Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Camino L. e Pereira C. (2000) - O papel de Psicologia na construção dos Direitos Humanos: Análise das teorias e práticas psicológicas na discriminação ao homossexualismo. Revista Perfil. Pp. 49-69 Papel de Psicologia na construção dos Direitos Humanos: Análise das teorias e práticas psicológicas na discriminação ao homossexualismo. Leoncio Camino e Cícero Pereira 1, 2 1 Mestrado em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPb) 2 Colaboraram nesta pesquisa: Patricia da Silva, Aline Machado, Maurivan da Silva e Anne Pereira, bolsistas de IC da UFPb. 2 Resumo: Analisa-se o papel da Psicologia na construção dos Direitos Humanos tomando-se como exemplo as teorias e práticas psicológicas em relação a homossexualidade. Considera-se que a psicologia, por sua própria natureza, desempenha um papel importante na construção do que se entende por natureza humana pois definir cientificamente o funcionamento do indivíduo significa informar ao público sobre a normalidade de certos comportamentos e a anormalidade de outros. Mas constata-se que as visões da Psicologia sobre a natureza humana são várias e freqüentemente contrárias. Quais são benéficas, quais negativas? A ambiguidade desta situação decorre do fato de que a Psicologia enquanto instituição faz parte da arena onde se desenvolvem as lutas sociais. Esta afirmação coloca em debate uma visão construtivista que considera a Psicologia como um campo de lutas onde se processam tanto avanços como recuos no que concerne à construção da cidadania dos indivíduos. Analisa-se este processo no caso da homossexualidade que por ser uma construção social tem recebido, na história, diversos significados. No final do Século XIX, deixa de ser vista como puramente biológica para ser representada como um fenômeno psicológico. Esta perspectiva, embora significasse um certo avanço, mantinha intocável a idéia de que o padrão natural de sexualidade é a heterossexualidade. Na segunda metade do Século XX esta concepção começa a ser colocada em questão na sociedade e na Psicologia. A fim de testar a relação entre teorias psicológicas e a discriminação realizamos um conjunto de estudos empíricos sobre as atitudes de professores e alunos de Psicologia de João Pessoa frente a Resolução 001/99 do CFP. O estudo mostra que fatores como a área de atuação profissional e os modelos teóricos adotados pelos docentes, se relacionam significativamente com a aceitação ou rejeição da Resolução. Finalmente deve-se observar que os dados deste estudo mostram que apesar da existência, entre professores de Psicologia, de uma norma de racionalidade bastante forte que lhes predispõe contra atitudes explicitamente preconceituosas, suas teorias e práticas psicológicas podem sim contribuir ao reforço de situações discriminatórias na medida em que essas teorias e práticas colaboram em manter uma compreensão do homossexual como portador de alguma anormalidade e necessitado de cura. Abstract It is analyzed the role of Psychology in the construction of Human Rights. In order to achieve this goal, it is utilized psychological theories and practices related to homosexuality. It is argued that psychology, because of its own nature, has an important role in the construction in what is conceptualized as human nature because its scientific definitions of human functions tells the general public about the normality of some behaviors and about the abnormality of others. However, there are several psychological visions on human nature and, frequently, they are contradictories. What are the good ones? What are the bad ones? The ambiguity of this situation is a consequence of the fact that Psychology, as an institution, is in the middle of the arena where social struggles take place. This kind of theoretical position brings to the debate a constructionist vision that considers psychology as a struggle field where there are both forwards and backwards as far as individual’s citizenship is concerned. These processes are analyzed in the case of homosexuality because it is a social construction that has historically received several meanings. In the end of XIX century, it stopped to be seen as purely biological and became to be represented as a psychological phenomenon. Although this approach meant a certain progress, it kept the vision that human normal sexuality standard is the heterosexuality. In the second half of the XX century, Psychology itself and the society as a whole started to question those conceptions. In order to test the relationships between psychological theories and discrimination processes a set of empirical studies were carried out about Psychology teachers´ and psychology students´ attitudes on CFP 001/99 resolution. The results showed that characteristics as area of professional work and theoretical models used by the teachers are significantly related to the acceptation or rejection of that resolution. Finally, it must be observed that those results showed that although those teachers are strongly against fragrant forms of prejudice, their theories and practices could contribute to reinforce discriminatory situations in the sense that they see the homosexual as having a disease and someone who needs to be cured. 3 INTRODUÇÃO Vivemos há 50 anos sob a vigência da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nesta declaração banem-se expressamente todas as formas de discriminação em função da cor, do gênero, da religião, da orientação sexual, etc. De fato, nas sociedades modernas, atos explícitos de discriminação racial, religiosa e étnica são publicamente condenados e proibidos por lei. A discriminação da mulher nas diversas esferas da vida social e política é também expressamente proibida. Há legislações específicas para coibir tais comportamentos. No que concerne à vida sexual, o processo de impedir legalmente práticas discriminatórias contra homossexuais é ainda incipiente embora certos avanços podem ser notados (Frank e McEneany, 1999). Portanto, pode-se supor que os preconceitos estão acabando ou acabaram e que as pessoas de todas as partes do mundo conviverão harmoniosamente, agora ou num futuro próximo, com as manifestações dos diversos valores religiosos, sexistas, etc. Mas não. Na verdade, o que está ocorrendo neste período de intensa globalização da economia é uma situação paradoxal. Por um lado vive-se a época do “politicamente correto”, em que são publicamente aceitas normas de racionalidade, como a de evitar idéias preconcebidas e de justiça, por exemplo, a de que todos devem ser tratados igualmente. Por outro lado, as estatísticas mostram que está aumentado a pobreza objetiva tanto dos países em desenvolvimento quanto dos industrializados. Nestes observa-se um aumento da pobreza em número de indivíduos e em número de grupos sociais (US Department of Labor, 1992). Esta situação paradoxal faz surgir no âmbito das relações sociais novas formas de preconceito que dão o novo tom da discriminação nas sociedades modernas (Bowser, 1995). Talvez as mudanças ocorram só na forma de expressão e no conteúdo dos diversos preconceitos e não na diminuição destes nem dos processos de discriminação. Coloca-se, portanto, para as Ciências Humanas e particularmente para a Psicologia, a necessidade não só de construir explicações válidas sobre a discriminação e o preconceito, mas de colaborar na elaboração de políticas de erradicação destes fenômenos, se queremos ter um mundo onde os Direitos Humanos tenham vigência plena. 1.- A NOÇÃO DE DIREITOS HUMANOS Gostaríamos de explicar o que são os Direitos Humanos a partir de uma históriamuito simples que acontece num pequeno vilarejo na Europa do século XIV, onde uma moça de 12 anos mora com seus pais. A que coisas ela pensa que tem direito? Ou que espera essa moça da vida? Ela espera que o Senhor Feudal a escolha 4 ou não no uso do direito de “desvirginar”; espera que seus pais lhe escolham o melhor marido possível; espera que Deus lhe conceda muitos filhos, etc. Para nós, essa jovem se encontra despojada de qualquer direito. Mas será que ela, de fato, se percebe assim? Certamente não. Não no sentido atual. Não queremos dizer que ela não se sinta infeliz, mas que não atribui sua felicidade ou infelicidade a uma violação de seus direitos. Como explicar a falta de perspectiva desta moça? Na mentalidade feudal, suas expectativas estão ligadas à sua posição social. Para entender melhor isto, voltemos à nossa história, na qual encontraremos um novo personagem, um rapaz de 12 anos, filho do senhor feudal. As expectativas deste rapaz são totalmente diferentes. Ele sim, acredita possuir uma série de “direitos” ou prerrogativas próprias de sua posição social, como herdar o feudo, ter direito sobre seus servos, etc. Como se intui nesta historinha, direitos e expectativas individuais estão profundamente ligados. Os dois jovens acreditam piamente no que eles são: uma jovem, filha de agricultores e um jovem nobre, filho de um senhor feudal. É a partir desta crença que se apresenta como conhecimento objetivo, que nossos jovens constróem expectativas diferentes pois se “sabem” diferentes. Aliás, não se trata de crenças individuais, mas de crenças coletivas sobre destinos individuais, crenças também compartilhadas por todos os membros dessa comunidade, crenças que se inserem na visão feudal sobre o mundo e a vida (Camino, 1988). Num mesmo contexto histórico, dois jovens acreditam merecer coisas diferentes em função de terem nascido em berços diferentes. Em outras palavras, possuem direitos diferentes em função de suas posições sociais serem diferentes. Assim, neste período, afirmava-se nos meios acadêmicos que certos direitos eram reconhecidos só para determinadas categorias de pessoas (Tobeñas, 1969). Poderíamos dizer hoje, em outras palavras, que os direitos e os deveres do indivíduo estariam ligados à sua posição social. Para entender melhor esta relação, imaginemos, dois séculos depois da nossa história medieval, outro jovem, mais ou menos da mesma idade, que vive numa aldeia da Costa de Marfim e cujo pai é o rei dessa tribo. Este jovem, que se acha merecedor também de uma série de direitos em relação aos outros membros de sua tribo, é um dia sequestrado por um bando de europeus, mercadores de escravos. Na sua vida de escravo, descobrirá que é tratado como os outros membros de sua tribo e que em relação aos brancos não possui nenhum direito. 5 Para este jovem, trata-se de uma situação absurda, incompreensível. Nós hoje achamos também um absurdo a escravidão de uma pessoa, seja qual for o motivo, mas naquele período pessoas sérias consideravam necessária a escravidão dos negros a fim de poder evangelizar os índios. Tinha-se subjacente a idéia de que os negros são inferiores e, portanto, não possuem os mesmos direitos que as outras raças, especialmente, a raça branca. Voltamos aqui a encontrar, só que na dimensão raça, a estreita relação entre a posse de certos direitos e a posição social (cor da pele) do indivíduo. Mas esta concepção do direito particularizado começará a mudar no surgimento do mundo moderno, marcado pelas revoluções política e industrial (Hobsbawn, 1982), e as mudanças serão expressas nas várias declarações dos direitos humanos como a Declaração de Direitos de 1689, resultado da Revolução Gloriosa, na Inglaterra; a Declaração do Povo de Virgínia, na sua luta pela independência, de 1776; e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, corolário da Revolução Francesa, de 1789. O que este conjunto de declarações sobre os direitos humanos traz de novo, é o fato de afirmar peremptoriamente que todas as pessoas, independente da posição social que ocupem, possuem os mesmos direitos e portanto, podem esperar receber o mesmo tratamento. A universalidade dos direitos é, pois, a grande crença utópica do período moderno. Esta crença sustenta-se na importância do indivíduo e não mais na comunidade religiosa que era a base do espírito medieval. O progressivo reconhecimento da universalidade dos direitos sustenta-se no igualmente progressivo reconhecimento da fundamental igualdade entre os seres humanos. Já o conjunto específico dos diversos direitos humanos (que evoluiu e continuará a evoluir) não seria outra coisa que a progressiva definição do que seja a natureza do homem, definição que se estabelece nos conflitos sociais próprios do dinamismo da história. Mas não se trata só de uma concepção possível da natureza humana. Esta concepção deve adquirir um forte consenso na sociedade, a fim de que possa criar um “dever ser” na sua ordem jurídica. Os direitos, para alcançarem sua plena realização devem portanto obter também o reconhecimento da ordem jurídica. A vigência dos Direitos Humanos numa sociedade estará determinada tanto pela força da consciência coletiva que se tem deles, como pela capacidade ou poder político de inscrevê-los na ordem jurídica. A consciência coletiva sobre os direitos e o poder de inseri-los na ordem jurídica têm evoluído no transcurso da história. A que se deve esta evolução? Temos 6 visto que, na Idade Média os direitos estavam relacionados à posição social da pessoa. Mas, a partir da consciência individual construída no modernismo, os direitos humanos apresentam-se como universais, isto é, devem ser estendidos a todos os membros de uma sociedade independentemente de sua posição social ou qualquer outra característica. A evolução dos direitos implica numa integração crescente dos indivíduos, apesar de suas diferenças. Mas esta integração não é automática, não segue nenhuma lei de aperfeiçoamento cultural. O processo de integração, com seus avanços e recuos, apresenta-se como conflito permanente, não como solução acabada. Aliás a própria dinâmica social é constituída pelos conflitos entre os processos de inclusão que vão aparecendo com o surgimento de novas demandas e os processos de exclusão levados a cabo pelos grupos dominantes. São as diversas minorias sociais que conforme vão construindo suas identidades sociais, vão entrando na arena pública para fazer reconhecer seus direitos, direitos que são sistematicamente negados pelos setores dominantes. Pode-se portanto afirmar que a evolução dos Direitos Humanos é a resultante da correlação de forças entre os processos de exclusão e os processos de inclusão que se desenvolvem no interior das sociedades. A Psicologia, enquanto instituição histórica de elaboração de conhecimentos científicos e de práticas profissionais tem alguma coisa a ver com este processo de lutas sociais? Sim, ela está implicada até o pescoço neste processo, tanto na sua prática de pesquisa, simploriamente considerada como neutra e objetiva (Ismael e Camino, 1997) como na sua pratica profissional, enquadrada num código de ética altamente corporativo (Camino, 1989). Para melhor avaliar o grau de responsabilidade da psicologia nos processos de mudança social, vamos analisar antes o que são a discriminação, o preconceito e os estereótipos, elementos fundamentais dos processos de exclusão, pois, como demostraremos posteriormente, a Psicologia, freqüentemente sem sabê-lo e com a desculpa da ciência, tem participado da discriminação de diversos grupos sociais, colaborando na construção de estereótipose preconceitos sobre eles. 2o As Noções de Discriminação, Preconceito e Estereótipo Iniciaremos nossa análise pela noção de discriminação. Para explicar a discriminação, lamentavelmente, não é preciso inventar histórias de outras épocas e de outras regiões, basta analisar estatísticas oficiais. Por exemplo, comparando o rendimento médio nacional de homens e mulheres e de negros e brancos, em salário mínimo, (segundo o IBGE/PNAD, 1990 ) constata-se que os homens ganham mais que as mulheres e que os brancos ganham mais que os negros. 7 Homem branco 6,3 Mulher branca 3,6 Branco 4,9 Homem negro 2,9 Mulher negra 1,7 Negro 2.3 Homem 4,1 Mulher 2.6 Total 3.4 (Fonte: Mtb, Assessoria Internacional, 1998) Estes dados indicam que, no Brasil, mulheres e negros são objetivamente discriminados1, quer dizer, recebem salário menor do que os outros grupos. Por quê? Considerando-se que o nível de formação é um fator importante na determinação do salário poder-se-ia pensar comparativamente que homens e brancos têm melhor nível de instrução que mulheres e negros. Um relatório do Ministério do Trabalho (Mtb, Assessoria Internacional, 1998) mostra, no caso das mulheres, que este não é o caso. Pelo contrário, as mulheres tenderiam a ter mais anos de escolaridade que os homens. Mesmo assim, em 1980 ganhavam 30% a menos que os homens e em 1990, 32% a menos. A análise do fator educação mostra que as trabalhadoras brasileiras recebem um tratamento diferenciado. Qualquer que seja o grau de escolaridade e o setor de atividade, os salários das mulheres são inferiores aos dos homens. Por exemplo, os homens assalariados com curso superior completo ganhavam em média, 17,3 salários mínimos. No caso das mulheres, na mesma faixa de escolaridade, o rendimento médio era de 10,1 salários mínimos. O grau de escolaridade não parece explicar a diferença salarial. Já no que concerne às diferenças salariais entre negros e brancos, o nível de escolaridade parece ser um fator importante. Constata-se que os brancos têm níveis de escolaridade bem superiores aos dos negros. Mas observa-se igualmente que as crianças e os jovens de raça negra têm menor possibilidade de frequentar a escola. A falta de educação é a causa dos baixos salários do trabalhador negro ou é uma consequência dramática da falta de bons salários? Aliás, se por um lado, os dados que indicam claras diferenças entre os grupos sociais (homens e mulheres; brancos e negros; nordestinos e sulistas, etc.) estão aí e não podem ser contestados (ignorados podem e é o que geralmente fazemos), por outro lado, as explicações dos dados são as mais diversas e encontram-se freqüentemente em oposição. Por que existem contradições na análise dos dados objetivos? Estas contradições devem-se às 1 Os fenômenos de discriminação podem tomar diversas formas. Um tipo de discriminação pressupõe que pessoas ou grupos sociais recebem menos do que seria justo. Outro tipo de discriminação impede que certos grupos sociais desenvolvam suas características próprias. Por exemplo, a existência, em diversos paises, de punição legal pela prática da homossexualidade. 8 diferentes perspectivas ou pontos de partida que pessoas ou grupos utilizam ao analisar fatos sociais. A análise destas perspectivas permitirá entender melhor os aspectos subjetivos dos processos de inclusão/exclusão social. As condições objetivas dos processos de exclusão desenvolvem-se historicamente a partir de interesses econômicos e/ou culturais dos grupos dominantes. Que entendemos por perspectivas? As perspectivas não seriam outra coisa que os pontos de partida para analisar situações sociais ou os ângulos através dos quais observamos o mundo. Aliás, as representações que nós fazemos das pessoas, de suas posições sociais, das causas pelas quais se encontram nestas, etc., não são fotografias exatas da realidade, mas construções mentais elaboradas a partir de um conjunto de crenças, expectativas, valores, etc., aprendidas anteriormente (Ismael, Maciel e Camino, 1996). Vejamos um exemplo. Por quê se é pobre? As pessoas perguntadas dão geralmente diversos tipos de respostas. Umas consideram o pobre como uma pessoa indolente, sem motivação, que merece sua atual situação, outras como uma pessoa que trabalha muito e que é explorada pelos ricos (Ismael, Maciel, Brandão e Camino, 1995; Maciel, Brandão, Ismael e Camino, 1996). A nossa idéia do que é a pobreza, dependerá de diversos fatores como nossos valores, nossas crenças sobre o que seja justiça social, nossa inserção social etc. Estes fatores estarão ligados à nossa própria situação socio-econômica, em seus aspectos objetivos e a maneira como vivemos subjetivamente esta posição social (Brito, Macedo e Camino, 1995). Estas idéias, crenças, valores sociais formam um conjunto de representações que constituem nossa visão da estrutura social, visão esta ligada a sistemas ideológicos. As representações sociais de um grupo, suas explicações baseadas no bom senso são, de uma maneira ou outra, derivadas de teorias científicas (Moscovici, 1961) e de ideologias. Estas visões do mundo constituem os aspectos subjetivos das lutas sociais (Camino, Torres e Da Costa, 1995). Um outro exemplo poderá ajudar-nos a entender melhor o que são as visões do mundo e sua relação com a ideologia. Que significa ser homem ou ser mulher? Em geral pensa-se automaticamente em papéis diferentes na sociedade e que estes papéis sociais são determinados pela biologia. As mulheres seriam destinadas biologicamente à geração de filhos e ao cuidado destes; os homens, à proteção da prole e ao provimento das necessidades materiais destes. Como muito bem coloca o relatório do Ministério do Trabalho (Mtb, Assessoria Internacional, 1998) os papéis do homem e da mulher na vida de trabalho vêm sendo definidos como uma extensão dos papéis biológicos. Assim, as mulheres, a partir de suas características 9 sexuais, seriam mais eficientes e pacientes no cuidado de crianças (professoras), pessoas doentes (pediatras, enfermeiras, psicólogas, fisioterapeutas), pessoas idosas (filhas cuidando dos parentes idosos). Esta especialização no mercado de trabalho evidentemente, não é determinada pelo biológico, mas por um conjunto de visões e práticas sociais que foram se formando na história e que são passadas de geração em geração, não como algo cultural, mas como algo natural. Aliás, um dos papéis da ideologia é o de fornecer explicações “verdadeiras” às diferenças sociais transformando-as não em injustiças, mas em situações naturais. Neste sentido, como veremos mais na frente, as Ciências Humanas e particularmente, a Psicologia têm colaborado muito neste processo, substantivando observações estritamente contextuais, relacionais. Podemos considerar que existe um conjunto de visões do mundo diferentes e até antagônicas, sobre os diversos grupos sociais e suas funções na sociedade. Estas visões se constroem na história como produtos concretos das diversas dinâmicas sociais em jogo. Entre as visões que têm desempenhado um papel importante na discriminação de diversos grupos sociais podemos citar o racismo, o machismo, a homofobia2. Opostas a estas visões discriminatórias desenvolvem-se, na sociedade, a partir dos movimentos sociais, propostas anti-discriminatórias e de libertação de grupos minoritários. Na sociedade circulam visões diferentes sobre os problemas sociais; algumas destas visões são até antagônicas. Devemos ter em conta que nossaspróprias visões são construídas a partir das visões sociais existentes no meio social onde nos inserimos ativamente (Camino, 1996b) e que portanto estas visões desempenham um papel importante em nossas vidas, seja como marcos de referência para interpretar os diversos acontecimentos sociais, seja como idéias a serem contestadas e superadas. A psicologia tem procurado estudar as visões sociais de cunho discriminatório que pertencem ao nível da consciência tanto individual como coletiva. Estes estudos têm focalizado particularmente os preconceitos e os estereótipos. Numa das obras marcantes do período pós-guerra, “A Natureza do Preconceito”, Allport (1954) o concebe como “uma antipatia baseada numa generalização errada e inflexível, que pode ser só sentida ou abertamente expressa e que pode ser dirigida a um grupo como um todo ou a um indivíduo por ser membro de 2 Entende-se por Racismo a visão do mundo que pressupõe a existência de hierarquias entre as raças. Classicamente a raça branca tem se colocado como a mais importante. Machismo refere-se a uma ideologia que priorisa o papel masculino e coloca a mulher sob a dominação deste. Por homofobia entende-se a valorização da heterossexualidade como único padrão 10 tal grupo”. Nesta definição o preconceito refere-se principalmente à uma orientação ou posicionamento afetivo negativo de um indivíduo ou de um grupo, frente a um outro grupo social. Deve-se observar que esta forma de antipatia não se refere ao sentimento de repulsa produzido por uma situação negativa concreta (embora os preconceitos possam ser reforçados por este tipo de situação) mas a uma antipatia constante baseada numa generalização errada e inflexível sobre um grupo social. Neste sentido, o preconceito pressupõe, como o seu nome já indica, “pré-julgamentos” negativos sobre os membros de uma raça, religião ou qualquer outro grupo social (Jones, 1972). Estes pré-julgamentos podem ser considerados como crenças sobre a natureza e as caraterísticas de um grupo social e constituem, portanto, os aspectos cognitivos implícitos na noção de preconceito. Mas os preconceitos não são só um conjunto de sentimentos de antipatia e de crenças distorcidas e negativas sobre grupos sociais. Eles estão essencialmente relacionados a práticas e comportamentos discriminatórios frente a membros desses grupos pelo fato de pertencerem a eles (Brown, 1995, p. 8). Devemos ter em conta que atitudes preconceituosas geram-se em situações concretas de discriminação. Em várias abordagens psicológicas considera- se a discriminação como a expressão ou exteriorização de atitudes preconceituosas e nesse sentido, bastaria acabar com os preconceitos para eliminar as situações discriminatórias. Na perspectiva psicossocial, considera-se que os preconceitos desenvolvem-se no interior dos processos de exclusão social e modificam-se junto com estes. A análise conceitual desenvolvida acima permite-nos definir o preconceito como uma forma de relação intergrupal onde, no quadro específico das relações de poder entre grupos, se desenvolvem e se expressam no grupo maioritário atitudes negativas e depreciatórias e, comportamentos hostis e discriminatórios aos membros de um grupo por serem membros desse grupo. Neste sentido os preconceitos fazem parte de fenômenos sociais mais amplos. Ao analisarmos as formas concretas de preconceito, como o racismo, o anti- semitismo, o machismo, etc., observamos que eles fazem parte de ideologias políticas mais amplas. Isto não quer dizer que os preconceitos não possuam sua própria dinâmica psicológica. Assim, por exemplo, quando se analisa o racismo como uma ideologia típica de culturas colonialistas, não se pretende negar, de forma alguma, seu caráter subjetivo mas procura-se colocar em relevo a função política dessa disposição sexual com a conseqüente rejeição da homossexualidade e a condenação dos que a 11 psicológica (Billig, 1991; Tajfel, 1981). Assim, a compreensão do preconceito, fenômeno por enquanto definido nos níveis psicológico e psicossocial, exige também uma análise em termos do funcionamento da sociedade, ou seja, no nível das relações de poder (Doise, 1986; Lorenzi-Cioldi e Doise, 1990). Entre os aspectos cognitivos do preconceito, o estereótipo, noção introduzida por Lipmann em 1922, tem merecido o maior número de estudos por constituir parte da categorização social, um dos processos fundamentais na cognição social. Os estereótipos são generalizações sobre pessoas baseadas no fato destas pertencerem a algum grupo ou categoria social (Oakes, Haslam e Turner, 1994). Certos grupos são percebidos como sendo bastante homogêneos, e portanto um membro desse grupo é considerado e tratado como sendo fundamentalmente igual aos outros membros do grupo.. Neste sentido, o estereótipo é constituído por um conjunto de atributos (características físicas, traços de personalidade, valores, etc.) que se acredita caracterizar os membros de um determinado grupo social. Deve-se observar que este conjunto de atributos do grupo estereotipado constitui crenças ou conhecimentos amplamente compartilhados por um grupo social (Tajfel, 1981). Os estereótipos referem-se freqüentemente, mas não sempre, a características negativas de grupos sociais. Desde o início diversos estudos têm mostrado uma forte relação entre estereótipos negativos e atitudes ou práticas preconceituosas (Katz e Braily, 1933; 1958). Embora os estereótipos sirvam para estabilizar e fazer mais previsível e tratável o mundo social do sujeito, eles foram considerados, desde o início (Lippmann, 1922), generalizações imprecisas, e às vezes até erradas, sobre as características de um grupo social. No inicio, procurou-se provar a existência de uma base fatual (Litterer, 1933; Katz e Braly, 1958). Mas hoje questiona-se muito esta ênfase no aspecto verídico do preconceito (Oakes e Reynolds, 1997). Aliás, numa outra perspectiva considera-se hoje que os estereótipos constituem as crenças sobre a natureza da discriminação (Yzerbyt, Rocher e Schadron, 1997). Neste sentido é irrelevante avaliar o conteúdo de verdade que possuem as opiniões preconceituosas dada a natureza relativa das representações que os grupos possuem dos outros grupos (Brown, 1995). Várias abordagens contemporâneas da Psicologia Social enfatizam a importância dos processos intergrupais na construção da realidade social, colocando em questão a relevância de se falar de verdades ou erros nas crenças e opiniões sociais (Augoustinos e Walker, 1995; Camino, 1996c; Deschamps e Beauvois, 1996; Vala, 1996). praticam. 12 3.- O papel da Psicologia na construção e descontrução dos preconceitos. A psicologia vem estudando estereótipos e preconceitos num esforço consciente de colaborar com o fim da discriminação social. Entretanto, pela maneira psicologizante com que tem abordado este tema assim como por muitas de suas conceitualizações sobre a natureza humana, tem freqüentemente colaborado ainda que inconscientemente com os processos de exclusão social. A fim de justificar estas afirmações analisaremos em primeiro lugar o papel geral da psicologia na construção dos Direitos Humanos e num segundo momento nos deteremos no aspecto mais específico das teorias e práticaspsicológicas no que concerne à homossexualidade. 3.1.- Papel geral da Psicologia na construção dos Direitos Humanos. Começaremos analisando a responsabilidade da Psicologia, como movimento histórico de produção de conhecimentos científicos e de práticas profissionais, em relação aos processos sociais de construção e descontrução do preconceito. Acreditamos que esta análise pode ser efetuada a partir de um conjunto de idéias que temos levantado em torno as relações entre Psicologia e Direitos Humanos (Camino, 1998). Começaremos afirmando que no interior da Psicologia desenvolvem-se diversas concepções de homem e de mulher e diversas práticas destinadas a melhorar suas condições da vida psíquica, concepções e práticas que fazem parte essencial do processo histórico de construção do que se entende por natureza humana. Consideramos que a psicologia, por sua própria natureza, desempenha um papel importante na construção ou desconstrução de preconceitos sociais pois definir cientificamente a natureza do funcionamento do indivíduo no quadro de nossa profissão significa informar ao público o que é bom para o indivíduo e quais estratégias devem ser empregadas para evitar o mal funcionamento dos indivíduos. Significa informá-lo sobre a normalidade de certos comportamentos e a anormalidade de outros. Significa finalmente, informá-lo sobre o significado das diferenças existentes tanto entre os indivíduos como entre os diversos grupos sociais. De fato constata-se que as visões sobre a natureza humana construídas pela Psicologia são várias e freqüentemente contrárias. Dada a diversidade de concepções e práticas no interior do campo da Psicologia o papel desempenhado por esta na construção do que entendemos por ser humano é, em certo sentido, ambíguo, contraditório. Esta observação suscita um debate sobre o tipo de influência que a 13 Psicologia exerce no desenvolvimento de nossas concepções sobre o homem e sobre a Sociedade. Terão sido estas concepções benéficas ou negativas? Como avaliar esta influência? O problema está no fato de que a avaliação positiva ou negativa destas influências dependerá da perspectiva do próprio avaliador. Existirá sempre uma certa parcialidade na avaliação que se faz do papel social da Psicologia. A ambiguidade desta situação e as dificuldades de sua possível avaliação, decorrem do fato de que a Psicologia enquanto instituição faz parte da arena onde se desenvolvem as lutas sociais. Esta afirmação coloca em debate uma visão construtivista que considera a Psicologia como um campo de lutas onde se processam tanto avanços como recuos no que concerne à construção da cidadania de todos os indivíduos. De fato, a Psicologia não só é influenciada pelas lutas de interesses que se desenvolvem na sociedade, criando ela seus próprios interesses corporativos, mas ela no seu interior reproduz o conjunto de lutas sociais, políticas e ideológicas que se desenvolvem na sociedade. Na Psicologia, suas práticas científicas e profissionais, como em poucas outras ciências, relacionam-se com os diversos movimentos intelectuais sociais e políticos da sociedade. Quer-se afirmar que o conhecimento psicológico (como outras formas de conhecimento) é construído socialmente através de uma negociação dos significados sócio-culturais existentes e que esta negociação se estabelece entre os significados dominantes e os significados dissidentes, construídos pelos diversos movimentos sociais. No caso específico da Psicologia, que trata com significados sobre o que é o ser humano, sua evolução caracteriza-se menos pelo acúmulo de dados a partir de um paradigma e mais pelo confronto e reformulação dos significados sobre o homem e sobre a sociedade subjacentes aos diversos projetos científicos. Confrontos e reformulações das diversas visões do ser humano, não se desenvolvem exclusivamente através de processos epistemológicos e metodológicos. Este debate científico se dá no interior de um debate mais amplo na sociedade. Veja- se por exemplo as críticas que o movimento feminista vem fazendo à visão androcêntrica que diversas teorias psicológicas formulam sobre a mulher. Sustentam, e com muita razão, que estas concepções produzem consequências políticas bastante marcantes, na medida em que dão suporte a formas patriarcais de opressão. Reclamações semelhantes, em relação ao papel negativo, que as definições dominantes em psicologia exercem sobre grupos minoritários tem sido levantadas 14 pelos movimentos afro-americano, pelos movimentos terceiro-mundistas e pelos movimentos dos homossexuais. Ao falar da importância do papel da Psicologia na construção da cidadania, poderia parecer que estamos afirmando que todos os psicólogos são militantes e que elaboram teorias e práticas explicitamente a favor da evolução dos direitos para todos os indivíduos. Nada mais longe da realidade que esta afirmação. O que se observa é o oposto. Considerando que o pensamento humano desenvolve-se em termos de grandes pólos vinculados aos debates ideológicos, observa-se que a maioria dos pesquisadores e profissionais da psicologia, participam na arena de lutas sociais, com maior ou menor grau de consciência, do lado das idéias dominantes que procuram manter o status quo na sociedade. Nesta arena de lutas sociais que é a Psicologia, pode-se lamentavelmente afirmar que são as concepções nela dominantes que têm colaborado na sustentação dos processos de exclusão social. Uma análise de vários conceitos centrais na psicologia como habilidade, capacidade, normalidade, agressão, etc. mostraria que nossa ciência e nossa prática substantivam esses conceitos que, fundamentalmente, são adjetivos e como tais, só expressam uma relação avaliativa. Este processo transforma avaliações contextualizadas em afirmações universais. Assim por exemplo, o psicólogo ao construir e/ou utilizar técnicas de avaliação de habilidades, deve tomar consciência do tipo de padrões culturais que está sendo utilizado nesse instrumento (em geral o da cultura do branco, homem, ocidental e economicamente produtivo), do contrário participa do processo de exclusão das pessoas que não pertencem a essa cultura. 15 3.2.- Papel da Psicologia na construção/deconstrução da homofobia. Pelo fato da homossexualidade ser uma construção social ela tem recebido, na história, diversos significados. No final do Século XIX, a homossexualidade deixa de ser vista como um fenômeno puramente biológico para ser representada como um fenômeno psicossociológico. No início, esta perspectiva, embora significasse um certo avanço em relação às anteriores, mantinha intocável a idéia de que o padrão natural de sexualidade é a heterossexualidade. Mas hoje ela começa a ser considerada como uma opção sexual sem causas específicas. Qual seria o papel da Psicologia nestas transformações? No Brasil, constatamos uma clara omissão da Psicologia neste processo. Na primeira metade da década do 80, por exemplo, diversas entidades científicas condenaram publicamente a discriminação à homossexualidade. Entre estas conta-se: em 1981,a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC); em 1982, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA); e em 1984, a Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP), a Associação Nacional de Pós- Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Lamentavelmente não temos registro de nenhum pronunciamento do Conselho Federal de Psicologia (CFP) ou de outra instituição científica ligada à Psicologia, sobre este assunto. O silêncio da Psicologia pesa ainda mais quando se observa queestes pronunciamentos foram realmente influentes. Assim, o Conselho Federal de Medicina, desde 1985, graças aos pronunciamentos das entidades anteriormente citadas e principalmente à mobilização do movimento de homossexuais, comandado pelo movimento baiano, retirou a homossexualidade da Classificação de Doenças (De Almeida e Crillanovick, 1999). No nível internacional, a Organização Mundial da Saúde (OMS) faria o mesmo só em 1991. A Psicologia não só tem ido a reboque dos acontecimentos mas, mais grave ainda, apesar deste posicionamento claro sobre a homossexualidade, pouco tem mudado suas próprias práticas. Concretamente, sem se manifestar um preconceito explícito contra os homossexuais, a homossexualidade continuava a ser tratada como um distúrbio do comportamento que, no mínimo, deveria ser assumido, embora o ideal fosse a sua superação. Principalmente quando os pais solicitavam orientação, se lhes indicava, em geral, maneiras não autoritárias mas pretensamente eficientes para redirecionar as tendências homossexuais. 16 Mais grave ainda, certas igrejas evangélicas, com a participação ativa de psicólogos, membros dessas confissões, criaram recentemente serviços de tratamento e de recuperação de homossexuais, prometendo o retorno à verdadeira natureza humana. Frente a esta situação, que gerou denúncias da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT), a atual gestão do CFP promulgou, em 1999, a Resolução No 001 que “estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação a questão da Orientação Sexual”. Sucintamente, a Resolução 001, considerando que a homossexualidade não é doença nem distúrbio nem perversão, resolve que os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades3. A fim de testar as idéias expostas anteriormente sobre as relações entre teorias psicológicas e a discriminação, realizamos um conjunto de estudos empíricos sobre as atitudes de professores e alunos de Psicologia de João Pessoa frente a Resolução do CFP. Apresentamos neste trabalho, os dados obtidos junto a vinte docentes de Psicologia: 9 professores e 11 professoras. Além dos dados socio- demográficos como gênero, dos dados culturais como religião e dos dados profissionais como área de atuação e perspectivas teóricas adotadas, perguntava-se aos professores sobre sua concordância frente a três aspectos da Resolução do CFP: ítem 1.- ela significa um avanço para a Psicologia; ítem 2.- a homossexualidade não é doença, nem perversão; ítem 3.- não se deve propor a cura da homossexualidade. Tabela 1 Porcentagens de concordância dos professores de Psicologia com diversos aspectos da Resolução do CFP, em função da área de atuação profissional. Áreas de Atuação: Aspectos da Resolução do CFP Significa avanço não é doença Não se propõe cura4 Concorda Não Sim Não Sim Não Sim Social - 100 17 83 17 83 Escolar 17 83 50 50 33 67 Clínica 57 43 25 75 63 37 Total 26 74 30 70 40 60 3 Usamos o plural de maneira intencional para significar que o termo homossexualidade é usado para indicar diversas formas diferentes de viver a orientação sexual. 4 Uma coisa é propor a cura considerando a homossexualidade um comportamento anormal e outra coisa é, atendendo a solicitação de um cliente que sofre com sua condição de homossexual, ajudá-lo tanto a tomar a decisão de continuar ou não, como a implementar esta. 17 No conjunto da amostra (Tabela 1) a aprovação aos três aspectos da Resolução varia de 74% ao ítem que representa uma avaliação mais geral à só 60% no aspecto mais substancial da Resolução que proíbe propor cura para a homossexualidade. Pode-se observar também que o grau de aceitação varia em função da área de atuação do docente. Assim, entre os professores que atuam na área clínica, 57% não concordam com que a Resolução seja um avanço para a profissão e 63 % não concordam com que se proíba propor cura para a homossexualidade. Já entre os professores que atuam na área social e organizacional observa-se uma concordância total com a idéia da Resolução significar um avanço na psicologia e só uma discordância (17%) com a proibição de propor e participar em serviços de cura. Além das perguntas sobre o grau de aceitação dos diversos aspectos da Resolução perguntamos aos professores seu grau de concordância com 4 modelos de análise da etiologia da homossexualidade. Assim, a homossexualidade estaria fundamentalmente ligada: (1) no modelo biológico, à hereditariedade e/ou à problemas fisiológicos; (2) no modelo psicanalítico, à ausência de Resolução de conflitos parentais e/ou à experiências traumáticas ocorridas na infância; (3) no modelo psicológico, aos problemas de estruturação da personalidade durante a adolescência; (4) e no modelo psicossocial, à uma orientação sexual sem causas específicas. Tabela 2 Porcentagens, da concordância de professores de psicologia com diversos modelos de análise da homossexualidade, em função da área de atuação profissional. Áreas de Atuação Concorda Modelos de Análise da Homossexualidade Fisiológico Psicanalítico Psicológico Psicossocial Não Sim Não Sim Não Sim Não Sim Escolar 83 17 67 33 83 17 17 83 Social 100 - 83 17 83 17 17 83 Clínica 87 13 13 87 87 13 37 63 Total 89 11 53 47 84 16 26 74 Observa-se (tabela 2), independente da área de atuação, uma discordância clara dos professores com os modelos fisiológico e psicológico e uma aceitação majoritária do modelo psicossocial. Já o grau de concordância com o modelo psicanalítico dependerá da área de atuação do professor. Assim, na clínica o 18 modelo psicanalítico é amplamente aceito enquanto que nas áreas social e escolar discorda-se dele. A partir de nossas reflexões sobre as relações existentes entre os processos de discriminação e o preconceito apresentadas no começo deste trabalho, esperávamos observar que a atitude dos docentes frente à Resolução do CFP estivesse relacionada com um conjunto de fatores psicossociais que classificamos em três grupos: fatores sócio-demográficos, particularmente o gênero; fatores culturais como a religião; e fatores profissionais como área de atuação e os modelos de análise da homossexualidade. Na análise do grau de aceitação da Resolução do CFP, como de fato os três aspectos inicialmente avaliados relacionavam-se fortemente entre si, decidimos construir uma nova variável denominada de “Atitude Positiva frente à Resolução”. O coeficiente de fidedignidade desta escala é = 0.80, coeficiente elevado Quando se considera que a escala só possui três itens. Portanto, a fim de analisar as relações existentes entre fatores psicossociais e a atitude positiva frente a Resolução, realizou- se uma correlação múltipla utilizando o método Stepwise (gradual), que vai selecionando, passo a passo, as variáveis que se relacionam significativamente com a variável independente. A melhor reta de regressão obtida pelo método gradual (tabela 3 [1] – as duas primeiras colunas) dá um coeficiente de correlação múltipla de R = 0.85, explicando em torno de 65 % da variabilidade da atitude positiva frente à Resolução. Nesta fórmula, o conjunto selecionado é constituído pelas variáveis: Religião Evangélica; Atuação na área Social; e Modelos Teóricos Fisiológico e Psicossocial. Constata-se (tabela 3 [1] primeira e Segunda colunas de dados) que a participação na Religião Evangélica relaciona-se significativamente com uma atitude negativa frente à Resolução. No que concerne às variáveis profissionais,observa-se que o fato de pertencer a área social e concordar com o modelo psicossocial está positivamente relacionado com uma atitude positiva frente à Resolução enquanto que a concordância com o modelo fisiológico relaciona-se com uma atitude negativa. Os processos de rejeição e/ou aceitação da discriminação existentes em nossa sociedade são complexos e possuem diversos elementos que não se articulam de maneira linear. Por isso consideramos importante ver quais variáveis se relacionavam com pontos específicos da Resolução, particularmente com o ítem 2, que afirma que a homossexualidade não é doença nem distúrbio nem perversão e 19 com o ítem 3, que afirma que os psicólogos não devem participar de eventos que proponham a cura da homossexualidade. Tabela 3 Regressões múltiplas do conjunto de variáveis de professores de Psicologia que se relacionam com: [1] a atitude favorável à Resolução CFP; [2] a afirmação de que a homossexualidade não é doença; e [3] proibição de propor cura para a homossexualidade. V a r i á v e i s [1] Atitudes Positivas frente a Resolução [2] A homossexualidade não é doença [3] Não participar de serviços de cura Corr. Par. P. < Corr. Par. P. < Corr. Par. P. < Socio-demográficas Gênero .22 n. s. -.41 .05 -.06 n. s. Religiões Rel. Católica -.07 n. s. -.01 n. s. -.00 n. s. Rel. Evangélica -.42 .O25 .01 n. s. -.43 .025 Rel. Espírita -.23 n. s. -.22 n. s. -.20 n. s. Área de atuação Social .37 .025 .15 n. s. .23 n. s. Escolar .15 n. s. -.13 n. s. -.24 n. s. Clínica -.15 n. s. .02 n. s. -.43 .025 Modelos Teóricos: Fisiológico -.69 .0005 -.64 .0025 -.66 .001 Psicanalítico -.14 n. s. -.12 n. s. -.17 n. s. Psicodinámico -.10 n. s. -.24 n. s. -.09 n. s. Psicossocial .32 .05 .29 n. s. .41 .10 E S T A T Í S T I C A S Coef. Correl. Múltipla R = 0.855 R = 0.707 R = 0.787 % Variabilidade Expl. 65 % 44 % 54 % Signific. da amostra F = 9.564 F = 8.525 F = 8.690 P. < .0005 .005 .0025 No que concerne ao segundo ítem, a análise de Regressão múltipla feita pelo método gradual (tabela 3 –[2] terceira e quarta colunas) seleciona duas variáveis, gênero feminino e modelo fisiológico, com um coeficiente de regressão R = 0.71 que explica 44% da variabilidade do ítem 2. O modelo fisiológico já tinha 20 aparecido como a variável mais importante na formação de uma atitude negativa frente à Resolução do CFP. Constata-se nesta análise que a rejeição se dirige também à idéia da homossexualidade não ser uma doença. O modelo fisiológico implica em que o comportamento homossexual pressupõe, no mínimo, um distúrbio fisiológico. Não esperávamos encontrar uma relação negativa entre o fato de ser mulher e a aceitação da idéia de que a homossexualidade não é uma doença. De fato não acreditamos que o desacordo com esta idéia tenha algo a ver com o gênero em si mas com o fato de nesta amostra existirem muito mais mulheres (6) que homens (1) atuando na área clínica. De fato, quando se refaz a Regressão Múltipla retirando a variável gênero, observa-se que junto ao modelo fisiológico aparece a atuação profissional na área social como fator positivo de concordância com a idéia de a homossexualidade não ser uma doença. Na nossa amostra só aparecem homens trabalhando nessa área. Não é o gênero mas a área de atuação profissional que levaria tanto a concordar com a idéia de que a homossexualidade não é uma doença (o caso da área social) quanto a discordar dela (o caso da área clínica). No que concerne ao ítem 3, que afirma que os psicólogos não devem participar de eventos que proponham a cura da homossexualidade, a análise de Regressão Múltipla realizada pelo método gradual mostra (tabela 3 [3] duas últimas colunas) a existência de 3 variáveis significativamente influentes: modelo fisiológico, atuação na área clínica e a prática de uma religião evangélica, com um Coeficiente de Regressão R = 0.79 que explica 54 % da variabilidade do ítem 3. Portanto as variáveis que se relacionam negativamente com a proibição de colaborar em atividades e serviços de cura da homossexualidade são: a atuação na área clínica; a concordância com o modelo fisiológico; e a participação na religião evangélica. Até este momento nos temos limitado a analisar os fatores psicossociais que determinam o grau de aceitação da Resolução 001 por parte de um grupo de professores de Psicologia. E o estudo mostra que fatores como a área de atuação profissional e os modelos teóricos adotados pelos docentes, se relacionam significativamente com a aceitação ou rejeição da Resolução. Assim observamos que a adoção de um modelo fisiológico na análise da homossexualidade relaciona-se negativamente com a Resolução tanto no seu teor geral quanto nos aspectos específicos. Já a perspectiva psicossocial e a atuação na área social relacionam-se com a atitude positiva frente à Resolução como um todo. Por outro lado, a atuação na área clinica parece levar a uma atitude negativa frente à aspectos específicos da Resolução, particularmente no que se refere à proibição de propor cura para a homossexualidade. 21 Os resultados mostram que teorias e práticas psicológicas influenciam de maneira diferencial na construção de elementos cognitivos que podem colaborar com os processos de inclusão/exclusão social. Mas não se está afirmando que estes fatores profissionais se relacionem com o preconceito homofóbico tal como o definimos anteriormente. De fato, foi avaliada a existência de uma possível atitude preconceituosa dos professores perguntando-lhes o grau de concordância com a idéia da homossexualidade ser um problema moral, de falta de caráter. De fato, 72% dos professores discordam totalmente, 17% discordam e só 11% afirmam não saber. Nenhum professor concorda com esta idéia que é explicitamente preconceituosa. Uma análise de correlação múltipla mostrou que nenhuma das variáveis estudadas se relaciona significativamente com esta afirmação preconceituosa. O conjunto de dados deste estudo mostra que apesar da existência, entre professores de Psicologia, de uma norma de racionalidade bastante forte que lhes predispõe contra atitudes explicitamente preconceituosas, suas teorias e práticas psicológicas podem sim contribuir ao reforço de situações discriminatórias na medida em que essas teorias e práticas colaboram em manter uma compreensão do homossexual como portador de alguma anormalidade e necessitado de cura. 22 Bibliografia Allport, G.W. (1954), The nature of prejudice, Cambridge, MA, Addison-Wesley. Augoustinos, M. e Walker, I. (1995) - Social Cognition: An Integrated Introduction. London, Sage. Billig M. (1985) - Prejudice, categorization and particularization: from a perceptual to a Rethorical approach. European Journal of Social Psychology, 15, 79-103. Billig M. (1991) Ideology and opinions: Studies in Rethorical Psychology. London, Sage. Bowser. B. P. (1995) – Introduction: The global community, racism and anti-racism. Em B. P. Browser (Org.) Racism and Anti-racism in World Perspective. London, Sage. Brito, S.; Macedo, J. e Camino, L. (1995) - A influência de um movimento social sobre as crenças na ascensão social de meninos de rua. Em: Anais do II Coloquio Franco- Brasileiro de Educação e Linguagem. Natal, RN; Editora Universitária da UFRN, pp. 28- 33. Brown, R. (1995). Prejudice: its social psychology. Oxford: Blackwell Publishers. Camino, (1989) - Avaliação das Eleições Municipais de 1988. Comunicação oral no I Seminário Nacional sobre Comportamento Político. 12 a 14 de março, Florianópolis,SC. Camino, L. (1996a) - Uma Abordagem Psicossociológica no Estudo do Comportamento Político. Psicologia e Sociedade. 8(1), 16-42. Camino, L. (1996b) - O Conhecimento do Outro e A Construção da Realidade Social: Uma Análise da Percepção e da Cognição Social. João Pessoa, Editora Universitária da UFPB. Camino L. (1996c). A Socialização Política: Uma análise em Termos de Participação Social. Em: L. Camino & P. Menandro (Orgs.) - A Sociedade na Perspectiva da Psicologia: Questões Teóricas e Metodológicas. Rio de Janeiro, Coletâneas da ANPEPP, Vol 1, No 13. pp. 14-36. Camino, L., e Da Costa, J.B. (1994). A Participação Política do Adolescente: Indicação de uma Abordagem Psicossocial a partir da Noção de Identidade. Temas de Psicologia, 1, 1-16. Camino, L., Lima, M.E. e Torres A.R. (1997). Ideologia e Espaço Político em Estudantes Universitários. Em: L. Camino; L. Lhullier & S. Sandoval (Orgs.). Estudos do Comportamento Político: Teoria e Pesquisa. Florianópolis. Letras Contemporâneas. pp. 87-105. Camino. L., Silva, E. A. & Souza, S.M. (1998a). Primeiros Passos para a Elaboração de um Modelo Psicossociológico do Comportamento Eleitoral: Estudo dos eleitores de João Pessoa na campanha de 1992. Estudos em Psicologia. Camino, L., Torres, A.R. e Da Costa, J.B. (1995) - Voto Identificación Partidária, Identidad Social y Construcción de la Ciudadania. Em: D’adamo, O., Beaudoux, V.G. e Montero, M. (Orgs.). Psicologia de La Acción Política. Buenos Aires, Paidós, Capítulo 7, pp. 129- 142. De Almeida, L. M. e Crillanick, Q. (1999) – A cidadania e os direitos humanos de gays, lésbicas e travestis. Em D. D. De Oliveira e Outros. (Orgs.) 50 anos depois: Relações raciais e grupos socialmente segregados. Brasilia, Movimento Nacional de Direitos Humanos. Deschamps J-C. e Beauvois J-L. (1996) Des attitudes aux attributions: Sur la construction de la realitá sociale. Grenoble, Presses Universitaires de Grenoble. Frank, D. J. e McEneaney, E. H. (1999) – The Individualization of Society and the liberalization of States Policies on Same-Sex Sexual Relations, 1984-1995. Social Forces, 77(3), 911-944. Hobsbawm, E.J.(1982) - A Era das Revoluções: 1789-1848. Rio de Janeiro, Paz e Terra. Ismael, E. e Camino L. (1997) - A Pesquisa em Psicologia: Sua prática e aspectos éticos e sociais. Revista da Unjpe. 1(2), 36-45. 23 Ismael, E., Maciel, C.M., Brandão, C.S., e Camino, L. (1995) - Categorização das Diferenças Sócio-Econômicas em Função do Desenvolvimento Cognitivo e do Meio Social. Revista de Psicologia: Reflexão e Crítica, 8(2), 249 - 272. Ismael, E.; Maciel, C. e Camino, L. (1996) - O Conhecimento do Outro: Explicações em termos de Cognição Social. Cap. II. Em: Camino, L. (Org.) O Conhecimento do Outro e A Construção da Realidade Social: Uma Análise da Percepção e da Cognição Social. João Pessoa: Editora Universitária da UFPb. p. 59 -118. Jones, J. M. (1972). Prejudice and Racism. Reading, Massachussets: Addison-Wesley. Katz D. e Braly K.W. (1958) - Verbal streotypes and racial prejudice. Em E.E. Maccoby. T.M. Newcomb e E. L. Hartley (Eds.) Readings in Social Psychology. New York, Holt, Rinehart e Winston. p. 40-46. Lippmann (1922) - Public Opinion. New York, Harcout Brace. Literer, O. F. (1933) - Stereotypes. Journal of Social Psychology, 4, 59-69. Lorenzi-Cioldi F. e Doise W. (1990) Levels of Analysis and Social Identity. En: D. Abrams e M. A. Hogg (Eds.). Social Identity Theory: Constructive and Critical Advances. London; Harvester Weatsheaf. Maciel, C.M., Brandão, C.S., Ismael, e Camino, L. (1996) - Desenvolvimento das Explicações e Expectativas de Crianças e Jovens no que Concerne às Desigualdades Sócio- Econômicas. Revista Psicologia Reflexão e Crítica, 9(2), 383-401. Mtb, Assessoria Internacional (1998) – Programa Nacional de Direitos Humanos. Brasil, gênero e raça: todos pela igualdade de oportunidade. Brasilia, MTb. Oakes P.J., Haslam A. e Turner J.C. (1994) - Stereotyping and Social Reality. Oxford, Blackwell. Oakes, P. e Reynolds, K. (1997) - Asking the Accuracy Question: Is Measurement the Answer?. in Spears, R., Oakes, P., Ellemers, N., Haslam, A.S. (1997) - The Social Psychology of Stereotyping and Group Life. Blackwell, Oxford Cambridge, EUA.pp. 51-71. Tajfel H. (1981) Human Groups and Social Categories: Studies in Social Psychology. Cambridge, Cambridge University Press. Tobeñas, J.C. (1969) - Los Derechos del Hombre. Madrid: Reus. US Department of Labor (1992) – Trends in wage and salary inequality, 1967-1988. Monthly Labor Review, 115, 23-39. Vala, J. (1996). As representações sociais no quadro dos paradigmas e metáforas da psicologia social. In L. Camino (ed.), Conhecimento do outro e a construção social da realidade, João Pessoa, Editora da UFPB. Vala J., Brito R. e Lopes D. (1997). Racismo, Identidades Sociais e Representações sobre a Estrutura Social. Comunicação apresentada no Simpósio “A Identidade Social: Abordagens na perspectiva Psicossociológica” no XXVI Congresso Interamericano de Psicologia. 6-11 de Julho. São Paulo, Brasil. Yzerbyt, V., Rocher S. & Schadron, G. (1997). Stereotypes as Explanations: A subjective Essentialistic View of Group Perception. in Spears, R., Oakes, P., Ellemers, N., Haslam, A.S. (1997) - The Social Psychology of Stereotyping and Group Life. Blackwell, Oxford Cambridge, EUA.pp. 51-71.
Compartilhar