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Co ns el ho B di to ri al An dr é Lu ís Ca ll eg ar i Ca rl os Al be rt o Ál va ro de Ol iv ei ra Ca rl os A lb er to M ol in ar o Da ni el Fr an ci sc o Mi ti di er o D a r d G ui ma rã es R ib ei ro Dr ai to n G on za ga d e So uz a El ai ne H a r z he im M a c e do Eu gê ni o F ac ch in i N et o Gi ov an i A go st in i S aa ve dr a In go W ol fg an g S ar le t Jo se Lu is Bo lz an d e Mo ra is Jo sé Ma ri a R os a Te sb ei ne r L e a n dr o P a u ls en Le ni o L u iz St re ck Pa ul o An tô ni o C al ie nd o V el lo so d a Si lv ei ra S9 14 h St re ck , L en io L ui z He rm en êu ti ca jur ídi ca e (m ) cr ise : u m a e xp lo ra çã o h er me nê ut ic a d a co ns tr uç ão do Di rei to / L en io Lu iz St rec k. 11 . e d. rev ., at ual , e am pl . - Po rt o A le gr e; Li vra ria do Ad vo ga do Ed it or a, 20 14 . 45 5 p. ; 2 3 c m . I S B N 9 78 -8 5- 73 48 -8 80 -7 1. Di re it o. 2 . D og má ti ca ju ríd ica ín di ce s p ar a o c at ál og o s is te má ti co D ir ei to Do gm át ic a j urí dic a (Bi bli ote cár ia re sp on sáv el: Ma rt a R ob er to , C RB -1 0/ 65 2) L e n i o L u i z S t r e c k Pr oc ur ad or de Ju st iç a - R S Do ut or e m Di rei to pe la Un iv er si da de Fe de ra l d e S an ta Ca ta ri na - UF SC P6 s- Do ut or e m D ir ei to Co ns ti tu do na l e H en me nô ut ic a p el a U ni ve rs id ad e d e L is bo a Pr of es so r T it ul ar d a Un is in os - R S (M es tr ad o e D ou to ra do ) e U ne sa -R J; Pr of es so r V is it an te e Co nv id ad o d e Un iv er si da de s b ras ile ira s e e st ra ng ei ra s ( Fa cu ld ad e d e Dir eit o d e C oi mb ra -P T; Fa cu ld ad e d e Dir eit o d e L i^ oa -P T; Un h^ rs id ad Ja ve ri an a- CO ); me m br o c at ed rá ti co da Ac ad em ia Br as ile ira d e Di re it o C on st it uc io na l; Pr es id en te d e Ho nr a do IH J - In st itu to de He rm en êu ti ca Ju rí di ca . HE RM EN ÊU TI CA JU RÍ DI CA E( M) CR IS E Um a ex pl or aç ão he rm en êu ti ca da co ns tr uç ão do Di rei to I V E D I Ç Ã O r ev is ta , a tu al iz ad a e a m pl ia da A li vr ar ia D O A D V O G A D O e di to ra Po rt o Al eg re , 2 01 4 : í l i " I n ii l\ r ' í i li - i' ' - í i |; 10 . A i nt er pr et aç ão d o Di re it o n o i nt er io r da v ir a- g e m l in gü ís ti ca (l at o s e n s u ) 10 .1 . A h er me nê ut ic a c o m o u m a ' ' qu es tã o m o de rn a" N o âm bi to d a in te rp re ta çã o d o Di re it o, na qu il o qu e tr ad ic io na l m e n te c ha ma mo s d e h er me nê ut ic a j urí dic a, é pr ec is o c ha ma r a a te nç ão (d os jur ist as) pa ra o fa to de qu e " n ós nã o te mo s m ai s u m s ig ni fi ca nt e pr im ei ro , q ue s e b us ca va t an to e m A ri st ót el es c o m o n a I da de M éd ia , c o m o a in da e m K an t; si gn if ic an te p ri me ir o qu e n o s da ri a a g ar an ti a de q ue o s c on ce it os e m g er al r e m e te m a u m ú ni co si gn if ic ad o" .^ ^ Ob se rv e- se , d es de l og o, a i mp or tâ nc ia d e u m fi ló so fo d o po rt e de M ar ti n He id eg ge r pa ra o d es li nd e d a co mp le xi da de d o pr ob le ma fi lo só fi co q ue a tr av es sa d oi s mi lê ni os : a s co nd iç õe s de p os si bi li da de do co nh ec im en to e d a co mp re en sã o. Tu ge nd ha t, po r e x e m pl o, di z q ue Ar is tó te le s l ev ou a fi lo so fi a o ci de nt al pa ra u m b ec o s e m s aí da d o qu al n o s t en ta ra m ti ra r, a o m e s m o t em po , a f ilo so fi a an al ít ic o- li ng uí st ic a e a o nt ol og ia fu nd am en ta l d e He id eg ge r. À pe rg un ta : q ue be co s e m sa íd a é es te ?, E mi ld o St ei n re sp on de rá , c o m a p ro pr ie da de d e s e m pr e: "E st e be co s e m s aí da se c ha ma m et af ís ic a. T an to a fi lo so fi a ar ta Kt ic o- - Un gu ís ti ca , q ua nt o He id eg ge r, há m a is d e ci nq üe nt a an os , cr it ic am a me ta fí si ca po rq ue el a é u m a te or ia ób jet iva dor a d o s er e m lu ga r d e p er ce be r o se r n u m a di me ns ão pu ra me nt e l óg ic o- se mâ nt ic a o uf or ma l- se mâ nt ic a, A m e ta fí si ca é ba si ca me nt e, se p en sa rm os a c oi sa ma is pr of un da me nt e, o n o m e pa ra u m p en sa me nt o ob je ti va do r q ue n ão te m pe rc ep çã o d a d if er en ça en tr e ob jet o e si gn if ic ad o, A te se da di fe re nç a ô nt ic oo nt ol óg ic a, qu e He id eg ge r c ha ma às ve z e s a pe na s di fe re nç a o nt ol óg ic a, en co nt ra u m a t ra du çã o a de qu ad a n a te rm in ol og ia d e Tu ge nd ha t d a c ha ma da se mâ nt ic a f or ma l" .^ N o p la no d o Di re it o, o r om pi me nt o c o m e s s a t ra di çã o é ex tr e m a m e n t e di fí ci l e n ão s e f az s e m r a n hu ra s. C o m e fe it o, e m bo ra m a is ^ Cf . S te in , E mü do . R ac io na li da de e E xis tên cia . P or to Al eg re : L &P M, 19 88 , p . 3 9. ^ Cf . S te in , E mü do . A ca mi nh o d e u m a fu nd am en ta çã o p ós- met ítf ísi ca. op . c ít. , p . 8 8. lí er me nê ut ic a J ur íd ic a e {i n) Cr is e 2 5 9 w ) li ili í 11 preocupado (ou preocupado ainda) com a'perspectiva objetivista da interpretação do Direito, Marques Neto assinala que "a recusa de uma concepção metafísica do Direito não se faz sem problemas. O mesmo ocorre, aliás, com a afirmação dessa concepção. Crer que há uma es sência verdadeira em si mesma do Direito — como que à espera de ser captada em sua inteireza pelo sujeito do conhecimento, seja me diante um trabalho estritamente racional de índole dedutiva, em que as normas do Direito racional, isto é, as chamadas leis da natureza, seriam apreendidas como autênticos corolários a que se acederia pelo raciocínio a partir de princípios autoevidentes estabelecidos a priori; seja captando essa essência na dinâmica da vida social, através da in vestigação sociológica do fenômeno jurídico; seja buscando-a na exe gese dos textos legais crer nisso, não deixa de ser confortável".^^ A mesma dificuldade se dá com a tentativa de romper com as posturas que apostam no subjetivismo do intérprete, que não deixa de repetir o fundamentum inconcussum presente nas correntes essencialistas, isto é, o sujeito solipsista apenas substitui a (antiga) essência. Este é o ponto fulcral que os juristas não conseguem perceber. Nesse sentido, para a elaboração de uma crítica ao discurso dog- mático-jurídico dominante, impregnado por essas perspectivas, são imprescindíveis - muito mais por suas aproximações do que por suas diferenciações - as contribuições das diversas correntes linguístico- -filosóficas (Wittgenstein, Austin, Habermas, Rorty, só para citar al gumas) graças às quais a pergunta pelas condições de possibilidade do conhecimento confiável, característico da filosofia moderna, trans forma-se na pergunta acerca das condições de possibilidade de sentenças intersubjetivamente válidas a respeito do mundo, o que significa dizer que "não existe mundo totalmente independente da linguagem, ou seja, não existe mundo que não seja exprimível na linguagem",^ É nessa linha que a presente obra privilegia Heidegger e Gadamer, com pita das de Wittgenstein (das Investigações Füosóficas) e a teoria intrega- tiva de Dworkin. Isso ficará mais evidente nas páginas seguintes. Nessa linha de aproximação linguístico-füosófico-hermenêutica, Vattimo lembra que no horizonte da reflexão hermenêutica, centrada no problema da interpretação, há uma linhagem que pode ser reco nhecida, procedendo de Schleiermacher, Dilthey e Nietzsche e flores cendo em Heidegger, Gadamer, Ricoeur, entre outros, e que encontra Cf. Marques Neto, op. dt., p. 28. Cf. Oliveira, Reviravolta, op. dt, p.l3. 260 Lento Luiz Streck pontos de aproximação com as reflexões de Apel, Habermas, Fou- cault e Denida,^^ Com razão Vattimo. Nesse caminho - que inicia stricto sensu na modernidade - está o nascedouro da própria hermenêutica. Isto por que a hermenêutica é uma conquista da modernidade. Afinal, se a ruptura com o "mito do dado" {adequatio intéllectum et rei), patente em expressões do tipo "isso é assim mesmo", se dá com o alvorecer da subjetividade - e isso se dá com o advento da modernidade -, o desafio passa a ser a descóberta de que como o sujeito pode vir a atri buir sentidos. A viragemhermenêutico-ontológica, provocada por Sein und Zeit (1927), de Martin Heidegger, e a publicação, anos depois, de Wahrheit und Methode (1960), por Hans-Georg Gadamer, foram fimdamentais para um novo olhar sobre a hermenêutica jurídica. A partir dessa on- tologische Wendung, inicia-se o processo de superação dos paradigmas metafísicos objetivista aristotélico-tomista e subjetivista (filosofia da consciência), os quais, de um modo ou de outro, até hoje têm susten tado as teses exegético-dedutivistas-subsuntivas domineintes naquilo que vem sendo denominado de hermenêutica jurídica. Antes, porém, de analisar suas conseqüências para o pensamento jurídico, cabe uma preparação que nos permita demarcar os percursos da hermenêutica até a radicalização do giro hermenêutico-ontológico. 10.2. A hermenêutica e seus três estágios: técnica especial para interpretação; teoria geral da interpretação e hermenêu tica fundamental Hermenêutica significa, tradicionalmente, teoria ou arte da inter pretação e compreensão de textos, cujo objetivo precípuo consiste em descrever como se dá o processo interpretativo-compreensivo.^^'^ Ain- 396 Yçj. Vattimo, Giaimi. Éihique de láinterprétation. Paris: La Déconverte, 1991,2® parte, p, 93, apud César, Constança Marcondes. Ética e hermenêutica: a crítica do cogito em Paul Ricoer. In: Revista brasileira de filosofia. Fac. 184, vol. XLU São Paulo: IBF, out-nov- -dez 1996, p. 399. ^ Esse escorço histórico de construção da hermenêutica pode ser encontrado em au tora como Paul Ricouer em seu Do Texto à Ação. Ensaios de Hermenêutica ü. Porto: Rés, 1989; e Josef Bleicher {Hermenêutica Contemporânea. Lisboa: Edições 70,1992). Tanibém Rafael Tomaz de Oliveira ressalta pontos importantes desse percurso histórico a partir da idéia de "Era da Hermenêutica", como é apresentada por Emildo Stein (Cf. Tomaz de Oliveira, Rafael. Decisão Judidal e o Concdto de Princípio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008; Stein, Emildo. História e Ideologia. Porto Alegre: Movimento, 1972). É Hennenêutica Jurídica e(m) Crise 261 í lí: - da em seu sentido tradicional, a hermenêutica comporta, além desse caráter teórico-descritivo, \ima dimensão prescritiva, na medida em que, deste processo descritivo, procura-se estabelecer um conjunto mais ou menos coerente de regras e métodos para se interpretar e compre ender corretamente os diversos textos que povoam o cenário cultural humano, seja no âmbito da arte (literatura, poesia etc.), seja no âmbito religioso (na interpretação dos textos sagrados), seja no âmbito jurídi co (na interpretação dos textos de leis, decretos, jurisprudências etc.). Desse modo, temos por esboçados os três campos do conhecimento que irão se interessar, de maneira mais direta, pelos problemas her menêuticos: a) a Filologia; h) a Teologia; c) o Direito. Já neste ponto inicial, é preciso atentar para um importante de talhe: as reflexões hermenêuticas sempre se desenvolvem numa du pla perspectiva. Há uma perspectiva teórica que procura descrever como o processo de interpretação e compreensão acontece; que tipo de conhecimento é esse; como esse conhecimento se articula no interior da dualidade que rege as teorias do conhecimento que opõem sujeito e objeto - em que se afirma haver em toda relação de conhecimento um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido, sendo objetivo das teorias do conhecimento descrever como essa oposição se resolve na mente, no sujeito que conhece, Essa seria uma perspectiva teórica da hermenêutica. Por outro lado, há também uma perspectiva prescritiva (prática) na medida em que essa descrição visa a atingir um resultado: procura estabelecer regras e métodos que conformem de tal modo o processo de interpretação e compreensão que tome possível reduzir os erros e mal-entendidos que possam surgir da leitura dos textos. Assim, a hermenêutica não pretende apenas reunir um conjimtode conheci mentos teóricos acerca do problema interpretativo-compreensivo, mas, na trilha do iluminismo-racionalista, pretende também produzir cri térios para afirmação de certeza e objetimdade no processo de interpre tação e compreensão. Este um quadro geral das teorias clássicas da hermenêutica, que operam, de uma maneira mais ou menos genérica, da seguinte forma: primeiro observam-se os problemas que emanam do processo inter- pretativo, depois procura-se resolvê-los a partir da determinação de importante lembrar, ainda na esteira desse complexo que é a história da hermenêutica, a dbra de Günter FigaL Oposicionalidade: o demento hermenêutico e a filosofia, Petrópolis: Vozes, 2008. As principais contribuições desses autores iluminam - em maior ou menor medida - a trajetória da hermenêutica aqui retratada. Uma versão desse escorço está também em artigo a ser publicado em in^ês (Streck, L.L. The rise ofphüosophical herme- neutics in law), ai^a inédito. 262 Lenio Luiz Streck si:! i;! li àL uma estrutura metodológica que reduza os erros e as incompreensões, possibilitando, assim, a correta compreensão dos textos analisados. No século XIX, com a emergência da discussão envolvendo a autonomia das Ciências Hximanas - também chamadas de Ciências do Espírito (Geisteswissenschaften), o filósofo alemão Wilhelm Dilthey passará a empregar o temíb hermenêutica para designar a exploração e formação da estrutura metodológica destas ciências, que estão basea das num processo de compreensão, enquanto as Ciências Naturais - que receberam seu fundamento filosófico a partir da Crítica da Razão Pura de Kant - estariam baseadas em processos de explicação, desenvolvi dos através de uma sistemática que envolve causas e efeitos. Posteriormente, a partir da primeira metade do século XX, prin cipalmente por meio de Martin Heidegger, o termo hermenêutica pas sará por uma transformação e será uâizado em uma conotação que nunca havia sido pensado antes em toda história da filosofia. Diante deste novo uso, pelo menos três questões que compõem a doutrina clássica da hermenêutica podem ser questionadas: 1) seu uso restrito à interpretação de textos; 2) a prioridade da interpretação sobre a com preensão', 3) a estrutura metodológica como meio formal para garantia de certeza e objetividade do processo interpretativo. Com efeito, Heidegger radicaliza o problema hermenêutico de modo a introduzir nele algo que poderíamos chamar de elemento an tropológico. Por meio de suas intuições fundamentais, o filósofo pôde perceber que toda compreensão - seja ela compreensão de um texto ou da própria história - se encontra já fundamentada em uma com preensão que o ser humano tem de si mesmo, enquanto ser histórico dotado de existência. Desse modo, todas as estruturas fundamentais da existência humana^ passam a ser pensadas e analisadas a partir ^ Desde as Interpretações fenomenológicas sobre Aristóteles em 1921, passando pelo cvtr- so Ontologia - Hermenêutica da Fatic^âe em 1923, até chegar à sua obra capitai. Ser e Tempo, em 1927, Heidegger constrói um conceito filosófico re^onsável por uma revo lução nas tradicionais teorias da subjetividade e da consciência, Com efeito, o esforço contínuo do fflósofo para colocar a reflfôíão filosófica nos trilhos da vida fática — que desde 1921 ele já chamava de faticidade - representou um rompimento com o caráter apodídico que reveste o conceito de subjetividade desde Descartes, bem como rompia com as fundamentações empíricas para o conceito de consciência, como podemos ob servar em John Locke. Esse conceito, que Heidegger oporá à toda tradição filosófica anterior (Metafísica), é o concelio de Dasein (ser-aí). Dasein, portanto, será o termo a partir do qual o filósofo designará -filosoficamente - o ser humano, a partir do qual se rão analisadas as estruturas Sticas da existência humana. Na descrição realizada pelo filósofo, Dasein é um tipo de ente que, em seu modo de ser, possui como possibilidade a compreensão do seu ser e do ser dos demais entes íntramundanos. O Dasein é, portanto, o ente que compreende o ser e, nesta compreensão tem implícita uma compreensão de Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 263 ir I: ÍM im li i ,1 desta dimensão hermenêutica que fundamenta a própria existência: compreender a nós mesmos e a nossa história é condição de possibili dade para que possamos compreender textos, palavras, histórias etc. Destarte: 1) além do uso restrito a textos, a hermenêutica passa a se referir às estruturas fundamentais do ser humano; 2) como para interpretar um texto ou uma ação de outra pessoa, de vemos pressupor uma compreensão existencial de nós mesmos, a prio ridade da interpretação sede lugar à compreensão de modo que, não se interpreta para compreender, mas se compreende para interpretar,"^®^ 3) o necessário ideal de transparência que se encontrava por de trás das posturas hermenêuticas tradicionais e que possibilitava a crença de que seria possível encontrar um método rígido e definitivo para evitar erros e mal-entendidos, no interior da hermenêutica hei- deggeriana, desaparece. Isto porque, como o próprio fato da existên cia, enquanto ser humano situado historicamente, se constitui como elemento essencial para qualquer interpretação: não há transparência possível de ser alcançada. A faticidade humana sempre deixa algo de fora (algo sempre escapa) e isso é inevitável. O que permanece possível é a tentativa de üuminar novos espaços de significados que pressupõe a necessidade de uma pluralidade abrangente de caminhos a se seguir, que o estreito ideal moderno de método não pode possibilitar.^ seu próprio ser. O termo demâo Dasein tradicionalmente designa existência (é neste sentido que é usado por filósofos da tradição metafísica, como é o caso de Kant, por exemplo), encontra sérios problemas na tradução para outras línguas. Isso porque Heidegger oferece ao termo uma conotação diferenciada que mantém o significado inicial de existência, mas no sentido daquele ente que, entre todos os outros, existe, que é o ser humano. Para Heidegger somente o Dasein existe, porque existência im plica possibilidades, projetos. Os demais entes intramtmdanos, que estão à disposição subsistem. Esclarecendo a questão do Dasein Michael Inwood afirma que: "Dasein é o modo de Heidegger referir-se tanto ao ser humano quanto ao tipo de ser que os seres humanos têm. Vem do verbo dasein que significa 'existir' ou 'estar aí, estar aqui'. O substantivo Dasein é usado por outros filósofos, Kant por exemplo para designar a existência de toda entidade. Mas Heidegger restringe-o aos seres humanos. (...) Por que Heidegger fala do ser humano dessa maneira? O ser dos seres humanos é notada- mente distinto dos ser de outras entidades do mundo. O Dasein é uma entidade para a qual, em seu Ser, esse Ser é uma questão". Inwood, Michel. Heidegger. Tradução de Adail übirajara Sobral. São Paulo: Loyola, 2004, p. 33-34. ^ Cf. Streck, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, Capítulo V. ^ Convém registrar aqui uma observação de Hans-Georg Gadamer quando aborda a questão do método: "Em verdade, a palavra método soa muito bem em grego. Todavia, enquanto tima palavra estrangeira moderna, ela designa algo diverso, a saber, um ins trumento para todo conhedm«ito, tal como Etescartes a denominou em seu Discurso do 264 Lenio Luiz Streck De maneira geral, estão esboçados os três estágios pelos quais a hermenêutica teve que passar: de disciplina especial para interpreta ção de textos (sacros, profanos e jurídicos) - também chamada herme nêutica especial; para uma teoria geral da interpretação - com Dilthey e seu projeto de emancipação metodológica das Ciências do Espírito; e uma hermenêutica fundamental - enquanto reflexão cravadanas estruturas existenciais concretas do ser humano, tais quais descrevem Heidegger e Gadamer. Procurarei a^ora abordar mais de perto cada um desses estágios. 10.2.1. Hermenêutica especial Os estudos sobre hermenêutica não se revestiam de uma condi ção significativa antes da eclosão do Humanismo Renascentista bem como da Reforma Protestante. Apenas o uso canônico do termo, num sentido, muito restrito à exegese da Bíblia, é que lhe garantia alguma dignidade durante a Idade Média. Mas a transição do medievo para a modernidade passou a alterar esse panorama por dois motivos: primeiro, em virtude do descobrimento dos escritos profanos - proi bidos durante a Idade Média - e a necessidade de interpretação e entendimento destes escritos; no contexto da Reforma, a necessidade de se buscar uma outra justificativa para a interpretação da Bíblia que não estivesse reduzia à oficial, imposta pela Igreja. Gadamer afirma que o primeiro registro da palavra hermenêu tica como título de livro remonta ao ano de 1654, sendo tributado ao teólogo Dannhauer. Foi ele também quem provavelmente sistemati zou os estudos sobre hermenêutica e começou a fazer a distinção en tre uma hermenêutica teológica, uma hermenêutica füológica e uma hermenêutica jurídica.^^ De um modo geral, pode-se dizer que a hermenêutica teológica se ocupava com a arte da interpretação dos textos sagrados; enquanto que a hermenêutica filológica procurava dar conta da interpretação das alegorias que apareciam nos textos da literatura clássica. Os tex tos em grego exigiam um esforço muito grande para se determinar os método. Enquanto um tenno grego, a palavra tem em vista a multipliddade, com a qual se penetra em uma região de objetos, por exemplo, enquanto matemático, enquanto mestre de obras ou enquanto alguém que filosófa sobre ética" (Gadamer, Hans Georg. Hermenêutica em Retrospectiva. A Virada Hermenêutica. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 2006, p.164). ^ Cf. Verdade e Método 11, p. 113. Hermenêutica Jurídica e{m) Crise 265 I li ti , í 1' 1? i' I. r - i f ; "r J i' l ? i- ; "r , sentidos das palavras, o que, inevitavelmente, levava a i^a mterpre- tação da etimologia de cada um dos vocábulos empregados nas peças clássicas. A hermenêutica jurídica, por sua vez procurava dar conta da interpretação das compilações romanas -era o tempo da recepção e vigorava ainda o direito comum, pré-codificação. Essa fase marca em grande medida uma configuração não umtá- ria dos estudos hermenêuticos, por isso ela é chamada de Hemeneu- tica especial, porque funcionava como uma disciplina especial para interpretação de textos de cada um destes cainpos do conhecimento. Gadamer chama esse período de Hermenêutica Clássica, e ele pas sa a ser importante na medida em que, já nessa época, começam a aparecer os conceitos hermenêuticos fundamentais tais quais: inter pretação, compreensão e aplicação. Também essa época é importante por estabelecer uma das preocupações essenciais da hermenêutica: um contraponto refletido contra qualquer tipo de absolutismo dog mático. 10.2.2. Teoria geral da interpretação Mas é com o romantismo alemão que a hermenêutica assumirá seus contornos mais sofisticados, chegando a ser tematizada expres samente como fÜosofia dotada de uma universalidade. Novamente um teólogo, Schleiermacher, é quem efetuará esta tarefa. Todavia, embora seja correto afirmar a absoluta preponderân cia que encontra a obra de Schleiermacher no contexto da afirmação da hermenêutica como teoria geral da interpretação, no contexto de sua obra a hermenêutica se apresenta, ainda, como um apêndice lação aos seus interesses preponderantes: a religião e a política. No contexto do romantismo alemão do Aujklãrung, Schleiermacher e, ao mesmo tempo, um entusiasta das idéias de liberdade que vêm da re volução francesa e um construtor da concepção de religião como esté tica. A hermenêutica, nesse contexto, é uma disciplina ^ da auxilia - apêndice da religião e dos estudos sobre arte, principalmente da poesia - que seria, ainda, serviente à dialética. O programa de Schleiermacher de uma hermenêutica univer sal pode ser encontrado em alguns opúsculos e coletâneas de afo- Cf. Sahanskí, Rüdiger. Romantismo: uma Questão Alemã. São Paulo: Estação Liber dade, 2010, p. 142 e segs. Lenio Luiz Streck 266 r- rismas.'^®^ Embora os dois textos apresentem elementos importantes para a compreensão do projeto teórico de Schleiermacher, é no livro Hermenêutica e Crítica que encontramos as indicações mais incisivas daquilo que pode ser considerada a maior inovação do autor para os estudos sobre hermenêutica. Heidegger oferece uma apresentação condensada dessa ino vação. Afirma o filósofo da floresta negra que Schleiermacher defi niu em Hermenêutica e Crítica a idéia de hermenêutica como "'arte (doutrina da arte) da compreensão' da fala de outros, ele coloca-a em relação, enquanto disciplina, com a gramática e a retórica, com a dialética; essa metodologia formal, e enquanto 'hermenêutica geral' (teoria ou doutrina da arte da compreender a fala de outros de modo geral) abrange as hermenêuticas especiais, a hermenêutica teológica e a hermenêutica fílológica".^ Nota-se, portanto, que a novidade do pensamento de Schleier macher se manifesta a partir da unificação dos estudos hermenêuticos em tomo de um elemento comum, que ligasse os estudos desenvol vidos independentemente do campo específico em que se movimen tasse o intérprete. O que estava na linha de frente de Schleiermacher era o pro blema dos mal-entendidos que poderiam surgir na compreensão de um texto. Mal-entendidos estes que poderiam levar a uma interpre tação completamente distinta do sentido que o autor do texto impri miu. Era preciso então criar algo que permitisse que a interpretação preservasse o sentido correto, tal qual o autor determinou ao texto. Devido a sua proximidade com o ilumiiüsmo alemão (Aufklarung), a saída de Schleiermacher se deu pela via do método. Mas o método de Schleiermacher era sensivelmente distinto de todos aqueles previstos pela tradição anterior. Era, em parte, uma continuidade com o mode lo circular da tradição, através do qual o intérprete se movimentaria do todo para a parte e da parte para o todo, de modo a apurar sua compreensão a cada movimentação efetuada. Ao final deste procedi mento, que Schleiermacher denominou Círculo Hermenêutico, o sen tido original estaria preservado, e a compreensão encontraria nele aquilo que o próprio autor imprimiu. A ênfase no "sentido do au tor" levará os comentadores do mencionado filósofo a classificar sua ^ Cf. Schleiermacher F. D. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Petrópolis: Vo zes. 1999, passhn.; bem como, Schleiermacher, F. D. Hermenêutica e Crítica. Vol. 1. JÇiu: Unijuí,2006. ^ Cf. Heidegger, Martin. Ontologia - Hermenêutica da Faticidade. Petrópolis: Vozes, 2012, p.20. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 267 IM n I' i \M i teoria da interpretação como hermenêutica psicológica. A universalida de da hermenêutica estaria garantida pelo método: era uma universa lidade procedimental.^® Para a construção dessa sua inovadora doutrina/ Schleiermacher não desconsiderou as regras de interpretação que haviam sido ela boradas pelos teóricos das hermenêuticas especiais. Na verdade, ele conferiu a elas um sentido sistemático, ligadas por um elemento psi cológico muito forte. Como afirma Dilthey: "apoiada na virtuosidade filosófica de sé culos, a hermenêutica trouxe à consciência as regras segimdo as quais essas fimções devem operar [interpretação gramatical, histórica, retó- rico-estética e objetiva - acrescentei]. Questionando a razão de ser das próprias regras, Schleiermacher deu mais um passo rumo à analise do entendimento, isto é, na direção do conhecimento da própriaação final. Desse conhecimento ele deduziu a possibilidade de uma inter pretação universalmente válida de seus recursos, limites e regras . É evidente, nessa contribuição de Schleiermacher, as influências da filosofia transcendental e da revolução da subjetividade, levada a cabo pela modernidade filosófica. As construções de Schleiermacher só são possíveis porque, em um determinado sentido, duas indivi dualidades foram postas ao descoberto: a individualidade do autor do texto (que emite a mensagem) e do intérprete que a recebe e pre cisa entendê-la. É por isso que a hermenêutica, no modo como falamos dela, é uma questão moderna: ela precisa desse processo de autoafirmação do sujeito, tão próprio da modernidade, para poder ter seu inicio como doutrina da interpretação (ou, simplesmente, hermenêutica geral). Essa impressão não passou despercebida pelo gênio de Dilthey. A afirmação da individualidade foi por ele constatada na segumte afirmação: "ele (Schleiermacher) reconheceu a condição necessária para o conhecimento daquele outro processo que revela, nos sinais gráficos, o conjunto da obra e, na obra, a intenção e a mentalidade do ^ Para uma ampla exploração histórica da hermenêutica, reconstruindo o caminho de Dilthey desde a reafirmação da hermenêutica no âmbito da filologia e da teologia no esclarecimento alemão {Aufldãrung) e das contradições da hermenêutica romântica, até sua construção como metodologia das ciências do espírito: Gadamer, Hans-Georg. Ver- dade e Método. Traços Fundamentais de Uma Hermenêutica Filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 237-353. ^ Cf. Dilfiiey, Wilhelm. O Nascimento da Hermenêutica. In: Filosofia e Educação: Textos Selecionados. São Paulo: Edusp, 2010, p. 375. 268 Lenio Luiz Streck autor. Para resolver esse problema era necessária uma nova visão histórico- -psicolôgica" Portanto, se apresenta claramente que o problema da compre ensão dos textos - independente da especialidade em que se situem - é para Schleiermacher um problema que implica a articulação de elementos gramaticais, das partes com o todo dos próprios signos lin güísticos que o compõem, como também uma aproximação - ou uma comunhão, seria melhor dizer - com a individualidade do autor, ou dos autores, do texto. Na verdade, esse elemento psicológico da descoberta - quase criativa - da intenção do autor é tão realçada por Schleiermacher que Dilthey chegará a afirmar que "o objetivo último do processo herme nêutico consiste em compreender melhor o autor do que ele próprio se compreendeu".^ Ambos os processos - a elucidação dos elementos gramaticais do texto e a interpretação histórico-psicológica - apresentam caracterís ticas drculares. Na descrição de Dilthey: "a interpretação gramatical, que avança no texto de conexão em conexão até chegar aos nexos su premos no todo da obra, e a interpretação psicológica, que parte da transposição para dentro do processo criativo, avançando de lá para a forma exterior e interior da obra e desta à apreensão da unidade da obra na maneira de pensar e no desenvolvimento de seu autor".^ Dilthey irá se apropriar dos elementos desenvolvidos por Sch leiermacher para construir o seu projeto hermenêutico. Continua ele perfüando as trilhas abertas pela teoria geral da interpretação. Mas toma mais difuso e abrangente o campo de análises da hermenêutica. Schleiermacher havia situado em tomo de duas individualidades o seu programa interpretativo: o autor e o intérprete. Dilthey, por sua vez, coloca o intérprete como ator do processo histórico e desloca a tarefa interpretativa para a compreensão do todo da própria história, vale dizer, das vivências que, juntas, compõem o fluxo histórico. As sim, a tarefa será reconstruir não o nexo de individualidades, mas, sim, o nexo de vivências. Nesse contexto, surge para Dilthey a necessidade de descrição de um conceito central não apenas para a compreensão da história mas de qualquer uma das ciências do espírito: o conceito de vida. Vida, para ele, signifíca a realidade originária nuclear, na qual radica também todo o conhecimento histórico. Nesse caso, há aqtti ^ Cf. Mthey, Wilhelm, op, cit, p. 375 (grifei) «»Idem,p.378- ^ Idem, ibidem. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 269 M .1» 2Í--Í n| Ú (i ^lí i i-í I iii ií it rife li! ? í i ^ ^1 I ^ f o embrião daquela que seria uma das críticas mais ferozes ao trans- cendentalismo kantiano: tudo o que há de objetivo na vida humana repousa no trabalho da vida, formador de pensamento, e não em um sujeito epistemológico. Assim, a vida humana é sempre uma totali dade significativa, xim nexo reunitivo, sendo que a vivência singular constitui parte da totalidade do decurso da vida.^^° Assim o movimento compreensivo opera como um fator de me diação entre a vivência individual e o conjunto de vivências que cons tituem o todo da história. A compreensão funcionará, assim, como um médium entre um nexo significativo e um nexo operativo. Este último representa um pressuposto necessário, ou um elemento de antecipação da com preensão das vivências singulares, que se apresenta na descrição do modo como uma época representa um nexo de significação unitário e consistente: deve-se compreender todos os fenômenos desse tempo a partir dessa sua estrutura fundamental.^" A compreensão histórica significa, nesse sentido, um constan te crescimento da autoconsciência; uma constante ampliação do ho rizonte da vida. A universalidade de Dilthey, como historiador do espírito, repousa justamente nessa ampliação infinita da vida na com- preei\são. Esse aspecto representa um ponto de tal modo fundamental que autorizará Gadamer a afirmar o seguinte: "A consciência histórica re presenta o fim da metafísica". Por certo, a concepção de Dilthey representa, ainda, uma con tinuidade com alguns elementos da interpretação psicológica de Schleiermacher. Todavia, devemos reconhecer - ainda com Gadamer - que a sua concepção de hermenêutica avançou para um sentido mais intersubjetivo a partir da identificação de nossa radical condi ção histórica. De fato, como diz Gadamer, "precisamos aprender a ler Dilthey contra sua própria concepção de método". É o seu apego aos ele mentos procedimentais de Schleiermacher que leva Dillhey a afirmar a compreensão como um acessório, uma ferramenta das ciências do espírito. Daí a sua concepção da hermenêutica como um apêndice das ciências do espírito. Cf. Dilthey, Wilhelm. Introdução às Ciências Hunumas. Rio de Janeiro; Forense Univer sitária, 2010, passim. Idem, ibidem. Cf. Gadamer, Hans-George. Verdade e Método H, op. cii., p. 49. Idem, ibidem, p. 40. :ít- Na verdade, o erro de Dilthey pode ser resumido da seguinte forma: a significação não se revela no distanciamento do elemento compreensivo, não se manifesta com um conteúdo apenas instrumen- tal/ferramental, mas pelo fato de nós mesmos estarmos inseridos no nexo de efeitos da historia. A compreensão histórica é, ela própria, sempre, a experiência de Um efeito e o prolongamento de sua efetivi- dade.^^^ Essa questão ficará mais clara a partir da análise daquilo que podemos chamar de hermenêutica fundamental. 10.2.3. Hermenêutica fundamental Não é neste sentido que Heidegger se apropria da hermenêutica. A interpretação que ele efetuará é tão violenta que o fundo metodoló gico que reveste o sentido da hermenêutica na tradição será destruído. Em um pequeno livro do início da década de 1920 — no qual o filósofo antecipa muito do que será tratado depois em sua obra máxima: Ser e Tempo - Heidegger estabelece um novo lugar para a hermenêutica e para o Círculo Hermenêutico de Schleiermacher. O nome da obra já causa impacto: Hermenêutica da Faticidade.^^ A partir deste livro, a her menêutica, até então utilizada exclusivamente para interpretaçãode textos, passa a ter como "objeto" outra coisa: a.faticidade. Mas o que é faticidade? Em nota anterior, para explicar o giro ontológico de Heide gger, afirmamos que o filósofo dá ao homem o nome de Ser-at e que o modo de ser deste ente é a existência. Todavia, dissemos também que este ente - que somos nós - chamado Ser-ai é o que ele já foi, ou seja: o seu passado. Podemos dizer que isso representa aquilo que desde sempre nos atormenta e que está presente nas perguntas: de onde vie mos? Para onde vamos? A primeira pergunta nos remete ao passado; a segunda, ao futuro. O passado é selo histórico imprimido em nosso ser: Faticidade; o futuro é o ter-que-ser que caracteriza o modo-de-ser do ente que somos (Ser-aí): Existência. Portanto, a hermenêutica é utili zada para compreender o ser (faticidade) do Ser-aí e permitir a abertu ra do horizonte para o qual ele se encaminha (existência). Aquilo que tinha um caráter ôntico, voltado para textos, assume uma dimensão ontológica, visando à compreensão do ser do Ser-aí. Note-se: de um modo completamente inovador, Heidegger crava a reflexão filosófica Cf. Gadamer, Hans-George. Verdade e Método U, op. ctf., p. 46. Cf. Heidegger, Martin. Hermenêutica de Ia Faticidad. Texto disponível em cwwwiiei- deggeiiana.com.ar/henneneulica/mdiDe.htm>. Acessado em 27 de julho de 2007. 270 Lenio Luiz Streck Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 271 IIIji^li,i ^ n a concretude, n o plano prático e precário da existência humana. Por certo que essa reflexão reclama u m a abstração muito forte que decor re do necessário distanciamento para perceber aquilo que de nós está mais próximo. Porém, a abstração parte de algo concreto, taticamente determinável, e procura c o mpreender aquilo que nós m e s m o s ja s o m o s . Mas nós c o mpreendemos o que nós m e s m o s já s o m o s n a m edida e m que c o mpreendemos o sentido do ser. Também já alertamos para o fato de que homem {Ser-aí) e ser estão unidos por u m vuiculo indisso ciável. Isto porque, e m tudo aquilo c o m que ele se relaciona, o homem já compreendeu o ser, ainda que ele não se dê conta disso. Há, e m toda ação humana, u m a c o mpreensão antecipadora do ser que permite que o homem s e m o vimente n o m u ndo para além de u m agir n o u niverso m e r a m e nte empírico, ligado a objetos. Relacionamo-nos c o m as coisas, c o m o empírico, porque de algum m odo já s abemos o que e c o m o elas são. Há algo que acontece, além da pura relação objetivadora.^^^ Nosso privilégio se constitui pelo fato de termos a " m e mória do ser"; o u seja: temos u m privilégio ôntico — entre todos o s entes apenas nós existimos; e u m privilégio ontológico - de todos o s entes s o m o s o s únicos que, e m seu modo-de-ser, c o mpreendem o ser. Desse duplo privilégio, o filó sofo a n ota u m terceiro: u m privilégio ôntico-ontológico — a c o mpreensão do ser deste ente que s o m o s é condição de possibilidade de todas as outras ontologias (do Direito, da História, do Processo etc.).^^^ Didaticamente, podemos dizer: o fato de podermos dizer que algo é, já pressupõe que tenhamos dele u m a compreensão, ainda que incerta e m ediana. E m ais! Só n o s r elacionamos c o m algo, agimos, di- r e cionamos n o s s a s vidsis n a m edida e m que temos u m a c o mpreensão do ser. A o m e s m o tempo, só podemos c o mpreender o ser n a m edida e m que já n o s c o mpreendemos e m nossa faticidade. O a c o mpanhamen to desta rápida exposição por si só já dá conta da estrutura circular e m que se m o vimenta o pensamento heideggeriano. Essa estrutura circu lar é o Círculo Hermenêutico, não m ais ligado à interpretação de textos, m a s à compreensão da faticidade e existência do Ser-aí.*^^ É preciso Para u m a análise pormenorizada Cf. Stein, Emildo. Pensar é Pensar a D^erença. A Filosofia e o conhecimento Empírico, ^ uí: Editora Unijuí, 2002. ^ Cf. Heidegger, Ser y Tiempo, p. 36. Sobre o dmilo hermenêutico n o sentido que a s s u m e e m Heidegger, Stein a n ota o seguinte: "Õ homem se compreende quando compreende o ser, para compreender o ser. Mas logo e m seguida Heidegger vai dizer: 'Não se c o mpreende o homem s e m se conq?reender o ser'. Então a ontologia fundamental é caracterizada por esse círculo: es tuda-se aquele ente que tem por tarefa compreender o ser e, contudo, para estudar esse ente que compreende o ser, já é preciso ter compreendido o ser. O ente homem não se c o mpreende a si m e s m o s e m compreender o ser, e não c o mpreende o ser s e m compre- á notar que o homem só c o mpreende o ser n a m edida e m que pergunta pelo ente. Vejamos o n o s s o c a s o : c olocamos e m m o vimento u m a refle xão sobre o processo n a perspectiva de que, a o final, possamos dizer algo s obre o s e u ser (uma definição s obre o processo c o m eçaria c o m : o processo é...). M a s ninguém negaria que o processo s e trata de u m ente. U m ente que é interrogado e m s e u ser, pois toda pergunta pelo pro cesso depende disso: O que é processo? Como é o processo? Assim, e m bora o ser e o ente se deem n u m a u nidade que é a c o mpreensão que o homem (Ser-aíj tem do ser, há entre eles u m a diferença. Esta diferença Heidegger chama de diferença ontológica e se dá pelo fato de que todo ente só é n o s e u ser. E m outras palavras, a pergunta se dirige para o ente, n a perspectiva de o c o mpreendermos e m s e u ser. Falamos do círculo hermenêutico e da diferença ontológica que são o s dois teoremas fundamentais da fenomenologia hermenêutica. Sa bemos, então que o homem (Ser-aí) c o mpreende a si m e s m o e c o m preende o ser (círculo hermenêutico) n a m edida e m que pergunta pelos entes e m s e u ser (diferença ontológica). D e plano, o fenômeno que toma frente nesta curta exposição é a c o mpreensão. A partir de Heidegger, a hermenêutica terá raízes exis tenciais porque s e dirige para c o mpreensão do ser-dos-entes. Se n o s paradigmas anteriores vigia a crença de que primeiro interpretamos - através de u m método - para depois c o mpreender, Heidegger n o s m o stra a partir da descrição fenomenológica realizada pela analítica existencial e m Ser e Tempo que compreendemos para interpretar. A in terpretação é s e mpre derivada da c o mpreensão que temos do ser-dos- -entes. O u seja, originariamente o Ser-aí c o mpreende o e nte e m s e u ser e, de u m a forma derivada, toma explícita essa c o mpreensão através da interpretação. N a interpretação, procuramos manifestar o nticamente aquilo que foi resultado de u m a c o mpreensão ontológica- A interpre tação é o m o m e nto discursivo-argumentativo e m que falamos dos e n tes (processo, Direito etc.) pela c o mpreensão que temos de s e u ser.^ ender-se a si m e s m o ; isso n u m a espécie de esferaantepredicativa que seria o objeto da exploração fenomenológica - daí v e m a idéia de círculo hermenêutico, n o sentido m ais profundo". Stein, Racionalidade e Existência, p. 79. Cf. Streck, Jurisdiçõo Constitucional e Hermenêutica, p. 197 e seguintes. ^ Assim fala Heidegger: "Eh Ia interpretadón el comprender se apropia comprensora- m e nte de Io c o mprendido por él. E n Ia interpretadón el c o mprender n o s e convierte e n otra cosa, sino que üega a ser él mismo. La interpretadón s e funda existendalmente e n el c o mprender, ynoes ésfe él que Uega a ser por médio de aquélla. La interpretación n o consiste en tomar conocimiento de Io comprendido, sino en Ia elaboración de Ias posMidades proyectadas e n el comprender'" {Sery Tiempo, p. 172) (grifamos). 2 7 2 Lento L uiz Streck Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 2 7 3 IPÍ li •11 li m i M 11 'i íl E como desde sempre compreendemos o ser, não há uma ponte entre consciência e mundo. Aquilo que era reivindicado por Kant foi desmitificado por Heidegger no momento em que o filósofo descobriu o vínculo entre homem e ser. Não há uma ponte entre consciência e mundo porque desde sempre já estamos no mundo compreendendo o ser. Ou seja, há um vínculo entre ser-aí-set e uma cooriginaridade entre ser e mundo. Não há primeiro o Ser-at e depois o mundo ou vice-versa. O Ser-aí é ser-no-mundo, e sua faticidade é estar-jogado- -no-mimdo; sua existência é ter-que-ser-no-mundo, sendo que, desde sempre, está jimto aos entes.®" Há outras peculiaridades que poderíamos explorar na transforma ção que se opera na Filosofia com o pensamento heideggeriano. Paia efeitos desta investigação, nos damos por satisfeitos com a compreensão de que a hermenêutica recebe, a partir de então, um novo tratamento, sendo alçada ao nível do mundo prático. O que precisa ficar estabeleci do é que o homem {Dasein) se apresenta no centro do mundo, reunin do os fios deste. Ao escolher o homem {Dasein) como ponto central de sua filosofia, Heidegger não se concentra em um ente com exclusão de outros; o Dasein traz consigo o mundo inteiro.®" Isso é a^m porque o Dasein é desde sempre ser-no-mtmdo; porque sua condição é, em si compreendendo, compreender o ser (Círculo Hermenêutico); e compre ende o ser através da pergunta pelo ente (diferença ontológica). Captar as estruturas da compreensão (que, como vimos, sempre é histórica) não é possível ser feito pela via do método, uma vez que como elemento interpretativo, o método sempre chega tarde. O que A iagifl heideggeriana de ser-no-mundo é de fundamental importância para com- preender o rompimento definitivo que o filósofo efetua com relação aos dualismos da tradição metafísica (e.^. consciência e mundo; palavras e coisas; conceitos e obje tos etc). Como afirma Heidegger "El Dasein no es primero sólo im ser-om otro, para luego, a partir de ser en convivenda^ Uegar a im m^do objetivo, a Ias cosas. Este punto de partida seria tan errôneo como el dei idealismo subjetivista que ante- pone primero un sujeto que luego, en derto modo crea un objeto. (...) El Dasein no está primeramente delante de Ias cosas un ente que posee su propio modo de ser, smo que el Dasein, en tanto que ente, que se ocupa de sí mismo, es ccnonginariam^te -con otro y ser cabe el ente intramundano. (...) Sólo si hay Dasein, si el Dasem existe como ser-en-el-mundo, hay comprensión dei ser, y sólo si existe esta comprensión se devela el ente intramundano como Io subsistente y Io a Ia mano. comprCTsion dei mundo en tanto que comprensión dei Dasein es comprensión ^ sí mismo. El yo y el mundo se copertenecen mutuamente en im único ente, el Dasein, Yo y mundo no sem dos entes, como sujeto y objeto, tampoco como yo y tu; más bien, yo y mundo son, en Ia unidad de Ia estructura dei ser-en-el-mundo. Ias condidones fun^ment^s dei ^ pio Dasein" {Los Problemas Fundamentales ãe Ui Fenomenología. Tradução de Juan Jose Garaa Nono. Madrid: Trotta, 2000, p. 354-335) ^ Cf. Inwood, Heidegger, p. 33. 274 Lenio Luiz Streck organiza o pensamento e comanda a compreensão não é uma estru tura metodológica rígida - como acreditava Schleiermacher — mas a diferença ontológica. Todas essas conquistas heideggerianas serão apro priadas depois por um outro hermeneuta, Gadamer,. que encontrará espaço para construção de sua Hermenêutica Filosófica. O título de sua obra máxima é Verdade e Método, mas bem poderia chamar-se Verdade contra o método ou Verdade apesar do Método, a partir da qual a herme nêutica será radicalizada como um agir mediador através da eocperiència da arte, da história e da linguagem.^ Veja-se o que diz Gadamer no prólogo do livro de Jean Grondin sobre a introdução à hermenêutica filosófica: o fato de que somente na época do romantismo o tema da hermenêutica tenha começado a estender-se - e especialmente à teoria das ciências do espírito em seu conjunto — tem razões ainda mais profundas. Não somente se expan diu à jurisprudência (teoria do direito) e à teologia, senão também à filologia e disciplinas afins. Foi sobretudo Dilthey quem deu um passo importante nessa direção com sua psicologia descritiva. Porém, somente quando Dilthey e sua escola chegaram a ter uma maior in fluência sobre o movimento fenomenológico, o entender já não ficou meramente situado ao lado do compreender e do aclarar e, em geral, não ficou limitado a seu uso pelas ciências. Ao contrário, o entender constitui a estrutura fundamental da existência humana, sendo que por isso é que veio a se situar no centro da filosofia. Desse modo, per dem sua primazia a subjetividade e a autoconsciência, que em Hus- serl ainda encontram sua expressão no ego transcendental. Em seu lugar se situa o outro, que já não é objeto para o sujeito, senão que este se se encontre em uma relação de intercâmbio lingüístico e vivencial com o outro. Por isso, o entender não é um método, e, sim, uma forma de convivência entre aqueles que se entendem. Assim se abre uma di mensão ao lado da qual determinados âmbitos especiais de possíveis conhecimentos não jogam um papel paralelo ou equivalente, senão que esta dimensão constitui a prática da vida mesma. Isto não exclin em absoluto que precisamente os métodos da ciência Ccuninhem por seus próprios caminhos, que consiste na objetivação dos assuntos de sua investigação. Porém, justamente aqui se encontram também os perigos de uma limitação teórica da ciência, que consiste em esqui var certas experiências relacionadas com o outro ser humano, outras palavras, outros textos e sua pretensão de validade devido à autos- satisfáçâo metodológica. Pense-se somente nos poucos passos que se avançaram, por exemplo, no esclarecimento da gramática estrutura- ^ Cf, Gadamer, Verdade e Método, voL L Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 275 H i' iltf''I lista do mito, n o qual s e investiram e n o r m e s energias de investigação e c e rtamente não c o m a finalidade e o r e s ultado de que agora o mito c o m e c e a falar m elhor. Algo parecido s e poderia dizer da semântica, que toma c o m o objeto o mimdo dos signos o u da textualidade, aos quais o c o nhecimento científico tem conseguido aproximar-se de m a n eira n o v a e interessante. Entretanto, a hermenêutica não pretende a objetivação, s e não que se escutar m utuamente e também, por e x e m plo, o escutar de alguém que s abe narrar.^* 10.3. A hermenêutica jurídica diante dessa intrincada tessitura N a doutrina e n a jurisprudência do direito ainda domina a idéia da indispensabilidade do método o u do procedimento para alcançar a " v o ntade da no r m a " , o "espírito de legislador", a correta interpreta ção do texto etc. Acredita-se que o ato interpretativo é u m ato cogniti v o e que "interpretar a lei é retirar da n o r m a tudo o que nela contém", circunstância que bem denuncia a problemática metafísica nesse c a m p o de c o nhecimento. A hermenêutica jurídica praticada n o plano da cotidianidade do direito deita raízes n a discussão que levou Gadamer a fazer a crítica a o processo interpretativo clássico, que entendia a interpretação c o m o s e n do produto de u m a operação realizada e m partes {suhtilitas intélligendi, subtilitas explicandi, suhtilitas applicandi, isto é, primeiro c o mpreendo, depois interpreto, para só então apUcar). A impossibilidade dessa cisão implica a impossibilidade de o intérprete "retirar" do texto "algo que o texto possui-em-si-mesmo", n u m a espécie de Auslegung, c o m o se fos se possível reproduzir sentidos; a o contrário, para Gadamer, fundado n a hermenêutica filosófica, o intérprete s e mpre atribtd sentido (Sínn- gebung). O acontecer da interpretação ocorre a partir de u m a fusão de horizontes {Horizontenverschmelzung), porque c o mpreender é s e mpre o processo de fusão dos s upostos horizontes para si m e s m o s . Algumas posturas críticas s obre a hermenêutica jurídica - e m e s pecial a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer - receberam u m a nítida influência da ontologia fundamental de matriz heidegge- riana, a partir de s e u s dois principais teoremas: o círculo hermenêutico e a diferença ontológica. Para interpretar, necessitamos c o mpreender; para c o mpreender, temos de ter irnia pré-compreensão, constituída ^ Cf. Hans-Georg Gadamer, n o prólogo a o livro de Grondin, Jean. Binführung in die phÜosophische Hemeneutík. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft. 1991. 2 7 6 L e nio L uiz Streck de estrutura prévia do sentido - que s e funda essencialmente e m u m a posição prévia (Vorhabe), visão prévia {Vorsicht) e c o n c epção prévia (Vorgrijf) - que já ime todas a s partes do "sistema". Temos u m a estrutura do n o s s o m odo de ser n o m u ndo, que é a interpretação. Estamos c o ndenados a interpretar. O horizonte do s e n tido n o s é dado pela c o mpreensão que temos de algo. Compreender é u m existencial, que é u m a categoria pela qual o h o m e m s e constitui. A faticidade, a possibilidade e a c o mpreensão são alguns desses existen ciais. É n o nosso m odo da compreensão enquanto ser n o m u ndo que exsurgirá a " n o r m a " produto da "síntese hermenêutica", que se dá a partir da faticidade e historicidade do intérprete. D e qualquer forma, tudo isso que foi descrito aqui aponta para o século X X c o m o a v e rdadeira " e r a d a hermenêutica".^ E s s a e r a f u n damenta a tese de que a Teoria do Direito, durante o século X X , efetua u m a espécie de recepção destas três revoluções descritas até aqui (da do fundamento; e da ontologia) e n c o ntrando s e u ponto ^ De re^trar que a passagem de (e/ou o rompimento c o m) u m modelo de interpreta ção do Direito de c u nho objetlvista, reprodutivo, começa a ser feita a partir dos apartes da Semiótica, e m sua matriz pragmática, e da hermenêutica filosófica, c o m a hermenêutica antirre- produtiva de Gadamer, pela qual se passa da percepção à compreensão. O u seja, tanto a prag mática c o m o a hermenêutica, a o r o mperem c o m o s duahsmos metafísico-essencialistas (essência e acidente, substância e propriedade e aparências e realidade), contribuem para a construção de u m a hermenêutica jurídica que problematiza as recíprocas impli cações entre discurso e realidade, além de desmi(s)tificar a tese, prevalecente n o âmbi to do s e n s o c o m u m teórico dos juristas, da possibilidade da separação dos processos de produção, de interpretação e da aplicação do texto normativo, m o strando, e nfim, c o m o contraponto, que existe, n o devir da inserção do s e r - n o - m u ndo, u m processo de produção, circulação e c o n s u m o do discurso jurídico, e m que, somente pela linguagem - vista c o m o condição de possibilidade e não c o m o mero instrumento ou terceira coisa que se interpõe entre sujeito e objeto - é possível ter acesso a o m u ndo (do Direito e da vida). A propó sito da aproximação entre a hermenêutica filosófica e a pragmática wittgensteiniana, observe-se, c o m Stein, que as formas de vida de Wlttgenstein (descritas espedahnente n o s parágrafos 7,19 e 23) correspondem aos modos-de-ser do estar-aí de Heidegger. O linguisticismo fènomenalisfa do Tratactusfoi superado graças à leitura de ' 'Ser e Tempo" e é esta a obra que preparou a virada para as Investigações. Cf. Stein, Seis Estudos, op. cit., p. 16. Vattimo, por s e u turno, acrescenta que foi graças à urbanização da província heideggeríana que hoje é possível falar cada vez mais de u m a proximidade entre Heidegger e Wittgenstein. Tal proximidade já havia sido assinalada por Pietro Chiodi e depois por Karl Otto Appel. Somente depois da "urbanização" é que fin possível u m a aproximação c o m o a que fala Rorty, que vê na filosofia do século X X u m a linha que se define c o m r ^ência a três nomes: Dewey, Wittgenstein e Heidegger. A possibilidade m e s m a de semelhante aproximação deriva da leitura de Heidegger que urbaniza as teses da linguagem c o m o m o r ada do ser. A tese fúndamental de Gadamer, de que "ser que pode ser c o mpreendido é linguagem", a n u n cia tam desenvolvimento do heideggerismo pelo qual o ser s e tende a dissolver n a lingiugem, o u pelo m e n o s nela se resolver (cf. Vattimo, GiannL El fin dela modemidad - nihilismo y hermenêutica e n Ia cultura posmodema. México: Gedisa, 1985, p. 118), Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 2 7 7 |i 1 i i P I: de estofo na filosofia hermenêutica de Heidegger e na Hermenêutica Filosófica de Gadamer. Esta recepção é percebida em diferentes graus em diversos autores* Mas, de uma forma global, em todos eles e possí vel perceber aquilo que José Lamego chama de "acesso hermenêutico ao Direito". No que tange à fenomenologia hermenêutica - entendida glo balmente, comportando as descobertas tanto de Heidegger quanto de Gadamer - é possível notar nas obras de Josef Esser, Friedrich Müller, Arthur Kaufmann e Ronald Dworkin^^ a recepção dos principais con ceitos desenvolvidos por esta tradição hermenêutica do século 20. Em todos estes autores, há a possibilidade de se pensar em um acesso her menêutico para o Direito. Com a filosofia hermenêutica e a hermenêutica filosófica - e isso poderá ser vislumbrado na seqüência de forma mais delineada — é posta em xeque a idéia de um funãamentum inconcussum, superando- se a dicotomia do esquema sujeito-objeto. Nem mais o assujeitamento do sujeito às essências e nem o solipsismo do sujeito assujeitador dos (sentido dos) objetos. Desse modo, na medida em que nos libertamos de tais ontologias(tradicionais), é dizer, na medida em que passamos a não acreditar na possibilidade de que o mundo possa ser identificado com independência da linguagem, ou que o mundo possa ser conhecido ini- ^ No contexto do direito brasileiro, também minha obra apresenta essa "recqjção" da hermenêutica pela teoria do direito (além da presente, ver também Verdade e Consenso, op. cit; O que é isto - decido conforme a minha consciêTicia?. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013; Streck, Lerdo; Oliveira, Rafael Tomaz de. O que é isto - as garantias pro cessuais penais? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012; O que é isto — o precedente ju dicial eas súmulas vinculantes? op. cit.- Garantismo, hermenêutica e (neokonstitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajóli, op. cit). Quanto aos demais autores citados no texto, ^ o importantes: Dworkin, O Império do Direito; Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001; Leoando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002; Kaufmann, Arthur. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004; Müller, Frie drich. Direito Linguagem e Violência: elementos de luna teoria constitucional. Tradução de Peter Naumann. Porto Alegre: Sérgio Antorüo Fabris Editor, 1995; Métodos de Traba lho do Direito Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; Lamego, Hermenêutica e Jurisprudência. Análise de uma Recepção. Esser, Josef. Principio y norma en Ia elaboraciónjurispruãencial Dei derecho privado. Barcelona: Bosch Casa Editorial, 1961, Tassinari, Cla rissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Li vraria do Advogado, 2013. Motta, Francisco José Borges, levando o direito a sério: iima crítica hermenêutica ao protagonísmo judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, Ramires, Maurício. Critica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Ale gre: Livraria do Advogado, 2010. Oliveira, Rafael Tomaz de. Decisão judicial e o coreto de princípio: a hermenêutica e a (injdeterminaçâo do direito. Porto Alegre: Ijvraria do Advogado, 2008. Sausen, Dalton. Súmulas, repercussão geral e recursos repetitivos: crítica à estandardização do direito e resgate hermenêutico. Porto Alegre: Livraria do Advo gado, 2013. cialmente através de um encontro não lingüístico, e que o mundo pos sa ser conhecido como ele é, intrinsecamente, começamos a perceber - graças à viragem lingüística da filosofia e do nascimento da tradi ção hermenêutica^ - que "os diversos campos da filosofia, que antes eram determinados a partir do mundo natural, poderiam ser multi plicados ao infinito por meio da infinitividade humana. A hermenêu tica será, assim, esta incômoda verdade que se assenta entre duas cadeiras, quer dizer, não é nem uma verdade empírica, nem uma verdade absoluta - é uma verdade que se estabelece dentro das condições humanas do discurso e da linguagem. A hermenêutica, é assim, a consagração da finitude".^ A presente obra pretende mostrar, nessa linha, que os contributos da hermenêutica filosófica para o direito trazem uma nova perspecti va para a hermenêutica jurídica, assumindo fimdamental importância as obras de Heidegger e de Gadamer, Com efeito, Heidegger, desen volvendo a hermenêutica no nível ontológico,^ trabalha com a idéia de que o horizonte do sentido é dado pela compreensão; é na compre ensão que se esboça a matriz do método fenomenológico. A compreensão possui uma estrutura em que se antecipa o sentido. Ela se compõe de aquisição prévia, vista prévia e antecipação, nascendo desta estrutura a situação hermenêutica.^ Já Gadamer, seguidor de Heidegger, ao ^ Enquanto hermenêutica, radicaliza-se a superação da metafísica, que, em sua essên cia, a partir dessa postura, nada mais é do que a permanente tentativa de negação da finitude, superação da temporalidade. Em sfíitese, metafísica é a pretensão a uma verda de absoluta, e isso signifíca para a hermenêutica autonegação da finitude. Cf, Oliveira, Manfredo, op. cit, p, 231. Cf. Stein, Emildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: Edipucrs, 1996, p. 38 e segs. ^ É relevante ressaltar, com Stein, que a ontologia heideggeriana é ap>enas o nome que se dá à compreensão da totalidade. Não há (outro) universo para o ser humano a não ser o universo que a hermenêutica pode desenvolver e mostrar. Entretanto, Heidegger fala de uma ontologia fenomenológica que é uma hermenêutica do ser-aí. Acontece que a palavra ontologia a partir de Heidegger passa a tomar um outro sentido. Forque ele dirá o seguinte: a compreensão que o homem tem do sentido é a de que nós só temos o sentido da compreensão porque se realizam no ser humano duas compreensões: a compreensão de si mesmo e a compreensão do ser, Cf. Stein, op. cit Ver, também, Heidegger, Martin. Ser € Tempo. 5. ed., partes I e IL Petrópolis: Vozes, 1995. Em Gadamer, a ontologia não mais pergunta pdo efetivamente existente, mas pelo "Ser enquanto sentido", a partir de onde somente se pode determinar o que seja a realidade e em que grau algo pode valer como real (Gadamer, Der Weg in die Kehre, in: Hegel, Husserl, Heidegger, Tübingen, 1987, p. 272-284). O Ser, enquanto sentido, dá-se linguistícamente, na formulação de Gadamer. Daí a assertiva clássica: Ser que pode ser compreendido é linguagem. É por isso que a linguagem emerge como o horizonte intranscendível da ontologia hermenêutica. Cf. Oliveira, Reviravolta, op. cit., p.232, ^ Ver Heidegger, Ser e Tempo, op. cit.; também Stein, Emildo. A questão do método na JUõsqfia, op. cit., p. 104 e segs. 278 Lenio Luiz Streck Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 279 f í ILLi, ■Ii t: 1 ^ I.: i i 4 dizer que ser que pode ser compreendido é-linguagem, retoma a idéia de seu professor da linguagem como casa do ser, em que a linguagem não é simplesmente objeto, e sim, horizonte aberto e estruturado. Daí que, para Gadamer,^^ ter um mundo é ter uma linguagem. As pala vras são especulativas, e toda a interpretação é especulativa, uma vez que não se pode crer em um significado mfinito, o que caracterizaria o dogma. A hermenêutica, desse modo, é imiversal, pertence ao ser da filosofia, pois, como assinala Palmer,'*^ "a concepção especulativa do ser que está na base da hermenêutica é tão englobamte como a ra zão e a linguagem". 10.4. A hermenêutica filosófica: abrindo caminho para uma hermenêutica jurídica crítica lOA.l. Da filosofia hermenêutica (Heidegger) à hermenêutica filosófica (Gadamer) De pronto, é necessário observar/advertir o leitor para a diferença que existe entre hermenêutica clássica, vista como pura técnica de in terpretação (Auslegung), e a hermenêutica filosófica, de matriz gadame- riana, que trabalha com um "atribuir sentido" (Sinngebung), isto porque "en Ia compreensión hermenêutica entendida al modo gadameriano se pone también en juego Ia autocomprensión, revelándose en ella Ia pro- pia dimensión dei sujeto: 'Es también siempre Ia obtención de una autocomprensión (Selbsvertãndnisses), más ampUa y profunda. Pero eso significa que Ia hermenêutica es filosofia y, en tanto filosofia, filo sofia práctica'. De acuerdo con Gadamer, tal comprensión posee siempre una dimensión lingüística. Así, 'Ia comunidad de toda comprensión, que se basa en sua carácter lingüístico (SpracMíchkeit), me parece que consti- tuye un pimto esencial de Ia experienda hermenêutica'".^ Por isso Gadamer^ vai dizer que a hermenêutica como teoria filosófica diz respeito à totalidade de nosso acesso ao mundo (Weltzu- 431 Ver Gadamer. Verdad y Método, leU; também EncamaçÔo, João Bosco da. Que é isto, o Direito? Taubaté, SP: Cabral Editora, 1997, p. 199. 4^ Ver Paimer, Richard, Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, p. 215. Do mesmo modo, con sultar Encamação, ibidem. ^ Cf. Blanco, op. cit., p. 242. 434 Cf. Gadamer, Hans Georg. Hermenêutica. In: Diccionario de Hermenêutica. Una obrainterdisciplinar para Ias ciências humanas. Dirigido por Ortiz-Osés y P. Lanceros, Bilbao: Universidad de Deusto, 1997, p. 228 e 229. I 1 L {■<' !■> í gang). Pois é o modelo da linguagem e sua forma de realização - ou seja, o diálogo - que suporta não somente o entendimento entre os homens, senão também o entendimento sobre as coisas de que ê feito nosso mundo. A teoria do conhecimento no sentido tradicional tem subvalorizado a articulação lingüística {Sprachlichkeit). Nosso pensa mento atual, entretanto, encontra-se orientado de modo decisivo ao fenômeno da linguagem. Isto se manifesta, acentua Gadamer, "em minha própria teoria, no que concerne ao papel que joga a linguagem e o lingüístico para toda a compreensão e o conhecimento (Verstehen und Erkenneny. A (nova) hermenêutica pretendida por Gadamer surge no hori zonte de um problema totalmente humano, diz Fernandez-Largo: a experiência de encontrarmo-nos frente à totalidade do mundo como contexto vital da própria existência. A partir disto, a pergunta acerca de como ê possível o conhecimento e quais são as suas condições, pas sa a ser um problema menor dentro da globalidade da questão refe rente ao compreender da existência no horizonte de outros existentes. O que a nova hermenêutica irá questionar ê a totalidade do existente humano e a sua inserção no mundo. Se Schleiermacher havia liberado a hermenêutica de suas amarras com a leitura bíblica, e Dilthey, da dependência , das ciências naturais, Gadamer pretende liberar a herme nêutica da alienação estética e histórica, para estudá-la em seu elemento puro de experiência da existência humana, E Heidegger será o corifeu dessa postura que se caracterizará por explicar a compreensão como forma de definir o Dasein (ser-aí). O que nos ê dado a entender acerca da existência humana, com sua finitude, sua mobilidade, sua projeção para o futuro e, em suma, sua precariedade, tudo isto pertencerá à forma primordial do compreender. Por isto, Gadamer vai dizer, já no início de Verdade e Método, que a compreensão pertence ao ser do que se compreende.433 Para desenvolver sua tese, Gadamer^^^ diz que Heidegger, quan do ressuscita o tema do ser e ultrapassa todo o pensamento metafísico, ganha, frente às aporias do historicismo, uma posição fundamental mente nova. O aspecto da compreensão não é um conceito metódi co como queria Droysen e tampouco é, como entendia Dilthey, uma operação que seguiria, em direção inversa, ao impulso da vida sobre a idealidade. Compreender ê o caráter ôntico original da vida humana 433 Cf. Femandez-Largo, Antonio Osuna. La hermenêutica jurídica de Hans-Georg Gadamer. Valladolid, Espana: Universidad dè Valladolid, 1993, p. 42 e 43, mediante tradução li vre. 434 Cf. Gadamer, Verdad y Método I, op. cit., p. 325. i I I I 280 Lenio Luiz Streck Hermenêutica Jurídica e(m) Crise 281 I 1' i f
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