importantes dos últimos anos, poderíamos abordar as relações entre imaturidade, bar- reira hematoencefálica e EB de maneira como segue. 1) O prematuro tem, em geral, maior produção de bilirru- bina, por kg de peso, que o recém-nascido maduro, além das deficiências bem conhecidos de captação e conjugação de bi- lirrubina. Em idades posteriores aos primeiros dias de vida, dificilmente existem hiperbilirrubinemias intensas. Quando exis- tem, como ocorre na doença de Crigler e Najjar, já foi mos- trada a possibilidade de instalação muito tardia de EB (a qual, mesmo nestes casos, é exceção)35. 2) A barreira hematoencefálica parece comportar-se de maneira semelhante em animais recém-nascidos e em adultos, no que concerne ao transporte de substâncias do plasma para a célula. Em geral, as substâncias usadas nas experiências só cruzam a barreira quando não-ligadas à sua proteína transpor- tadora 2'12. No caso especial da bilirrubina, é importante lembrar que a sua lipossolubilidade é fator importante para a penetrabili- dade na célula. Muitas experiências, feitas na tentativa de de- monstrar uma imperfeição da barreira hematoencefálica decor- rente de imaturidade, usaram inibidores do grupo SH das enzi- mas (p-cloromercurbenzoato e n-metilmaleinamida). Os resulta- dos desses estudos não apoiam a hipótese de que a BHE seja mais permeável no recém-nascido que no adulto, apenas suge- rem que sistemas enzimáticos necessários à sua integridade possam ser inibidos, prejudicando essa mesma integridade. Experiências medindo a passagem de P32, a prazo curto, pela BHE, não mostraram diferenças sensíveis entre coelhos recém- nascidos e adultos29. Alguns investigadores têm mostrado a existência de uma BHE eficiente no período neonatal através de estudos de neurofisiologia usando ácido gama-aminobutí- rico, microscopía eletrônica com ferritina e microscopía de fluorescencia com albúmina bovina marcada com fluoresceí- na 12. Que a BHE tem suas propriedades ligadas diretamente às necessidades do metabolismo cerebral, mais do que à idade, é sugerido pelo fato de que colesterol e sulfato, dois constituin- tes da mielina, entram no cérebro mais rapidamente entre 2 a 4 semanas de vida do que na vida adulta, e mais rapidamente, também, do que com uma semana de vida, pois é com 2 a 4 semanas que a formação de mielina se torna mais ativa. Estava firmemente estabelecido até hábem pouco tempo, portanto, que a tradicional noção "barreira hematoencefálica imatura facilita encefalopatía bilirrubínica" não tinha mais ra- zão de ser, ao ponto de livros de texto e revisões importan- tes 6 - 2 7 - 2 8 deixarem completamente de lado essa noção. É preciso, porém, lembrar que alguma diferença existe nas características do transporte de bilirrubina para o interior da «célula no recém-nato e em outras idades. Essa diferença pode estar na composição dos gangliosides ou na maior capacidade de captação de ácidos graxos de cadeia longa transportando bilirrubina (o que, funcionalmente, poderia fazer parte da BHE, sense/ latu), ou ainda, em alguma peculiaridade do sistema vascular do encéfalo. Em relação a esta última, é importante citar-se as experiências do grupo de Hirata16 que conseguiu EB injetando bilirrubina em um grupo de animais tratados com hialuronidase, não a obtendo em animais semelhantes mas tra- tado com adrenocromo. Esses autores mostraram dessa ma- neira a importância da BHE, ou pelo menos da permeabilidade vascular no mecanismo de instalação da EB, demonstrando ainda que a BHE é suscetível a agentes que aumentam e dimi- nuem a permeabilidade vascular cerebral. Uma ressalva impor- tante deve^ser feita, porém: Hirata & cois, usaram fetos de ratos, produzindo EB pré-natal (pela primeira vez na literatura), o que pode significar condições bem diversas daquelas encon- tradas no recém-nascido humano, em que a EB não se instala antes do nascimento. Resumindo as influências da maturidade sobre a instala- ção da EB, poderíamos dizer que, embora níveis altos de bilir- rubina em qualquer fase nas primeiras semanas de vida deter- minem um risco importante, existe algum tipo de proteção associado com a maturação do organismo (idéia também emi- tida por Brown, no tratado de Behrman6). Essa proteção não reflete necessariamente "imaturidade de BHE" no sentido tra- dicional, que na verdade não existe, a não ser que se conside- rem como fazendo parte de uma "barreira funcional" as carac- terísticas dos gangliosides, a permeabilidade aos ácidos gra- xos de cadeia longa e a suscetibilidade a agentes que aumen- tam a permeabilidade vascular (a hipoxia sendo a principal), Em relação ainda à maturidade, a albuminemia é em geral mais baixa nos imaturos, sendo que nos primeiros dias de vida são freqüentes outros importantes fatores da EB, que serão co- mentados adiante, Influência da albuminemia — A ligação da bilirrubina não-conjugada à albúmina plasmática torna o pigmento incapaz de difundir para dentro da célula, como é geralmente aceito, e portanto inócuo. Portanto, a disponibilidade de locais de liga- ção para a bilirrubina na molécula de albúmina é fundamental Basicamente, duas condições prejudicam essa ligação: a hipoalbuminemia e a competição, pela ligação albumínica, de outros ânions, naturais ou usados na terapêutica do recém- nato. Uma molécula de albúmina apresenta capacidade de ligação para 2 moles de bilirrubina, sendo um local de ligação de grande afinidade, e outro de ligação mais frouxa. Dessa maneira, o primeiro local de ligação poderá, em caso de uma concentração de albúmina de 3,5 g/100 ml, receber 29,4 mg/100 ml de bilirrubina (relação molar 1/1, sabendo-se que os pesos moleculares de albúmina e bilirrubina são, respectivamente, 68.000 e 585). O segundo local de ligação poderia, assim, au- mentar a capacidade para 58,8 mg/100 ml, teoricamente, No entanto, cerca de metade dos locais de ligação previstos está normalmente tomada por ânions naturais, o que pode ser ain- da piorado ¡atrogenicamente (ou em casos em que há excesso de hematina ou ácidos graxos não-esterificadosf por exemplo) É importante lembrar ainda que não é necessário que os locais de albúmina se encontrem saturados, para que comece a aparecer bilirrubina livre. Segundo Lathe21, quando o nível de albúmina é de 4,1 g/100 ml, a bilirrubina livre duplica quan- do a bilirrubina total aumenta de 15 para 22 mg/100 ml, dupli- ca novamente ao nível de 25 mg/100 ml e novamente a 30 mg/100 mi, Hiper-hemólise — Aceita-se em geral que, para um deter minado nível de bilirrubinemia, o risco de EB é maior quando existe hemólise exagerada. Nestas condições, o que ocorre pode ser assim resumido: a) Os níveis críticos de bilirrubina incidem em idades mais precoces de que na ausência de hemó- lise; b) Existe hiperprodução de hematina, derivado da hemo- globina dos eritrocitos destruídos. Estes pigmentos podem des- locar bilirrubina de sua ligação albumínica, por competição. Além disso, experimentalmente, esse pigmento tem ação di- minuidora do consumo de oxigênio em órgãos isolados e em animais de experiência; c) A hipoxia tecidual secundária à anemia hemolítica pode ter efeitos nocivos sobre a BHE e possivelmente sobre a suscetibilidade da célula à agressão (vide adiante), Hipoxia — Nos casos de EB em que os níveis de bilirru- binemia são baixos freqüentemente encontra-se hipoxia peri- natal. Experimentalmente é decisiva a influência da hipoxia na produção de EB, como mostraram Lucey & cois.26, Hirata16 e outros 18'25. Recentemente, Lou & cois.24 mostraram que na hipoxia experimental grave em cordeiros pode haver um rompimento da barreira hematoencefálica à albúmina, e dessa maneira bi- lirrubina ligada à albúmina pode ser transportada para dentro dos neurônios. Um moderado grau de hipertensão e uma grave vasodilatação observada nos animais asfixiados seria respon= sável por essa falha da BHE. Estes achados levam a uma no- ção inteiramente nova na patogenia da EB: a possibilidade de passagem pela BHE de pigmento ligado a albúmina. Estes estu- dos requerem confirmação, mas vêm reforçar a importância que sempre se deu à hipoxia nestes casos, Acidóse — A presença de acidóse é um dado freqüente nos casos de EB com baixos níveis de bilirrubina. A acidóse metabólica, como a que ocorre na doença de membranas hiali- nas, parece ter um papel importante, possivelmente diminuin- do a afinidade da bilirrubina pela albúmina. Esse efeito foi re- centemente questionado28 sendo possível que seja outra a maneira de ação. Uma possibilidade é a de que a acidóse au- mente a afinidade celular pela bilirrubina28. Quando a acidóse segue-se à asfixia perinatal, como é comum na clínica, não é possível avaliar-se a participação de cada uma das condições, Jejum e hipoglicemia — São fatores coadjuvantes da EB porque causam um aumento de ácidos graxos não-esterifica- dos no plasma, que competem com a bilirrubina na ligação albumínica, Além disso, é possível que nessas condições quan- tidades significantes de bilirrubma passem a se ligar aos áci- dos graxos 23, podendo desse modo penetrar na célula, A baixa do pH plasmático pode ser importante, também, em condições de hipoglicemia, com as conseqüências já comentadas, Suscetibilidade da célula nervosa à ação da bilirrubina — Presume-se que seja importante na determinação de EB, mas nada se sabe dos seus possíveis mecanismos. É possível que a composição dos gangliosides, como já foi comentado, ilustre essa suscetibilidade, mas há razões para crer que outros fa- tores estão em jogo, Brown6 acha que a hipoxia é um fator de aumento da suscetibilidade do neurônio à EB, Substâncias e drogas que podem deslocar bilirrubma da ligação albumínica — São fatores que em determinadas con- dições podem pesar na instalação do quadro de EB, Entre essas substâncias estão: salícilatos, sulfas de ação lenta, sulfiso- xazol, oxacilina, cefalotina, benzoato de sódio (associado à cafeína ou ao diazepam injetável), além de hematina, ácidos graxos livres, ácidos biliares, tiroxina e triodotironina 12< 28. Infecção — Em muitos casos a infecção tem acompanhado o diagnóstico de EB29, especialmente em crianças de muito baixo peso. Se há uma correlação entre as duas condições, ou se estas são apenas manifestações concomitantes a que estão sujeitos os muito pequenosou muito imaturos, é problema não resolvido. Entre as possíveis influências da infecção podería- mos mencionar a hemólise (rpuito freqüente nesta fase da vida), a acidóse metabólica, o resfriamento e a hipoxia, além de certos tipos de medicação, Resfriamento — É uma condição temível no recém-nascido ictérico, porque a termogênese química nestas crianças re- sulta em aumentos de ácidos graxos livres no plasma, além de hipoglicemia, Sexo — Nos casos descritos, predomina o sexo masculi- no. Em diversas fontes da literatura, citadas por Haymaker29, encontram-se as seguintes proporções de casos masculinos para femininos: 14:12, 35:25, 23:12 e 62:23, Nos 10 casos verifica- dos em 264 necropsias de recém-nascidos do Hospital das Clí- nicas em 1966, 1967 e 1968, 8 eram masculinos, Dos 64 casos de Gutierrez & Vieyra 15, 43 eram masculinos. Em ratos Wistar da cepa de Gunn a predominância dos casos masculinos de EB é significante. Desnutrição intra-uterina — No trabalho mencionado de Gutierrez & Vieyra, a desnutrição intra-uterina pareceu influir na EB dos recém-nascidos com 15 mg/100 ml ou menos, de bilirrubinemia. Esse achado, que merece maiores estudos, é de difícil interpretação. Quadro Clínico Fase aguda — Nesta fase, o diagnóstico clínico é difícil. Torpor, recusa de alimento e diminuição da motilidade espon- tânea são tradicionalmente citados como acompanhantes de ictericia intensa, independentemente de se seguirem ou não de morte e achado anátomo-patológico de EB. Na verdade, essa correlação é sujeita a muitas dúvidas, ao menos no recém-nas- cido humano, tantas são as agressões perinatais capazes de provocar manifestações semelhantes. Os achados mais conhecidos na fase aguda têm sido obser- vados em casos de doença hemolítica por incompatibilidade Rh 2 2 - 3 6 , nos quais tem sido possível estabelecer uma certa esquematização. Assim é que Van Praagh estabeleceu uma cronologia de 4 fases clínicas, a partir do estudo de 31 casos de EB incidindo em 882 casos de doença hemolítica, a saber: Primeira fase — hipotonia, com letargia e sucção má, du- rante 2 a 3 dias. Esses sinais, embora úteis, são muito inca- racterísticos. Segunda fase — instala-se hipertonía, com tendência à espasticidade, opistôtono e febre. Terceira fase — de aparente melhora, instalando-se no fim da primeira semana com diminuição da espasticidade, Quarta fase — incide após o período neonatal, em geral aos 2 e 3 meses de vida, com os sinais sugestivos de parali- sia cerebral por encefalopatía bilirrubínica. Esse esquema provavelmente só é descritivo da EB dos portadores de doença hemolítica, e em geral nascidos de ter- mo. Essas manifestações clássicas hoje são raramente vistas, graças à identificação precoce do risco nas mães sensibiliza- das e aos cuidados imediatos ao recém-nato. Mais freqüente- mente vê-se hoje EB desenvolvendo-se insidiosamente em pre- maturos com hiperbilirrubinemias incompletamente tratadas, devido à presença dos fatores já analisados, que nem sempre são passíveis de correção. Nestes casos, como acentua Acker- man l, sempre cabe pensar se o quadro neurológico eventual- mente observado é devido a EB ou se é manifestação direta das outras agressões (hipoxia, acidóse, por exemplo). Nestes últimos casos, a criança pode falecer sem nenhum sinal clínico sugestivo de EB, ou apresentar sinais completa- mente inespecíficos como crises de apnéia e cianose. Acker- man 1 considera útil dividir os casos de EB em 2 categorias: 1) aqueles que desenvolvem atetóse e surdez, que podem in- cluir os com sinais neurológicos claros no período neonatal, e que até certo ponto poderão corresponder ao tipo descrito por Van Praagh36 e 2) casos com lesões menos específicas, que se poderia chamar "lesões neurológicas possivelmente associadas a hiperbilirrubinemia". A revisão de 64 casos de Gutierrez & Vieyra confere apoio a essa subdivisão. Fase crônica — Quando o recém-nascido sobrevive as pri- meiras semanas é comum verificar-se seqüelas neurológicas, principalmente do tipo extrapiramidal, com hipertonia muscular generalizada, opistótono e movimentos coreoatetóticos. A sur- dez, que possivelmente é tão freqüente quanto a atetóse, pode ser apenas para sons de alta-freqüência. Seqüelas oculares são muito freqüentes, principalmente estrabismo e sinal do sol poente. A correlação de alterações da esfera intelectual com a hiperbilirrubinemia neonatal é assunto muito discutido. Aceita- se, em geral, que mesmo na ausência de sinais extrapirami- dais, sensoriais ou motores, graus elevados de bilirrubinemia neonatal poderão levar a sofrimento cerebral difuso e perma- nente. Possivelmente o grau das seqüelas dependa da associa- ção de outros fatores de sofrimento cerebral neonatal. É ine- gável, por outro lado, a existência de pacientes com seqüelas motoras graves de EB com absoluta normalidade da esfera intelectual. O desenvolvimento neuromotor dos pacientes com graves ictericias neonatais tem sido objeto de muitos estudos 3 - 7 - 1 0 - 1 4 . O de Boggs & cols., em 1967, sugere a existência de uma cor- relação positiva entre bilirrubinemia máxima no recém-nascido e desenvolvimento neuromotor subnormal aos 8 meses de idade. Essa correlação não começa abruptamente em um nível elevado, com 20 mg/100 ml, mas parece aumentar gradual- mente e tornar-se muito nítida a partir de 16 a 19 mg/100 ml de bilirrubina plasmática. Duas críticas são freqüentemente le- vantadas a esse estudo: o tempo relativamente curto de obser- vação e a falta de correção das bilirrubinemias para as idades gestacionais dos pacientes. Outros estudos, como o de Freedman 14, mostram, aos 4 meses e com 1 ano de idade, desenvolvimento motor signifi- cantemente inferior dos recém-nascidos masculinos com icteri- cia neonatal intensa (sem incompatibilidade sangüínea) em relação aos levemente ictéricos. Essa diferença não foi obser- vada em crianças do sexo feminino. Crichton & cois.10 estudando crianças de baixo peso ao nascer, não acharam diferenças significantes no Ql e nas con- dições neurológicas, de 4 a 11 anos de idade, em 3 grupos, cujas bilirrubinemias máximas haviam sido, respectivamente: mais de 20 mg/100 ml, 11 a 19,9 mg/100 ml e menos de 11 mg/100 ml. No entanto, havia um número significantemente maior de crianças mentalmente retardadas no grupo de bilirru- binemias mais altas. Em resumo, é possível dizer que ainda hoje a correlação entre os níveis de bilirrubinemia neonatal e as condições neu- romotoras e intelectuais posteriores é de natureza extrema- mente complexa. É lícito concluir, do enorme conjunto de obser- vações clínicas e experimentais, que existe um risco bem defi- nido de efeito nocivo sobre as funções cerebrais no recém- nascido ictérico, e que, grosseiramente, esse risco é direta- mente proporcional ao grau de ictericia. Não se conhecem, porém, as modificações que outras alterações funcionais po- dem imprimir ao sistema nervoso central regendo a instalação de seqüelas em uns e não em outros pacientes. Profilaxia da encefalopatía bilirrubínica Repousa em 2 ¡tens: a diminuição dos níveis de bilirrubina e o cuidado com os fatores que predispõem à EB, evitando seu aparecimento ou tratando como indicado6-29. A diminuição dos níveis de bilirrubina pode ser feita de 3 maneiras: a exsanguíneo-transfusão, o uso de drogas que ace- leram a excreção da bilirrubina (como o fenobarbital) e o uso da fototerapia. Obviamente, a associação desses métodos pode estar e freqüentemente está indicada. Na prática, apenas a exsanguíneo-transfusão e a fototerapia estão indicados no recém-nascido em risco de EB, sendo a exsanguíneo-transfusão o método de eleição. Suas indicações em geral variam de um para outro Serviço, em seus detalhes23-30, mas de um modo geral são: níveis de 18 mg/100 ml para recém-nascidos de baixo peso e de 20 mg/100 ml para recém-nascidos de termo com qualquer idade. Emgeral, se níveis de mais de 15 mg são atingidos no primeiro dia, também constituem indicação. O recurso à dosagem de bilirrubina livre possivelmente venha a ser decisivo na indicação de exsanguíneo-transfusão, mas por enquanto a experiência é pequena, e as dificuldades teóricas na interpretação dos valores são reais. Por essa razão, os fatores coadjuvantes devem ser mais valorizados nestas indicações6-28-29. Assim, um esquema de indicação de exsan- guíneo-transfusão que coloca na prática e que pode ser ado- tado, é o recomendado por Lee 23 e usado no Albert Einstein College of Medicine (tabela 2). 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