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1 DAVID HUME: EMPIRISMO, SOCIEDADE E JUSTIÇA Prof. Pablo Antonio Lago Apesar de pouco conhecido nas Faculdades de Direito do Brasil, o escocês David Hume é um dos filósofos mais importantes e influentes que já existiu. Os debates que se lhe seguiram devem muito às suas ideias: a razão kantiana é uma resposta direta aos seus pensamentos, e o niilismo de Nietzsche também encontra ecos na obra humeana. Para estudar um autor, creio que o primeiro passo é verificar o contexto em que ele estava inserido. Esta é a metodologia proposta pelo historiador britânico Robin George Collingwood, para quem devemos “re-pensar” o pensamento de um filósofo a partir dos problemas com os quais o autor estava preocupado, e dos demais autores com quem ele debatia. Em síntese, é necessário contextualizá-lo à sua época, com a intenção de compreender o sentido de sua obra. Quando empreendemos esta metodologia, percebemos que Hume esteve em um período riquíssimo da história da filosofia. Na transição entre o moderno e o que hoje compreendemos como contemporâneo, Hume esteve em contato direto com autores tipicamente vistos como iluministas, como Rousseau e Voltaire, e influenciou o pensamento de Adam Smith, considerado o “pai” da Economia. Mas um dos pontos centrais para compreendermos seu pensamento está na revolução científica que vinha ocorrendo deste Copérnico e Galileu, passando por Francis Bacon e chegando a Newton: os métodos científicos recém-elaborados balançaram antigas convicções éticas e morais, lançado dúvidas sobre a existência de “verdades” também no âmbito das ciências humanas. Aqui, é interessante ressaltar uma distinção que existia na época. Ao contrário do que temos hoje, os “estudos” podiam ser divididos em dois grandes campos – filosofia natural e filosofia moral. Na filosofia natural, tivemos o desenvolvimento do que hoje compreendemos como as “ciências naturais” (física, química, biologia) e, também, qualquer outra ciência que tentasse explicar fatos e comportamentos humanos. Para traduzir em poucas palavras, a filosofia natural estava preocupada em compreender o “ser”, em desvendar como as coisas são. Por outro lado, a filosofia moral está preocupada diretamente com a ação humana e suas finalidades. Ela compreende, como seu nome sugere, estudos éticos e morais, e envolvia (de forma quase indistinta) a política, a moral e o direito. Em 2 síntese, podemos afirmar que a filosofia moral tem como preocupação o que entendemos como o mundo do “dever ser” – como devemos alcançar aquilo que, social ou individualmente, entendemos como o bem, os fins da ação humana. Hume, como bom filósofo, esteve inserido nos debates de ambos os campos do conhecimento 1 . Pretendo focar em suas lições de filosofia moral, mas para compreendê- las é imprescindível analisar os pressupostos fundamentais da sua obra. Uma das questões fundamentais de toda a filosofia corresponde ao que nós podemos conhecer. “Que todos buscam o saber” é uma afirmação que leva em conta uma inclinação natural do homem ao conhecimento – variando da mera fofoca sobre a vida alheia até o “sentido da vida” e os limites do universo. Mas será que podemos conhecer tudo, sobre todas as coisas? Acredito que, para a maioria esmagadora dos filósofos, os seres humanos são limitados em sua possibilidade de conhecer todas as coisas do mundo. Para Hume, isso é ainda mais expressivo, considerando que a “porta de entrada” dos nossos conhecimentos sobre o mundo são os nossos sentidos: como podemos ter certeza sobre as coisas se nossas experiências sensoriais são, em última análise, subjetivas, e não há meios de provar que as sensações que tenho ao ver, tatear ou escutar são as mesmas que outros indivíduos? Assim, será que a sensação que tenho ao entrar em contato com algum objeto é a mesma que a de outro indivíduo? Por exemplo, com relação às cores: será que o azul que vejo no céu é o mesmo azul percebido por outra pessoa? Se não bastasse, como poderia afirmar, com certeza, que os objetos com os quais estou em contato diariamente existem e não são mero produto da minha mente? Se tentar levar em consideração a existência de um pensamento “coletivo”, não seria possível, também, levantar dúvidas sobre a própria existência deste coletivo? Muitos poderão, como resposta para tais questões, sustentar a existência de um ente superior que “planeja” o mundo (i.e., a ideia de um “design inteligente” transcendente, leia-se: Deus) – mas qual o tipo de prova que temos sobre sua existência? Em síntese, qual o tipo de prova última que temos sobre o mundo? Até mesmo a ciência tem como base o princípio da falseabilidade – a possibilidade de que aquilo que consideramos verdadeiro, hoje, seja suplantado por uma nova teoria que explique 1 Dentre suas obras, a mais famosa é o Tratado sobre a Natureza Humana. Esta obra não conseguiu, à época, o sucesso pretendido por Hume, que a reescreveu sob o título de Investigação sobre o Entendimento Humano. Além de outras obras, as que trouxeram sucesso ao autor perante seus contemporâneos foram extensos escritos sobre a história da Inglaterra. A fama como filósofo só viria a ser reconhecida posteriormente. 3 melhor as relações do universo (e.g., a “descoberta” de que a terra não é o centro do universo, ao contrário do que se acreditou por tempos imemoriais). Todas estas questões podem parecer, em um primeiro momento, uma verdadeira “loucura filosófica”. Quando nos questionamos sobre tudo (e até mesmo sobre o nosso “eu”, se podemos provar nossa própria existência), podemos afirmar que assumimos um comportamento cético. Em linhas gerais, o ceticismo corresponde em defender a inexistência de respostas certas ou erradas para estas inúmeras questões que nos afligem enquanto seres humanos – inexiste verdade última para nossas questões existenciais. Hume se formulava todas estas perguntas quando analisava aquilo que nós, enquanto humanos, podemos conhecer – o que é objeto de estudo de um campo denominado epistemologia. Para ele, nosso contato com o mundo se dá através dos sentidos, e tudo o que possuímos são percepções sobre as diferentes coisas com as quais estamos em contato. Como visto, podemos colocar estas percepções em dúvida: elas podem variar de pessoa para pessoa, de modo que inexistiria certeza sobre qualquer coisa que possamos vir a conhecer. Na compreensão de Hume, a metafísica e a razão corresponderiam, justamente, às tentativas de se alcançar respostas verdadeiras que, pelas inúmeras dúvidas postas, seriam inalcançáveis. Assim, a “razão” nada mais seria do que um raciocínio abstrato e incapaz de fornecer respostas seguras. Podemos afirmar, com as devidas cautelas, que ela seria incapaz de guiar a conduta humana, já que a “verdade” que ela busca não existe. Entretanto, percebam que, se levarmos às últimas consequências esta postura cética, simplesmente deixamos de viver. Cairíamos em um niilismo absoluto que nos levaria ao colapso nervoso e social, como menciona Wayne Morrison (2012, p. 135/136). O que nos restaria, então? Uma possível resposta seria a pura e simples resignação. O que Hume observa é que o ceticismo e as dúvidas que ele nos traz não são mais fortes do que a natureza do homem. Mesmo que a vida seja repleta de mistérios, nós não deixamos de viver e de estabelecer objetivos para nossas vidas. Por mais dúvidas que tenhamos sobre a existência de nosso “eu” e das coisas do mundo, nós não nos deixamos abater. Certamente, viver implica em algumas dúvidas – mas estas dúvidas estão longe de serem aquelas dúvidas existenciais que são colocadas peloceticismo. Estamos muito mais preocupados com questões de ordem prática e procedimental, da nossa existência 4 cotidiana, do que, propriamente, com o “sentido da vida” ou com a falibilidade dos nossos sentidos. Assim, Hume acaba descartando o papel da razão e da metafísica como guias da ação humana, uma vez que elas têm por base justamente a descoberta de uma “verdade”. Se esta verdade é inalcançável, elas não podem constituir um motivo para qualquer ação baseada na vontade e no livre-arbítrio do homem. É daí que decorre seu célebre dictum: “a razão é, e só deve ser, escrava das paixões”. Não é à toa que Hume teve fortes desavenças com o Cristianismo e foi alvo de inúmeras críticas por seus contemporâneos, justamente porque rompeu com a linha de pensamento racionalista então dominante. Retomaremos esta questão quando estudarmos o racionalismo de Kant. Mas o que são estas paixões? Não se está tratando, aqui, de sentimentos românticos. Para Hume, as paixões correspondem aos nossos sentimentos e sensações, decorrentes das nossas percepções sobre o mundo. Alegria, esperança, medo, dentre outros, surgem tanto como instintos naturais, quanto nosso desejo inato pelo “bom” – compreendido aqui como a busca pelo prazer – e a aversão ao “mau” – que pode ser traduzida como a fuga da dor 2 . Da mesma maneira, vícios e virtudes são compreendidos como percepções em nossa mente. A virtude seria o poder de produzir amor e orgulho, e o vício o poder de produzir ódio e humilhação. O fundamento de tudo, em última análise, está ligado em nossas percepções sensoriais. Ao confiar nas nossas percepções sobre o mundo, Hume acaba mitigando seu próprio ceticismo. Afinal, ele não disse que nossos sentidos não são capazes de nos conduzir à verdade? Devemos relembrar o seguinte: em nossa vida cotidiana, nós não temos esta preocupação com a “verdade”, pura e simples. A natureza humana, ao transferir nossa atenção para questões de ordem prática, acaba superando a intensidade dos dilemas trazidos pela postura cética. O ceticismo de Hume é, portanto, moderado, e muito 2 É clara a semelhança entre Hume e os utilitaristas, ao menos neste aspecto. Entretanto, utilitaristas como Bentham atribuem ao prazer e à dor uma função moral e política: elas correspondem às razões que embasam normas morais e jurídicas. Um legislador, quando elabora uma lei, deve se preocupar com a maximização do prazer e a minimização da dor. Como se verá adiante, para Hume, o que se deve levar em consideração na política e na moral decorre da observação do mundo “como ele é”: em síntese, o legislador deve se preocupar em manter a ordem do sistema jurídico, que em última análise tem por base uma série de costumes e tradições. Não se questiona, aqui, se estes costumes e tradições produzem mais ou menos felicidade ou prazer para a maioria (como se tem no pensamento utilitarista). O que se busca, apenas, é conservar um mínimo de ordem e estabilidade em respeito às normas e regras pré-existentes, de modo a garantir uma coexistência social pacífica e ordenada. 5 distinto daquele que se observa na obra de Nietzsche 3 . Neste contexto, nós excluímos a razão e nos pautamos naquilo que, a princípio, é mais “simples” de se compreender e cujas limitações são menos marcantes: nossos sentidos. Assim, Hume adota uma teoria que é conhecida como empirismo. O empirismo é caracterizado pela observação e experiência. Observação é o que o próprio nome diz: “ver o que acontece” – é a constatação de regularidades na vida humana. Neste sentido, pensem na tarefa do sociólogo que observa o modo com que a sociedade se comporta. Experiência, aqui, não é simples sinônimo de “experiência científica” – trata-se, antes disso, do conhecimento que obtemos através observação de uma prática. Em última análise, para facilitar a compreensão do que é o empirismo, podemos tratar “observação e experiência” como um binômio cujas partes nos levam a uma única ideia: de que somos capazes de conhecer o mundo através da observação das práticas humanas e que nelas constatamos algumas regularidades. Feitas estas considerações, como devemos compreender a sociedade, o direito e a justiça em Hume? Ao aplicarmos o método empirista, a primeira coisa que somos capazes de constatar é que não estamos sozinhos, e que a natureza humana nos conduz diretamente à vida coletiva. Nós percebemos a existência de costumes e tradições que vieram do passado que nos antecede, e que prosseguirão no futuro, para além de nossa morte (MORRISON, 2012, p. 137). Nossas vidas são pautadas por tais costumes e tradições, que nos conduzem a uma ideia de senso comum: aquilo que as pessoas comumente pensam sobre a vida em coletividade, o que elas comumente estabelecem para a solução de seus problemas corriqueiros etc. O que Hume sugere é que devemos respeitar este senso comum, pois fora dele não haveria certeza sobre nada. A união entre o senso comum, as tradições e os costumes implicam no surgimento de uma verdadeira narrativa social: se observarmos a sociedade, percebemos que ela “narra” uma série de fatos determinantes para a compreensão do seu funcionamento. Este apego ao senso comum, decorrente do empirismo e da recusa de um papel ativo da razão, conduz a uma postura pragmática em Hume 4 . A pragmática é, 3 Em linhas gerais, Nietzsche critica a posição de Hume como um dos sintomas da “fragilidade humana”. Deveríamos, na realidade, reconhecer nossa solidão e incapacidade de alcançar verdades universais – cada um deveria ter a coragem de criar suas próprias “verdades”. 4 O empirismo também conduz, acredito, ao que muitos autores chamam de “Lei de Hume”: a impossibilidade de derivar um dever de um ser. O ser é objeto da análise dos fatos do mundo. É obtido através da observação e experiência. Como afirma Morrison, “o conhecimento sobre o atual estado de alguma coisa não nos diz como ela deve ser” (2012, p. 140). Assim, devemos ter em mente que as 6 justamente, o apego às questões de ordem prática: a preocupação em solucionar, de forma útil e funcional, as questões que surgem ao longo da vida coletiva. Isso significa que a preocupação com a prática e seus resultados são fatores determinantes para a compreensão de uma coletividade. É interessante perceber que o empirismo nos conduz a uma explicação “natural” das escolhas humanas, pautada na observação destas práticas sociais. Assim, fica clara a oposição de Hume aos teóricos do contrato social: a ideia de que o homem estabeleceu direitos e deveres através de um contrato é uma mera ficção, pois não há provas de que isso, de fato, ocorreu. Se não bastasse, os teóricos contratualistas entendem que o contrato social seria a soma dos interesses individuais – mas, de acordo com Hume, não seria possível explicar tais interesses sem perceber o modo com que eles aparecem na prática social, na vida coletiva. Assim, Hume entende que inexiste qualquer processo súbito de tomada de decisão, e o que se observa é que a justiça e suas regras estabelecidas pelos homens são intrínsecas ao fluxo gradual da natureza (MORRISON, 2012, p. 148). Hume, então, precisa explicar o que compreende pela justiça e pelo direito. Ambos podem ser vistos como sinônimos, e correspondem a artifícios criados pelo homem para coordenar a vida coletiva. Mas alguém poderia questionar: esta sociedade já não é guiada, como se viu, pelo senso comum, pelos costumes e pelas tradições? Onde entrariam a justiça e o direito? O que Hume observa é que existem algumas inclinações naturais no homem, como a solidariedade,que fundamentam a vida coletiva. Mas nem sempre seremos solidários com outras pessoas. Se não bastasse, vivemos em um mundo onde precisamos distribuir bens e meios de subsistência – em sua visão, precisamos de regras que disciplinem a distribuição da propriedade, vista também como uma necessidade natural do homem. Desse modo, a regulamentação através do costume e das tradições não é o bastante: o direito, a autoridade e a justiça surgem, então, como respostas para as limitações naturais da generosidade humana e em decorrência da escassez de meios para a provisão do homem 5 . Assim, Hume sustenta que “(...) se todos dedicassem aos outros a mesma atenção e afeição que dedicam a si próprios, a justiça e a injustiça questões de fato e as questões de valor dizem respeito a esferas distintas. É desta forma que Hume ataca a tese ontológica do direito natural tradicional, de bases racionalistas. 5 É claro o contraste com a posição de Hobbes, por exemplo. Para este último, os homens em seu estado de natureza são egoístas, e o contrato social surge como uma necessidade de se escapar de um estado de guerra de todos contra todos. Para Hume, ao contrário, o homem é um ser muito mais complexo, passível tanto de sentimentos de generosidade, quanto de sentimentos egoísticos. 7 seriam igualmente desconhecidas entre os homens”. Desse modo, as questões de justiça não são resolvidas a partir das elucubrações abstratas da razão 6 , mas sim das necessidades impostas pela prática (MORRISON, 2012, p. 144). E quando os costumes e as tradições enfraquecem, o direito funciona como mecanismo de controle para manter a ordem e moderação entre os homens. Tem-se, assim, que a justiça decorre não de “princípios racionais”, mas da adesão às regras criadas com base em um convívio social costumeiro, voltado para a solução de questões práticas (MORRISON, 2012, p. 147). O legado que Hume deixou para a filosofia é gigantesco, e muitas das suas ideias estão sendo recuperadas por filósofos contemporâneos. As diversas interpretações de sua obra fazem com que seu estudo seja uma tarefa complexa, mas que não deixa de ser estimulante. Os golpes de Hume à posição racionalista foram perceptíveis – o que se constata quando notamos a oposição crítica apresentada por Kant e a retomada da razão para explicar o direito e a justiça. BIBLIOGRAFIA AYER, Alfred Jules. Hume: a very short introduction. Kindle edition. New York: Oxford University Press, 2000. MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012, pp. 121-153. 6 Porque, como se viu, a razão é compreendida por Hume como a busca por uma “verdade” que, em última análise, é inalcançável pela mente humana.
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