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Texto de apoio conceito e natureza juridica do casamento

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4.2.1 – Casamento - conceito e natureza jurídica
A primeira das relações componentes do direito de família é o casamento, cujo estudo compreende a maior parte do ramo familiar do direito civil. 
A título de ilustração, vale dizer que há normatizados, somente no Código Civil de 2002, cerca de 150 dispositivos ligados direta ou indiretamente a essa relação. Seguindo longa tradição do direito civil brasileiro, o Código Civil brasileiro de 2002 optou por não definir o casamento. De igual forma, também o Código Civil Alemão não traz, em nenhum de seus dispositivos, definição de casamento, e no mesmo sentido não o fazem o Código Civil Italiano, o Código Civil Francês e o Código Civil Suíço.[1: É o que nos informa Wilfried Schlüter: “Em nenhum lugar, o direito vigente apresenta uma definição de casamento e também não contém nenhuma declaração expressa sobre seu sentido e finalidade” (ob. cit., p. 68). ][2: Ver em Código Civil Italiano, traduzido diretamente do italiano por SOUZA DINIZ, Distribuidora Récord Editora, Rio de Janeiro, 1961.][3: Ver em Código Napoleão ou Código Civil dos Franceses, traduzido por SOUZA DINIZ, Distribuidora Récord Editora, Rio de Janeiro, 1962.][4: Ver em Código Civil Suíço e Código Federal Suíço das Obrigações, traduzido diretamente do texto original alemão por SOUZA DINIZ, Distribuidora Récord Editora, Rio de Janeiro, 1961.]
Diferindo de todos os anteriormente citados, o Código Civil Português estabelece em seu artigo 1.577: “Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código”.
A definição do código lusitano pode ser adotada também entre nós por se adequar ao nosso direito e à nossa sociedade. De fato, casar-se é optar por viver com uma outra pessoa em comunhão, com a finalidade de constituir família. Mais do que definir casamento, o Código Civil Português demonstrou claramente a sua opção na indicação da natureza jurídica do instituto, qual seja: contrato.
No mesmo sentido parece ter sido a opção do Código Civil de Quebec, cujo artigo 365, prevê: “O casamento deve ser contratado publicamente perante um celebrante competente e na presença de duas testemunhas”.[5: Tradução livre nossa, do original: “Le mariage doit être contracté publiquement devant un célébrant compétent et en présence de deux témoins”. In Code Civil du Québec, 1995, 3ª édition, Les Éditions Yvon Blais INC.]
A doutrina, contudo, tem formulado outras definições para casamento, p. ex.: ”Casamento é o contrato de direito de família que tem por fim promover a união do homem e da mulher, de conformidade com a lei, a fim de regularem suas relações sexuais, cuidarem da prole comum e se prestarem mútua assistência”; “Casamento é o vínculo jurídico entre o homem e a mulher que visa o auxílio mútuo material e espiritual, de modo que haja uma integração fisiopsíquica e a constituição de uma família”; “O casamento pode ser descrito como uma união, a princípio indissolúvel, de um homem e uma mulher, baseada na livre decisão e reconhecida juridicamente, para uma comunidade de vida que compreenda toda a personalidade”; “O casamento é o contrato civil e solene pelo qual, o homem e a mulher se unem visando viver em comum e prestar-se mútua assistência e socorro, sob a direção do marido, chefe da casa”.[6: Rodrigues, Silvio. Direito Civil – Direito de Família. Volume 6. Saraiva, 27ª ed.. São Paulo, 2002, p. 19.][7: Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 5° volume. Saraiva. 17ª ed., São Paulo, 2002, p. 39.][8: SCHLÜTER, Wilfried, ob. cit. p. 71.][9: COLIN, Ambroise e CAPITANT, H.. Cours Élémentaire de Droit Civil. Tome Premier. Huitiéme Édition. Librairie Dalloz, Paris, 1934, p. 114. Tradução livre nossa do original: “Le mariage est le contrat civil et solennel par lequel l’homme et la femme s’unissent en vue de vivre en commun et se prêter mutuellement assistance et secours sous la direction du mari, chef du ménage”. ]
A mencionada opção legislativa brasileira de não definir o instituto, faz reacender a discussão sobre a natureza jurídica do casamento. De fato, três são as correntes que, historicamente, debatem o tema, a saber:
Contratualista;
Institucionalista;
Mista
Para a primeira (contratualista), o casamento seria um “contrato”, uma vez que o elemento volitivo aparece de modo intenso, seja na sua formação, seja na sua continuidade, seja, outrossim, no exercício de faculdades tais como a escolha do regime de bens, além de outros aspectos, tais como escolha do nome. Ainda que se diga que esse “contrato” tenha caráter solene, pressupostos mais rigorosos que outras formas, além do evidente interesse estatal, nem por isso deixaria de ter a natureza jurídica contratual. 
José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz entendem que casamento é “negócio jurídico bilateral”. Melhor esclarecem os autores: “Não utilizaremos, para qualificar o casamento, a expressão “contrato” pela circunstância de que, no Brasil, a palavra “contrato” tem, de regra, aplicação restrita aos negócios jurídicos patrimoniais e, dentre eles, aos negócios jurídicos bilaterais de Direito das Obrigações. Historicamente, porém, a palavra “contrato” foi aplicada ao casamento, particularmente pela Igreja Católica. Essa aplicação é explicável historicamente: 1.°) pela vitória, na doutrina medieval, do princípio do consentimento, em virtude do qual se entendeu como “contrato”, no caso, o acordo de vontades entre o homem e a mulher para a formação do casamento; 2.°) como base do sacramento, o que explicava, principalmente a partir do Concílio de Trento, o poder da Igreja de legislar sobre impedimentos dirimentes e nulidade matrimonial (matéria contratual), e a conclusão de que a declaração de nulidade do casamento (como contrato) acarretava necessariamente a insubsistência do próprio sacramento: ubi non est contractus non est sacramentum.”.[10: OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de, e MUNIZ, Francisco José Ferreira. Direito de Família (Direito Matrimonial). Sérgio Antônio Fabris Editor. Porto Alegre. 1990, p. 125.]
Interessante opinião é a de Ana Prata abordando a teoria da autonomia privada, inclusive, no próprio matrimônio: “Por outro lado, o prevalecimento da noção de autonomia no conceito de negócio jurídico veio a traduzir-se no generalizar da sua aplicação a atos de conteúdo extremamente heterogêneo, mas em que tal característica de liberdade da vontade era comum. Assim, que atos como o casamento, por exemplo, passem a ser vistos como negociais.”[11: Ana Prata, A tutela constitucional da autonomia privada, p. 12/13.]
C. Massimo Bianca, por sua vez, argumenta que o contrato pela sua estrutura bilateral ou plurilateral se caracteriza também por sua patrimonialidade – susceptível de valorização econômica (no código de 1865, art. 1098, não era mencionado este requisito, apesar de ter uma noção circunscrita). Para ele, quando o acordo é para regular, extinguir ou constituir uma relação jurídica não patrimonial, isola-se da condição de contrato, voltando somente à categoria de negócio jurídico.[12: BIANCA, C. Massimo. Diritto Civile – Il Contratto. Giuffré. Milão, 1987, p. 2/3.]
O propósito dessa discussão é a dissociação entre contrato e negócio jurídico, mesmo porque um dos grandes argumentos contrários às teorias contratualistas do matrimônio é justamente a sua equiparação a outros contratos – por exemplo, comerciais. 
Na verdade, a questão de nomenclatura vem sendo resolvida pela doutrina, mormente pela italiana, como problema classificatório. Deste modo, pode-se dizer que o contrato é a principal figura da categoria negócio jurídico. Esta categoria foi elaborada pela doutrina pandectista, que definiu negócio jurídico como o de ato de vontade imediatamente direcionado a constituir ou extinguir uma relação jurídica. Portanto, não se trata propriamente de um ato livre. Nesse sentido, negócio jurídico é o poder que tem a pessoa de decidirsobre a própria esfera jurídica, pessoal ou patrimonial com um determinado fim.[13: Conforme BIANCA, C. Massimo, ob. cit., p. 8. ]
Em parte, por essas razões é que se entende que o contrato não pode ser reduzido a uma operação econômica. Isto porque o contrato é um fenômeno jurídico distinto da ulterior operação econômica. E, ademais a relação contratual não é uma simples resultante de leis econômicas. 
Não se nega, outrossim, que o contrato venha a ser influenciado por tais leis, mas, há que admitir, por outro lado, que fatores outros, não econômicos podem influenciar a formação de um contrato (ex.: particulares motivações de caráter pessoal). É o correto raciocínio de C. Massimo Bianca, com o qual se concorda.[14: BIANCA, C. Massimo, ob. cit., p. 28.]
Enfim, deve-se entender que também o ato do contrato se insere em um contexto social que tende privilegiar o princípio da solidariedade e que o ordenamento jurídico pode interferir garantindo uma posição contratual mínima em detrimento daquele jogo de forças econômicas. Mesmo porque, como já se disse, deve ser levado em consideração que o contrato não se reduz a relações de trato patrimonial. 
Dissertando a respeito das três teorias, as quais denomina religiosa (institucional), contratualista e social, Eduardo dos Santos escreveu: “Mas do que se trata, fundamentalmente, nessas três concepções é, sim ou não, da liberdade dos cônjuges de romper a comunhão conjugal e dissolver o casamento, e do fundamento último dessa liberdade. Na concepção religiosa, essa liberdade está excluída, por o casamento ser uma instituição divina, perpétua, por isso. Na concepção contratualista, os cônjuges são livres de dissolver o vínculo matrimonial quando e como entendam, porque são senhores, os dois únicos senhores, da sua comunidade conjugal. Na concepção social, os cônjuges poderão ter essa faculdade se o Estado lha atribuir. E somente nos precisos termos e casos que ele definir e fixar. Como se vê, também nestas grandes concepções do casamento é possível, dentro de cada uma delas, distinguir entre o casamento-acto e o casamento-estado. Por isso, se pode dizer que o casamento-acto, foi sempre considerado, ao longo da História, como um contrato”. [15: SANTOS, Eduardo. Direito de Família. Livraria Almedina. Coimbra. 1985, p. 132/133.]
No mesmo sentido, porém mais incisivos em seus argumentos, preconizam Colin e Capitant: “O casamento é, já dissemos, um contrato. De uma parte, com efeito, ele resulta de um acordo de vontades; de outra parte, ele produz obrigações. Não é essa, precisamente, a concepção clássica de contrato?”.[16: COLIN, Ambroise e CAPITANT, H., ob. cit. p. 115. Do original: “Le mariage est, disons-nous, un contrat. D’une part, en effet, il résulte d’un accord de volontés; d’autre part, il produit des obligations. N’est-ce pas là, précisément, la conception classique du contrat?”.]
Karl Larenz, por seu turno, analisando as características do negócio jurídico, já demonstrou que o negócio jurídico é um ato – ou uma pluralidade de atos – cujo fim é produzir efeitos jurídicos nas relações entre particulares. É o meio para a realização da autonomia privada.[17: LARENZ, Karl. Derecho Civil – Parte General. Editorial Revista de Derecho Privado, Madri, 1978, p. 421/422]
Para Larenz, ainda, o ato pelo qual se realiza a vontade de produzir uma determinada conseqüência jurídica é uma declaração de vontade, sendo essencial que tal vontade seja expressa de modo a ser compreendida por aquele a quem a declaração se dirige. E mais: na maioria dos casos não é suficiente a declaração de uma só pessoa, sendo necessárias declarações concordantes de duas ou mais pessoas. Tem-se aí o contrato. Neste caso, o negócio jurídico não é a declaração de vontade isolada, mas sim a atuação correlacionada de ambos os contratantes. 
Conclui, por fim, o mencionado doutrinador que o contrato é mais do que a mera soma das declarações de vontade, sendo necessário que tais vontades se relacionem entre si conforme um sentido: o contrato é uma totalidade dotada de sentido. É possível, ademais, que a lei possa exigir outros atos, tais como: atos de execução ulterior (ex.: a tradição, para a transferência do domínio de coisa móvel); a cooperação de um terceiro (ex.: o oficial do Registro Civil, no caso de casamento); um evento natural (ex.: a morte do testador); ou o implemento de uma condição. Em todos esses casos, o negócio jurídico só produzirá efeitos, quando esse ato posterior tiver sido implementado.[18: Idem, ibidem, p. 423/425.]
Já a concepção institucionalista do matrimônio é embasada, essencialmente, na mudança do estado dos nubentes, de solteiros para casados, e do reflexo social causado pela mudança, por exemplo, na constituição do vínculo de afinidade. Ademais, não há para os casados liberdade para alterar a maioria das normas pertinentes ao casamento, uma vez que providas de considerável carga de interesse público.
Maria Helena Diniz, defendendo tal tese, aduz: “Por ser o matrimônio a mais importante das transações humanas, uma das bases de toda constituição da sociedade civilizada, filiamo-nos à teoria institucionalista, que o considera como uma instituição social.”[19: DINIZ, Maria Helena, ob. cit., p. 44.]
Mais adiante, conclui a autora: “A idéia de matrimônio é, ante essas considerações, oposta à de contrato. Considerá-lo como um contrato é equipará-lo a uma venda ou a uma sociedade, colocando em plano secundário seus nobres fins. Deveras, difere o casamento, profundamente, do contrato em sua constituição, modo de ser, alcance de seus efeitos e duração. O contrato tem no acordo de vontade dos contraentes seu principal elemento, ao passo que, no matrimônio, a simples vontade dos nubentes não tem o condão de constituí-lo; requer necessariamente, a intervenção da autoridade eclesiástica ou civil para sancionar e homologar tal acordo. No contrato as partes estipulam livremente condições e termos, o que não se dá no casamento, porque as normas que o regulam não só limitam como chegam até a aniquilar toda autonomia da vontade; logo, os consortes não podem, de modo algum, adicionar cláusulas, disciplinar as relações conjugais e familiares de forma contrária à estabelecida em lei, salvo no que concerne aos interesses patrimoniais, embora limitadamente (...) Além disso, não pode ser dissolvido por mútuo consentimento ou pelo distrato, como ocorre no contrato; somente poderá ser resolvido nos casos expressos em lei (CF, art. 226, § 6.°). Logo, o casamento é um estado matrimonial, cujas relações são reguladas por norma jurídica”. [20: Idem, ibidem, p. 44/45.]
Concorda com esse entendimento Arnold Wald, para quem: “Entendemos que são contratos os atos jurídicos bilaterais ou plurilaterais que sé criam obrigações (deveres jurídicos de natureza patrimonial). Quando um ato jurídico cria deveres sem conteúdo patrimonial, não é mais contrato. Ora, vimos que o casamento não se limita a ter efeitos econômicos, criando outros deveres jurídicos sem conteúdo patrimonial para o casal. Assim sendo, conceituamos o casamento como um ato jurídico complexo e solene que não tem natureza contratual (...). A Igreja Católica também se opõe à conceituação exclusivamente contratual do casamento, pelo fato de se admitir nos contratos a possibilidade de rescisão bilateral, que significaria a admissão do divórcio. É evidente que a densidade do vínculo existente no casamento e a sujeição a normas de ordem pública, que inspiram todo o direito de família, descaracterizam o casamento como contrato. Não é contrato na sua formação, pois necessita de uma intervenção da autoridade pública, que é essencial e tem caráter constitutivo e não meramente probatório. Não é contrato nos seus efeitos, pois cria deveres legais que não têm caráter obrigacional. É assim, uma verdadeira instituição, à qual não se aplicam as normas gerais referentes ao direito das obrigações.”[21: WALD, Arnold. O Novo Direito de Família. Saraiva, 14ª ed., São Paulo, 2002, p. 54/55.]
Háainda, aqueles que pensam ter a natureza jurídica do casamento duplo aspecto, distinguindo a convenção do casamento e o estado matrimonial dos nubentes. Esse pensamento tem em Marcel Planiol um de seus defensores, havendo encontrado reflexo entre nós na obra de Sílvio Rodrigues, que argumenta: “Note-se que o casamento não se ultima nem se aperfeiçoa apenas pela conjunção da vontade dos nubentes. O oficial público, que preside a cerimônia do casamento, não se contenta em autenticar a vontade dos cônjuges, como o notário perante quem se processa uma escritura. Aquele celebra o casamento, recorrendo a uma fórmula consignada na lei (...). Portanto, trata-se de uma instituição em que os cônjuges ingressam pela manifestação de sua vontade, feita de acordo com a lei. Daí a razão pela qual, usando de uma expressão já difundida, chamei ao casamento contrato de direito de família, almejando, com essa expressão, diferenciar o contrato de casamento dos outros contratos de direito privado.”[22: Ver PLANIOL, Marcel, ob. cit., p. 240/241. ][23: RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil – Direito de Família. Volume 6. 27ª ed.. Ed. Saraiva. São Paulo, 2002, p. 20/21.]
E mais adiante, o aludido autor, completa seu raciocínio: “Em suma, o casamento assume a feição de um ato complexo, de natureza institucional, que depende da manifestação livre da vontade dos nubentes, mas que se completa pela celebração, a qual é ato privativo de representante do Estado”.[24: Idem, ibidem, p. 22.]
O que aparentemente visam demonstrar os defensores da teoria eclética é que o matrimônio seria contrato em sua formação, e instituição em sua existência e finalidade.
Não se trata de mera discussão acadêmica debater a natureza jurídica do casamento; seu estudo revela a condição social, refletindo a tendência histórica adotada pelo direito de determinado país e determinada época, daí poder-se dizer que casamento não é um contrato, mas “está contrato”. 
Esse raciocínio, inclusive, se coaduna com os ensinamentos de Eduardo Garcia Maynez, já apresentados em nosso capítulo inicial, ressaltando a importância da localização temporal dos conceitos. A mutabilidade, a intangível força do tempo incide sobre os institutos, modificando-os, através da permeabilidade social. [25: Elucida-nos Eduardo García Máynez: “Toda realidade empírica está temporal e espacialmente localizada. Enquanto as coisas são exemplares, instâncias de conceitos gerais, não há porque tomar em conta o lugar em que se falam ou o momento em que se produzem. É da essência do conceito científico natural ter validade para objetos que existem em diferentes lugares e em momentos distintos. O único e individual se dá em troca em um certo espaço e em um determinado momento. A determinação espacial não tem nesta conexão maior importância. Mas, da temporalidade de todo o real deriva, segundo Rickert, uma característica das realidades individuais que é preciso ter em conta”. ]
Em outras palavras, atualmente, o casamento, devido à liberdade contratual conferida aos nubentes, inclusive no que concerne à sua dissolução pela separação e divórcio, possui, hoje, características que o aproximam mais de contrato, do que de instituição. 
Além disso, não se pode esquecer, dentro do aspecto de liberdade contratual, que os nubentes podem escolher até mesmo entre as opções do casamento e da união estável, as quais sendo similares, embora não equiparadas, possuem a mesma finalidade-essência, qual seja: a constituição de família.
Não seria essa, aliás, a característica marcante do princípio da autonomia da vontade, presente na teoria geral dos contratos, e particularizado na liberdade de contratar. Orlando Gomes esclarece: “O conceito de liberdade de contratar abrange os poderes de auto-regência de interesses, de livre discussão das condições contratuais e, por fim, de escolha do tipo de contrato conveniente à atuação da vontade. Manifesta-se, por conseguinte, sob tríplice aspecto: a) liberdade de contratar propriamente dita; b) liberdade de estipular o contrato; c) liberdade de determinar o conteúdo do contrato”.[26: GOMES, Orlando. Contratos. Atualizador: Humberto Theodoro Júnior. Forense, 18ª ed., Rio de Janeiro, 1998, p. 22.]
Opta-se, a fim de demonstrar a grande incidência de normas que indicam a preponderância da natureza contratual do casamento no novo Código Civil Brasileiro, por examinar, as ditas leis. Se não, veja-se.
4.2.2 – A prova no casamento e nos negócios jurídicos
No que diz respeito à prova, observe-se como ela se comporta no negócio jurídico (art. 212. “Salvo o negócio a que se impõe forma especial, o fato jurídico pode ser provado mediante: I – confissão; II – documento; III – testemunha; IV – presunção; V – perícia”) e a prova do casamento (art. 1.543. O casamento celebrado no Brasil prova-se pela certidão do registro. Parágrafo único. Justificada a falta ou perda do registro civil, é admissível qualquer outra espécie de prova.).
Nota-se, claramente, a opção legislativa no sentido de dotar, sistematicamente, o casamento dos mesmos meios de prova admitidos nos demais negócios jurídicos, inclusive no que toca às presunções, mormente aquela que milita, em caso de dúvida, pelo julgamento favorável ao casamento (hipótese do art. 1.547). Ora, esse princípio não é outro senão o princípio da boa-fé, expresso no novo Código Civil em seu art. 422, somado à função social do matrimônio, que também se configura um dos princípios contratuais (art. 421).
4.2.3 – Casamento e Eficácia
Quanto à questão da eficácia, mais intensas se tornam as características contratuais. Observe-se, por exemplo, o sentido e o alcance do art. 1.565 (“Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família. § 1.° Qualquer dos consortes, querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do outro. § 2.° O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas”). A liberdade contratual, uma vez mais se manifesta, seja no que diz respeito ao acréscimo de sobrenome (direito esse de ambos os cônjuges), seja na opção de realização de planejamento familiar, o que, em outras palavras, significa mudança no modo de execução do contrato matrimonial.
Curiosa relação se apresenta, por outro lado, no aspecto dos direitos e deveres de ambos os cônjuges. Muito embora o artigo 1.566 do novo Código Civil tenha adotado a nomenclatura exclusiva de “deveres”, parece que esses constituem direitos-deveres, na perspectiva dúplice obrigacional dos cônjuges. Melhor esclarecendo: na medida em que a cada dever de um cônjuge corresponderia um direito do outro, direito esse subjetivo, como faculdade de agir, ter-se-ia a possibilidade de relativização da norma, de tal sorte que a quaisquer dos cônjuges restaria a liberdade de exercitar, por exemplo, o direito de ação, visando à separação, na hipótese de descumprimento de um dos deveres. Essa é, aliás, exatamente a essência da inadimplência contratual comum, ou seja, à parte que sofre a inadimplência contratual resta a possibilidade, ou não, de exercer o seu direito subjetivo. Trata-se de questão de mera conveniência e interesse pessoais.
Ainda nesse tópico, tem-se o dispositivo que trata do domicílio do casal (art. 1.569. “O domicílio do casal será escolhido por ambos os cônjuges, mas um e outro podem ausentar-se do domicílio conjugal para atender a encargos públicos, ao exercício de sua profissão, ou a interesses particulares relevantes”). De igual forma, observa-se que a escolha do domicílio é o encontro de vontades de ambos os cônjuges, baseado, aqui também, no princípio da autonomia da vontade, mais precisamente, no princípio da liberdade de contratar, o qual, segundo Orlando Gomes, “torna-se mais inteligível à luz da distinção entre leis coativas e supletivas. As primeiras ordenam ou proíbem algum ato, determinandoo que se deve e o que não se deve fazer. Quando ordenam, dizem-se imperativas. Quando proíbem, proibitivas. Destinam-se as leis supletivas a suprir ou completar a vontade do indivíduo, aplicando-se quando ele não a declara. Ora, o Direito Contratual constitui-se, predominantemente, de normas supletivas, deixando, portanto, larga margem à vontade dos que agem em sua esfera. Nesse território, a liberdade de contratar domina amplamente”. [27: GOMES, Orlando, ob. cit., p. 23.]
De igual forma é o sistema português (esse, claramente, contratualista), em relação ao domicílio do casal, informa Eduardo dos Santos: “O dever de coabitação obriga os cônjuges a viverem sob o mesmo tecto, sendo o lugar de vida em comum a “residência da família”. A mulher já não está obrigada a adoptar a residência do marido. Marido e mulher, um e outro, “(...) devem escolher de comum acordo a residência da família, atendendo, nomeadamente, às exigências da sua vida profissional e aos interesses dos filhos e procurando salvaguardar a unidade da vida familiar” (art. 1673.°, n.° 1)”.[28: SANTOS, Eduardo dos, ob. cit., p. 305. ]
Parece certo, portanto, que a liberdade de escolha do domicílio não sofre nenhuma ordenação ou proibição por parte do legislador, deixando ao livre-arbítrio do casal optar pela escolha do seu domicílio
4.2.4 – Casamento e alteração do regime de bens
 
O mais notável exemplo da natureza contratual do casamento no novo Código Civil Brasileiro é o capítulo pertinente às disposições gerais do regime de bens entre os cônjuges. De fato, preconiza o art. 1.639: 
“É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver
§ 1.° O regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento.
§ 2.° É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”.
Como se observa, a possibilidade de alteração do regime de bens, sem a necessidade de recorrer-se a subterfúgios tais como separações ou divórcios, usados ilegitimamente, torna clara a tendência do legislador em dar ao matrimônio os contornos contratuais, similares a qualquer outro negócio jurídico que viesse a sofrer uma novação ou ainda qualquer outro tipo de modificação das condições previamente convencionadas.
O direito civil alemão adotou a mesma opção no que diz respeito à possibilidade de modificação do regime de bens durante o casamento. É o que se deduz da leitura de Wilfried Schlüter: “É discutido de forma controversa se são colocados limites, através do direito matrimonial geral, à livre composição das relações de regime de bens. Mas existe unidade quanto à questão de os cônjuges poderem, através de contratos nupciais, anular o regime legal de bens da comunhão de aqüestos (conseqüência: ingresso do regime de separação, § 1414 frase 1 BGB) ou escolher expressamente o regime de separação ou comunhão de bens (§§ 1415 ss BGB). Além disto, eles também podem modificar o regime de bens legal ou acordado, desde que contenham determinações que não sejam imperativas. Normas que regulam a relação dos cônjuges entre si (relação interna) são geralmente dispositivas, aquelas que se referem à relação com terceiros (relação externa) são normalmente coercitivas. As normas na relação externa não podem ser modificadas em detrimento de terceiro. Assim, por exemplo, os cônjuges podem desvincular as limitações do poder de disposição dos §§ 1365 BGB, no regime da comunhão de bens, ou totalmente excluí-las, mas não podem ampliá-las. Além disto eles podem concluir acordos sobre a prerrogativa de compensação de aqüestos (§ 1378 BGB). Eles podem, por exemplo, excluir determinados valores patrimoniais da compensação de aqüestos, determinar o valor do patrimônio inicial (§ 1374 al. 1 BGB) ou fixar uma outra cota de compensação além da de 50% (§ 1378 al. 1 BGB). Eles também podem excluir totalmente a prerrogativa de compensação de aqüestos (§ 1378 BGB) para o caso do divórcio”.[29: SCHÜTLER, Wilfried. Código Civil Alemão – Direito de Família. Tradução de Elisete Antoniuk. 9ª ed.. Sérgio Antônio Fabris Editor. Porto Alegre, 2002, p. 159/160.]
Frise-se, outrossim, que a necessidade de intervenção do poder judiciário, prevista no sistema brasileiro de alteração do regime de bens, se impõe, essencialmente, como elemento de proteção aos direitos de terceiros e não, como se poderia supor como fator somente impeditivo da realização das vontades do casal. A possibilidade de alteração do regime de bens na constância do casamento constitui a viga mestra do estado contratual do matrimônio, segundo o atual ordenamento. Somente se justificaria o princípio da imutabilidade, em face das características anteriores do casamento, mormente aquelas que tornavam mais difíceis a sua dissolução pela separação e/ou divórcio. 
Como comparação histórica, por fim, é possível afirmar que o advento da Lei do Divórcio (Lei n.° 6515/77) marcou o fim da era institucional do casamento, posto que, até então, a sua dissolução somente seria possível pela morte, pela sua anulação ou pela declaração de sua nulidade. O fim do casamento como instituição foi sacramentado pela Constituição Federal de 1988, que equiparou para fins de proteção do Estado, o casamento à união estável.

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